O dia em que a Terra parou

2020-03-20

Nesse momento, assistimos atônitos a realização do que  Raul Seixas cantou em O dia em que a Terra parou: “Essa noite eu tive um sonho / de sonhador / Maluco que sou, eu sonhei / com o dia em que a Terra parou...Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém”... Curiosamente, ele finaliza a canção dizendo: “No dia em que a Terra parou / Eu acordei / No dia em que a Terra parou / justamente / No dia em que a Terra parou / Eu não sonhei, acordei / No dia em que a Terra parou...”

 

Diante do Reinado desse Corona, coroa virulenta cravada em nossas cabeças, em pleno tempo de quaresma,  vivemos a estranha sensação de estarmos e não estarmos dentro dessa cena. É inacreditável!

De primeiro, tudo parece um filme de ficção, ou um pesadelo, algo que não tem realidade factual. E, aos poucos, ou bruscamente, dependendo da experiência singular do momento de cada um, somos confrontados com um pedaço de realidade atirado sobre a gente como uma pedrada ou na melhor das hipóteses, como uma ficha que cai, e força, a contragosto, um espaço nos nossos arquivos mentais e emocionais. 

De repente você escuta: - “Minha avó conta que com a gripe espanhola, carroças com pilhas de cadáveres circulavam nas ruas”, e na TV o repórter diz que faltam, não apenas leitos para cuidar dos enfermos, mas dado o número de mortos pelo vírus, o cemitério da pequena cidade italiana já não tem mais como enterrá-los.  Um WhatsApp comunica o falecimento por corona vírus do marido de uma amiga psicanalista,  e você descobre que esteve há pouco próximo de alguém que teve diagnóstico positivo e já começa a produzir sensações sintomáticas em cadeia. Enfim, uma notícia aqui, um comentário escutado ali, um achado nas redes sociais, vai contaminando nossa existência. O ar que respiramos fica infectado, ainda que não seja pelo corona, pela espreita da morte e da miséria que se alastra.

Como um tsunami sem precedentes, vemos a pandemia avançar sobre nós. Assistimos o movimento que prenuncia que ela vai se agigantar pro nosso lado.  A pandemia, essa epidemia do todo, nos força a olhar pro mundo. Ainda que seja pra egoisticamente tentar salvar a própria pele, ou a pele daqueles a quem amamos. 

De certa forma, parece que seremos forçados, enquanto civilização a pagarmos a conta da negação do perigo do não reconhecimento de nossa vulnerabilidade e de nosso pertencimento ao todo. Quisemos crer que fechados em condomínios, carros blindados, assegurados por cargos de prestígio, ações na bolsa, reservas financeiras, palácios privados, títulos, influências políticas, informações privilegiadas, conhecimentos, suplementos vitamínicos, aparelhos tecnológicos, circuitos de deslocamento protegidos, tudo isso que ajudou a alimentar até aqui um selvagem império do valor do capital em detrimento do valor da vida, e que atuou até mesmo em nome de hipocritamente “garanti-la”, revela-se na sua mais absoluta impotência. Aliás a expansão mundial do corona começa pelos mais abastados, supostamente os mais protegidos, os que podiam viajar. 

Borbulham as teorias da conspiração que tentam descobrir culpados pela infestação. Bioterrorismo americano contra os chineses, aproveitando-se do acolhimento nos Jogos  Militares de outubro de 2019 em Wuhan? Ouvi falar também em golpe de mercado chinês, vocês acreditam?  É tanta coisa que lemos, vemos, escutamos... Das mais pertinentes às mais absurdas...Mas agora o que importa nessa guerra na qual somos todos reféns, é que as bombas e estilhaços  atingem a todos implicando que as ações solidárias que visam o coletivo, não são mais opcionais, salvo se se optar por ações suicidarias ou assassinas. 

Seja o que for que venha a acontecer depois dessa onda, porque certamente se trata de uma onda, vai passar. O mundo não será mais o mesmo. Sua penalidade será o trabalho forçado de reinvenção de nossos hábitos, nossas relações pessoais, familiares, nossos modelos de trabalho, nossa economia, nossos sistemas políticos, nossa organização sanitária, nossa relação com as ideologias ...    

De súbito uma consciência planetária se adensa nesse momento, pela experiência radical de um contágio que revela que estamos ameaçados porque somos todos da mesma raça – a raça humana.  

No reino do Corona, não há diferenciação de branco, negro, amarelo, vermelho, ou furta-cor. Estamos todos igualmente, roxos de medo, humanamente vulneráveis.

Nesse reino, também não se distingue gênero, tampouco opções sexuais, ideológicas, condições financeiras, nele  se transpõe até mesmo, fechamento de fronteiras. O mundo se revela sem fronteiras, como cantava John Lennon em Imagine, ainda que isso nos seja escancarado pela pior via, a da destruição sem fronteiras. 

Curiosamente esse vírus, revela ainda que o fato de sermos seres sociáveis, que buscam a proximidade física, pode ser letal. Coloca em evidência que as expressões de amor que salvam, também podem matar. A vida é complexa, paradoxal, nenhum pensamento linear dá conta dela.

Se por um lado os jovens e saudáveis estão menos em perigo de vida porque, pelo visto, para esses não há letalidade em jogo, por outro lado, não passarão ilesos ao perderem mães, pais, avós, e vulneráveis queridos. Isso certamente, não será sem custo.

Nesse momento é preciso sim um alarme social. Não para que a pandemia nos deixe em pânico, aliás, as duas palavras têm a mesmo origem, mas para que acordemos desse sonho idiota que fez com que essa organização de nossa sociedade se acreditasse imune a uma catástrofe que democraticamente não poupa ninguém. 

Afinal de que vale termos tanta tecnologia para podermos monitorar o que está acontecendo aqui, ali e acolá e não termos estratégias para agir em conjunto, solidariamente, privilegiando a saúde, a vida das pessoas em condições dignas, o bem de todos? 

Mas quem sabe isso poderá nos fazer despertar e reinventar nosso modus vivendi. O Corona veio dizer pra gente parar e se reinventar. 

Disse o poeta profeta: “No dia em que a Terra parou / Eu não sonhei, acordei / No dia em que a Terra parou...”

Bora que chegou a hora! Tamo junto!

 

Denise Maurano

Psicanalista, escritora, membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise (RJ)
Correspondente da Association Insistance (Paris)
Integrante do Movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas do Brasil