ARTAUD E A DANÇA DO CORPO SEM DEUS

ARTAUD AND DANCE OF THE BODY WITHOUT GOD

Filipi Gradim Oliveira

(UERJ)

Resumo

A incontinência de Artaud em não querer absorver os ditames da cultura pessimista do modernismo europeu tem uma razão digna: a tentativa a um só tempo desvairada e lúcida de reinventar a condição humana por meio do processo trágico (e mágico) de nascimento e morte do corpo por meio da criação artística, sobretudo, do teatro e da dança. Partindo desse pretexto, o presente artigo visa apresentar o conceito de corpo dentro da poética da Crueldade de Antonin Artaud, destacando a influência significativa do teatro oriental em sua tese polêmica de um corpo desenraizado de Deus e da moral.

Palavras-chave | Crueldade | Corpo | Trágico | Devir | Natureza

Abstract

The incontinence of Artaud in not wanting to absorb the dictates of the culture of European modernism pessimist has a worthy reason: the attempt at the same time wildly and lucid to reinvent the human condition through the tragic process (and magical) of birth and death of the body through artistic creation, especially theater and dance. Based on this pretext, this article presents the concept of the body within the poetic of cruelty of Antonin Artaud, highlighting the significant influence of the Oriental theater in his controversial thesis of a body with no roots from God and morality.

 Keywords | Cruelty | Body | Tragic | Coming-to-be | Nature

1. O valorar do corpo na modernidade

Não seria por demais absurdo admitir que  corpo humano perdeu sua razão de valer; “faz séculos” abandonou-se “uma certa operação de transmutação fisiológica” (ARTAUD, 2007: 324), o que leva a crer que ele atingiu o “limite de sua distensão e de suas forças e que precisa, apesar de tudo, ir mais longe” (ARTAUD, 2008: 213): assim parece insistir o sentimento de mal-estar do homem contemporâneo. Uma declaração como essa é de se espantar para os espíritos modernos habitués dos círculos científicos, para aqueles que ainda não despertaram do sono dogmático; nos moralistas, esperançosos de felicidade, acarreta em riso e escárnio; aos cristãos e budistas, amamentados com o “leite da bondade humana” (SHAKESPEARE, 2008: 777) causa indignação e arrepio. É-nos duvidoso que nosso “ser” mais íntimo, o corpo, tenha perdido a razão de sua valência e que tenha, por ventura, capitulado diante da vida, mesmo sendo esta um caso particular da Crueldade, da essência mesma da realidade, “que admite, por conseqüência direta, o mal e tudo o que é inerente ao mal” (ARTAUD, 1999: 134); e que, inevitavelmente, “é sempre a morte de alguém” (ARTAUD, 1999: 118).

Malgrado o caráter trágico da vida, alguns insistem que o “ser” que recheia o corpo de valor está salvaguardado pela suprema bondade, justiça e inteligência do “espírito divino” e que, por isso, o estatuto de sua existência é legítimo e irrefutável; essa, entrementes, não é a postura de Antonin Artaud; o ator e poeta que escandalizou Paris nas décadas de 30 e 40 com sua arte despudorada e alimentada com o desejo de criação de um novo valorar do homem e do corpo. De verve combativa e provocadora, Artaud acredita que o corpo, que “só morre porque esqueceram de transformá-lo e de mudá-lo”, “tem um sopro e um grito pelos quais ele pode chegar ao fundo decomposto do organismo”. Portanto, armado de sua artilharia, torpedeia os costumes, já que:

No momento e no ponto em que estamos, nenhuma questão pode ser colocada de outro modo salvo no plano universal, isto é, no da liquidação de todos os valores sob os quais vivemos. [...] e que essa liquidação que cheira talvez a decadência, cheira acima de tudo a um ajuste de contas, que no seu desarranjo de máquina parece evocar a macha contrária de alguma suja doença humana (ARTAUD, 2008: 68).

