O CORPO E SUAS TRADUÇÕES: UM ESCOAR DE AREIA
THE BODY AND ITS TRANSLATIONS: A DISPOSE OF SAND
Jonathan POLLOCK
(Université de Perpignan)
Resumo
O
objetivo do ensaio é investigar as mediações entre corpo, linguagem e
realidade, fazendo um percurso que passa por clássicos da literatura oriental e
ocidental, da filosofia e da psicanálise.
Palavras-chave | linguagem | natureza |
cultura
Abstract
This essay investigates the mediations between the
body, language and reality. It makes a route passing through classics of
Eastern and Western literature, philosophy and psychoanalysis.
Keywords
|
language | nature | culture
Não confundo interpretação1 e tradução por ter-las feito. Comportar-se como intérprete é trabalhar
com as palavras; cometer uma tradução – digo mesmo «cometer», como se diria
«cometer um crime » :traduttore, traditore – é atracar-se com a escrita.
O modo de funcionamento da linguagem, dizemos,
é essencialmente metafórico. As palavras tomam o lugar de uma realidade não
lingüística. Substituindo esta realidade, elas se ocultam e tiram dela toda
possibilidade de designação. « O que toda palavra, seja ela qual for, afirma
nomear provisoriamente não pode senão remeter a uma conotação », resume o
psicanalista francês Jacques Lacan (LACAN, 2007: 170).
Admitamos que o corpo não se diga, e que desta
impossibilidade vem sua participação no real. A palavra não encontra o corpo,
mas o faz advir à linguagem em razão mesmo deste fracasso: a ausência do corpo
tem como conseqüência glorificar o enunciado do nimbo de sua presença anulada.
Esta é, pelo menos, a doxa hegeliana e pós-hegeliana.
Esta doxa se apóia sobre um dinamismo certamente
bastante notável: aquele que afasta o verbo do espírito, assegurando a ele uma
autonomia quase absoluta em relação ao corpo. Afinal, se o corpo está ausente,
toda a linguagem não pode revelar senão o cogitatio.
O que há de cômico nesta visão das coisas é
que a aparente ausência da linguagem, este « pequeno fragmento de matéria
que nos é próprio », como dizia Pascal, constitui não apenas o que há de
mais imediato em nossa experiência de cada instante, como também é graças a
isso que a linguagem pavimenta uma realidade comum para nós. O Verbo,
apoderando-se da Carne, teria verdadeiramente o poder de nos deixar fora do
alcance dela?
Não confundamos palavra e escrita. O corpo não
se diz, mas ele se escreve e, portanto, se traduz. Deste ponto de vista, a
distinção crucial a fazer não é tanto entre a palavra e a escrita – pode-se ter
a palavra diretamente da escrita –, quanto aquela entre o significante e a
letra. A letra escrita serve de ponto de apoio ao significante, que é da alçada
do ideal. Após os haver confundido durante a primeira parte de sua docência,
Jacques Lacan veio a radicalizar a oposição entre os dois nos anos de 1970.
Segundo ele, a letra não é o decalque, mas antes o referente do significante.
O real existe. Não se trata de um real bruto,
mas de um real sempre já escrito. É um real, portanto, a ser decifrado e
interpretado. Interpretando-o, fazem-se dele os significantes, ou seja as
aparências2, e, deslizando de um a outro, alcançamos a metáfora universal.
Esta idéia é tão velha quanto o mundo. Antes
de a ciência de Galileu triunfar, o livro do cosmos ostentava suas letras sob o
olhar interrogativo dos homens. As sociedades cristãs tomaram suas letras por
significantes; encontrava-se um meio de remontar até seu autor aparente, o
grande Outro da Criação cuja cada palavra emanada se vê miraculosamente dotada
de um referente corporal. A fim de compreender a especificidade da letra, sua
diferença em relação ao significante, deve-se abandonar o domínio cristão para
dirigir-se, como o fez Lacan, para a China e o Japão.
