O
CORPO É UM INSTRUMENTO DE TRABALHO DO ATOR?
IS THE BODY AN INSTRUMENT OF WORK OF THE
ACTOR?
Tiago Fortes
(UFC)
Resumo
Há certos
pressupostos que impedem o ator de criar novos dispositivos e reconfigurar seu modo de trabalhar no teatro. A
perspectiva filosófica, enquanto funcionamento do pensamento e procedimento estratégico, pode ajudar a romper
paradigmas que parecem inquestionáveis por tocarem no que existe de mais
sagrado para o ator: seu Eu humano.
Palavras-chave | Ator | Corpo | Stanislavski | o Eu e
Verdade
Abstract
There are some presuppositions that block the
possibilities to the actor create new gadgets and to reconfigurate
his way of working in theaters. The philosophical perspective, as a way of
working of the thinking, as a strategic procedure, can help to break through
some truths that seem unquestionable for touching in what is the most sacred
value to the actor: his true self.
Keywords | Actor | Body |
Stanislavski | True Self and Truth
O título propõe uma questão a ser discutida, e que vem sendo discutida
nos dias de hoje, tornando a relação entre o ator e seu corpo mais complexa. O
século XX (no ocidente) foi o século em que se instaurou a necessidade de uma
sistematização do treinamento para o ator, o qual não poderia mais ficar entregue
a uma suposta inspiração mística. Neste contexto, grandes mestres do teatro
começaram a perceber que se deveria focar no principal instrumento de trabalho
do ator: o corpo. Isto foi uma expressiva quebra
de paradigma na qual se baseou grande parte dos métodos para o ator do século
XX. Porém, uma nova quebra de paradigma se impõe nos dias de hoje, mas esta não
chega a constituir ainda uma nova corrente. Trata-se de uma difícil questão que
a princípio pode parecer um mero jogo de palavras.
Ao ser chamado para dar uma palestra na UNIRIO sobre o treinamento do ator, Renato Ferracini
começou por perguntar ao público presente se fazia sentido dizer que o corpo é
o principal instrumento de trabalho do ator. O público, formado em sua maioria
por estudantes de teatro, respondeu prontamente que sim. E eis que, para
surpresa geral, Renato diz pensar que não, o corpo não é um instrumento de
trabalho do ator, pois o corpo é o ator. Renato não é o autor deste pensamento,
na verdade trata-se de uma questão que na filosofia vem sendo discutida a mais
de um século, e que pode se instaurar como uma nova crise e uma quebra de
paradigma no treinamento do ator.
É uma questão impactante, sem dúvida, e é muito tentador concordar com
ela por parecer um pensamento de vanguarda. Mas com o passar do tempo, e depois
de muito discuti-la com outros atores, comecei a desconfiar que ela poderia não
surtir nenhum efeito e não gerar nenhum acontecimento revolucionário dentro do
teatro. Na maioria das vezes reverberava como um jogo de palavras poético e
inspirador, mas que não reconfiguraria ou geraria novos dispositivos no ator em
seu treinamento.
Num outro contexto, preocupado muito mais em salvar a vida e a
existência para si de seu corpo do que em formular hipóteses esclarecedoras para
o teatro ou para a filosofia, Antonin Artaud escreve numa carta para um amigo
uma frase muito impactante, mas que também pode, à primeira vista, parecer não
passar de um mero jogo de palavras, e com isso não ser capaz de gerar novos
dispositivos em qualquer atividade humana: “Eu sou meu corpo, mas meu corpo não
sou eu” (ARTAUD, 2006).
Como ultrapassar a primeira impressão de encantamento poético que esta
frase, assim como muitas outras de Artaud, provoca no espírito artístico? Por
outro lado, como escapar do entendimento de que a segunda parte, no final das
contas, quer dizer exatamente a mesma coisa que a primeira? A razão para este entendimento
acabou se revelando em mim como a mesma que fazia com que a questão colocada
por Renato Ferracini acabasse por não gerar mais do que um impacto vazio: a
incapacidade de desvincular o corpo de qualquer identidade configurada como um
Eu fixo, um Eu que vive através, em ou com este corpo. Comecei a perceber que as grandes revoluções
teatrais do século XX, no que tange a uma nova relação entre o ator e seu corpo
– e é preciso procurar com muita dedicação para encontrar uma exceção –
buscavam aproximar esse Eu abstrato, essa entidade espiritual, da concretude do
corpo, rompendo com a separação entre corpo e espírito, entre Eu e meu
instrumento de trabalho.