Ou seja, o corpo se alienou de si. E o homem niilista do século XX, de vontade e espírito revolucionários, sente de perto o odor fétido do estiolamento do querer, do pensar e do sentir humano. Ciente disso, Artaud empreendeu, por meio do teatro, uma sangrenta campanha para restabelecer a vitalidade erótica e criativa do corpo, recusando sua submissão às prescrições de um valor alheio a ele; e este valor é a moral cristã, responsável por todo sucumbir dos instintos e pelo congelamento do querer-viver através da crença e da esperança em falsos ídolos. O que está em mira para Artaud é a hegemonia das superstições na cultura idealista da modernidade em relação à potência erótica e poética do viver. Nada o convence do contrário: a vida, que “nos parece em estado de diminuição violenta” (ARTAUD, 2007: 315), e o corpo, foram ultrajados com a admissão de um princípio antinatural como a moral cristã, que pretendia “libertar” o espírito do apego à sensualidade. O batalhão de metafísicos, usurpando a vida de sua animalidade latente, plantou na cultura, por meio de um valorar racional, o gérmen de uma doença: a moral cristã. É preciso então que nos livremos dos grilhões desses “momentos de neurose e baixa sensualidade como este em que estamos mergulhados, para atacar essa baixa sensualidade através dos meios físicos aos quais ela não resistirá” (ARTAUD, 1999: 91).

Logo, é ingênuo pensar que o sentido do corpo pudesse ser assegurado com tamanha convicção por uma mera constatação sensível do funcionamento regular do organismo ou mesmo pela crença na supremacia do espírito entendido como realidade etérea e imortal. A questão pede mais de nós mesmos; extravasa o limite do próprio entendimento empírico: está em fino acordo com os nossos valores, com nosso interpretar afetivo da existência.

Segundo Artaud, “a vida ardente, a vida em estado puro” (ARTAUD, 2008: 76), isto é, no seu sentido total, foi acometida de uma violência, onde o seu sulco interior, o seu ser próprio, foi contaminado com a invasão de um “corpo” artificialmente engendrado: o ideal cristão de civilização, isto é, a domesticação da volúpia sexual do corpo pela autoridade do “dever-ser” da moral e do racionalismo mecanicista. O corpo sofreu imediatamente com a tentativa humana de encarcerar a vida nos limites dos conceitos de “ser”, “unidade” e “fim” e, por isso, esmoreceu, vindo a se submeter aos desígnios de uma vontade ansiosa por verdade universal; nesse caso, poder tirânico de controle do erotismo terreno, fundando sobre os costumes o ideal de uma vida civilizada; em outras palavras: inculcou-se o hábito de uma “desejabilidade” de vida, um “como se” racional do querer viver; um moralismo que se esquece que “não há nada de existente e de real, senão a vida física exterior, e que tudo o que foge dela não é mais do que os limbos do mundo dos demônios” (ARTAUD, 2007: 329).

Servo do universalismo da alma, o corpo, com efeito, caiu no esquecimento de sua essência, para não desequilibrar a ordem da vida desejada pelo idealismo segundo seu estiolado e ressentido ajuizar estético; por isso, teve o seu apetite de viver orientado segundo máximas da razão, ou melhor, imperativos de sua vontade fragilizada, considerada aí como livre faculdade da alma; capaz, inclusive, de desprender-se da vida ao sabor de seu querer. Como pregoeiros desse ideal de vida, temos o espírito abstrato e gélido de Kant, como também o racionalismo histórico de Hegel; e, por fim, o misticismo asceta de Schopenhauer, todos eles espíritos entusiastas em relação à superação da violência animal do homem pela subscrição legal da moral.

Mas, se entre os homens “não existe mais nada, nem ninguém”, se “a alma é insana, não há mais amor, nem mesmo ódio, todos os corpos estão saciados”, “as consciências, resignadas”; em suma, se “nem mais existe aquela inquietação que atravessa o vazio dos ossos” e “só existe uma imensa satisfação de inertes almas bovinas”, então havemos de angariar forças para realizarmos uma verdadeira revolução contra a moralidade cristã e contra o juízo de Deus nas plantações da cultura. Pois o que agrava o debate entre homem e natureza é o fato de que aquele se encontra em processo de decadência, e isso é externado em sua realidade histórica e axiológica: Deus, “isso que chamam de micróbios” (ARTAUD, 1986: 160), é o resultado de tamanha corrupção da volúpia. A revolução, no entanto, se dirige para a existência dos valores e da sua entidade legisladora que é Deus, o espírito santo “que nada mais é senão a descarga anal e vaginal de todas as missas” (ARTAUD, 1986: 114).