Os antigos Chineses também perscrutaram
bastante a escrita do real. É claro que dele criaram os discursos, isto é, a
aparência, pois, afinal, diz-nos Lacan, a escrita não serve senão para isso,
para fazer tagarelar. Contudo, a vista do céu estrelado, o exame das escamas de
tartaruga não inspiraram neles o conceito de um deus criador, mas o de um
processo figurativo à obra da natureza. Segundo a tradição, os
« textos » mais antigos da civilização chinesa, tais como Escritos do rio Luo
e o Mapa do Rio, foram deixados
inteiramente prontos pelos espíritos dos elementos naturais.
O mesmo signo, wen, servia em chinês antigo para
designar as marcas sobre o pêlo dos animais, os signos escritos, os ideogramas,
e, mais geralmente, a literatura, e ainda a civilização como um todo. Entre as
figurações sensíveis da natureza e os grandes textos da cultura letrada, não há
qualquer descontinuidade. Segundo François Jullien, “o
wen, como
capacidade de manifestação por figuração, como coerência interna ao mesmo tempo
que ornamentação, atualiza-se na ordem da natureza tanto quanto no mundo
humano. [...] o wen
literário inscreve-se no prolongamento do wen à obra no Mundo e contribui
para manifestá-la” (JULLIEN, 2003: 30).
A invenção da escrita é a ilustração disso.
Eis a versao que o Livro das mutações fornece dela:
Nos tempos antigos, Pao Xi reinou sobre o mundo. Com os olhos para cima, ele
contemplou as figurações que estão no céu e, baixando os olhos, contemplou os
fenômenos que estão sobre a terra. Ele considerou as marcas (wen) visíveis
sobre o corpo dos pássaros e dos animais assim como as disposições favoráveis
oferecidas pela terra; por perto, ele seguiu sua própria pessoa assim como, à
distância, seguiu as realidades exteriores. Começou então a criar os oito
trigramas [ do Livro das mutações] a
fim de comunicar-se com o poder da Eficiência infinita [à obra do universo: shenming] assim
como a classificar as condições de todos os seres (JULLIEN, 2003: 26).
Jullien observa que os dois trigramas fundamentais, o Céu e a Terra, compõem-se
dos mesmos elementos gráficos que o termo wen. “O Céu é cinco e a Terra é
seis”, diz o Livro das Mutações e, de
fato, “a grafia do caractere wen se assemelha a uma combinação dos números seis e cinco”.
Assim como “a grafia do número cinco é a primeira da seqüência dos números
chineses a implicar uma ruptura simbólica com relação à representação visual”, wen significa da
mesma forma a independência da escrita no que diz respeito à dimensão do
imaginário.
Apesar da posição de François Jullien, apóstolo da alteridade absoluta da China antiga, a
literatura anglo-americana pode revelar-se, por acaso, extraordinariamente
próxima desta visão oriental. Leiamos, por exemplo, os poemas que D.H. Lawrence
consagra às Tortoises3. Em “Escama de tartaruga”, a carapaça de um bebê tartaruga é comparada
a princípio às bases que se encontram sobre o corpo de outros animais (primeiro
sentido de wen):
Along the back of the baby
tortoise
The scales are locked in an
arch like a bridge,
Scale-lapping, like a
lobster’s sections
Or a bee’s.
Then crossways down his sides
Tiger-stripes
and wasp-bands.
Ao longo do dorso do bebê
tartaruga
As escamas imbricam-se como o arco
de uma ponte,
Cruzam-se como as divisões de uma
lagosta
Ou de uma abelha.
Então seus flancos em diagonal
descem
Listras de tigre, tiras de vespas
Em seguida, Lawrence salienta a
importância simbólica do número cinco:
Five, and five again, and
five again,
And round the edges
twenty-five little ones,
The sections of the baby
tortoise shell.
Cinco, e cinco novamente, e cinco
novamente,
E ao redor das bordas vinte e
cinco pequenas escamas,
As divisões da carapaça do bebê tarta
ruga.
Finalmente, identifica a carapaça a uma
« tábua matemática » engendrada pela própria vida, apesar de se
referir a uma outra divindade da escrita :
The Lord wrote it all down on the
little slate
Of the baby
tortoise.
Outward and visible indication
of the plan within […]
O Senhor escreveu tudo sobre a
pequena lousa
Do bebê tartaruga
Indicação externa e visível do
plano interno [...]
