ANTONIN ARTAUD: O
CORPO SEM ÓRGÃOS1
Nara Salles
(NACE/UFAL)
Resumo
O texto discute questões ligadas ao
termo Corpo Sem Órgãos na perspectiva apontada por Antonin Artaud.
Artaud nos permite pensar o delírio, tanto
quanto o sonho e a criação poética como meios de conhecimento. Assim como a
linguagem científica abre campos de conhecimento, a linguagem não-instrumental,
não-discursiva, abre outros campos de experiência do real.
Palavras-chave | Antonin Artaud | Teatro |
Fisicalidade |
Performance | Corpo
Abstract
The paper discusses issues related
to the term Body Without Organs in outlook by Antonin Artaud.
Artaud allows us to think the delusion, as far as the
dream and the poetic creation as a means of knowledge. As well as scientific
language opens fields of knowledge, non-instrumental and non-discursive
language opens other fields of reality experiences.
Keywords | Antonin Artaud
| Theater |
Physicality | Performance | Body
A força criadora
de Antonin Artaud (1972, 1975, 1977, 1980, 1982,
1983, 1985, 1987, 1988, 1995) apesar do diagnóstico de esquizofrenia e da
terapêutica recebida nos manicômios, mantinha-se potencialmente viva. Quando
morou no hospital psiquiátrico de Rodez nos anos de 1937 a 1946, encontrou o médico Gaston Ferdière, que o incentivou a escrever. Em 1976, o médico
abriu o dossiê Artaud, que havia encerrado em 25 de
maio de 1946, com a saída de Artaud do hospital. Artaud escreveu cartas diárias para o médico, as quais
foram publicadas. O mesmo Gaston,
que tinha um interesse literário e incitava Artaud a
escrever, acreditava que eletrochoques2
poderiam curá-lo e os aplicava, apesar dos pedidos de Artaud
para que não fosse submetido ao tratamento.
À luz de estudos mais recentes sobre a
loucura, podemos compreender melhor o pensamento de Antonin Artaud
e, talvez, a razão de seu médico recomendar e incentivar para que escrevesse.
De fato, isto parece tê-lo ajudado a suportar
a sua doença e manter viva a chama criativa de sua alma, traduzindo sua loucura
em poesia. Segundo a amiga de Artaud,
que o acompanhou no final da vida e escreveu textos que ele lhe ditava, Paule Thévenin3:
As cartas eram seu meio
preferido de expressar-se. As cartas eram sua forma preferida de ultrapassar as
barreiras que o impediam de escrever. A segunda parte dos textos sobre teatro
Balinês também é constituída por cartas... Ele sempre pôs muito de si nas
cartas, eram parte de sua vida […].
As pesquisas e as
experiências do Hospital Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, dirigido por
Nise da Silveira4, apontam a
necessidade de situar a loucura num contexto social, pois esta é uma
experiência social e psicológica. Social porque existe uma maneira variada dos
grupos sociais a conceberem. O que um grupo caracteriza como loucura pode não
ser reconhecida da mesma forma em outro grupo. A maneira de se perceber as
perturbações emocionais também varia de grupo para grupo. Há pessoas que ao se
depararem com estes tipos de problemas buscam soluções no âmbito da religião e
preferem conversar sobre suas angústias com padres ou pastores. Uns procuram a
intervenção médica e/ou psicológica. Outros buscam terapias através das
linguagens artísticas: pintura, escultura, dança, teatro e literatura. As
práticas e linguagens sociais adotadas em relação à loucura constituem códigos
que funcionam discriminando comportamentos, atitudes, sentimentos e posições,
desdobrando-se em códigos de valores, certo/errado, bem/mal,
desejável/indesejável, impostos pela cultura. Esses códigos sociais, que
trazemos dentro de nós, regulam nossa interioridade e nossa relação com os
outros. A loucura, então, se apresenta para a mente humana como algo estranho
que foge à compreensão de conduta, como se houvesse uma perda de sentido. A
loucura pode ser percebida como se existisse algo que escapa a compreensão,
algo que não se consegue identificar como pertencente ao indivíduo. A
experiência da loucura pode ser considerada como a perda ou ameaça de perda da
própria identidade, sempre relacionada com o meio no qual se vive, pois de acordo com Ciampa
(1984):
não é possível dissociar o estudo da identidade do
indivíduo da sociedade. As possibilidades de diferentes configurações de
identidade estão relacionadas com as diferentes configurações da ordem social.