Sabendo que “o homem, quando não é reprimido” pelo imperativo do dever, “é um animal erótico [...] que produz inumeráveis animais os quais são formas que os antigos povos [...] atribuíam a deus” (ARTAUD, 1986: 160), Artaud anseia por criar novos valores, que não exaltem interesses ascéticos. É preciso, pois, que estejam em íntima unidade com a vida, de modo que aquilo que julgamos esteticamente, isto é, toda a série de imagens que formamos sobre o acontecer, conjugue com o que o corpo se afeta e do modo como ele incorpora esse afeto por meio do entendimento empírico, isentando o crivo de Deus. Logo, os valores requeridos pela revolução niilista liderada por Nietzsche, e seguida à distância por Artaud, são valores nascidos de nosso espanto diante do mundo, de nossas paixões carnais e de nossa excitação estética frente o mistério irrevelável da natureza, capaz de provocar as mais diversas e complexas reações.

Por isso,

Se falta enxofre à nossa vida, ou seja, se lhe falta uma magia constante, é porque nos apraz contemplar atos e nos perder em considerações sobre as formas sonhadas de nossos atos, em vez de sermos impulsionados por eles. E essa faculdade é exclusivamente humana. Diria mesmo que é uma infecção do humano que nos estraga idéias que deveriam permanecer divinas; pois, longe de acreditar no sobrenatural, o divino inventado pelo homem, penso que foi a intervenção milenar que acabou por nos corromper o divino (ARTAUD, 1999: 3).

Fica claro que, para Artaud, falta gana erótica na “vida” valorada por essa psicologia pessimista do mundo moderno; e, para tal, ele nos oferece a imagem poética do enxofre e da magia. Mas convém alertarmos que não é a vida que perdeu a força, mas sim a força se esvaiu do pensar, do querer e do sentir do homem moderno em relação à vida, ao cabo do “dever-viver” prescrito pela moral; de modo que passou a desacreditá-la, a desconfiar de si mesmo, de sua potencialidade natural e sucumbiu diante do acaso. O corpo, o veículo efetivo, a “grande razão”, o “rebanho e pastor” (NIETZSCHE, 2007: 60), foi vilipendiado como o ideal cristão de divindade, que “quis o espírito e não o corpo”, vendo neste “o princípio” cujo “vazio se faz cheio, preenchendo aos poucos o vazio que é apenas sua emanação” (ARTAUD, 1986: 121). Como compensação pelo medo diante da barbárie da natureza e da confusão do ir e vir das coisas passou a formalizar a vida por força de um entendimento aliado ao pensamento abstrato, desprendido das paixões. O divino em nós foi corrompido com a introdução dessa cultura demasiado ensimesmada com a vida que foi a do idealismo inaugurada por Descartes.

Com a chegada da modernidade, o divino da natureza foi abortado, pois tal configuração não satisfazia o valorar dos homens daquele tempo. Em seu lugar, foi introduzido um templo novo, “espiritual”, intelectualizado e, sobretudo, canônico. Valores fora da vida foram apresentados como valores que “deveriam” ser queridos por toda vontade conduzida pela razão; e assim eram, à revelia, batizados de “puros”, de “verdadeiros” e de “elevados”.

Por isso, foi inevitável a derrocada do divino da natureza no homem; o direito de não ter direitos por si, de ser espontâneo, lhe foi negado pelo lento abstrair da vida e dos valores. Logo, toda divindade passou a ser expressa na forma de máxima da razão prática, de sujeição intelectual entre a natureza animal e apetitosa e outra supra-animal, “espiritual” e “virtuosa”, coagindo o corpo a se conformar com a necessidade imposta pelo incondicional decreto-lei de Deus e na conformação dos indivíduos a esse decreto-lei. Foi-se embora a inocência da experiência, para se acreditar em uma ficção imoral, a ficção do “eu” que crê ser possível manipular o erotismo da vontade na direção da vida para, enfim, domá-lo e liderá-lo do alto de transcendente necessidade do “espírito”.