Apesar da referência bíblica, Lawrence faz
alusão provavelmente à ordem imanente da vida e àquilo que os Chineses chamavam
de wen :
a manifestação exterior de uma coerência interna própria a cada realidade.
Segundo Wang Chong, “se
a tartaruga é dotada de inteligência, é que sua carapaça carrega o wen” (JULLIEN:
31). Em outro poema, “Bebê tartaruga”, Lawrence explora a natureza desta
inteligência : “Você sabe o que é nascer só/ Bebê tartaruga !” Ela
dispõe de um saber que escapa a todo discurso da aparência : o saber
impossível, incognoscível, da passagem da “não-vida
(non-life)” à vida.
The first
day to heave your feet little by little from the shell,
Not yet
awake,
And remain lapsed on earth,
Not quite alive.
No primeiro dia
você tira suas patas pouco a pouco da carapaça,
Ainda não
desperta,
E permanece caída
sobre a terra,
Não totalmente
viva (LAWRENCE: 117).
Como no pensamento chinês, a emergência da
vida e do movimento deve-se ao princípio ativo do Céu: “O toque do sol o excita”
enquanto que “a duração dos séculos e o arrepio persistem/ Fazem você parar e
bocejar”. A tartaruga arrisca-se a afundar de novo no “vasto inanimado” e na “inércia
incalculável”. Mas “o orgulho da vida primeira” a estimula:
All animate création on your shoulder,
Set forth, little Titan,
under your battle-shield.
[…]
How vivid your travelling
seems now, in the troubled sunshine,
Stoic, Ulyssean
atom;
Suddenly
hasty, reckless, on high toes.
[…]
Fulfilled of the slow passion
of pitching through immemorial ages
Your little round house in the midst of chaos.
Toda criação animada sobre seus
ombros,
Vai, pequeno Titã, sob seu escudo
de batalha.
[...]
Como sua viagem parece viva agora,
no sol agitado,
Átomo ulissiano,
estóico ;
Subitamente apressado, temerário,
elevado sobre as patas.
[...]
Preenchido pela lenta paixão de
arrastar através dos tempos imemoriais
Sua pequena casa arredondada em
meio ao caos (LAWRENCE: 121-123).
Seu dinamismo obstinado conduz
este “átomo ulissiano” não somente “por cima da terra
do jardim”, mas “sobre a borda de todas as coisas”.
Proponho agora, sempre em relação ao corpo e
sua maneira de traduzir por escrito a vida que o anima, acompanhar a tartaruga “Over
the edge of all things”.
Para fazê-lo, é preciso que eu volte a um
grande texto, conhecido de todos, da literatura americana: Walden, de Henry David Thoreau. Talvez vocês conheçam esta história de um homem da
Nova Inglaterra que, nos anos de 1840, isolou-se à beira de um lago a algumas
léguas de uma aldeia denominada, sem dúvida por antífrase, Concord.
Após ter descrito os rigores da estação hibernal, assim como a
imobilidade e a ascese que eles impõem ao corpo, Thoreau
chega aos prazeres dos primeiros dias da primavera:
Few phenomena gave me more
delight than to observe the forms which thawing sand and clay assume in flowing
down the sides of a deep cut on the railroad through which I passed on my way
to the village […] (THOREAU, 1971: 304).
A observação de poucos fenômenos
me deu mais prazer que o a das formas afetadas pela areia e argila quando fluem
em degelo ao longo dos declives de um corte profundo da linha do trem através
da qual eu passava indo à aldeia [...] (THOREAU, 1922: 304).
A fonte deste prazer (delight) é menos inocente do que
parece: a palavra thawing
ecoa o nome do pai, Thoreau, e a dilatação arenosa
produz-se à borda de uma fenda, de um talho, de um “corte profundo”: deep cut. O
inverno pareceu muito longo a este solitário habitante da floresta...
