TRADUÇÕES DO CORPO PARA A CENA E NO TEXTO SHAKESPEARIANO (1591-1613)
TRANSLATIONS OF THE BODY TO THE SCENE
AND IN THE SHAKESPERIAN TEXT (1591-1613)
François Laroque
(Université
de la Sorbonne Nouvelle, Paris)
Bless
thee, O Bottom, bless thee, thou art translated!
(A Midsummer
Night’s Dream, III.1.113-14)
Resumo
Quero examinar aqui alguns
aspectos da tradução do corpo, para a cena e no teatro de William Shakespeare,
partindo de alguns exemplos que darão, espero, uma idéia da complexidade e da
variedade dos temas, das situações e das imagens às quais este trabalho está
associado.
Palavras-chave | erotismo
| monstros | literatura
Abstract
I examine
here some aspects of the translation of the body, to the scene and at the
theatre of William Shakespeare. I work on some examples that will give, I hope,
an idea of the complexity and variety of issues, of situations and images to
which this work is associated.
Keywords |
erotism | monsters | literature
O que se convencionou designar pelo termo de “corpus”
shakespeariano é o conjunto de obras formado tanto pelas trinta e sete peças
escritas pelo dramaturgo e publicadas, quanto ao essencial, no in folio
de 1623, como pelos seus poemas narrativos, Vênus e Adônis e A
Violação de Lucrecia e os Sonetos, para citar apenas os mais importantes, o
que, portanto, nos remete a textos impressos. Se temos a prova de que o autor
da dedicatória ao misterioso Sr W.H. realmente preocupou-se com a edição de sua
poesia, o mesmo não acontece com sua obra teatral, que, sem dúvida, julgava ser
efêmera, quando não secundária, pois, a seu ver, ela só existia para as cenas
teatrais onde era interpretada. Ora, na época, nos palcos, o que importava era
apenas o corpo do ator, vestido com suntuosos trajes que tinham pertencido a
aristocratas. Estes os legavam a seus servidores que os revendiam depois aos
proprietários de teatro, como Philip Henslowe, que,
por sua vez, alugavam-nos aos atores. De fato, as leis suntuárias, que então
vigoravam, não permitiam o uso desse tipo de trajes por pessoas de condição
social inferior.
A partir daí, a questão é de saber como restituir o
personagem de Ricardo de Gloucester com sua claudicação e o braço atrofiado,
que o caracterizam em Ricardo III, como representar as fadas do Sonho
de uma Noite de Verão ou ainda o fantasma de Hamlet (na época, existia
um “traje da invisibilidade”, que deveria ser usado por este tipo de
personagem). Fica assim colocada toda a questão da encarnação no teatro e o
fenômeno da “tradução” do corpo remete, antes de tudo, ao ofício de ator, à
maquilagem, ao traje e ao gestual desenvolvido para interpretar Viola, na Noite
dos Reis, Hamlet ou Coriolano.
Mas há também as imagens do texto. O que fazer com
esse feixe de sinais que completa ou contradiz as indicações cênicas? Convém,
de certo, levar em conta as convenções da época ou do gênero. E sabe-se que as
cenas de batalha, os combates ou os duelos davam ensejo a verdadeiros
espetáculos sobre essas cenas populares dos anos 1590-1610. Tudo isso agradava
muito a platéia da época, enquanto que, nos dias de hoje, esses momentos são
freqüentemente estilizados, quando não encenados rapidamente ou simplesmente
suprimidos. Quanto à nudez, hoje tão difundida, era, então, algo impossível de
aparecer, mesmo porque os papéis femininos eram desempenhados por rapazes (boy
actor).
Quero examinar aqui alguns aspectos da tradução do
corpo para a cena e no teatro de William Shakespeare, partindo de alguns
exemplos que darão, espero, uma idéia da complexidade e da variedade dos temas,
das situações e das imagens às quais este trabalho está associado.