Por isso, Artaud diz: “todas as nossas idéias sobre a vida devem ser retomadas numa época em que nada mais adere à vida” (ARTAUD, 1999: 3); e, por isso, é preciso armar uma revolução às avessas; pois “há bombas a pôr em alguma parte, mas na base dos hábitos do pensamento presente, europeu ou não” (ARTAUD, 2008: 39) a fim de acabar com “o estreitamento insensato que se impõe à idéia da cultura ao se reduzi-la a uma espécie de inconcebível Panteão – o que resulta numa idolatria da cultura” (ARTAUD, 1999: 3). O que é notório na crítica de Artaud é que o fato do valorar moderno efetuar-se fora da imanência e da vida, separada de si mesma, sendo subestimada, sendo alocada para outra dimensão, a dimensão do ideal, daquilo que ela não é, onde repousa, “quieta” e “realizada”, em sua quintessência transcendente; que resulta no completo tédio e aborrecimento do homem até fazê-lo “morrer e de uma maneira tão profunda que nem percebe mais” (ARTAUD, 1986: 122). Elevamos tão alto o nosso sonho de vida, que o corpo, cônscio de sua “pequenez” diante de Deus, estancou em seu movimento e não pôde ir junto, ficando à deriva desse plano “perfeito”. “Destilaram todas as nossas percepções, todas as nossas impressões, e só vivemos a conta-gotas, respirando o ar das paisagens por fora e a partir das beiradas” (ARTAUD, 1986: 122). Por isso, a vida foi ceifada ao meio; e uma de suas partes, a mais privilegiada; isto é, a que diz respeito aos movimentos do ânimo, o coração mesmo das coisas, foi, em nome de uma renúncia, cedido a Deus a quem “devemos nos curvar” como valor supremo da cultura.

2. A libertação do corpo no corpo inorgânico do ator

Em Artaud, obra de arte não é senão ele próprio: animal erótico que anela, erra e sofre, recusa ser, inclusive, rebento de Deus e declara ódio a toda filiação: “Vivi um ódio obscuro do Pai, e do meu próprio pai em particular” (ARTAUD, 1980: 146) ou “eu, Antonin Artaud, sou meu pai, minha mãe” (ARTAUD, 1974: 77). Criador e criatura, linguagem e vida nele se amalgamam: o valorar é ele próprio um corpo que se plasma intensificado e configurado em um tipo singular de força, de coagulação de afetos explosivos. A questão do corpo como propriedade autêntica formulada por Nietzsche tem a sua efetivação em Artaud: “lá onde os outros propõem obras, eu não pretendo senão mostrar meu espírito” (ARTAUD, 2007: 12). Ele se veste das mais diversas personas para ou ser todas elas ou para simplesmente não ser nenhuma. Diria mais: seu corpo, sem decreto-lei que estipule uma teleologia a ser seguida, nada e tudo é, pois é atravessado por forças que, no seu manifestar cruel, insistem em derruir qualquer tentativa de encastelamento do “ser”, pois “tudo o que nasceu pode vir a nascer, contanto que não nos contentemos em permanecer simples órgãos de registro” (ARTAUD, 1999: 8).

Em suma: o corpo artístico divisado por Artaud não se adapta à determinação orgânica moral, religiosa ou científica que visa conservar a espécie encerrando-o no conceito de “ser”; possui, no entanto, com sua “nova poética da carne [...] uma espécie de ‘thanatographie’” (GALENO, 2005: 34), como diz Dumoulie, um de seus comentadores; uma fome de devir; quer, com isso, fortalecer o seu tom através da permanente maceração e incremento das paixões, mais ainda: colocá-lo corajosamente “de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia” desnudando-o, para arrancar à força, “para raspar” a imagem de Deus, “esse animalúculo que corrói mortalmente” (ARTAUD, 1986: 161) os estímulos eróticos.

O corpo de Artaud foi por ele engendrado em múltiplas imagens, nascendo e morrendo muitas vezes, conforme a necessidade inventiva do devir: foi xamã no México; ideólogo no curto tempo de convívio com os surrealistas; pestífero, internando-se em um manicômio; e lá, vestindo a túnica de profeta, autoproclamou-se Cristo; foi cineasta, desenhista, poeta, cientista do teatro, conferencista - e ator. Sobretudo ator: em sua existência difusa, foi sob essa condição que pôs em prática o lúdico (e mortal) jogo de ser e de não-ser do criar, a brincadeira arriscada em torno dos sentidos, dos desejos e da imaginação. Como ator, sofreu as múltiplas afecções que cruzam a sensibilidade sobre o tablado da existência: “eu sofro, não somente no espírito, mas na carne e na minha alma todos os dias”. O corpo, o anteparo dos afetos e do valorar, em Artaud sinaliza uma hecatombe; anuncia uma crise nervosa constantemente rondando: “Eu sinto sob o meu pensamento um chão que se desmorona”. O trepidar da vida, nele, assume o efeito de um abalo sísmico: “sempre senti essa desordem do espírito, esse aniquilamento do corpo e da alma, essa espécie de contração de todos os meus nervos em períodos mais ou menos aproximados” (ARTAUD, 2007: 10).  

