MÃO -
EXERCÍCIO PARA UMA DELIMITAÇÃO DO FAZER POÉTICO
HAND - AN ATTEMPT TO DELIMITATION OF THE
POETICAL ACT
José Luiz Rinaldi
(UNIRIO)
Resumo
Provocado
pela frase do poeta Jorge Luis Borges, este exercício sobre o fazer artístico
orienta-se pelo pensamento de Martin Heidegger e traz alguns momentos do livro,
A origem da obra de arte, para o
empenho especulativo do artigo.
Palavras-chave | Ontologia | Arte | Verdade | Beleza e Fazer poético
Abstract
Provoked by the sentence of the poet Jorge
Luis Borges, this exercise about the artistic doing follows the thought of
Martin Heidegger and brings some moments of the book, The origin of the work of art, to the speculative pledge of the
article.
Keywords | Ontology | Art | Truth | Beauty and Poetical Doing
Que faz o artista? O que promove a obra? A técnica está
diretamente envolvida na realização de uma obra de arte? De que modo? É pela
técnica que se distingue um artista ou é uma outra dinâmica o determinante?
Será que compreendemos a técnica devidamente?
Para nos auxiliar, prestemos atenção na opinião de Borges
sobre um poeta que, para ele, foi bem sucedido por haver “treinado a mão” fazendo traduções (BORGES, 2000: 65). Antes que se possa dizer que isto é mera força de
expressão, lembro que essas palavras são de Jorge Luis Borges, um poeta e
escritor com grandeza e experiência, e que aparecem mais de uma vez em suas
palestras, proferidas nos anos de 1967 e 1968, na Universidade de Harvard. Não
se pode supor que um poeta vá faltar com seu empenho e desejo de clareza
justamente na escolha das palavras. Então, vejamos.
“Treinar a mão.”
Tanto o verbo quanto o seu objeto instigam a minha curiosidade. Treinar; a
ordem não é para estudar, para ler, para se inspirar, nada disso. Nada que
conduza à introspecção. Treinar é um termo que geralmente usamos para nos
referir a esportes, a uma atividade de cunho eminentemente físico, corporal e “mão” só faz realçar esse caráter.
Treinar nos diz o exercício do verbo, isto é, o corredor treina correr, o
nadador treina nadar, o saltador treina saltar e, o que Borges diz, é que o
escritor, o poeta, treina escrever. Isto tem sentido para nós, contudo, a
comparação soa incômoda. Como pode o ato de escrever, atividade na qual a razão
e o espírito estão empenhados e que é a própria exaltação desses, ter a mesma
natureza de, por exemplo, correr?
Estranho ou não, parece ser isso que a orientação do poeta
sugere. Além disso, ele não solicita que se treine a cabeça, a mente ou o
espírito, o treino é para a mão. Bem, também não podemos negar que o espírito
está envolvido na ação de escrever, certamente que não. Mas também não é justo
imaginar que o espírito não esteja igualmente envolvido em correr, em nadar ou
em saltar. Aliás, será possível imaginar ou supor alguma ação humana em que o espírito
não esteja disposto e, logo, envolvido?
Usemos outro enfoque. Como se descobre um jogador? Como se
descobre um corredor? O mundo descobre e o próprio se descobre apenas e
exclusivamente já disposto na ação. O jogador se descobre jogador, jogando. Do mesmo
modo, o jogador só aparece no mundo como jogador, jogando. Correndo é que algum
sujeito se descobrirá corredor. Descobrirá pela experiência de correr que lhe
despertará prazer, que o estimulará a correr mais. Será correndo que descobrirá
o tipo de corredor que é e, ainda correndo, é que chegará a forjar seu modo
próprio de correr a corrida para a qual o próprio correr o dispôs. Como
corredor só aparecerá no mundo também correndo. Campeão, promessa, promessa que
não vinga, decepção ou surpresa serão modos de aparecer que só a própria
corrida irá revelar.
O que estamos a perseguir para poder dizer é simples:
correr é o elemento no qual e desde o qual um corredor é. Como elemento, não
há, portanto, nada que possa ser fora do elemento. Só há jogo no jogar. Só há
salto no saltar. Só há verso no escrever. Treinar diz, portanto, colocar-se no
elemento, entregar-se ao elemento, deixar-se dispor pelo elemento. Tudo que se
há de descobrir, tudo que há de necessidade, o próprio elemento mostra e
oferece. E, como já deixamos antever, nada que não o próprio elemento poderá
oferecer e mostrar.