I. Problemática do corpo e de sua tradução na cena shakespeariana
Como se sabe, os papéis de mulheres eram atribuídos a
rapazes, que atuavam na condição de aprendizes da trupe, que, por sua vez, era
designada pelo nome de “Servidores” (da Rainha, do Almirante, do Camareiro do Rei1 ou, mais tarde, do Rei). Eles encarnavam no teatro o
sexo oposto, antes que suas vozes tivessem mudado. Não eram, portanto, “castrati”, ao contrário dos contra-tenores da Sistina. Cleópatra,
ela mesma interpretada por um boy actor zomba
disso no final de “Antônio e Cleópatra”:
Os atores terão rapidamente
Improvisado uma encenação que nos mostra, nós
E nossas orgias em Alexandria. Antônio será arrastado
Completamente embriagado em cena e verei um rapaz
Com voz de falsete macaquear minha grandeza
Adotando uma postura de puta (V.2.212-17).
Como monstraram filmes
recentes, Shakespeare in Love, com a fantasia de Viola de Lesseps transformada em Master Kent, e Stage
Beauty, onde o ator Ned Kynaston
interpreta Desdêmona no palco da Restauração, para a
grande satisfação do diarista Samuel Pepys, que o
considera ainda mais convincente do que uma verdadeira mulher, era ali posta em
prática toda uma série de códigos e convenções, com os quais Shakespeare jamais
cessou de jogar, insistindo sobre a ambigüidade de tal procedimento e os
mal-entendidos que este poderia acarretar: mulher apaixonando-se por outra,
disfarçada de homem, como na Noite dos Reis e em Como
quiseres. Ironicamente, é quando os rapazes que interpretam mulheres
disfarçam-se em homens que os códigos são postos em evidência:
Rosalinda: Não seria preferível
Pelo fato de meu tamanho ser muito superior à média
Que eu me vestisse de homem até os mínimos detalhes,
Uma grande faca amarrada à coxa,
Uma lança de caçar javali na mão, escondendo
Cuidadosamente os alarmes de um coração de mulher?
(Como quiseres, I.3.105-110).
A aparência e o aspecto exterior servem para disfarçar
os receios, que, em conseqüência, são rechaçados para o campo da intimidade. Portia, em O Mercador de Veneza,
é mais direta ainda, quando comunica à sua criada Nérissa
sua decisão de vestir uma roupa de homem para tomar a defesa de Antônio, do
qual Shylock exige uma libra de carne, em virtude do
contrato assinado entre eles para um empréstimo de mil ducados:
Portia: […] Veremos
nossos maridos
Antes que eles pensem em nós.
Nerissa: Eles nos
verão ?
Portia: Sim, Nérissa, porém vestidas de tal forma
Que acreditarão que somos todas as duas
providas
Daquilo que nos falta […]
Nérissa: Como ?
vamos virar…homens ?
(O Mercador de Veneza, III.4.58-78).
Os subentendidos picantes são bastante insistentes
nesse diálogo, como se pode observar com os verbos “lack”
(“o que nos falta”), referindo-se ao que faz falta à mulher, e “turn” (“virar”), que sugere um retorno, ou seja, uma forma
de se traduzir de outro modo e, ao mesmo tempo, envolve uma idéia de
penetração. No final da Noite dos Reis, encontramo-nos
frente a uma impossibilidade cômica. Viola, disfarçada de homem, anuncia ao
duque Orsino que ela é uma mulher e que irá vestir-se
como tal. O problema é que suas roupas femininas foram entregues a um capitão,
que foi colocado na cadeia pelo intendente Malvólio.
Este ficou com a chave da cadeia e acaba de deixar o palco, furioso, prometendo
se vingar. O que o espectador retém é que Viola continua sendo um homem e
que só será realmente uma mulher quando, enfim, estiver vestida como tal, o que
parece estar excluído, haja vista a complicação da situação final. Durante o
desfecho, o véu não se levanta completamente e a mulher permanece um homem como
os outros.