Com a compreensão de que
“identidade é tudo aquilo que se vivencia (sente ou enuncia) como sendo eu, por
oposição aquilo que se percebe e enuncia como não eu (aquilo que é meu; aquilo que é outro; aquilo que é do outro)”
(COSTA, 1989: idem), esta idéia nos parece ser tão óbvia que, por vezes, não
percebemos as contingências culturais e históricas que perpassam sua
construção. Com efeito, acreditamos aqui, que as formas pelas quais os
indivíduos, os representantes da espécie homo
sapiens, se subjetivam, são historicamente datadas e espacialmente
circunscritas. Assim, a loucura se apresenta como algo que acontece em nossa
subjetividade e para a qual não conseguimos encontrar uma linguagem capaz de
defini-la ou explicá-la. Dessa forma, pode-se dizer que essa experiência
situa-se no plano da linguagem.
Artaud, por meio de seus escritos conseguia manter uma ligação com o mundo e
revelar o que experimentava. Mas mesmo hoje, com todos os avanços tecnológicos
e com todas as tentativas de se querer situar a loucura no campo das doenças
orgânicas e de tentar concebê-la sob o prisma da subjetividade, nenhuma
tentativa foi suficiente para quebrar o estigma que acompanha o louco. Estigma
este que Artaud viveu, e que o fez ser percebido,
muitas vezes como insensato. Marca que uma vez atribuída ao louco nos resguarda
de confrontarmos com alguma verdade que ele, o louco, pode revelar a nós. Sua
insensatez, sua falta de coerência, talvez desvende uma outra realidade
escondida no desatino da humanidade, a qual pode nos incomodar profundamente.
Artaud expõe questões existencialistas. Rememorando: o primeiro
escritor a usar o termo existencialismo5,
o filósofo dinamarquês do século XIX, Sören Kierkegaard6, afirmava
que o mais alto bem para o indivíduo consiste em encontrar sua própria vocação.
Posso afirmar que, pela maneira como viveu, pelos escritos
que deixou e por sua história de vida: Artaud pode
ser considerado um existencialista do desespero. Em suas crises de depressão
procurava com aflição se fazer entender, e encontrou uma forma de dar sentido à
sua existência, escrevendo, registrando e comunicando o que acontecia em sua
alma.
Artaud desejava uma arte que traduzisse uma experiência
vital própria, cerimonial, mágica. A forma como escreve sobre seu pensamento
acerca do teatro pode ser considerada como uma poética de sua loucura, ao mesmo
tempo em que propõe o teatro como obra de arte, unindo todas as linguagens
artísticas disponíveis, rompendo com classificações e amalgamando novas formas
de espetáculos, onde teatro, dança, música e artes visuais estariam em
consonância.
Conforme Willer7,
identificar linguagem e realidade, querer que o
símbolo se torne efetivo, ativo no plano da realidade, é pensamento mágico. E
também pensamento poético, busca da anulação do tempo. A confusão entre
criação, idéias típicas do sintoma e temas de uma tradição esotérica chegou a
nós pela corrente subterrânea da história e passa a ser um dos modos da
tradição da ruptura. Em seus elogios e homenagens a Lautréamont,
Nerval e Poe, Artaud se assume como representante
dessa tradição. Reescreve uma história da literatura como história de
escritores loucos, que culmina nele. Distinguir
entre categorias como normalidade e loucura, ou entre arte, sintoma e delírio,
é uma falsa questão. Artaud nos permitiu pensar o
delírio, tanto quanto o sonho e a criação poética como meios de conhecimento.
Assim como a linguagem científica abre campos de conhecimento, a linguagem
não-instrumental, não-discursiva, abre outros campos de experiência do real.
Entender o inconsciente como consciência não-discursiva ajuda a esclarecer a
modernidade de Hölderlin, Nerval, Lautréamont,
Corbiére, Germain Nouveau, Jarry
e Artaud. Autores que fazem arte revolucionária pela
radicalidade da rebelião individual e por sua crítica à realidade. Ao
permitirem a intervenção do inconsciente, rompem com o discurso e com a
sociedade. Por isso, deve-se compreender a loucura como meio de conhecimento e
não apenas como algo a ser interpretado, como objeto do paradigma clínico ou de
uma teoria literária. A inserção consciente de Artaud
na tradição da ruptura acentua o caráter universal de sua contribuição, por
mais que esta se tenha manifestado de modo particular, irredutível, que não
permite uma escola ou doutrina de seguidores, apesar da sua influência em
tantos campos da modernidade e da pós-modernidade, como: o teatro, a
poesia, a contracultura, e a antipsiquiatria. A poética artaudiana é universal
por propor e expressar contradições fundamentais, entre o sujeito e o mundo que
lhe é exterior, o imaginário e o real, o absoluto e o contingente, o poético e
o prosaico (WILLER, 1983).