Aceitar essas últimas afirmações acarreta aceitar como
fato a negação de algumas crenças do nosso dia-a-dia: não há preparação prévia
possível para qualquer que seja a ação, não há método e não há técnica, isto é,
técnica no sentido de modelo prévio, de modo correto de. A não ser que, com
Hegel, afirmemos: o método é a própria
coisa. Coisa, aí entendido como aquilo no que se investe, em nosso caso,
jogar, correr, escrever.
O que Borges diz, então, é que o elemento da escrita é o
escrever e, por isso, é escrevendo que se deve treinar. Caso queira-se chamar
de estudo, de preparação ou iniciação o ato de treinar o escrever escrevendo,
que chamem, mas percebam a impropriedade. Já se está escrevendo e apenas por
isso é que se pode falar em estudo e preparação. O escrever pode ser até estudo
e preparação para algum objetivo específico, contudo, ainda isso é tão frágil
que o escrever é que irá determinar todo o percurso de realização e o resultado
independentemente dos cuidados prévios, das premissas e dos modelos. Toda
preparação, todo estudo, toda meditação servem, unicamente, para lançar o
sujeito no escrever. Só aí, então, no escrever, é que tudo se decide e, no
caso, o artigo, vem a ser.
A assunção de que não há nada de prévio e nada fora do
elemento permite-nos uma intensificação da compreensão do modo de ser do homem
no mundo. O modo do homem ser no mundo é dispondo-se. É na ação, agindo, que o
homem é no mundo. O elemento que é cada ação na qual o homem se realiza é, ao
mesmo tempo, o que oferece horizonte e perspectiva para o ser no mundo de cada
homem. O mundo, como o elemento no qual todas as disposições se realizam é,
portanto, o elemento do homem. Nada, absolutamente nada, então, é possível para
o homem se não no jogo de realização que mundo é. Por isso, também, que o
pensamento sobre uma profundidade do mundo ou um além dele queda inteiramente
sem propósito. Tudo, absolutamente tudo que o homem é, que o homem realizou ou
realizará, que o homem imaginou ou imaginará, repito, tudo, absolutamente tudo
se dá no jogo de realização do mundo, no vir-a-ser de
realidade.
Vedar a compreensão da dinâmica de realidade via a
construção de outras regiões, isto é, profundezas, o além do céu, a
interioridade, etc. serve para constranger nossos esforços para o que aparece,
ou seja, para o mundo.
“Mão”! Por que o
poeta treina a mão? Bem, que o elemento do poeta seja a escrita, vá lá. Que a
ação de escrever seja feita com a mão, vá lá também, contudo, essa é uma
relação puramente mecânica, em verdade escreve-se com a razão, poder-se-ia
argumentar. Certamente não se pode negar que o espírito esteja diretamente
envolvido no ato de escrever como, aliás, está envolvido em toda e qualquer
ação. Evidentemente, também, Borges sabe disso e não deseja negar. Por que,
então, será que ele fala da mão? O que ele estará pretendendo frisar com esta
menção ao corpo?
Tratamos diferentemente um saber e conhecer corporal e um
saber e conhecer pelo intelecto. Imagino não me enganar se, atualmente, e muito
provavelmente durante a maior parte da história do Ocidente, o segundo merece
respeito e deferência bem maiores que o primeiro. Porém, ao menos no caso
específico da arte, teremos que suspender tal tratamento. Um artista precisa
conhecer a matéria com a qual realiza sua obra. É preciso conhecer o barro, o
mármore, é preciso conhecer o martelete e o ponteiro. É preciso conhecer a
tinta e o pincel, o som e o instrumento, é preciso conhecer o movimento e o
corpo… Um bailarino obedece ao corpo. O limite do movimento possível, a
velocidade e a leveza possíveis, a máxima sustentação e a entrega à condução do
movimento são, de fato, não a superação da obediência, mas, isto sim, a máxima
apresentação e realização dessa obediência. É o corpo que oferece ao bailarino
a possibilidade e a dimensão dessa tensão como obediência e desafio. Só na
experiência do corpo, no movimento, ele pode vir a conhecer sua matéria. Também
assim o é a mão no barro, a martelada do ponteiro no mármore, o gesto do
pincel, a mistura da tinta, a mão no instrumento, o agrupamento de sons, etc.