Aliás, como mostra Thomas Laqueur,
em seu livro A Fábrica do Sexo (1992, edição Gallimard, para a tradução
francesa), o modelo de um corpo unisexo, onde a
vagina e os ovários eram a imagem em espelho interiorizado do pênis e dos
testículos, prevalecia junto aos anatomistas, como se pode constatar nas
numerosas ilustrações reproduzidas no livro. Os órgãos sexuais do homem e da
mulher podiam virar-se pelo avesso, como “uma luva de couro de cabrito”
(III.1.12), retomando a imagem do palhaço Feste em A Noite dos Reis. É portanto essa reversibilidade dos dois sexos
dentro de um sistema humoral diferente (quente e seco para o homem, úmido e
frio para a mulher), que servia de fundamento teórico, ou, em todo caso,
fisiológico, para a tradução do rapaz em mulher, depois, do travesti-mulher em
homem, na cena dos teatros ingleses da Renascença.
Porém, esses jogos de travestimento
não pertencem somente à cultura teatral inglesa. Eles remetem também ao mundo
do carnaval, no qual Shakespeare inspira-se, tanto quanto Rabelais, para
traduzi-lo em linguagem dramática. É o que ele faz com o personagem de Sir John
Falstaff, nas duas partes de Henrique IV e em As Alegres Comadres de Windsor. Na peça histórica, o gordo
cavaleiro comenta sobre a gordura excessiva que o feminiza e, aliás, assim que
ela derrete um pouco, exclama, desolado: “Ai, minha pele está sobrando e pareço
uma velha senhora, num vestido largo demais para ela”, (1 Henrique IV,
III.3.2-3). Sua pança atrapalha-o, quando está no campo de batalha e, de certa
forma, ele a recrimina:
Tenho uma multidão de línguas dentro de minha pança, e
nenhuma delas conhece outra palavra a não ser meu nome. Se ela fosse de um
tamanho normal, eu seria muito simplesmente o indivíduo mais ativo de toda a
Europa. Minha barriga, minha barriga, minha barriga, é isso que me prejudica...
(2 Henrique IV,
IV.2.15-18).
Esta passagem opõe a palavra “belly”
(a pança) a “womb” (a matriz feminina), o que mostra
que Falstaff assimila-se a uma mulher gorda, imagem
que lembra, em contraponto, o Sonho de uma noite de verão, quando
Titânia fala de sua amiga mortal, que ria com ela ao ver as velas dos navios
« ficarem grávidas/E ver o vento travesso inchar seus ventres »
(II.1.128-29).
Na única comédia inglesa de Shakespeare escrita, ao
que parece, a pedido expresso da rainha, que desejava ver Falstaff
apaixonado, o amante escondido no apartamento de Mistress
Ford só pode escapulir fazendo-se passar por mulher, a “gorda”, a “velha de Brentford”, que, de passagem, o marido ciumento chama de
“vagabunda” (Alegres comadres, IV.2.134-35). Daqui por diante, tudo se
esclarece: Falstaff, cujo próprio nome (preferido ao
de Sir John Oldcastle, o nome escolhido inicialmente)
se divide em “false staff” e, portanto, significa literalmente “imbecil”, isto
é, “sem bastão”, sem o baculus
ou “staff”, que nos remete ao falo. O cavaleiro barrigudo encarna, portanto, o
homem emasculado, personagem grotesco que não difere muito de uma mulher.
II. O corpo carnavalesco, o brasão e a ferida
No contexto carnavalesco da taverna, o corpo de Falstaff é comparado ao de um boi que está sendo preparado
para a grande comilança da terça-feira gorda (o príncipe Hal o trata de “boi assado de Manningtree, cuja barriga está bem recheada” (1 Henrique
IV, II.5.369-70), sendo que Hal se vê comparado a uma pele de enguia e o
juiz Shallow a uma raiz de mandrágora. Reencontramos
a alegre gramática dos insultos festivos que opõem os gordos aos magros, como
no quadro de Peter Bruegel, O Combate entre o carnaval e a quaresma. O grotesco, o modo
hiperbólico e agonístico da injúria têm aqui, entre
outras funções, a de eufemizar o político e o
macabro, dissimulando-os atrás da máscara da exuberância cômica e da copia rerum.
