DON JUAN:

PARADIGMA DO DESEJO NA CONTEMPORANEIDADE

DON JUAN:

PARADIGM OF DESIRE TODAY

Guiomar de Grammont

(IFAC –UFOP)

Resumo

Reflexão sobre os limites do desejo, na filosofia, na literatura e no teatro, tomando a figura de Dom Juan ou Don Giovanni como um paradigma, um modelo que atravessa os tempos, uma lenda na qual todo homem reconhece uma parte de si mesmo. 

Palavras-chave | corpo | amor | narcisismo

Abstract

Reflections on the boundaries of desire, in the philosophy, literature and theater, taking the figure of Don Juan or Don Giovanni as a paradigm, a model that crosses the times, a legend in which every man recognizes a part of itself.

Keywords | body | love | narcissism

O que é o desejo? É aquilo que, no corpo, não é? Ou seja, o desejo é não-Ser? É correr atrás de um pássaro que jamais pode ser agarrado?  O desejo, enfim, não existe. O que existe é aquilo a que ele reclama, que parece sempre reificação que decepciona, por redutora em relação à falta que provocou a sua evocação. O desejo é um chamado contínuo, é a busca de uma unidade perdida e, nesse sentido, parece, platonicamente, reminiscência de algo que teria existido, como uma costela roubada.

 É corrente que, na filosofia, desde Platão, o desejo está vinculado à dissociação entre o corpo e o espírito: o desejo do corpo levaria, no máximo, a uma satisfação espúria e efêmera, uma vez que se encontra associada à vulgaridade do sensível; o desejo do espírito, por sua vez, é que seria legítimo, conduzindo as almas a um movimento ascensional em direção da verdade. Aparentemente, é com o amor cortês medieval que irá se consolidar essa dualidade na concepção ocidental do amor romântico, simbolizada especialmente na história de Tristão e Isolda. As regras cavalheirescas que o originaram, no século XIII, estariam a serviço de uma contenção da paixão, que serviria como instituição reguladora para uma força que oferece algum perigo para a sociedade do período.1 O amor estaria mais para uma manutenção, um cultivo primoroso do desejo do que para sua satisfação. Como relaciona Rougemont: “o amor cortês se assemelha ao amor ainda casto - e tanto mais ardente da primeira adolescência.”2

O que é curioso é como a dualidade platônica entre “Corpo” e “Espírito” (como se essas unidades fossem possíveis) foi reconstruída no romantismo, de forma tal que acabou por instaurar um paradoxo. O desejo corpóreo, a satisfação dos sentidos imbricou-se ao desejo incorpóreo das formas mais altas do conhecimento, colocando como ideal do amor justamente a não satisfação, o desejo não consumado. No mundo ocidental da propriedade patriarcal, onde as relações se baseiam em contratos, essa contradição tornou-se ainda mais aguda. A insatisfação, levada ao paroxismo na sociedade de consumo, é reposta continuamente, tornando-se angústia, sensação de prisão, uma vez que o homem muitas vezes está atrelado a laços criados com o pressuposto da eternidade. Enfim, a reunião dos contratos medievais com o amor romântico alimenta-se da ilusão de que o preenchimento dessa falta é possível. Seríamos capazes de encontrar a metade perdida e com ela satisfazer-nos pela eternidade. Porém o fato de que – paradoxalmente – esse preenchimento necessita ser garantido por lei já revela a precariedade dos vínculos afetivos e instaura contradições insolúveis. A mera garantia de posse já faz com que o sujeito se desinteresse pelo ser ao qual uniu-se em compromisso, o que faz com que sua função de objeto de substituição da plenitude desapareça. E a dificuldade de rompimento dos contratos, ou seu desacordo em relação aos estímulos a que o sujeito se encontra exposto, torna a insatisfação ainda mais extrema. 