O texto teatral é considerado
elitista e limitado por Artaud. Por este motivo
sugere a busca de outros meios de expressão que não somente a palavra
literária. Ele afirma que o teatro encenado na França nas décadas de vinte e
trinta, representado principalmente pela comédia francesa, era um teatro de
idiotas, loucos, invertidos, gramáticos, antipoetas e
positivistas, isto é, ocidentais e
que os filmes de comédia doméstica levaram a humanidade à não ter mais o
contato com a visceral e sangüínea experiência total do teatro. Isto fez com
que as pessoas ficassem tímidas e preguiçosas, não se permitindo experimentar
outros níveis de experiências (PRONKO, 1974). Nas palavras de Artaud, no artigo “O Teatro e a Crueldade”, do livro O Teatro e Seu Duplo “Os danos do teatro
psicológico oriundo de Racine nos desacostumaram dessa ação violenta e imediata
que o teatro deve ter” (ARTAUD, 1987).
Tudo que atua é uma crueldade. É a partir
desta idéia levada as últimas conseqüências que o teatro deve ser renovado.
Tudo que existe no amor, no crime, na guerra ou na loucura precisa ser
desenvolvido pelo teatro, se ele pretende reencontrar seu papel necessário...
acreditamos existirem, no que se chama poesia, forças vivas, e que a imagem de
um crime apresentada nas condições teatrais adequadas funciona para o espírito
como algo infinitamente mais temível do que o próprio crime realizado...
queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que
contenha para o coração e os sentidos essa espécie de picada concreta que
comporta toda sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos atuam sobre nós e a
realidade atua sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens
da poesia como um sonho, que será eficaz na medida em que será propulsionado
com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro com a
condição de considerá-los de fato como sonhos e não como decalque da realidade;
com a condição de que os sonhos permitam liberar no público essa liberdade
mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela
crueldade (ARTAUD, 1987).
Artaud era incisivo em seu pensamento de que o teatro é igual à peste
porque, como ela, é a manifestação, a exteriorização de um fundo de crueldade
latente pelo qual se localizam num indivíduo ou numa população todas as
maldosas possibilidades da alma (ibidem). Por este motivo escolhe a
denominação, Teatro da Crueldade. Este teatro proposto por Artaud
pode transformar o espectador porque provoca uma desestruturação e mexe com as
angústias internas elementares deste. Além disso, a provocação para se perceber
o que normalmente não percebe, causando um certo incômodo, pode fazer o teatro
de Artaud funcionar como terapia, porque atitudes e
situações externas provocam reações internas semelhantes. Artaud
(1987), afirma que deveríamos voltar “à idéia de um teatro grave que, varrendo
todas as nossas representações, nos insufle ao magnetismo ardoroso das imagens
e enfim atue sobre nós como uma terapêutica da alma...”. Segundo ele, o ator é
um atleta da afetividade, podendo desenvolver uma espécie de musculatura
afetiva correspondente a localizações físicas dos sentimentos. O corpo do ator/atriz
é apoiado pela respiração. No teatro da crueldade é do mundo afetivo que o
ator/atriz deve tomar consciência, como uma fisicalidade emocional.
E o Corpo sem Órgãos do qual fala Artaud, é um corpo não anatômico, é um corpo imagético
gerado por estados singulares de percepção do próprio corpo. É um corpo, para
usar a expressão de Eugenio Barba (1985), extracotidiano, um corpo que não tem
fome, nem sede, é um corpo xamânico, em êxtase, um
corpo que é decorrente da crença no sagrado, na operação da magia, porém este
Corpo Sem Órgãos pode ser provocado por exercícios psicofísicos, e isto só pode
ser totalmente compreendido em sua dimensão total por quem já o vivenciou corporalmente. O Corpo Sem Órgãos é
proporcionado por alguma interferência interna e/ou externa provocativa e
catalisadora. Para entender plenamente esta proposição de Artaud
é fundamental experimentar. O sentido real só será dado para aqueles que se
predisponham passar por uma experiência física, corporal, de imantação,
psicofísica, pois de nenhuma outra forma é possível compreender O Corpo Sem
Órgãos, se faz mister e necessário experimentar alguns exercícios que fazem
parte do cotidiano de atores, atrizes, bailarinos e bailarinas em busca de um
corpo para a cena. E preciso colocar no corpo, encarnar. Porém, para ser compreendida,
que é minha intenção, discorro sobre a minha interpretação e vivência do
conceito de um Corpo Sem Órgãos.