Ao evocar assim o mundo alegre da festa de São Martim, o rega-bofe carnavalesco
e o vinho servido a rodo,
esquece-se um pouco a hecatombe da guerra civil que está devastando o reino da
Inglaterra e o sangue derramado que a terra bebe como um vampiro. A imagem do
grotesco permite dar uma visão anamorfótica da
realidade histórica e, assim, torná-la menos dolorosa. Da mesma forma, em As
Alegres Comadres de Windsor, o mito de Acteão se
vê “moralizado”. Assim, a amputação dos membros do caçador de Tebas, dilacerado
pelos seus próprios cães, que não o reconheciam mais quando ele foi
metamorfoseado em veado, por ter visto Diana banhando-se com suas ninfas, torna
emblemático o tema popular e libertino da infidelidade conjugal.
Uma outra vertente e outra versão do grotesco carnavalesco
consiste em criar uma correspondência entre o calor das cozinhas, onde são
assadas as carnes para a festa, e o fogo do inferno onde queimam as almas
danadas. O inferno também designava o sexo feminino, como no célebre dístico
que encerra o soneto 129: “Todos nós sabemos que é verdade, no entanto, ninguém
parece saber fugir deste céu que leva o homem para o inferno”. De fato,
comentando sobre a prostituta Doll Tearsheet (“boneca que rasga os lençóis”), Falstaff diz que ela “já está no inferno, queimando as
pobres almas” (2 Henrique IV, II.4.275), fazendo alusão à dor ardente (“burn” em inglês) provocada pelas doenças venéreas. Quanto a
Bardolph, um de seus companheiros de libações, “sua
face é a cozinha particular de Lúcifer, onde ele assa os bêbados” (2 Henrique
IV, II.4.270-72).
Ao lado desses infernos cômicos, Shakespeare não
hesita em dar uma visão muitas vezes bastante realista do corpo doente,
corroído pela sífilis. De fato, basta ver os conselhos dados pelo misantropo
Timão de Atenas a Frínia e Timandra,
as duas prostitutas que acompanham Alcibíades:
Sequem a medula
Na cavidade dos ossos, batam as tíbias descarnadas
Estraguem seu prazer. Rompam a voz do advogado […]
Adeus nariz, roído
Rente da cara!
(Timão de Atenas, IV.3.150-57)
A sexualidade é apresentada como sendo profundamente
viciada e, aos olhos do soldado raso que é Tersito, o
amor contra a natureza entre Aquiles e Patrocle é
algo ainda pior:
Patrocle: “Criado masculino”, o que é isto,
espécie de medíocre ?
Tersito: Pois bem, é o
macho que lhe serve de puta. Que as podridões do sul, as cólicas, as hérnias,
os resfriados, os cálculos nos rins, a apoplexia, a paralisia que gela os
membros e tudo o que segue punam mais e mais a forma que vocês têm de inverter
a natureza!
(Tróilo e Créssida,V .1.15-19).
Entretanto, não existe apenas a doença, existe também
a ferida que marca o corpo com sua dolorosa escrita e, nesse sentido, podemos
emitir a hipótese de que os brasões, que valorizam tal ou tal membro ou parte
do corpo, traduzem indiretamente um pouco da violência metonímica do arrancamento ou da amputação.
III. A ferida e os
brasões do corpo como alfabeto de uma língua traduzida em imagens “falantes”
A visão mais atroz, quase insustentável, é, sem dúvida, a de Lavínia,
violada e mutilada, onde seu pai, Titus, vê uma “carta
da infelicidade, que fala apenas por signos” (cortaram-lhe a língua) (Titus Andronicus,
III.2.12) e que seu irmão Marcus assim descreve :
Você não diz nada ? por que ?
Ai de mim, um riacho púrpuro de sangue morno,
Como uma nascente em ebulição, agitada pelo vento,
Jorra e cai entre seus lábios avermelhados,
Indo e vindo com seu alento de mel.
É claro que Tereu a
violentou,
E temendo que você fale, cortou sua língua.
