O INOMINÁVEL DO CORPO NAS OBRAS DE MELVILLE

THE UNSPEAKABLE BODY IN WRITINGS OF MELVILLE

Yves-Michel Ergal

(Universidade Marc Bloch, Strasbourg, França)

Resumo

Investigação sobre as relações entre corpo e linguagem na obra do autor de Moby Dick. É no capítulo XXVIII de Moby Dick que nasce a originalidade e a modernidade da escrita melviniana, que tem o seu fundamento na transposição literária do corpo « inominável », essa mesma escrita que mais tarde tanto influenciará certos escritores como Conrad, Kafka, ou ainda Beckett.

Palavras-chave | escrita | voz | silêncio

Abstract

Research on the relationship between body and language in the works of the author of Moby Dick and Bartleby. It can be found in Chapter XXVIII of Moby Dick the originality and the modernity of Melville’s writing style, which has its basis in literary transposition of the "unspeakable" body. This same writing style that will so influence later certain writers as Conrad, Kafka, or Beckett.

Keywords | writing | voice | silence


Para os seus contemporâneos, Herman Melville é, sobre tudo, o autor de dois livros de viagens que tiveram algum sucesso, nos quais ele refere a própria experiência de marinheiro navegando sobre o Pacífico (ele alistou-se num navio baleeiro por vários meses) : Typee e Omoo.

Typee é publicado em 1846, e Omoo um ano mais tarde. Além de oferecer uma representação de um choque entre civilizações e uma magnífica descrição das ilhas concebida como uma forma de nostalgia da idade de ouro, Melville narra a vida penosa dos marinheiros no navio baleeiro onde a equipagem embarca por vários meses, por vezes até vários anos, dando assim uma visão de clausura a bordo deste universo de homens, muitas vezes cruéis entre si, que se encontram sob o jugo de um comandante irascível, caprichoso ou doente, que entrega por vezes o mando ao imediato ou a subalternos tirânicos e quase loucos. Refugiado depois de um primeiro embarque no Acushnet (de Janeiro de 1841 a Julho de 1842), depois de ter desertado com um camarada (Toby Greene), quando decide fugir da tribo canibal dos Taipis, Melville encontra auxílio num baleeiro australiano, o Lucy Ann. No livro seguinte é nos contada a amotinação que estala no navio, por causa de um imediato que dá mostras de uma ferocidade sem limites, enquanto o capitão se refugia no seu beliche, incapaz de manter a sua autoridade sobre a equipagem. No porto de Papeete, os marinheiros revoltados são encarcerados numa miserável cabana dos subúrbios da cidade: sem ter estado verdadeiramente envolvido nessa amotinação, Melville é sujeito ao mesmo destino que os seus companheiros, antes de poder fugir novamente da ilha e de embarcar, em Novembro de 1842, a bordo do baleeiro Charles & Henry, deste vez como arpoador. Em 1843, acosta nas ilhas do Havaí. Pensa em estabelecer-se lá, mas a meados de Agosto do mesmo ano, alista-se como marinheiro na fragata United States, e passa mais de um ano no mar. Aos vinte e cinco anos, Melville vai ter com a sua família não longe de Boston. É nesse momento que revê os seus cadernos de apontamentos e começa a escrever.

Os primeiros romances de Melville, dedicados a esta experiência que teve do mar, ao afastamento, à solidão, à promiscuidade que lá conheceu e às descobertas que lá fez, estabelecem as grandes interrogações sobre a natureza humana. Melville emite ume apreciação crítica severa quanto à noção de “civilização”, frequentemente percebida como uma repressão. Em breve, no entanto, o cronista de Typee será animado por uma concepção mais literária, acrescida de uma ambição filosófica: já em Omoo se entrevê uma análise psicológica dos violentos conflitos [rapports de force] entre os homens, e uma reflexão sobre o poder e a tirania. É sobre tudo com o seu terceiro livro, Mardi, que o escritor americano rompe com a tendência anterior e inicia a sua criação romanesca: trata-se da narração de uma longa viagem de ilha em ilha, de arquipélago em arquipélago. Um périplo à volta do mundo leva os protagonistas da obra a experimentar todas as formas de sistema político, todas as religiões, dando assim um amplo panorama das excentricidades humanas, uma espécie de Odisseia do descobrimento de mundos longínquos. Tudo isto se baseia na sólida cultura de Melville, derivada das suas permanentes leituras da Bíblia e do facto de, no momento em que redige Mardi, descobrir as obras de Dante, Rabelais, de escritores românticos ingleses e de Rousseau, também. Atento à revolução francesa, que acaba definitivamente com a monarquia, Melville acrescenta então ao seu romance “vinte e três capítulos de alegoria política”, segundo as suas próprias palavras. Neste conto, o escritor americano empenha-se em reflectir sobre o problema da escravatura, e sobre o problema da expansão territorial do seu país na época da corrida ao ouro na Califórnia. Mardi, livro publicado em Março de 1849, é um insucesso, talvez por ser uma obra demasiada ambiciosa, situada no cruzamento da Odisseia e da Divina Comédia e que representa um vasto entrelaçamento de símbolos e de parábolas.