Seu estômago revira em náuseas em decorrência da presença desse moribundo e anestesiado espírito arquitetado pelos desígnios de Deus, por isso “o homem moderno supura e fede”; “sua anatomia é má, e o sexo, em relação ao cérebro, está mal colocado na quadratura dos dois pés” (ARTAUD, 2007: 320). Poucas atividades humanas souberam o que fazer com o corpo, o ser próprio da realidade: todas as intenções falharam e ele continuou corrompido em seu erotismo, cativeiro da alma transcendente, e formatado segundo o ideal ascético do cristianismo.

Já que “a última palavra sobre o homem ainda não foi pronunciada” (ARTAUD, 2007: 320), há que se armar uma batalha contra esse “bando de forçados” chamados cristãos que embargam o acesso do homem à volúpia criativa do devir. Na linha de frente encontra-se o teatro, arte por excelência profana e dionisíaca, promotora da comunhão do homem com as forças imanentes da natureza. Porém, não é qualquer teatro capaz de açular os impulsos sexuais do homem e de fomentar o ato criador capaz de redesenhar a anatomia humana e de libertá-la do organicismo. Os registros históricos nos dão provas cabais do quão psicológico, moralista e mecânico se tornou o teatro ocidental desde o advento da modernidade. Nela encravou-se uma idéia de arte representativa, onde o terrível e o maravilhoso se distanciaram da sexualidade e das pulsões da vida, enfraquecendo o potencial poético do corpo.

Logo, é preciso volver ao teatro mítico, originário, que na visceralidade era “incapaz de se repetir quanto qualquer ato da vida, qualquer acontecimento trazido pelas circunstâncias” (ARTAUD, 2008: 34); um teatro “ligado a forças, baseado em uma religião”, em “crenças efetivas” (ARTAUD, 2008: 75), para que permitamos o corpo se recinzelar sob uma imagem potente, vicejante e irmanada com o devir. Isto porque

O teatro não é essa parada cênica onde se desenvolve virtual e simbolicamente um mito, mas esse cadinho de fogo e de verdadeira carne onde anatomicamente pela trituração de ossos, de membros e de sílabas os corpos se refundem, e se apresenta fisicamente e ao natural o ato mítico de fazer um corpo (ARTAUD, 2000: 321).

 

Sentindo que há um débito da cultura com relação ao teatro e à poética do ator, Artaud corrige a nossa opinião. Na usança popular, costumamos compreender mal a dimensão dessa arte, por ter sido longamente eclipsada pelo nosso hábito psicológico. Diante disso, podemos deduzir que se o teatro “continua a viver acima do real, a propor ao espectador um estado de vida poética que, se impelido ao extremo, só conduziria a precipícios” (ARTAUD, 2008: 75), se constitui um campo impessoal e irrestrito, isto é, sem se imiscuir à realidade ordinária e sem se ancorar no psicologismo; se ele, em função da violenta força do devir, confronta no espaço dois ou mais corpos que intercambiam os seus afetos; e se esses afetos comprimidos em um cenário total, isto é, em um só mundo, oferecem as mais diversas experiências da matéria em ação, é certo que o corpo do ator é o mais aberto às possibilidades de se tornar múltiplo físico e espiritualmente, de ser um corpo plurívoco de paixões, feito para absorver “por seus deslocamentos voltaicos, todas as disponibilidades errantes do infinito do vazio, dos buracos do vazio cada vez mais incomensuráveis” (ARTAUD, 2000: 329).

Cada interpretar desse corpo que “é uma pilha elétrica” (ARTAUD, 2000: 329), é um aspecto do confrontar afetivo no espaço, por isso são poucas as chances dele se conservar na sua integridade orgânica. Ele quer, no entanto, fraturar “ossos ensangüentados [...] que protestam por serem arrancados desta forma ao esqueleto da possibilidade”. Desse modo, ou promove “desenraizamentos magnéticos” mudando sua estrutura, ou dá lugar aos “vermes reais”, às “aparências obscenas” e aos “espíritos venenosos” (ARTAUD, 2000: 327), sucumbindo frente ao juízo de Deus. O corpo, nesse frêmito apaixonado por ser e não-ser, pela volúpia de consumir e de possuir infinitos estados de ânimo, encheu-se de um gás venenoso (que antes o “preenchia”) e, não agüentando tamanha impureza, liberou-o em forma de flatulência, com vistas a suster a infame ditadura do Deus transmundano:

Há uma coisa que é algo e que sinto por ela querer SAIR: a presença da minha dor do corpo. [...] Fico eu sufocado; e não sei que ação é essa mas ao me pressionarem com perguntas até a ausência e a anulação da pergunta eles me pressionam até sufocarem em mim a idéia de um corpo e de ser um corpo. E foi então que senti o obsceno. E que soltei um peido de saturação e de excesso e de revolta pela minha sufocação (ARTAUD, 1986: 157-158).

Por meios próprios, Artaud inverte a artimanha kantiana de instaurar um inquérito das faculdades de conhecimento humano. Em vez de inquirir sobre a autoridade legislativa da razão humana, verificando se esta se encontra alinhada no supremo plano de Deus, Artaud põe em debate a doença do corpo em virtude de sua escravatura às tábuas dessa lei. Ele, que não tem a pretensão crítica de juiz, ao contrário, põe o juiz e o julgamento também no eixo das acusações. Enerva-se com a carência especulativa dos moralistas e do seu anseio por algum “ser” que justifique o devir: “por quê?”, “para quê?”, “de onde?” “para onde?”. Para um espírito em devir como o de Artaud, perguntas que exigem um sentido prefixado causam-lhe asfixia, comprimindo sua vitalidade e inocência; o corpo é forçado sob a ordem do “dever-ser” epistêmico e ético a encontrar, em algum azul céu redentor, fora da vida, uma validade e um sentido para o caos.

Mas sendo próprio apenas o corpo, e sendo ele uma forma mediata do cruel erotismo da natureza, sempre insaciável em busca de prazer e de crescimento, o que pode resultar de uma pressão como essa é a excreção da “verdade universal” que estanca o sangue que expande sua libido criativa. E que verdade é esta? O corpo, rebelando-se contra o “tu deves” da moral conservadora, responde com gases, fezes, sangue e sêmen: neles é expelido o falso universal, o embuste conceitual edificado como verdadeiro e inoculado na cultura. Deus é a invenção “mais ultrajantemente fecal” (ARTAUD, 2000: 328) que já cogitou o homem. Por essas e outras, o corpo criador sabe que, para ser potente, deve abrir passagem para a saída dessa ímpia divindade que o costume cristão chamou de “altíssimo”, de “senhor”; essa “leitoa ignominiosa, do ilusório universal, que com suas mamas babosas [...] dissimulou somente o Nada” (ARTAUD, 2000: 328) despejando sobre os homens pestilenta substância vital a que chamou “espírito”.      

Um corpo pleno de energia vital, um corpo artístico, não admitirá em hipótese alguma que algum “ser” impuro ali monte abrigo, porque para ele “todo consistir, todo ser mesmo, revolta e causa irritação” (NIETZSCHE, 2008: 421); o devir, essa imensidão de força, sem começo, sem fim”, esse “jogo de forças e ondas força, ao mesmo tempo uno e vário”, esse “mar em forças tempestuosas e afluentes em si mesmas” (NIETZSCHE, 2008: 512), essa instância deveras sagrada e imaculada que o autêntico artista assume como tônico para a existência, tratará de fazer a digestão, já que “é necessário negar uma consciência total do devir [...] para não submeter o acontecer ao ponto de vista de um ser” (NIETZSCHE, 2008: 358).

Similar à secreção pustulenta, à baba e ao sangue derramado pelas vítimas da peste, Artaud acredita que o teatro é a expulsão violenta das forças imanentes de seu interior que vêm à superfície e que encenam o drama total da existência. Em imagens florescentes e oníricas, a Crueldade, por meio do corpo do ator se atualiza, fazendo “aparecer ante os olhares um certo número de quadros e imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão ao espírito diretamente” (ARTAUD, 2008: 38), sobressaltando os nervos. O que já era forma na natureza é duplicado sobre o tablado no inorgânico e “formidável fetiche animado que é todo corpo de todo ator, que se pode ver como a nu, a vida na transparência, na presença de suas forças primais” (ARTAUD, 2008: 325). Assim, as imagens do devir se tornam transportes para o reino do sonho e da magia “onde as molas mais secretas do coração serão postas a nu”. Este teatro de extrema vitalidade erótica reacende aquilo que o nosso olhar embotado de homem moderno e nosso desejo moralista de “mundo verdadeiro” dinamitaram. Com o Teatro da Crueldade, onde a cena “permanece marcada por uma coloração de tremor de terra e de eclipse” (ARTAUD, 2008: 75), Artaud acredita ter redescoberto a sensibilidade e a imaginação, por isso o assombro volta a ter destaque, e voltamos a nos interessar pela vida em seu aspecto total, isto é, estético, a fim de “as imagens físicas violentas triturem e hipnotizem” (ARTAUD,1999: 93) a vontade narcotizada do homem moderno.