Ah, agora, você vira a cara de lado, por pudor,
E, apesar de tudo, o sangue que você perde e que espirra
Como se saísse de uma fonte com três bocas,
Suas bochechas tingem-se de púrpura, como o rosto de
Titã…
(Titus Andronicus, II.4.21-31).
O corpo é traduzido em fonte, em riacho e em nascente,
assim como as mãos cortadas serão mais adiante designadas pela imagem dos
galhos podados de uma árvore. Retorna-se à natureza, à água, ao sol e às
árvores, para eufemizar o sofrimento e dar dele uma representação emblemática.
Em O Conto de Inverno, o sofrimento de Hermione, rejeitada e condenada
por seu marido, por causa de um suposto adultério, é transmitido através da
arte. Fingindo-se de morta, a rainha, com a cumplicidade de sua acompanhante
Paulina, é, na verdade, transformada em estátua viva, enclausurada durante
dezesseis longos anos numa capela, antes de acordar, em contato com o amor
reencontrado. Mas, antes do desenrolar desta cena, na qual a
situação teatral espetacular submerge o final da peça em meio à emoção, o
vagabundo velhaco que é Autolycus, malabarista e
vendedor de baladas e de quinquilharias para
as damas do reino de Polixene, na Boêmia, havia
tentado infundir pavor no coração do camponês, descrevendo-lhe suplícios tão
atrozes quanto cômicos:
[O velho] tem um filho que será esfolado vivo, depois
lambuzado de mel, depois colocado em cima de um ninho de vespas, depois, ele
vai ficar lá até que esteja um pouco mais do que três quartos morto, depois
será reanimado com aguardente ou com a ajuda de alguma outra bebida fervendo,
depois, no dia mais quente que prevê o almanaque, vão colá-lo vivo contra um
muro de tijolos, debaixo do olho de um sol meridional, que o contemplará até
que morra, com picadas de moscas, todo inchado pelos edemas… (O Conto de
Inverno, IV.4.728-34).
A comicidade
nasce do exagero e do efeito provocado pelo pavor que o impostor Autolycus, que
se faz passar por um cortesão, consegue infundir no filho do camponês.
Portanto, é o contexto que permite desarmar o sentimento do horror ou da
atrocidade, de forma que a tradução do corpo é apenas virtual ou puramente
metafórica. Em compensação, quando Cleópatra,
que se declara “enegrecida pelos apertões amorosos de Febus” (Antônio e Cleópatra, I.5.28), fica sabendo que
Otávio tem a intenção de arrastá-la atrás de sua carruagem/char quando de sua
entrada triunfal em Roma, ela recorre a imagens que anunciam as de Autolycus e
que, mesmo sendo hiperbólicas, não têm nada de cômico:
Que na lama do
Nilo
Deitem-me toda nua
e que as moscas d’água
Façam de meu corpo
uma carniça toda inchada…
(Antônio e Cleópatra, V.2.56-9).
Dito isso, a peça fica marcada por um componente de caráter
sado-masoquista, com uma Cleópatra que tiraniza o mensageiro portador de más
notícias (Antônio casa-se de novo com Otávia), quando
ela o ameaça com todos os tipos de suplícios, cada um mais atroz que o outro. O
ferimento físico ou amoroso está no âmago da obra. Assim, vê-se um personagem,
oportunamente denominado Scarus (“scar”
em inglês significa cicatriz), descrever para Antônio sua ferida, que se
reabriu durante o último combate:
Antônio: Teu sangue corre a rodo.
Scarus: Eu tinha um ferimento em forma de T,
Mas, agora, é um H (IV.8.3-5).
Além do jogo de palavras sobre “aitche” (a
letra H) e “ache” (a dor), que só se pode perceber e compreender no original,
esse detalhe do texto indica que o ferimento está inscrito no corpo como um
alfabeto, um código que convém decifrar ou traduzir. Ocorria o mesmo para as
“armas falantes”, isto é, para a heráldica, que utilizava partes do corpo, das
coisas ou dos animais, para traduzir o nome, assim como na moda dos brasões e contrabrasões poéticos, introduzida por Marot
e à qual Shakespeare freqüentemente faz referência.