Em inglês, esperma se diz semen, segundo o latin semen, seminis. Semina rerum, “a semente das coisas”, eis como Lucrécio
denominava os corpúsculos de matéria, estes pequenos grãos de areia que seu
mestre Epicuro chamava de “átomos”. Ora, como os
átomos epicuristas, a areia é um sólido que vira líquido. À semelhança de
Lucrécio, então, Thoreau faz alusão à dinâmica dos
fluidos para explicar a morfogênese das plantas e dos corpos animais:
Innumerable
little streams overlap and interlace one with another, exhibiting a sort of
hybrid product, which obeys half way the law of currents and half way that of
vegetation. As it flows it takes the form of sappy leaves or vines, making
heaps of pulpy sprays a foot or more in depth, and resembling, as you look down
on them, the laciniated lobed and imbricated
thalluses of some lichens; or you are reminded of
coral, of leopards’ paws or birds’ feet, of brains or lungs or bowels, and
excrements of all kinds (THOREAU, 1971:
305).
Inúmeras pequenas
correntes de água cruzam-se e se entrelaçam, mostrando um tipo de produto
híbrido, que obedece metade do caminho às leis das correntes, metade às da
vegetação. Escoando, [a areia] afeta a forma das folhas ou dos pâmpanos cheios
de seiva, e produz amontoados de ramos polposos de
pelo menos um pé de profundidade, que se assemelham, vistos de cima para baixo,
aos talos lobulados, imbricados e cortados de forma irregular de alguns líquens; a não ser que isso os faça pensar na coral, nas
patas do leopardo ou dos pássaros, nos cérebros, nos pulmões ou nas entranhas,
e em excrementos de todo tipo
(THOREAU, 1922: 304).
Certamente, o desejo do escritor solteiro é
como que atiçado e encantado pela visão imaginária desses “thalluses”
e outros excrementos; isto não impede que essas aparências de objetos eróticos
apóiem-se sobre uma escrita presente, composta de grotescos e arabescos, na
realidade: “It is a truly grotesque vegetation
[...]” .
À semelhança dos órgãos vitais do corpo
animal, este “transbordamento arenoso” (sandy overflow)
provocado pelo sol constitui “uma massa folhada”. Encontra-se assim nas areias
moventes “uma antecipação da folha vegetal”. “Não é surpreendente, constata Thoreau, que a terra se manifeste externamente sob a forma
de folhas, já que trabalha da mesma forma esta idéia no interior. Os átomos já
aprenderam esta lei, e estão impregnados dela”. A imagem é a de um parto. Thoreau põe em paralelo o globo terrestre e o corpo animal.
No interior dos dois, a folha apresenta-se como um lobe, termo que se aplica muito
especialmente ao fígado, aos pulmões e aos “folhosos” de gordura, ele salienta.
Tendo deslizado do aterro arenoso ao corpo
orgânico, o texto põe-se a comentar, de maneira notavelmente caprichosa, o
significante lobe:
“λείβω, labor, lapsus, to flow or slip
downward, a lapsing ; λοβος, globus, lobe, globe ; also lap, flap, and many other words”
(Já nos deparamos com as palavras lap e lapsing
nos poemas de Lawrence). Aqui, a tradução reata com o étimo latino traductio, isto
é, a translação, o deslocamento no espaço, assim como a metonímia, ou
deslizamento semântico. As mesmas formas lobuladas, folhadas afetam o material
verbal e a matéria terrestre. O escoamento da areia sobre a inclinação do
declive se prolonga, por assim dizer, sobre o plano inclinado da língua. As
inclinações inconscientes deslizam sob a superfície do discurso dito “corrente”
para nele fazer irrupções e lapsos, tal como a areia através da neve.
Ora, quando esta realidade arenosa, fluente e
atômica transborda o discurso – o discurso como pura aparência, branco como
neve, ele se manifesta inelutavelmente sob a forma de letras cursivas:
The radicals of lobe are lb, the soft mass of the b (single lobed, or B, double lobed), with a liquid l
behind it pressing it forward (THOREAU, 1971:
306).
Os radicais de lobe
são lb, a massa fraca do b (um único lobo, ou B, lobo
duplo), com um líquido l atrás dele, pressionando-o para frente (THOREAU, 1922:
306).
O aspecto dessas letras afeta em primeiro
lugar o globo ocular, antes de se repercutir no lobo da orelha, mesmo quando se
tem um pouquinho de dificuldade para escutar4.