Melville transforma esta tentativa de escrita de um livro sobre a humanidade num amplo romance do mar e da procura, em romance da loucura também e do excesso. Este livro concebido de início como um “whaling voyage” (uma viagem de caça à baleia), intitulado Moby Dick e publicado em 1851, conta a história de um comandante que arrasta com ele o barco e a equipagem na sua perda, por desejar enfrentar-se, a qualquer preço, à baleia branca Moby Dick, numa luta de titãs, a luta de um homem diante do divino. O único a permanecer são e salvo é o grumete Ismael, narrador do livro e a única testemunha desta circunavegação (em inglês “Voyage”) até aos confins do desconhecido e do indizível.

É no capítulo XXVIII de Moby Dick que nasce a originalidade e a modernidade da escrita melviniana, que tem o seu fundamento na transposição literária do corpo “inominável”, essa mesma escrita que mais tarde tanto influenciará certos escritores como Conrad, Kafka, ou ainda Beckett. O capítulo intitulado “Ahab”, introduz a aparição quase fantástica do Capitão Ahab, no castelo de proa, vários dias depois da partida de Nantucket. O narrador, Ismael, observa que a atitude rígidamente soberba do captião procede em parte da “barbare jambe blanche sur laquelle il s’appuyait”1 e acrescenta : “Je savais déjà que cette jambe avait été façonnée en mer dans l’ivoire poli d’une mâchoire de cachalot”22 (na versão francesa de Moby Dick, Folio: 187).

Aqui a ferida é visível, flagrante: a perna de marfim do Ahab já é uma parte da baleia branca. Os dois seres, separados, têm de se reencontrar, de voltar a se encaixar, para que o mundo tenha sentido, e, a narração uma razão de existir. Desde então, o romance melviniano não deixa de mostrar um herói dividido, que não pode existir no seu corpo atormentado se não se unir a um ser que o complete e que represente a sua parte de um inominável aterrador. Há um romance que se está a escrever para o público, que Melville considera “falhado”, e um livro que se elabora paralelamente, secreto, e concebido no Silencio : “Au coeur d’un tel silence, quelque chose assurément s’élabore. Est-ce création ou destruction?”3 (na versão francesa de Pierre, or the Ambiguities, (Pierre ou les Ambiguïtés). Ahab é uma figura de romance do mar, que tem as propriedades do terror fantástico e do que há de desmesurado nas obras românticas, mas, no mesmo instante, no seu corpo mutilado, ele personifica a parte inominável de Melville, essa mesma parte que permite dar uma coerência à obra do autor estadunidense, apesar das aparências indicarem o contrário.

Uns meses depois da publicação de Moby Dick, Melville termina, em Março-Abril de 1852, o seu romance Pierre or The Ambiguities; depois virá, em 1853, a sua novela Bartleby, The Scrivener (Bartleby, o escrivão). A publicação de Pierre é um insucesso total. Melville, autor desprezado e que em breve será quase completamente esquecido, consegue um cargo numa alfândega em 1866, no qual permanecerá durante mais de vinte anos. Em 1888, ele começa a escrever Billy Budd, Sailor, texto que acaba a 19 de Abril de 1892, cinco meses antes de falecer.

O romance Pierre, or the Ambiguities possui ao mesmo tempo o fôlego do alto mar de Moby Dick e o ambiente confinado e estreito da vida de escritório descrita em Bartleby. No início do livro encontramos-nos no meio de uma vasta propriedade ancestral, que pertenceu ao general Glendinning, o avô de Pierre, e que parece ser uma metáfora dos Estados Unidos da América, da mesma maneira que o Pequod em Moby Dick. Tudo começa como se estivéssemos num romance pastoral: Pierre está noivo da bela e jovem herdeira Lucy Tartan. A aristocrática mãe de Pierre, Mary Glendinning, só pode concordar com este matrimónio que satisfaz as suas vontades. Todavia, há dois elementos que perturbam secretamente esta Arcádia demasiada utópica para ser real : por um lado, um rosto estranho aparece a Pierre e já não lhe deixa sossego – encontramo-nos aqui num romance fantástico à semelhança das obras de Nathaniel Hawthorne – e, por outro lado, temos a estranha relação entre Pierre e a jovem mãe dele que mais parece ser uma “mãe-irmã”, inaugurando assim o tema “inominável” do livro : o incesto. Em breve, e graças a peripécias dignas de um romance gótico, Pierre descobre que uma jovem trabalhadora da terra, Isabelle Banford, é a meia-irmã dele. Desde então, para resguardar a memória do seu pai e evitar que a mãe saiba esta verdade cruel, Pierre toma uma decisão insensata, decide fingir que Isabelle é sua esposa, desistindo desse modo do seu casamento com Lucy, e afligindo a mãe dele. Mary Glendinning renega logo este filho desencaminhado. O romance perde-se então numa verdadeira descida aos infernos que conduz a um final trágico.