A relação entre o desejo e a memória parece ser o ponto fulcral dessa procura sempre vã. Como Freud propõe, na Interpretação dos Sonhos, o desejo3 é alucinação, fantasma formado pelos signos que tentam em vão substituir vivências proibidas pelas diferentes formas culturais tomadas pela censura. O desejo é ânsia de presentificação do ausente. Esse, na neurose, retorna sempre sob formas simbólicas, uma vez que o sujeito está impedido de dar-lhe plena luz pelas leis da sociedade que é obrigado a entronizar. Isso faz com que a substituição seja sempre menor do que aquilo que ficou na memória. Porém, esse recalcado, por sua vez, também não é o real – pois este é inapreensível - mas um conjunto de significantes apreendidos num momento distante no tempo.4

Por ser memória, desejo é marca da nossa temporalidade e de como nos relacionamos com ela de forma simbólica. E aqui, não mais de uma forma transcendente e idealizada, mas como reminiscência justamente do impedimento, da Lei. O desejo torna-se ânsia do momento da ruptura, ou seja, do instante em que o movimento da satisfação foi interrompido por uma instância repressora, não necessariamente externa, às vezes, simplesmente internalizada pelo indivíduo. E, por isso, no complexo sistema de substituições significantes de que o ser humano é capaz, o desejo toma a forma do mecanismo repressor, não do fluxo paralisado por essa interrupção. Esse é o obscuro objeto do desejo.

De qualquer forma, o desejo sempre pressupõe um Outro. Desde Hesíodo, Eros é a força atrativa capaz de reunir seres diferentes e, às vezes, complementares. É preciso, necessariamente, que haja um ser Desejante e um, Desejado. E a correspondência almejada por todos é aquela em que Desejante e Desejado se encontram mutuamente e, vice-versa, um será o objeto do Desejo do outro.  Nessa relação, ocorre um fenômeno curioso: o preenchimento da falta não ocorre no corpo do sujeito que deseja, mas na imagem de si mesmo que percebe no outro, no ser desejado. Estamos então, mergulhados em um jogo narcísico, que faz com que todos nós sejamos como Don Juan: o objeto do Desejo, na verdade, é o espelho. Ou seja, sou eu mesmo. Ora, por que é justamente esse reconhecimento de si mesmo no Outro, aquilo que é capaz de obturar a falta? Sou capaz de completar-me apenas comigo mesmo? Como propõe Hegel, “o fim do desejo não é, como se poderia crer superficialmente, o objeto sensível, - este é apenas um meio – mas a unidade do Eu consigo mesmo.”5 Por isso, para Hegel, o sujeito desejante nega o ser que é objeto do desejo, para que a consciência de si, através desta negação do outro, possa se reunir consigo mesma. Foi dessa passagem que Lacan se apropriou para construir a famosa máxima: o desejo é desejo do desejo do Outro.


Sim, esse reconhecimento implica na supressão, por um breve período, da solidão inalienável de todo ser humano. E é aí, a meu ver, que esse movimento, aparentemente apenas narcísico, ganha um sentido metafísico.  Como lembrou Marilena Chauí, desejo vem do verbo desiderare que, por sua vez, vem do substantivo sidus, que é um conjunto de estrelas ou, no plural, sidera, constelações de estrelas. Como o destino está inscrito e escrito nas estrelas (considerare é consultar o destino olhando para os céus), desiderare é “a decisão de tomar nosso destino em nossas próprias mãos”, desistindo de buscá-lo nos astros. Essa tomada do destino nas próprias mãos implica em perda, em insegurança do homem sobre seus caminhos.  É então que o desejo passa a ter a acepção de “carência, vazio que tende para fora de si em busca de preenchimento”.6 Quando experimento a graça de ser desejado pelo Outro, vivo, simbolicamente e, infelizmente, apenas por um breve tempo, o fim desse desamparo. O Outro se torna a superfície onde vejo a constelação em que se inscreve meu destino. E essa constelação sou eu mesmo, mas jamais seria capaz de percebê-la sozinho. É essa completude que me tira da solidão. 

Esse narcisismo tornou-se constitutivo da relação com o Outro na contemporaneidade, quando a velocidade da sociedade de consumo implica na substituição incessante dos ícones do desejo. Vivemos num contínuo estado de “estetas” - no sentido que Kierkegaard cunhou para o termo, como a busca do prazer incessante, a sede de alguma coisa que não sabemos o que é. E a sensualidade, mais do que nunca, é a forma primordial com que nos relacionamos com o mundo. Dom Juan ou Don Giovanni é um paradigma, um modelo que atravessa os tempos, uma lenda na qual todo homem reconhece uma parte de si mesmo.  Don Juan é tão sensual quanto é etéreo, paradoxalmente, uma idéia incorpórea.  Don Juan vive no instante, cada mulher que toma é um símbolo da diafaneidade do instante.  É como o beija-flor, que não se demora mais do que um segundo a sugar o mel de uma flor, para abandoná-la em seguida, atraído pelas cores esfuziantes de outra. 