A passagem de lobe a leaf retoma, em nível
lingüístico, a transformação dos lobos orgânicos em folhas finas e secas :
“As penas e as asas dos pássaros são também folhas, mais finas e secas ainda.
Também se passa da larva disforme (the lumpish grub) na terra à
borboleta aérea e esvoaçante. O próprio globo terrestre não pára de se
transcender e de se traduzir (translates itself), e se torna alado em sua órbita”. Aqui, a
palavra “tradução” designa um movimento de exteriorização, de alijamento, de
dessecação e de descolagem. Thoreau faz suas as
doutrinas transcendentalistas de seu amigo Ralph Waldo Emerson. Contudo, o
movimento que predomina permanece o de um fluxo para baixo.
Voltemos à “ruptura arenosa” (sandy rupture). Thoreau insiste na rapidez do processo : “It is
wonderful how rapidly yet perfectly the
sand organizes itself as it flows” (THOREAU: 307). As leis da auto-organização e da morfogênese se deixam ver a céu aberto.
Assim como a carapaça do bebê tartaruga, o plano inclinado do declive constitui
um plano de imanência em escala cósmica, pois nele é possível ler “o princípio
de todas as operações da Natureza”. Aquelas que modelam o corpo
humano, por exemplo:
What is man but a mass of
thawing clay? The ball of the human finger is
but a drop congealed. The fingers and toes flow to their extent from the
thawing mass of the body. Who knows what the human body would expand and flow
out to under a more genial heaven? (THOREAU, 1971:
307).
O que é o homem senão uma massa de
argila fundente? A extremidade do dedo humano não é mais que uma gota
congelada. Os dedos da mão e do pé fluem por todo o trajeto da massa fundante
do corpo. Quem sabe até onde o corpo humano desabrocharia e se expandiria sob
um céu mais generoso (THOREAU, 1922: 307).
Heaven aqui remete à ação do calor sobre a encosta
ensolarada do aterro, isto que em francês se chama adret em oposição a ubac, “the inert bank”
exposto ao norte. Reencontramos assim a oposição fundamental do pensamento
chinês, “aquela da sombra e da luz (adret e ubac), do feminino e do masculino (o yin e o yang)” (JULLIEN:
297). Semeada pelo sol, a terra “não é um simples fragmento de história morta,
estrato sobre estrato como as folhas de um livro destinado sobretudo aos
estudos dos geólogos e dos antiquários, mas poesia viva como as folhas de uma
árvore [...]” (THOREAU, 1922: 308). Eis por que é
preciso tentar “decifrar os hieróglifos”.
Recordemo-nos que esta abundância de formas
lobuladas se produz sobre a borda de um corte (cut). Trata-se portanto muito
precisamente de um fenômeno de borda. Mas em vez de falar de borda ou limite,
proponho que falemos de litoral, e
não apenas porque trabalhamos com a areia. Em outro conto autobiográfico, Cape Cod, Thoreau cria um trocadilho esplêndido ao brincar com a
homonímia entre litoral e literal : littorally (“litoralmente”). É
este mesmo trocadilho, desta vez em francês, que Jacques Lacan porá em destaque
em sua “Leçon sur Lituraterre”.
“O litoral, especifica Lacan, é o que coloca
um domínio inteiro como fazendo a um outro, se assim o quiserem, uma fronteira,
mas justamente por não terem absolutamente nada em comum, nem mesmo uma relação
recíproca” (LACAN, 2007: 117). No discurso de Lacan, os dois domínios
absolutamente heterogêneos que se fazem fronteira são o saber, de um lado, e o
gozo sexual, de outro. Ao tratar do saber, alfineta sobretudo nosso discurso, o
discurso universitário, que define como “saber empregado a partir da aparência”.
A questão que se apresenta é, portanto, a seguinte: “É possível ao litoral
constituir tal discurso que não se caracteriza [...] por emitir a aparência?” (LACAN,
2007: 124). Certamente, do lado do gozo, “a relação sexual
não cessa de ser escrita” (LACAN, 1975: 120). Todavia, Lacan sugere que a
escrita, em nome de seu artifício mesmo, pode “acolher” o gozo aprofundando um
vazio: “Não é a letra propriamente litoral? A borda de abertura no saber, que a
psicanálise designa como de abordagem da letra, não seria o que ela desenha?” (LACAN,
2007: 117).