Para Artaud, o
corpo tem um imenso “fundo falso”, um infinito estado de percepções, dado
inicialmente pelo aparelho sensório-perceptivo e ampliado pela sua
sensibilização, pela intuição, pelas crenças. O corpo é o relicário de um
espaço infinito, de revelação e desvendamentos. O corpo é atravessado por
pensamentos, impulsos, desejos, sensações, paisagens internas. E pode ser um corpo sagrado, todo e
qualquer corpo pode ter o status de
sagrado. O corpo no estado sem órgãos permite uma reconstrução do exercício da
vida cotidiana, pois uma transformação interna ocorre. O Corpo Sem Órgãos
provoca novas formas de interação com o mundo e é um espaço infinito que se
desdobra sobre si mesmo, está dentro e fora ao mesmo tempo. A imagem mais
apropriada para compreender este fenômeno é a Banda de Möebius8.
A Banda ou Fita de Möebius é uma superfície que não
tem o “outro lado”, logo a fita só tem um lado. É uma superfície que permite
estar dentro e fora ao mesmo tempo, isto é, estar de um lado, do qual se pode
chegar ao outro lado sem atravessar uma extremidade e é um espaço contido
dentro do outro ao ser cortado, fragmentado9.
Parece ser difícil imaginar, mas é muito fácil de construir e compreender,
conforme as orientações a seguir:
1. Pegue uma fita de papel:
2. Dê uma meia volta (vire uma
ponta da fita de ponta cabeça):
3. cole agora as duas pontas:
Imagens 01, 03 e 03: Construindo uma Banda de Möebius
A explicação matemática é a
seguinte: a fita de Möebius tem apenas uma aresta; o
corte acrescenta uma segunda aresta e um segundo lado. Porém, quando cortarmos
essa mesma figura em um terço, a partir de um extremo, a tesoura faz duas
voltas completas no anel, com apenas um corte contínuo e o resultado final
desse corte são duas fitas entrelaçadas: uma delas é um anel de dois lados e a
outra é uma nova fita de Möebius, com seu lado único,
limitado por uma só aresta. Esta fita, simbolicamente, pode representar o tempo
dos mitos, isto é, a existência de um tempo contido dentro do outro e as
sobreposições de ações no tempo e nos espaços, pois no tempo mítico não existe
um espaço único, mas a coexistência de vários.
O corpo normalmente não é compreendido
desta forma, ele é organizado e estruturado de acordo com a concepção cultural na
qual está inserido. E o primeiro antropólogo a estudar isto foi Marcel Mauss, que publicou um artigo sobre este assunto denominado
“As Técnicas Corporais”, traduzido para o português no livro Sociologia,
editado pela USP. Este texto é tomado por Eugenio Barba em seu livro A Arte
Secreta do Ator – Dicionário de Antropologia Teatral. Para a construção de Um
Corpo Sem Órgãos se faz necessário desconstruir a concepção de corpo
organizado, formatado, funcional, com técnicas corporais estabelecidas para dar
conta do exercício da vida cotidiana. O Corpo Sem Órgãos provém da quebra dos
limites e de referências habituais, o que significa nos colocarmos no tempo e
no lugar da ação simbólica, fora da psicologia, fora da representação de si,
fora da imagem constituída do eu do mundo, trata-se de uma representação
espacial aproximado equivalente a fita de Moebius. A
criação de um Corpo Sem Órgãos passa por uma re-educação dos órgãos, por uma
nova sensibilidade, e é bastante semelhante ao dilaceramento mítico do deus
Dionísio e aos sonhos iniciáticos dos Xamãs. O
esquema tradicional da cerimônia iniciática de um
Xamã inclui sofrimento, morte e ressurreição. O conteúdo dessas experiências
iniciais admite quase sempre o esquartejamento do corpo simbólico, seguido de
uma renovação dos órgãos internos e das vísceras, da ascensão ao céu e diálogo
com os deuses ou espíritos ou/e descida ao inferno.