Pierre Glendinning é irmão do capitão Ahab. Assim como este, Pierre arrasta com ele familiares e íntimos (Isabelle, a mãe dele, depois Lucy, nos últimos capítulos) para a morte, da mesma maneira que Ahab leva com ele a equipagem do seu navio para os abismos do oceano. Mas neste caso, passamos a um nível mais elevado na transposição do inominável do corpo: como réplica da perna de Ahab feita de marfim de baleia, temos agora um corpo definido pela amputação da sua virilidade e que se reune, num casal falso, com uma meia-irmã, esta outra parte do corpo à qual o herói se une, para fusionar com ela, anunciando assim a sua perda. Quando Ahab enfrenta finalemente a baleia branca, é engolido pelo mar, e o romance termina por um desenlace majestoso e literáriamente esperado. Porém, quando Pierre e Isabelle já só fazem um e vêm viver na pobreza para a cidade, nos Apóstolos, uma antiga igreja transformada em dormitório para artistas e intelectuais marginais, antes de que a veia trágica shakespeariana da narração acabe por consumir o romanesco (todos morrem no final, como na cova de Romeu e Julieta, ou no quarto de Desdémona em Othello), Pierre torna-se escritor, mas o livro que ele está a escrever é únicamente nas aparências o livro que o leitor tem nas mãos. “Deux livres sont en cours, et le monde n’en verra qu’un : le “livre raté””.4 O “livro falhado”, é o romance do Mal em Moby Dick, o romance do incesto em Pierre or The Ambiguities, tudo falsas aparências do inominável. O outro livro, é o livro que Melville oculta talvez a si próprio, é o livro da ambiguidade de Pierre, ou seja a sua impotência física de amar uma mulher, ele, cujo inominável do corpo é nada mais que o seu eu feminino, que o devora, o sufoca. Isabelle é uma parte de Pierre, da mesma maneira que a perna de marfim é uma parte de Ahab: Ahab e Moby Dick, Pierre e Isabelle são a evidente transposição de um corpo “inominável”. Enquanto em Moby Dick o corpo inominável pertence à essência romanesca, em Pierre or The Ambiguities esse corpo transvasa para as águas turvas da sexualidade. O corpo inominável que se apresenta no romance é um corpo sexual literário, do qual o leitor decifra únicamente a parte visível, ou “nominável” (aqui o incesto); o inominável, porém, fica noutro sítio, nessa parte feminina de Pierre que está muito mais ligada à homosexualidade que ao incesto.

Conhecemos a história de Bartleby: um advogado em Nova Iorque contrata como “escrivão” um certo Bartleby, copista que dá inteira satisfação, até ao dia em que esse tal escrivão se opõe por acto de resistência passiva às ordens do seu patrão, através da fórmula que ficou célebre : “I would prefer not to”.5 Desde então o advogado deixa-se dominar pouco a pouco pela personagem de Bartleby, e até lhe vai ceder o escritório dele. Não será Bartleby a continuação desta representação do inominável do corpo, e não se tratará aqui de uma transposição, mais precisamente homosexual, da parte do inominável representada anteriormente pela perna de marfim de Ahab, e depois por Isabelle Banford? A frase “I would prefer not to” de Bartleby, não será talvez a rejeição inconsciente dirigida às pulsões do desejo de fusionar que sente o advogado? Gilles Deleuze constata num longo postfácio para a tradução francesa de Bartleby, ou le Scribe (GARNIER-FLAMMARION: 182).

Est-ce un cas de folie à deux, là aussi un rapport de double, un rapport homosexuel presque reconnu (oui Bartleby ...  jamais je ne me sens autant moi-même que lorsque je sais que tu es là ... j’atteins au destin prédestiné de ma vie...) ?6