Tentemos compreender a lógica do litoral
tomando outro exemplo, o do sagrado e profano. A operação de “santificação”
pela qual um espaço sagrado se separa de um espaço profano, que determina como não sendo sagrado é aquela do sentido
geral, assim como o sentido de um conceito remete a sua diferença com que se
distingue. Ora, essas relações de determinação recíproca (com exceção de toda
hierarquia e de toda subordinação) nos impedem de falar em heterogeneidade “absoluta”.
Se há o heterogêneo, ele deve ser procurado preferencialmente sobre a “fronteira”
de um conceito, mas com a condição de entender “fronteira” não como uma decisão privada de proporção que “faz” a
diferença, funda a identidade e fornece o sentido, mas como uma zona indistinta
onde um conceito comum p não é nem “verdadeiramente
p” nem “não verdadeiramente p”. A lógica pierciana
nisto situa o “talvez” e o “não verdadeiramente”, isto é, a possibilidade e a
contaminação. O recinto do sacrum não é nem sagrado nem profano, ele participa dos
dois, ele é “santo” (sanctum).
O que é mais heterogêneo do que a praia? O mar
e a terra representam duas físicas, duas dinâmicas, duas mecânicas dissonantes;
e, entretanto, os átomos de areia do litoral, corpúsculos duros que escoam em
miríades, participam dos dois domínios. Se confiamos em Thoreau,
esta heterogeneidade essencial caracteriza igualmente os seres que freqüentam a
praia:
Antes de a terra elevar-se do
oceano, e de se tornar terra seca, reinava o caos. E, na zona entre marés,
entre a marca da maré alta e a marca da maré baixa, lá onde a terra já está em
parte nua e em parte ainda sai do mar, reina hoje uma espécie de caos, onde
apenas as criaturas atípicas podem morar (THOREAU, 2000: 100).
Assim como ressalta Pierre-Yves Pétillon, a terra sai do mar “como o declive durante o
derretimento da neve” (THOREAU, 2000: 33). Mas, se o litoral é o local de um
nascimento, é também o final das terras, lá onde encalham “todos os tipos de
detritos, restos e destroços”. Em inglês, destroço
se diz litter.
A palavra provém do latim lectus, “leito”, mas é muito próxima de letter. E o que testemunham eles,
esses restos, essas letras que salpicam (litter) a página de areia, senão
um destroço, a ocasião de um gozo mortal? Quando os corpos não caem sobre as
toalhas de banho, fundentes sob o sol como a argila do declive, eles se
espalham pelo litoral como os cadáveres literalmente
caídos (a palavra cadáver provém do
verbo latino cadere,
“cair”). Pois, lendo Thoreau, “a zona entre marés é
um necrotério, um cemitério. Lá, as carniças abjetas apodrecem, “o ventre cheio
de odores”, como as flores que desabrocham” (THOREAU, 2000: 33).
A costa não é a única zona periférica entre o
mundo dos sólidos e o mundo dos fluidos. Pensemos nas copas das árvores das
grandes florestas, local onde a luz se transforma em seiva, e a seiva em
semente. É esse “litoral” altivo que freqüenta o rei amaldiçoado Sweeney em um poema irlandês da Idade Média, o Buile Suibhne.
Metade homem, metade pássaro, Sweeney ocupa a zona de
indiferenciação que separa as espécies, os sexos e os
reinos. Local de todas as metamorfoses, graças à plasticidade da areia e à
virtualidade das sementes, o litoral encontra o literal da mesma forma na obra
de Lucrécio, em que as semina rerum são
muitas vezes comparadas às litterae.