Isto é particularmente visível e significativo em Romeu e Julieta, onde vários sonetos são encaixados no texto e onde
os brasões do corpo são exibidos pelos namorados, enquanto que a Ama ou o Mercúcio dão deles uma versão burlesca, paródica ou obscena
(técnica dita do contrabrasão). O longo monólogo
sobre “a rainha Mab”, que miniaturiza o corpo,
corta-o em micro-unidades e o recompõe numa ordem divertida, lembra as telas de
Arcimboldo ou as gravuras estranhas dos Sonhos droláticos
de Pantagruel. Se os jogos do amor permitem advinhar o nome do(a) amado(a), que se encontra
misteriosamente traduzido e declinado numa série de imagens-chaves (“Jewel”/ “Jule”/ “July”/ “Juliet” e “pilgrim”/ “Romeo”/ “romitaggio”/ “roamer”...), o
mundo do corpo e da sexualidade traduz-se para a Ama em termos de um gestual
relativamente elementar, que opõe, na mulher, o instante do acasalamento (“fall backward”, isto é, cair de
costas) e o da queda e da morte (“fall on thy face”, cair para frente,
com a cabeça em primeiro). Quanto a Mercúcio, o
homem-túmulo (“grave man”), ele descreve o amor
físico recorrendo a uma tradução vegetal mais crua:
Se o amor é cego, não pode visar com exatidão.
Então, ele vai se sentar debaixo de uma nespereira
E desejar que sua amada seja esse gênero de fruta
Que as moças chamam de nêspera quando riem entre si.
Oh, Romeu, se ela fosse essa nêspera, se ela fosse
Essa nêspera bem aberta e você um cabo de pera!
(Romeu e
Julieta, II.1.34-9)
A nêspera e o cabo de pera são uma transposição vegetal do corpo dentro
de uma visão que faz referência a um corpo-jardim ou jardineiro. Sabe-se também
o papel desempenhado nessa peça pelas plantas medicinais, ora poção/remédio,
ora veneno, e a importância dos ciclos sazonais, para essas flores tão
rapidamente desabrochadas e logo murchas que são os dois amantes. No sentido
inverso, Mercúcio dá vida ao inanimado, traduzindo o
quadrante do relógio em termos decididamente fálicos:
[…] o dedo sem vergonha do quadrante
aponta agora para a fenda do meio-dia (II.3.111-12).
Vê-se que, para Mercúcio, defensor da amizade
e crítico do amor, que, segundo ele, envenena (“fishified”)
Romeu, a ponto de fazer-lhe perder seu esperma (“roe”),
reduzindo-o ao estado de pura lamentação (Romeo-roe =
“me O”!), o folclore (a rainha Mab) e o pensamento
mágico (a animação poética que acorda o ser e a vida das coisas) constituem o
refúgio e o veículo do obsceno, isto é, do que acontece fora da cena.
A última dimensão que desejo abordar diz respeito às metáforas e às
metamorfoses do corpo no teatro de Shakespeare.
IV.
Metáforas e metamorfoses do corpo
As traduções do corpo em corpo político são uma das metáforas mais
freqüentemente utilizadas no teatro desse final do século XVI e começo do
século XVII, devido a uma visão ao mesmo tempo orgânica e hierárquica da
sociedade. No começo de Coriolano, é na fábula do Ventre, que Menenius conta para a plebe esfomeada, na tentativa de
acalmar sua cólera, que encontramos uma de suas expressões mais sistemáticas e
completas. Após ter comparado os cidadãos aos membros do corpo, revoltados
contra a prosperidade do Ventre (o Senado e os aristocratas), acusado de querer
ficar com tudo, Menenius explica que os membros não
poderiam viver sem o ventre, pois é ele quem, através do sangue, garante a
redistribuição da comida por todo o organismo:
Ouça-me, meu bom amigo,
Nosso muito grave ventre, com ponderação,
Sem se enfurecer, como seus difamadores, respondeu:
« Caros amigos, membros do meu corpo, é verdade
Que eu recebo primeiro toda a comida
Da qual depende a vida de vocês. Isso é normal
Pois eu sou o celeiro e também o armazém
Do corpo inteiro. Mas não se esqueçam
Que graças aos rios do seu sangue, envio-a
À corte, ao coração, à sede do cérebro;
E pelos desvios e ofícios do homem,
Os músculos mais fortes assim como as menores veias
Recebem de mim os meios naturais
Que lhes permitem viver…”(I.1.109-122).