Paradoxalmente, além de não orgânico e
psicológico O Corpo Sem Órgãos é sagrado, mágico, espiritual, de acordo com
Jean Marie Pradier (1998) não existe corpo sem
espírito, nem espírito sem corpo, em seu texto “A Carne do Espírito”, no qual
explica o principio princípio monista, a unidade corpo/espírito que é um dos
princípios da Etnocenologia. A concepção monista
corpo/espírito pode levar a uma metafísica presente na cena através da
fisicalidade do ator/atriz. Sua gramática tem no corpo em gesto e imagens,
todos os recursos materiais assim como na palavra, com a recriação de todas as
operações pelos pelas quais ela passou desde a
sua origem. Por esta razão Artaud utilizava a
glossolalia. O Corpo Sem Órgãos não é atingido por
nenhuma técnica corporal específica sozinha, mas por um processo com múltiplas
dimensões de percepções e com outras realidades, uma metafísica. O que Artaud denomina como metafísica não corresponde ao que a
tradição filosófica ocidental tem como conceituação para este termo. Na tradição
filosófica há um dualismo no universo, separando o físico (visível) do que está
“mais além” – o grego meta significa além de – ou seja, metafísica seria
aquilo que está além da fisicalidade, no plano do invisível.
A metafísica clássica se concebe como a
razão de ser do físico, assim a metafísica estaria localizada no domínio da
especulação racional, ou seja, do pensamento. Artaud
não admite este dualismo. Para ele, a metafísica é o fundamento do físico,
porém, não é pouco sensível e, muito menos, imaterial, apenas não é visível
inicialmente. Pelo contrário, a metafísica deve aflorar na fisicalidade e se
fazer visível, no corpo do ator e da atriz em cena. Assim, de acordo com Artaud, a metafísica é primordial para atividades cênicas.
As manifestações metafísicas se concebem como união e unidade do concreto com o
abstrato, sendo uma prolongação ou ressonância recíproca da física. É uma
prática monista, sem rupturas, como é para Artaud a
prática de sua poética teatral. Para ele, a cena está muito além de ser apenas
um espaço físico, é sim, o espaço onde a metafísica se faz presente,
manifestando-se por meio da fisicalidade do ator/atriz, por isto atletas da
afetividade, por este motivo o gesto é muito mais importante do que a palavra, esta deve aparecer sempre tendo como fonte o corpo,
existindo desta forma, para a alma uma saída corporal. Assim, o ator/atriz
realiza com seu corpo, pela sua presença física, uma metafísica. O teatro é o
local onde o corpo pode encontrar esta dimensão metafísica, transcendendo ao
fato de ser somente um corpo (matéria), colocando-se diretamente em contato com
o espírito e com o inconsciente.
Na minha tese de doutoramento
(SALLES, 2004) proponho, a partir da respiração, incorporando técnicas de
sensibilização, aliadas, a dramaturgia corporal, paisagens internas, dança, artes visuais, música, uma
maneira para que se possa vislumbrar e vivenciar o Corpo Sem órgãos apontado
por Artaud, procurando trazer a
tona o caráter original da representação cênica, e assim como nos rituais mágicos,
um corpo decorrente de uma necessidade existencial que procura resolver uma
dissociação dolorosa, através da destruição de uma antiga percepção de mundo,
sendo um espaço de reintegração dos poderes físicos e psíquicos do indivíduo, a
procura de outra forma de consciência, desalienadora,
espaço de metamorfose e recriação permanentes e que coloca o corpo em risco e
em outra dimensão, rompendo com formas pré-estabelecidas e se encontrando na
imensidão do vazio, buscando a cada dia a construção do sentido da vida
Referências:
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1987.
______________. Para Acabar de Vez Com o Juízo de Deus e o
Teatro da Crueldade. Lisboa: Ed. & Etc., 1975.
______________. Textos 1923-1946. Buenos Aires: Caldén, 1972.
______________. A Arte e a Morte. Lisboa: Hiena, 1975.
______________. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena, 1988.
______________. Cartas Desde Rodez. Madrid: Fundamentos, 1980.
______________. "O Jato de Sangue".
Cadernos de Teatro – n. 95. Inacen,
1985.