Colocar a “mão na massa” oferece um modo especial de saber
e conhecer que, parece, não pode ser penetrado de outro modo. Esse “pôr a mão”
parece oferecer o modo de ser do que se toca e, determinante, um modo de ser
que de outra maneira não se oferece e, mesmo, um saber não transmissível se não
por se colocar na experiência. Só com a mão na massa se compreenderá e se fará
possível o trabalhar que é um obediente tensionar da
matéria até a realização da obra.
A culinária exibe perfeitamente o que acabou de ser dito.
Será possível que alguém que nunca cozinhou, que não tem intimidade com carnes,
massas, temperos, óleos, condimentos, fervuras e frituras possa, mesmo com a
receita mais detalhada, realizar um belo prato? Não. Faltar-lhe-á um saber que
só a experiência do manuseio pode oferecer.
Voltemos à arte. Mas no caso de escrever não seria
diferente? Em se tratando da palavra, a razão não seria essa “mão”? Se o fosse,
por que Borges não disse? Imaginemos que não seja de fato e, imaginemos, que
esta solicitação corporal diz que algo que escapa à razão poderia ser
apreendido com o corpo. Ou, ao menos, que na experiência algo que poderia não
ser visto ou ser traído pelo modo de ver da razão, não o seria pelo corpo. Que
poderia ser, que poderia escapar à razão?
Temos que tomar o que seja compreensão a sério. O que
significa ter em vista que a compreensão é o acontecimento no qual o próprio
homem vem a ser. Acontecimento, portanto, constitutivo de homem e de mundo.
Mundo é desde compreensão.
Nestas poucas linhas, certamente, fica evidente que a
compreensão aqui está sendo tomada em sua perspectiva fundamental e, logo,
distinta de seu sentido usual. A compreensão deste ou daquele problema, um
entendimento. Esse deve ser, necessariamente, o âmbito no qual instalamos o
pensamento sobre arte. Compreender o poema é imensamente distinto de entender
suas palavras. Em verdade, talvez devêssemos dizer: compreender com o poema. O
que reforça um caráter de acontecimento, no qual aparece algo que nos escapa e,
provavelmente, também escapa à experiência cotidiana do mundo.
A arte está investida em fazer aparecer o que é e como é.
O que somente poderá ser realizado por uma atitude livre. Ou seja, por uma
atitude que não parte de um sentido já posto que, portanto, não necessita
corresponder e, mais importante, não se submete ao mundo como sentido decidido.
Num modo que não se pode desenvolver aqui, a compreensão
deve ser pensada na estrutura dinâmica que Martin Heidegger nomeia temporalidade. O homem se projeta e,
projetando-se, antecipa para, num segundo momento, reconhecer compreensivamente
e desde esse momento poder dar-se a atualização. A compreensão é desde a
percepção e como reunião compreensiva. Seu horizonte é o tempo. Por isso os
verbos antecipar, retomar e atualizar. Temporalidade
é a perspectiva que apresenta o modo do dispor-se e do agir do homem. É
nesse movimento que ele decide, que ele se orienta, enfim, que vive, não
importando se tem ou não consciência de que e no que está lançado.
Certamente, não causará espanto afirmar que dificilmente
se tem, ainda que por um instante, uma pequena noção dessa conjuntura. Não é
assim que nos encontramos na maior parte das vezes. A experiência desse
movimento, este instalar-se de decisão, este instante, é raro. Aliás, muito
raramente se dá e, é bom que se diga, ninguém pode preparar-se para ele ou
persegui-lo, pois, simplesmente, não há prévia preparação.
O
instante dá-se. Ao dar-se é que alguém nele lançado pode suportá-lo ou não,
pode perder-se ou encontrar-se, pode ser grato ou desesperado. Isso saber-se-á
única e exclusivamente quando estiver entregue ao instante.
Pois bem, como na maior parte das vezes não é em tal
instante em que nos encontramos e nem tão pouco os artistas, é lícito supor que
todo movimento de compreensão se dê desde o já conhecido. Isto é, projeta-se e
reconhece segundo o que já sabe, já conhece, já espera e já supõe. Ora, como
encontrar, então, justamente o que lhe escapa e que deve ser o motivo de
empenho para o artista? Como ter uma atitude livre?
O dizer projetante
é aquele que, na preparação do dizível, faz ao mesmo tempo
advir, enquanto tal, o indizível ao mundo (Heidegger, 2007:
59).