Como encarnação do desejo enquanto tal, D. Juan deixa-se arrastar por sua própria força incoercível de sedução.  Como força da natureza, ele “jamais se cansa de atrair, assim como o mar não se cansa de bater nas rochas e o fogo não cansa de queimar”.7 Rougemont define a personagem com uma visível influência da leitura de Kierkegaard:

Don Juan é ao mesmo tempo a espécie pura, a espontaneidade do instinto, o espírito puro em sua dança desvairada sobre a imensidade do possível. É a infidelidade perpétua, mas também a procura perpétua de uma mulher única, jamais encontrada pelo erro incansável do desejo. É a avidez insolente de uma juventude renovada em cada encontro e também a fraqueza secreta de quem não pode possuir porque não é o bastante para ter...8

O grifo é de Rougemont: Don Juan, como pura idealidade, não chega a “ser” o bastante para “ter”, para possuir a mulher evanescente que habita o próprio desejo. Por isso, o sedutor é naturalmente infiel. Don Juan só engana porque seu desejo é interpretado como algo mais do que é, como amor ou desejo de assumir laços matrimoniais. No entanto, ele nem sequer poderia experimentar esses sentimentos, ou não seria o que é, já que vive “numa outra esfera, oscilando entre ser uma força da natureza, uma sensualidade pura, uma paixão total, e ser um indivíduo apaixonado, o que em nenhum momento se realiza”.9 Como vive no instante, não concede espaço para sentimentos retrospectivos, tais como o arrependimento.  Ele é escravo do presente: 

É unicamente porque ele sempre alcança seu objetivo e sempre pode recomeçar que ele se torna épico - sua vida é a soma de instantes distintos, que não têm nenhuma relação entre si - a vida de D. Juan, como o instante, é uma adição de instantes, de tal forma que o próprio instante é uma soma de instantes.   D. Juan se encontra nessa generalidade, nessa oscilação entre o indivíduo e a força natural; no momento em que ele venha a se constituir indivíduo, a estética passará para outras categorias.10

Porém, Renato Mezan questiona: “se o fim da sedução é um controle sobre o seduzido, será que Don Juan é um sedutor?”11 A resposta está no fato de que Don Juan é puro desejo, não lhe interessa a continuidade, ele seduz para abandonar em seguida, em seu presente perpétuo.  Esse desejo, como o de Johannes, o Sedutor, de Kierkegaard, é um desejo narcísico e “o narcisismo tem a propriedade de idealizar seus objetos, de neles projetar uma luz que os faz aparecer como perfeitos, à própria imagem do ideal de perfeição que sustenta a vibração narcísica”. O jogo da sedução torna-se “uma reduplicação do narcisismo, tanto do agente quanto do objeto seduzido”.12 Da mesma forma, narcisicamente apaixonado por sua própria estratégia, o Sedutor chega a atrasar a conclusão de seus esforços, até a investida final.

A novidade que Renato Mezan introduz é a concepção da sedução como antes estruturadora do que traumática para o seduzido, porque introduz nele um “significante enigmático”.  Este, ou, no caso de Don Juan, esta, se torna a preenchedora/preenchida, capaz de obturar a falha desejante do Outro.  Ela se identificará com a imagem que o Sedutor lhe oferece, “identificação especular que será alienante e tenaz a ponto de sobreviver a quaisquer desmentidos da realidade”, como mostram as resistências de Donna Elvira diante das humilhações repetidas na ária do catálogo. Essa imagem só pode redundar em angústia, tanto da seduzida, que não deseja perder aquela parte de si mesma que lhe fora apresentada pelo sedutor, quanto do sedutor, que busca narcisicamente se realizar na realização do desejo das mulheres que cobiça.  No entanto a satisfação do desejo seu e alheio está fadada ao fracasso, é impossível, fazendo com que “a promessa inerente a toda sedução não possa ser cumprida; ela conduz assim, fatalmente, à decepção”.  O domínio do Outro é uma ilusão que redunda necessariamente em fracasso, por isso exige um eterno recomeçar. “Nesta vertente sombria, o sedutor busca, no subjugar o seduzido, a sua própria alma, mas de modo tal que perde a sua e a do outro.”13