______________.
"O Teatro e a Peste". Cadernos de Teatro - n.
95. Inacen. 1985.
______________. Linguagem e Vida. GUINSBURG, J;
FERNANDES, Sílvia (org.). São Paulo: Perspectiva, 1995.
______________. Seleção e Notas de Escritos de Antonin Artaud. Cláudio
WILLER (org.). Porto Alegre: L&PM, 1983.
BARBA, Eugenio. A Arte Secreta
do Ator. São Paulo: Hucitec/UNICAMP, 1995.
CIAMPA, A. C. Identidade. In: LANE,S.T.M.: CODO,W.
(org.) Psicologia
Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 1984.
COSTA, J.F. Psicanálise e
Contexto Cultural. Imaginário Psicanalítico, Grupos e Psicoterapias. 2.
ed., Rio de Janeiro: Campus, 1989.
MAUSS, Marcel. “As
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PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia: A Carne do Espírito. Repertório
Teatro e Dança, ano 1, nº1:
Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas/UFBA. Tradução
de Armindo Bião. Salvador, 1998.
Pronko, Leonard C. Teatro: Leste & Oeste. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996.
SALLES, Nara. Sentidos: Uma
Instauração Cênica. Processos criativos a
partir da poética de Antonin Artaud.
Tese de Doutorado. Salvador: PPGAC.UFBA, 2004
WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983.
1 Artigo inicialmente apresentado como palestra no Palco
Giratório do SESC, em 2005, antes da apresentação do espetáculo “Cartas de Rodez" do ator francês Stephane
Brodt.
2 Tratamento inventado pelo médico Ugo Cerletti
numa visita a um matadouro de porcos. Consiste em dar choques em pessoas com
problemas mentais, sem matar, provocando uma convulsão. O choque provoca
regressão fisiológica e psicológica, apagando funções psíquicas superiores. Os
médicos postulavam que essa "desmontagem" iria promover uma
"reconstrução" sadia. Pois a perda da memória, com os choques,
provocaria o esquecimento dos acontecimentos que provocaram a psicose.
4
Nise nasceu em Alagoas, foi uma importante
psiquiatra, esteve em colóquio com Carl Jung, e desenvolveu uma teoria sobre o
tratamento psiquiátrico, utilizando-se principalmente das artes visuais.
Dirigiu o Hospital do Engenho de Dentro, onde criou o Museu de Imagens do
Inconsciente, no Rio de Janeiro. Nise da Silveira foi uma profunda estudiosa da
obra artaudiana.
5
Dada a diversidade de posições comumente
associadas ao existencialismo, o termo não pode ser definido com precisão. No
entanto, podem ser identificados alguns temas comuns a todos os escritores
existencialistas: o principal é a ênfase posta na existência individual
concreta e, conseqüentemente, na subjetividade, na liberdade individual e nos
conflitos da opção.
6
Kierkegaard afirmava que é fundamental para
o espírito reconhecer que temos medo não só de objetos específicos, mas também
de um indefinido sentimento de apreensão, que ele denominou temor.
8
Augustus Ferdinand Möebius (1790-1868) foi
um matemático e astrônomo de origem alemã. Ele criou a fita de Möebius, que contém uma só superfície.
9
Rudolf Laban, fez a correlação da fita de Möebius
com a dança. Duas partes do corpo podem realizar movimentos diferentes e
harmoniosos entre si.
NARA SALLES possui doutorado em Artes
Cênicas pela UFBA (2004), Mestrado em Antropologia pela UFPE (1999),
Especialização em Métodos e Técnicas de Pesquisas Antropológicas pela UFPE
(1996), Graduação em Teatro Licenciatura pela UFPE (1993), Graduação em Artes
Plásticas pela UDESC (1983). Atualmente é professora adjunto III e coordenadora
do curso de Teatro (Licenciatura) e da Especialização no Ensino da Arte da
Universidade Federal de Alagoas.
NARA SALLES has a doctorate in Performing Arts
by UFBA (2004), Masters in Anthropology by the UFPE (1999), specialization in
Research Methods and Anthropological Techniques by the UFPE (1996), Graduate
Theater Degree at the UFPE (1993), Graduate in Art by UDESC (1983). He is
currently professor and coordinator of the Theater course and the Graduate
Specialization in Art Education, Universidade Federal
de Alagoas.