Começada como se pertencesse a uma comédia balzaquiana – a descrição risível da medíocre vida de escriturário de notário – a personagem de Bartleby, se não fosse ao mesmo tempo uma metáfora da escrita melviniana, poderia acabar como numa tragédia, numa personagem feita trapo humano na prisão das “Tombs”, num pobre-diabo sustentando-se com biscoitos e tendo vivido fechado no escritório do advogado. Ademais a morte de Bartleby é mencionada por uma só frase: “je ne sais pas si je dois divulguer ici le bruit qui me parvint aux oreilles quelques mois après la disparition du scribe”7 (op. cit.: 57). Porém, na conclusão do texto é nos comunicado um elemento surpreendente quanto ao trabalho de Bartleby antes da sua chegada ao escritório do advogado-narrador: tinha sido um “empregado subalterno do serviço das cartas rejeitadas de Washington” - cartas perdidas que nunca chegam ao seu destinatário, do mesmo modo que a verdadeira história de Bartleby está perdida para o procurdor, para a “literatura”. Bartleby é mesmo um “homem posto de parte”, porque escrever Barlteby limita-se a dar a alcançar ao leitor somente a história perdida de uma personagem, a fazer reluzir o vislumbre de um inominável. Há que ler entre as linhas as obsessões abafadas do próprio Melville nesta estranha relação entre o escrivão e o narrador, tanto um como o outro constituindo apenas a transposição literária de um corpo inominável. Trata-se realmente de um texto que põe em questão a própria noção de escrita melviniana, e até a delimitação mesma do cenário do escritório em Bartleby establece uma comunicação com os vastos espaços marinhos ou cobertos de erva em Moby Dick ou Pierre or The Ambiguities:

Du fait de la hauteur des immeubles avoisinants et de l’emplacement de mes bureaux au second étage, l’intervalle séparant ce mur du mien n’était pas sans évoquer une énorme citerne carrée (Id.:77).8

Este aspecto de isolamento do escritório na cidade faz-nos lembrar o Pequod em Moby Dick, ou os Prés-de-la-Selle e os Apóstolos em Pierre, todos estes lugares simultaneamente do romance e da escrita de Melville, nos qual se move um corpo inominável reduplicado e recomposto. Se Melville põe em cena certas fantasias, trata-se menos de fantasias quanto a relação entre o advogado e Bartleby, do que a respeito da relação que existe entre o advogado-narrador-escritor e Bartleby o duplo, Bartleby o escrivão que já não escreve. O corpo desviado dos protagonistas – tema do livro do inominável falhado – torna-se metáfora de outro livro do inominável, esse livro que se constrói e se destrói no Silêncio.

A incapacidade do texto de “nomear” tem semelhanças com a incapacidade de Billy Budd, o marinheiro da última escrita melviniana, que, ao ser injustamente acusado de amotinação pelo horrível Claggart e chamado a justificar-se perante o capitão Vere e os seus oficiais, acaba por gaguejar. Esta gaguez de Billy, metáfora de uma perda do texto que se dirige necessáriamente a sua ruína no mesmo momento em que tenta exprimir-se, basta para constituir o último sinal da transposição de um corpo “inominável”, personificado aqui por um jovem marinheiro e anunciando as criaturas de Jean Genêt, personagem de semelhante beleza e de semelhante atração que mais parece uma perfeita tradução, decerto tardia, ao mesmo tempo do segredo do escritor e da enigma da sua escrita.

Pela primeira e última vez, em Billy Budd, breve romance que se torna testamento literário, o herói traz nele todas as ambiguidades dos desejos não confessados do autor, cuja obra inteira tinha tentado delimitar. No momento em que Melville parece ter alcançado o seu objectivo, tendo reunido a personagem e a escrita, tanto o herói como o texto gaguejam, do mesmo modo que a voz de Joséphine em Josephine die Sängerin oder Das Volk der Mäuse (Josephine, a cantora), a última novela de Franz Kafka, fica sem voz, ou do mesmo modo que a Voz falando se cala no romance de Samuel Beckett O inominável.

 

 



Notas

1 bárbara perna branca sobra a qual se apoiava

2 Eu já sabia que a perna tinha sido feita a bordo com o marfim polido de uma maxila de cachalote

3 No meio de semelhante silencio alguma coisa se está seguramente a elaborar. Será criação ou destruição?

4 Há dois livros que se estão a escrever, e o mundo só verá um: o “livro falhado”. 

5 Eu preferia não o fazer. 

6 Teremos aqui um caso de demência a dois, aqui também uma relação de duplos, uma relação homosexual quase reconhecida (sim Bartleby ... eu nunca me sinto tão eu mesmo como quando sei que estás cá ... atinjo a finalidade predestinada da minha vida)? 

7 não sei se hei-de divulgar aqui o rumor que me chegou aos ouvidos uns meses depois do desaparecimento do escrivão.

8 Por causa do tamanho dos prédios vizinhos e da localização do meu escritório no segundo andar, o intervalo que separava esse muro do meu mais parecia uma enorme cisterna quadrada.

YVES-MICHEL ERGAL é autor de diversos ensaios sobre literatura, dança e cinema, professor e persquisador da Universidade Marc Bloch, Strassourg, França.

YVES-MICHEL ERGAL is author of numerous essays on literature, dance and cinema. Currently he is professor and researcher at the Marc Bloch University, Strassourg, France.