Após ter qualificado o Primeiro Cidadão de « dedão do pé », Menenius conclui, explicitando o sentido de sua fábula,
traduzindo-a em uma linguagem clara:
Esse bom ventre, são os senadores de Roma.
E os membros rebeldes são vocês... (I.1.1.1.130-31)
A tradução do corpo em metáfora política, em seguida, volta ao pé da
letra, quando Coriolano reclama que se arranque “a língua da multidão múltipla” (III.1.158-59) ou, quando, no sentido inverso, o
tribuno Sinicius trata o herói romano “de mal a ser
extirpado” (III.1.296). A plebe, por sua vez, torna-se a “multidão das cem
cabeças”, (II.3.12), “a semente prolífera” (II.2.70), o “peixe miúdo”
(III.1.92), ou ainda, a “Hidra” (III.1.96).
Nas peças históricas anteriores, sobretudo na primeira tetralogia, Jack Cade, o artesão rebelde do Kent, que irá transformar
Londres em um barril de pólvora, é também diabolizado
e animalizado pelo duque de York (oposto ao reino de Lancaster, de Henrique VI
- é a guerra das Duas Rosas), que o descreve como um porco-espinho eriçado de
espinhos:
Na Irlanda, vi esse indomável Cade
em ação
Enfrentar sozinho uma tropa de arqueiros,
Até que as suas coxas ficassem eriçadas de flechas
Como um porco-espinho erguendo suas agulhas;
Quando, enfim, foram prestar-lhe socorro, vi-o
Dar pulos como um dançarino mourisco endiabrado
Sacudindo os dardos ensangüentados como sinetas.
(2 Henrique VI, III.11.360-66)
Sobrepondo duas imagens contraditórias, uma, trágica e cruel, do soldado
perfurado de flechas, fazendo lembrar um pouco o martírio de São Sebastião e a
outra, cômica e carnavalesca, do homem porco-espinho e, depois, do dançarino
mourisco sacudindo seus sininhos, Shakespeare opera uma tradução ao mesmo tempo
corporal e genérica, que leva a peça para o registro do grotesco. Esta será,
aliás, a tonalidade geral dessas estranhas cenas de insurreição popular,
apresentadas como um carnaval sangrento, onde as cabeças cortadas de Lord Somer e de seu genro são
espetadas em lanças, como se fossem marionetes, antes que o próprio rebelde,
traído pelos seus e esfomeado, seja decapitado por um gentleman de Kent, que o
descobre comendo grama em seu jardim.
A outra metamorfose, ou translação corporal, que desejo comentar, é a do
artesão Bottom, com uma cabeça de asno enfiada até os
ombros, que lhe foi colocada pelo duende Puck,
enquanto ensaia com os outros artesãos a peça de Pyrame
e Tisbé, que pretende apresentar na corte do duque de
Atenas, Teseu, por ocasião de seu casamento com a amazona Hipólita:
Snout: O, Bottom,
você está transformado. O que é isso que estou vendo, sobre seus ombros ?
[…]
Quince: Deus o abençoe, Bottom, Deus o abençoe ! Aí está você, metamorfoseado!
(Sonho de uma noite de verão, III.1.93-95)
Bottom entra, assim,
bruscamente na categoria dos monstruosos. Homem com cabeça de asno, ele é uma
espécie de minotauro cômico dentro do labirinto da
floresta perto de Atenas. Mas, sua transformação é antes de tudo uma tradução,
como diz o próprio Shakespeare, que recorre aqui ao verbo “translated”,
quando Quince exclama literalmente: “você está
traduzido”. O nome de Bottom significa efetivamente o
fundo, a bobina do fio do tecelão, mas também o traseiro, de modo que o asno (“ass”) remete sistematicamente ao “cu” (“arse”).