Não seria justo pretender, pois, que o artista, neste
empenho, estivesse, por assim dizer, esquecido. Esquecido do que ele mesmo é,
esquecido do mundo, no sentido de um estar livre daquilo que, como verdade, é
no que está lançado e desde onde é, por ser o aberto do mundo em que existe?
Por outro lado, ele não pode abandonar o mundo. Já marcamos, só o mundo, só o
que aparece é circunstância para o homem, é conjuntura do movimento de
realidade. Como fazer, então?
Responderá o poeta: treinando
a mão! Como? Creio que todos já tenham tido uma experiência desta ordem.
Detendo-se para realizar algum trabalho manual: carpintaria, jardinagem,
ajudando uma criança a cortar e colar ou mesmo cuidando de um animal ou
pintando um móvel ou a garagem que serve de depósito, após um certo tempo
entregue à atividade, acaba-se por se deixar conduzir e, em um certo sentido,
esquece-se, dissolve-se o tempo marcado no relógio, os afazeres e preocupações
do dia-a-dia se distanciam e ali fica-se entretido. Curiosamente, a ação
despretensiosa e que nem lhe exige um empenho e concentração grandes, que não
exige muito conhecimento e sem uma importante finalidade, a qual podemos
realizar mecanicamente, isto é, deixando que o corpo conduza toda a ação, acaba
por nos projetar para uma suspensão na qual permanecemos enquanto se sustentar
a atividade. Se pensarmos em um compromisso, interrompemos. Se tivermos pressa
para concluir, interrompemos. Se começarmos a medir as ações, interrompemos. A
atividade só se mantém entregue e esquecidamente.
Essa entrega nos indica a natureza deste treinar a mão. O
escultor entregue à pedra, isto é, deixando-se levar pela pedra, por ela
conduzido, a ela integrando-se e correspondendo, age esquecido de si mesmo, age
esquecido do já decidido do mundo, contudo, num vínculo, o mais estreito
possível, com o mundo, ou seja, na lida direta com o que aparece sem qualquer
tipo de interposição, sem qualquer prévia posição. O escultor lida com o ente
em seu puro e bruto aparecer de ente no mundo, o escultor lida com a pedra.
Lida e envolve-se com ela até tal ponto em que tudo à exceção da pedra se
dissolve. Ele próprio se dissolve tornando-se simples mover-se e lidar com a
pedra, na pedra e pela pedra. Assim é que o escultor vem a conhecer a pedra.
Assim o escultor vem a saber a pedra. Só por isso o escultor pode “ouvir” da
pedra o que até então não havia sido “ouvido”. Só por isso o escultor pode ver
na pedra o que até então não havia sido visto. Só por isso o escultor pode
trazer ao mundo o que até então não havia aparecido.
Para isso foi necessário estar esquecido. Um tipo de
esquecimento que, em sua estranheza, é o que permite toda a descoberta. Um
esquecimento que parece advir de uma entrega corporal, mas que, suponho, ganha
todo seu sentido, apenas quando desde uma tal entrega e esquecimento o que
entendemos é o deixar-se tomar integralmente pela experiência. É abandonar-se à
experiência. É abandonar-se à experiência do ente e, por isso, abandonar-se ao
estranho e extraordinário que é o aparecer do ente. Estranheza à qual só é
possível deixar-se abandonado esquecendo a distração, a dispersão e a
solicitação dos afazeres cotidianos, do mundo tal como ele se apresenta
habitualmente. Desde tal perspectiva é que se deve entender esta sentença: “Justamente,
na grande arte, e só ela está aqui em questão, o artista permanece algo de
indiferente em relação à obra, quase como um acesso para o surgimento da obra,
acesso que a si próprio se anula na criação”. (Heidegger, 2007: 31).
A orientação que dá Borges, se levarmos em conta que o faz
dirigindo-se à menos corporal das artes, ganha o aspecto de uma exigência
fundamental, isto é, que tal disposição é constituinte do modo de ser de um
fazer poético. O que nos fala essa orientação? Treinar a mão, isto é, lançar-se
no escrever escrevendo e corporalmente entregar-se à experiência. Quanto ao
escrever só se oferecer ao próprio escrever, creio que já tenhamos conquistado
suficiente clareza. Resta, no entanto, uma melhor exposição do que seja essa
entrega corporal à experiência.