       Renato Mezan interpreta com muita perspicácia a idéia desenvolvida por A., o pseudônimo de Kierkegaard que escreve sobre Don Juan, de que é o advento do cristianismo que coloca a sensualidade como princípio da cultura. Para Mezan, ao excluir a sensualidade como o pecado, o cristianismo acaba por implantá-la “como o outro de si próprio, em particular sob a forma da imediatez sensível”.14 A tese torna-se ainda mais interessante ao ser reeditada em nosso século na História da Sexualidade, de Michel Foucault. O silêncio que o cristianismo faz recair sobre a sexualidade seria, na verdade, parte de uma explosão discursiva em torno do sexo que teria se instaurado, para o filósofo, um pouco mais tarde, a partir do século XVI, tendo seu ápice na era vitoriana. 

     Nessa estratégia, em que o poder e o prazer se entrelaçam, as proibições e restrições do código canônico, da pastoral cristã e da lei civil, centrados na legitimidade do matrimônio, só fariam incitar a concupiscência e o desejo.  No silêncio, nas restrições, o sexo é a palavra negada, o Outro que está sempre presente.15 Paradigma do amor, tal como o vivemos na contemporaneidade, Don Juan se inscreve nesse espaço em que o desejo escapa, retorna sobre si mesmo, travestido pelos instrumentos com que se pretende encarcerá-lo.  É imaginação e êxtase.

     



Notas

1 DE ROUGEMONT.  O amor e o ocidente, p. 19. 

2 Ibidem, p.11.

3 Para Freud haveria desejos conscientes (ser professor, por exemplo); desejos pré-conscientes (o desejo de dormir) e desejos inconscientes (humilhar e se vingar do pai). É a este último que esse texto faz referência. (MEZAN, 331. In: NOVAES, 1999). 

4 O que o sujeito deseja é reproduzir a imagem mnêmica da percepção de um momento em que houve a necessidade do corpo (uma criança que chora pelo leite da mãe, por exemplo) e, em seguida, experimenta a “vivência de satisfação”. Por isso, o sujeito tende a buscar revivenciar todo o movimento da necessidade na busca da “identidade de percepção”, ou seja, a repetição da percepção que está vinculada à satisfação da necessidade. O que é mais interessante nesse processo complexo de substituições, é que é um movimento psíquico que não visa a conquista de um objeto exterior, mas de “algo que está no interior da psique: a imagem mnêmica da percepção que acompanhou a satisfação da necessidade.” (FREUD, p. 689. Apud. MEZAN, p. 356-357. In: NOVAES, 1999). 

5 HYPPOLITE, Jean. p. 153-155. Apud  MEZAN, p. 331.  In: NOVAES (org.). 1999.

6 CHAUÍ, p. 22-23 e, também, DI GIORGI, p. 133. In: NOVAES (org.). 1999.

7 VALLS, Álvaro. Os sedutores românticos: a força e o método. In: Op. cit. p. 119.

8 O amor e o ocidente, p. 151.

9 VALLS, Álvaro.  Os sedutores românticos: a força e o método.  In:  Op. cit. p.120-121.

10 KIERKEGAARD.  Les étapes érotiques spontanées.  In:  Ou bien... ou bien..., p. 77.

11 MEZAN, R.  Mille e quatro, mille e cinque, mille e sei.  In:  Op. cit. p. 91.

12 Ibidem. p. 94.

13 MEZAN, R. Mille e quatro, mille e cinque, mille e sei.  In:  Op. cit., p. 102-106.

14 Mille e quattro, mille e cinque, mille e sei:  novas espirais da sedução. In: Ibidem. p. 84-85.

15 FOUCAULT, Michel. A vontade de saber. História da sexualidade I, p. 38. O livro traz uma abordagem fascinante dessa questão, apesar de conter lacunas nada desprezíveis do ponto de vista histórico.

GUIOMAR DE GRAMMONT É escritora, dramaturga e, atualmente, diretora do Instituto de Filosofia Artes e Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto. Historiadora formada pela UFOP, mestre em Filosofia pela UFMG. Doutora em Literatura Brasileira pela USP.

GUIOMAR DE GRAMMONT She is writer, playwright and, currently, director of the Institute of Philosophy, Arts and Culture of the UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto. Master Degree in Philosophy by UFMG and Doctor Degree for Brazilian Literature by USP.