3. O corpo e a Crueldade

Insatisfeito com a poética teatral de seus contemporâneos, Artaud recorreu ao teatro oriental como forma de efetuar o projeto de um corpo liberto de Deus. Após sua estadia na Indonésia, ele observou a disciplina dos atores-dançarinos e percebeu o quão defasado e equivocado estava o ocidente. Carregando nas costas uma história que se confunde com a história do moralismo cristão, o teatro ocidental abandonou, inclusive, o sentido de uma metafísica original. Nietzsche também havia notado isso: desenrolamos um processo histórico e cultural, como se não houvéssemos conhecido os gregos; esquecemos o verdadeiro sentido de magia, de riso e de rigor, isto é, de metafísica da crueldade. Ao passo que os orientais do teatro de Bali mantiveram intactos os seus deuses originais. Neles o mistério da existência repousa na linguagem hieroglífica de seus gestos que não se deixam manchar com a vulgaridade da palavra; mas isso só pode acontecer se seus atores estiverem cientes da necessidade cósmica que há por detrás de todo atuar, pois o teatro não é uma atitude deliberada da psique do ator; antes ele “usa a magia da natureza”, vivendo para além do real, dentro da natureza, onde a poesia ali existente “é negra; e, radiosa, é ainda mais negra, ainda mais fechada” (ARTAUD, 2008: 75).

O teatro usa meios precisos para traduzir em linguagem de signos o que a palavra vulgariza:

Os balinenses realizam com maior rigor a idéia do teatro puro, onde tudo, tanto concepção, como realização, só vale, só existe por seu grau de objetivação em cena. [...] E para os amantes do realismo a qualquer preço, que se cansariam dessas eternas alusões a atitudes secretas e distanciadas do pensamento, resta o jogo eminentemente realista do Duplo que se assusta com as aparições do Além (ARTAUD, 1999: 54-55).

Os “altos planos irradiantes onde o corpo superior” (ARTAUD, 1999: 323) se realiza encontram dois meios elementares de realização: no teatro e na dança. Naquele, se ele for de inspiração oriental, e nesta, no seu conjunto. Muito embora essas duas formas artísticas comunguem em igual medida com o devir, encontramo-las na cultura ocidental separadas, como se ambas fossem realidades distintas. No Teatro da Crueldade recupera-se o antigo conluio entre dança e teatro, entre devir e necessidade; respectivamente, entre o defluir e o atuar. Registrou-se em Artaud a imagem espectral daqueles atores-dançarinos a evoluir pelo espaço com seus gestos simbólicos, onde “nada”, mesmo a despeito da corrente ininterrupta do devir, “é deixado ao acaso ou à iniciativa pessoal” (ARTAUD, 1999: 60). A experiência estética diante da pantomina dos atores orientais lhe fomentou o desejo de reestruturar, com urgência, o teatro e o corpo do ator; ele retornou do oriente transformado pela música encantadora dos gestos, dos gritos e espasmos daquelas criaturinhas sobrenaturais. Segundo ele, “o nosso teatro [...] nunca teve idéia dessa metafísica de gestos, [...] nunca soube fazer a música servir a fins dramáticos tão imediatos” (ARTAUD, 1999: 56).