Dizer mão, dizer corpo, soa, de fato, como uma provocação,
uma provocação para justamente despertar de seu tranquilo marasmo os nossos
pensamentos. Nossos familiares pensamentos que, muito antes de serem
propriamente nossos, são herdados ou, ainda mais gravemente, nos constituem,
uma vez que somos desde a abertura que eles mesmos são. Delegar ao corpo e não
à mente a confiança da entrega à experiência está a indicar que o corpo estaria
mais bem preparado para receber a estranheza da verdade de uma experiência
fundamental. O corpo, ao contrário da mente, não estaria inteiramente
constrangido e conformado pelo mundo constituído do dia-a-dia. Isto não é uma
verdade em si, contudo, o deslocamento projeta nossa atenção para,
simultaneamente, uma desconfiança do que se apresenta conforme a razão vigente
e a acuidade possível de ser conquistada, na experiência, pela verificação
fenomenal do fato em detrimento de sua acolhida desde um prévio sentido. Afinal
de contas, sentido é mundo e é isto que se deseja que advenha da experiência.
Assim, no que diz respeito a escrever, no que diz respeito
à palavra, a orientação sugere que deixemos os sentidos já decididos das
palavras de lado. Que deixemos de lado, também, o ambiente e a circunstância
que cada palavra já possui no mundo. Que deixemos de lado qualquer significação.
Que deixemos de lado todo contexto. O que a orientação nos convoca a fazer é
lançarmo-nos no escrever escrevendo e, então, deixar a palavra soar. Sentir o
calor e a textura de cada uma. A direção de seus movimentos. Perceber suas
formas, sua umidade, sua maleabilidade, sem nada precipitar, sem pressa e com
cuidado. Escrever como quem lida na terra e deixa que o tempo de brotar chegue.
Que na lida com a palavra nada lhe imponha e deixe que ela se mostre ao seu
modo. Isto é o que oferece a orientação. Treinar a mão é escrever deixando a
palavra brotar. Escrever segundo tal orientação é conquistar o horizonte onde
se pode fazer a experiência do extraordinário do mundo. Logo, do extraordinário
com o qual o homem sempre está envolvido e pelo qual realiza tudo e, ainda
antes, a si próprio.
Sobre o modo do dispor-se do artista é que especulávamos e
que anunciamos a necessidade de que a lida no elemento conduzisse a um
distanciamento e esquecimento do já decidido. Que a experiência com o elemento
se desse sem preparação, sem interposição, enfim, a lida direta. A isto, devido
à solicitação de Borges, chamamos corporal. Dispor-se com o Corpo, isto é, integralmente, abrindo
mão de qualquer garantia. Abrindo mão de qualquer preparação, de qualquer
método. Principalmente, abrindo mão do já decidido do mundo. Não por uma recusa
precipitada ou uma vazia rebeldia. Não. A ousadia se faz necessária pelo
reconhecimento de que a experiência é pessoal e intransferível e que só na
experiência se dá o acolhimento, a conquista, a assunção e a decisão. Há de se
estar integralmente lançado na experiência para advir uma atualização própria,
para ganhar destinação e só a experiência oferece intensificação e integral
consumação, só a experiência põe horizonte para corresponder ao desafio
original de trazer o indizível ao mundo. É esta experiência ousada, uma vez que
integral, atirada e decidida que conduz desde a possibilidade à realidade da
consumação de um destino.
Ainda uma vez, vale escutar a simplicidade extraordinária
da descrição do fazer poético: “o dizer projetante é aquele que, na preparação
do dizível, faz ao mesmo tempo advir, enquanto tal, o indizível ao mundo.”
A obra de arte está sempre a projetar, a abrir, a fazer
aparecer no mundo o que ainda está por ser dito. A obra, no entanto, não fala e
projeta uma novidade, nem fala e projeta contra seja lá o que for. A obra fala
agora e fala para os que agora ouvem. A obra está no mundo. A obra, com os
elementos que estão ao alcance no mundo, nos repõe o já aberto em seu vigor original,
ela, necessariamente, oferece o reconhecimento do fundamento, da origem, do
desde onde um povo é, ela promove uma experiência instigadora do reconhecimento
e da conquista da herança. A obra fala quem somos e desde onde somos e projeta,
desde o fundamento, o próprio da destinação de uma gente. A obra
temporaliza-se, isto é, como experiência ela oferece a antecipação, a retomada
e favorece, desde o instante por ela erguido e sustentado, compreender-se
propriamente em uma atualização.