Ora, o carnaval é justamente o fato de colocar tudo de “ponta cabeça” e,
portanto, de ter o traseiro no lugar da cabeça, o que mostra que a cabeça de
asno que o dramaturgo nos mostra nada mais é do que uma tradução visual do
inglês popular.
Os monstros estavam ainda ligados ao mundo dos fenômenos sobrenaturais,
como se vê nos relatos dos viajantes da Renascença, que retomavam as fábulas de
Heródoto, de Marco Polo ou de Mandeville, para
descrever as amazonas, os “sciapodes”2, ou ainda, como Otelo, os canibais e os “blemmyes”, homens que tinham a cabeça abaixo dos
ombros:
Otelo: […] Estava contando isso;
E os canibais que se comem entre eles,
Os antropófagos, e os homens cujas cabeças
Encontram-se abaixo dos ombros…
(Otelo, I.3.141-44).
Esses relatos de viagem assustam e fascinam Desdêmona,
que literalmente bebe as palavras do Mouro : “[…] Ela […] com um ouvido
ávido/Devorava os meus discursos” (I.3.186-87). Não se insiste o suficiente
sobre esse efeito performático do discurso de Otelo, que revela a existência de
uma forma de contaminação do ouvinte (no caso, da ouvinte), onde a tradução do
corpo imaginário dá lugar a uma transformação metafórica do receptor no
ser fictício descrito pelo locutor. Shakespeare dá, assim, a entender que a
orelha feminina canibaliza a língua do contador, retomando em filigrana a
imagem de um outro monstro, um sexo feminino predador e insaciável. Assim,
encontra-se prefigurada a obsessão da infidelidade da esposa, que conduzirá um
marido louco de ciúmes a sufocar aquela que ama.
Corpos masculinos convertidos em corpos femininos, corpos doentes ou
mutilados, corpos recortados, erotizados, traduzidos
em imagens vegetais ou animais, corpos brasões, corpo político servindo de
metáfora e de referente ideológico para uma sociedade que busca legitimar suas
instituições, corpos metamorfoseados em monstros carnavalescos ou em imagens do
além, que dão a mulher a cara de outro, tais são algumas das figuras do corpo e
de suas traduções que escolhemos para apresentar, entre os inúmeros exemplos
possíveis no interior do vasto corpus shakespeariano.
A tradução do corpo e de suas partes está, portanto, inserida no próprio
âmago da atividade poética e dramática e permite uma certa labilidade genérica,
de uma peça para outra, sem que por isso se possa afirmar que tenha uma
verdadeira coerência ou qualquer continuidade no conjunto da obra. Na verdade,
a importância desse topos vem de um dado histórico e sociológico da
Inglaterra elisabetana, qual seja, a necessidade de contornar a interdição
feita às mulheres de atuar em cena. Portanto, indiretamente e de um modo
totalmente irônico, é, de certa forma, a censura e a austeridade das injunções
da igreja protestante e das municipalidades puritanas que terão dado origem a
essa apaixonante e maravilhosa proliferação do sentido.
2 criaturas
fantásticas, com uma só perna, tendo na extremidade um pé gigantesco.
FRANÇOIS LAROQUE é professor de Literatura Inglesa na
Universidade de Paris III. Especialista em Shakespeare, membro do Centro de Estudos e Pesquisas
Isabelinas da Universidade Paul-Valéry, em Montpellier, e escreveu diversos artigos sobre o teatro de
Shakespeare, as mentalidades e o folclore da Inglaterra isabelina.
FRANÇOIS LAROQUE is Professor of English literature at
the University of Paris III. Specialist in Shakespeare, is a member of the
Centre for Elizabethan Studies and Research at the Paul-Valéry
University in Montpellier, and wrote several articles on the Shakespeare
Theatre, mentalities and folklore of Elizabethan era.