Nos orientais, havendo a palavra tomado um rumo diferente, isto é, passado por um processo de morte e de cura, foi possível viabilizar um corpo desenraizado. Ainda que não houvesse entre eles uma intenção formal, puramente esquemática, nota-se a secreta existência de uma série de convenções formadoras da lógica interna da mise-en-scene; e, outrossim, responsáveis pelas crenças efetivas formigadas no momento da cerimônia teatral. Artaud pressentiu o mistério e transferiu suas impressões para o seu programa de restituição da metafísica do teatro, perdida desde o advento do Renascimento. Ou seja, espinafrou os elementos impuros do teatro e preencheu-o com aquilo que havia perdido: “os signos visíveis de uma linguagem invisível ou secreta” (ARTAUD, 2000: 38). Por isso, a dança do gestual se reafirmou, lubrificando os movimentos e inserindo o corpo no plano cósmico, simbólico e poético da Crueldade. Ela o inseriu novamente no ritmo dramático e perigoso da criação. Isto é visível na sua tentativa de derribar o esqueleto antinatural do corpo (Deus), que o impedia de dançar, fundando, com isso, um teatro capaz de nos insuflar “o magnetismo ardente das imagens” da natureza, agindo “sobre nós a exemplo de uma terapia da alma” (ARTAUD, 1999: 96).

Frisamos mais uma vez que Artaud recusou o peso de chumbo que a moral cristã imprimiu sobre o corpo. Se ele não é mais um mero órgão, engajado na luta pela conservação do “plano de Deus”, se este “ser excremental” foi expelido e nada pode criar, autorizar e supervisionar, logo o esqueleto desse corpo não tem mais o dever de suportar o fardo de uma vida dirigida segundo tal crença impotente. Ademais, o apetite do ator criador extravasa os reclames do aparelho digestivo e reprodutor orgânico e ousa ir além dessa acomodação ordinária da vontade; a bestialização e a mecanização do comer, do beber, do excretar e do copular são camisas-de-força sociais que barram o acesso do homem às alturas de sua potencialidade erótica e de sua imaginação criadora: “fizeram o corpo humano comer, fizeram-no beber, para evitar de fazê-lo dançar. Fizeram-no fornicar o oculto a fim de se eximir, de comprimir e supliciar a vida oculta” (ARTAUD, 2000: 329).     

Artaud assume a virada de poder do corpo artístico sobre o corpo realista e falsamente espiritual, abandonando este como o cadáver do último homem. Ele diz, remetendo à cultura trágica dos antigos: “sim, o homem teve em um determinado momento necessidade de um corpo esquelético novo, que crepitasse e resvalasse no ar como as chamas furtivas de uma lareira” (ARTAUD, 2000: 326). Mas esse teve não pode e nem deve ser uma nostalgia do homem contemporâneo. Para escapar ao ideal de uma época, Artaud finca seu olhar sobre o homem do futuro, propondo uma “ruptura de membros e de nervos rompidos, fraturas de ossos ensangüentados”, a fim de provocar “escoriações musculares cruéis, comoções da sensibilidade enterrada que constituem o teatro verdadeiro” (ARTAUD, 2000: 327). Nesse ínterim, reinstala-se uma nova figura para o homem, a figura de um corpo dramático que sublinha o caráter aterrador do devir.

O homem trágico visado por Artaud sabe que Deus é o funâmbulo de nossa cultura que, morto, despedaçou-se numa miríade de partículas, capazes de se afirmar no palco da vida enquanto senhoras de seu destino. O artista-homem, aparentado de Prometeu, rouba dos céus o supremo regozijo do direito à criação, dando “deus, todo deus despedaçado a todo homem, todo o universal do sopro inempregado das coisas ao homem baixamente humano” (ARTAUD, 2000: 326). Sofrendo na carne o cruzamento dos raios fulminantes do prazer e do desprazer, e diante dessa circunstância forjada pela Crueldade em harmonia com a Necessidade, sob o rigor do Mal permanente, o corpo plural e total defendido por Artaud sente-o explodir em afetos, “partir em pedaços e se recompor sob dez mil aspectos notórios” (ARTAUD, 2000: 334).

Referências

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VIRMAUX, Alain. Artaud e o teatro. Trad. Carlos Eugênio Marcondes Moura. 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2000.

FILIPI GRADIM é bacharel em artes plásticas, professor de educação artística e história da arte, além de ator, encenador e dançarino.  Mestrando em Filosofia na UERJ, Filipi pesquisa atualmente autores como Nietzsche, Artaud, Heráclito, Spinoza, Deleuze  e Camus cujos temas versam, via de regra, sobre o corpo e suas poéticas.

FILIPI GRADIM holds a Bachelor of Arts, Professor of art education and art history, as well as actor, theatre director and dancer. Working on a Masters degree in philosophy in UERJ, Filipi research currently authors as Nietzsche, Artaud, Heraclitus, Spinoza, Deleuze and Camus whose themes revolve by over the body and its poetics.