Quanto a Lacan, ele não se refere nem a
Lucrécio nem a Thoreau, mas à caligrafia e à pintura
japonesa. Ele salienta a importância dos meteoros – no sentido de fenômenos
atmosféricos: a chuva, a neve, a névoa, os raios, o arco-íris – nesta pintura
e, seguindo Pasolini, questiona o que é uma nuvem. Ora, uma nuvem, ele
responde, não é outra coisa senão aparência, e na pintura japonesa ela figura a
aparência por excelência, a saber o significante. Fato revelador, a arte
oriental representa sobretudo os momentos de transição, quando a nuvem se rompe
e cai a chuva. Segundo Lacan, são os efeitos do significante que escorrem assim
sobre a terra escavando os canais. Sendo o significado aquilo que chove da
aparência, a escrita constitui a “erosão do significado” no real. “A letra que
faz rasura [litura] distingue-se por
ser ruptura então da aparência, que dissolve o que fazia forma, fenômeno,
meteoro” (LACAN, 2007: 122). Esta ruptura é ela própria um feito de gozo, o que
faz dizer Lacan: “Entre o gozo e o saber, a letra faria o litoral”. Ou: entre “o
outro do discurso” (a experiência heterogênea) e o discurso homogêneo da
ciência, apresentamos o “literal” como articulação de sua diferença.
A história das ciências ilustra perfeitamente
esta primazia da escrita. Nenhum dos grandes revolucionários da física moderna,
seja Einstein, Bohr ou Schrödinger, deduziu suas
fórmulas a partir de dados observáveis. Foi justamente para verificar
experimentalmente suas fórmulas que se construíram telescópios de satélites e
aceleradores de partículas. Ora, o real parece provavelmente, pelo menos em
parte, conformar-se à ratio.
Mas por que o real deve ser racional? É porque no começo era o Logos? Ou é
porque o verbo representa a última esfoliação de um processo pelo qual a
matéria tomou lentamente consciência dela mesma? Cada ser falante não é mais
que um pacote ínfimo de matéria molecular, mas é também o locus,
o lugar onde a matéria se põe a refletir e a formular suas próprias leis sob a
forma da linguagem humana. Ora essas leis, segundo Lucrécio, não são leges, mas foedera, simples
pactos de aliança. Como tais, podem desfazer-se e se reformular diferentemente.
Não são eternas, menos ainda universais e necessárias. O caos pode
sempre reconquistar seus direitos.
Referências
JULLIEN, François. La Valeur allusive. Paris: PUF, 2003.
LACAN, Jacques.
Le Séminaire. Livre XVIII. D’un discours
qui ne serait pas du semblant. Paris : Seuil, « Champ freudien »,
2007.
___________.
Le Séminaire. Livre XX. Encore,
Paris: Points/ Seuil, 1975.
LAWRENCE,
D.H. Poèmes (édition bilingue). trad.
Lorand Gaspar et Sarah Clair. Paris : Poésie/ Gallimard, 1996.
THOREAU, H.D. Walden. Princeton University Press, 1971.
___________.
Walden ou la vie dans les bois, trad.
L. Fabulet, Paris : Gallimard, “L’Imaginaire”, 1922
___________. Cap Cod. trad. P.-Y. Pétillon. Paris:
Imprimerie Nationale, 2000.
3 Tartarugas, em inglês. (N.T.)
4 Même quand on est un petit peu dur de la
feuille (N.T.)
JONATHAN POLLOCK é professor
da Université de Perpignan
e especialista em literatura anglo-americana. Publicações : Qu’est-ce que l’humour ?, Paris,
Klincksieck, 2001 ; Le Moine (de
Lewis) d’Antonin Artaud, Paris, Gallimard, 2002 ; Le Rire du Mômo. Antonin Artaud et la littérature anglo-américaine,
Paris, Kimé, 2002 ; Hétérologies.
Principes de dé-neutralisation critique, Univ. de Perpignan, 2006.
JONATHAN POLLOCK is
a professor at the Université de Perpignan and specialist in Anglo-American
literature. Publications: Qu’est-ce que
l’humour ?, Paris, Klincksieck, 2001 ; Le Moine (de Lewis) d’Antonin Artaud, Paris, Gallimard, 2002 ;
Le Rire du Mômo. Antonin Artaud et la
littérature anglo-américaine, Paris, Kimé, 2002 ; Hétérologies. Principes de dé-neutralisation critique, Univ. de
Perpignan, 2006.