A circunstância em que se dá o aparecer promovido pela
obra de arte é a experiência. É nela e somente nela que o indizível pode advir,
que a plenitude oferece seus contornos. A experiência nos toma integralmente,
afeta nosso Corpo, em certo sentido,
nos ultrapassa. Na experiência não há um domínio da consciência, não prevalece
um controle da razão conhecida, ao contrário, ao nos ultrapassar, a
experiência, tomando-nos integralmente, conduz, num salto, a instâncias não
programadas ou previstas. A experiência nos remove do cotidiano e habitual e,
no mesmo movimento, nos repõe à maior intimidade do mundo, à estranheza de
nossa propriedade. A experiência vibra uma corda que reconhecemos em nosso
peito e que ao mesmo tempo nos é totalmente estranha. A experiência, em seu
salto, salto que se faz suspensão, lança o espírito à estranheza de sua
propriedade. A experiência dá-se. Simplesmente dá-se. Para ela não há
preparação, não há via de acesso, não há percurso que possa ser programado. Ela
é súbita. Ela é imediata, pessoal e intransferível. Não há chegada ou qualquer
tipo de aproximação, só a percebe quando já se está tomado por ela. Ela, tão
pouco, é passível de ser retida ou controlada. A experiência dá-se no tempo do
instante. Instante envolvente que a tudo remove para sua suspensa instantaneidade.
O advir do indizível, se dá na experiência, ou seja, dá-se. E como tal, não é
passível de fixação, não se deixa apreender, ao contrário, esse aparecer é que
nos toma, nos traga e remove para sua dimensão. Muito dificilmente se retém
algo mais que a sensação da remoção ocorrida na experiência desse aparecer.
Contudo, não é pouco o que essa remoção oferece. Nosso hábito, nossa cotidiana
e controladora razão, não nos auxilia a compreender a magnitude do evento que
procuramos descrever. A sensação da remoção ocorrida instala-se no espírito de
modo muito mais atuante, isto é, a um só tempo orientador e revelador, que
qualquer conhecimento adquirido sem um verdadeiro afeto do espírito. Sem que se
dê experiência. Sem que haja uma exposição direta, que só pode se dar pela
entrega de uma disposição, de uma lida, para que o Corpo venha a ser integralmente tomado, para que ousadamente o
espírito se entregue à remoção. Dá-se experiência. Dá-se o advento do
indizível.
A obra de arte é pura obra, isto é, é instância
propiciadora para dar-se experiência. Nela não há algo de pronto e acabado para
ser admirado como tal. Não há algo estabelecido, firmado, uma coisa, um objeto
perfeito a ser admirado. O que há não é para a admiração no sentido de um olhar
de fora, de uma verificação estética. O que há é situação, ânimo para remoção.
A admiração deve ser resultado tardio do instante suspenso desde o qual o
espírito chegou a vibrar estranhamente ao deixar-se instalar no limite de toda
realização. A admiração é a sensação que resta do afeto dessa remoção. “Belo!”,
proclama a admiração, admirada por se deixar lançar e ultrapassar pela
experiência de afinar-se ao extraordinário e, então, escutar o indizível,
perceber e corresponder ao vir-a-ser de realidade,
tomar afeto pela verdade. “A beleza é um modo como a verdade enquanto desocultação advém. A arte é, pois, um devir e um acontecer
da verdade.” (Heidegger, 2007: 45 e 57).
Referências
BORGES, J. L. Esse ofício do verso. Organização Calin-Andrei Mihailescu; tradução
José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das letras, 2000.
Heidegger, M. - A origem da
obra de arte, trad. Maria da Conceição Costa, rev. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2007.
JOSÉ LUIZ RINALDI - Compositor e Diretor, empreende a
pesquisa de múltiplas interações entre música e cena, orientado pela
investigação poética da arte e do homem.
Doutor em Filosofia pela UFRJ , desenvolve seu
projeto de Pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
UNIRIO. Seu atual projeto musical é o MEB_Música
Extemporânea Brasileira.
JOSE LUIZ RINALDI -
Composer and Director, undertakes the research of multiple interactions between
music and scene, guided for the poetical inquiry of the art and the human
being. Doctor in Philosophy for the UFRJ, currently is doing Post-Doctoral
research at the UNIRIO. Its current musical project is the MEB: Música
Extemporânea Brasileira.