Qual seria então a mudança que esta questão – o corpo não é um
instrumento de trabalho do ator, o corpo é o ator – instauraria na relação
entre o ator e seu corpo? Faz todo sentido pensar que o ator, como sujeito, não
veria seu corpo mais como um objeto distante de si mesmo, mas como parte de si,
podendo enfim afirmar: meu corpo sou eu. Mas isto parece ser exatamente o
contrário do que Artaud afirmava para si: Eu sou meu corpo, mas meu corpo não
sou eu. A meu ver, com esta lógica Artaud não aproxima o corpo de si mesmo. O
que parece fazer é mostrar que a identidade-Eu é uma parte das produções do
corpo, uma criação sua, mas que o corpo não se confunde com ela, e que misturar
indissociavelmente corpo e Eu é reduzir o corpo a uma parcela ínfima de seus
fenômenos produzidos. Artaud, assim, encontra-se em grande confluência com o
pensamento de Nietzsche: “’Eu’ – dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda
maior – no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta
não diz eu, mas faz o eu” (NIETZSCHE: 51). É como se houvesse um estágio
espiritual em que o homem valoriza a alma em detrimento do corpo; um estágio
humanista em que o homem, ainda compreendido como alma, pretende se reaproximar
do corpo, devolvendo o valor que este merece; e um estágio outro, em que o homem, cansado desta tal fábula da alma, quer se
redescobrir enquanto um corpo livre, um corpo ateu, um corpo criador, um corpo.
Mas como este entendimento (que parece antes de tudo filosófico) pode gerar
novos dispositivos para o ator no teatro? Antes de tudo, penso que ninguém
melhor do que o ator para se perceber
como um corpo sem que este se represente
um Eu que percebe o corpo. Ou mesmo que este se necessariamente represente um Eu, e que a percepção só seja
considerada possível pela constituição deste Eu, o ator pode experimentar
sensações que escapam à percepção de seu Eu, e que se produzem independente
dela.
Mas me parece que a história da construção dos métodos para ator,
desde a passagem do século XIX para o século XX até os dias de hoje,
circunscreveu o ator num conjunto de pressupostos onde a questão supracitada
não encontra as condições necessárias para germinar e contaminar seu trabalho.
Ela evapora assim que toca a superfície deste solo infértil. Para fazer o teste
de fertilidade, irei à base desta história, tentarei compreender como o sistema
de Stanislavski influencia a relação do ator com seu corpo, e como aí parece já
se consolidar a raiz da incompatibilidade entre os métodos teatrais de formação
do ator e esta questão que se coloca como uma nova tentação que não encontra
pontos de contato para se disseminar. É claro que seria preciso analisar todos
os métodos existentes para se poder afirmar tal incompatibilidade, mas acredito
– e isso não poderá ser desenvolvido aqui – que o problema se encontra na
própria estrutura de método que transforma toda experimentação em experiência a
ser passada a diante, que funciona como um veículo que abarque o ser humano de
maneira geral, fazendo com que as singularidades se diluam ou se adaptem à
universalidade de um modelo.
Assim, se o ator pode ser uma potência a experimentar questões
filosóficas num espaço mais completo do que a folha em branco, penso também que
a perspectiva filosófica – não enquanto visão de mundo, mas enquanto
funcionamento do pensamento – pode desemaranhar o ator de uma certa teia de
pressupostos para a qual ele não possui olhos para ver como aquilo foi parar
ali ou mesmo para detectar sua presença que conduz todo percurso.
Por que o ator
precisa ter fé?
É muito comum desvalorizarmos Stanislavski por ele dar mais
importância aos processos psicológicos do ator do que ao seu corpo em ação. De
fato, numa primeira fase (1898-1918), quando trabalhava no Teatro de Arte de
Moscou, ele propunha que o ator se empenhasse em trabalhar o que ele chamava de
Forças Motivas Interiores (BONFITTO, 2007). Sem tal estímulo, segundo
Stanislavski, o ator não poderia começar a trabalhar em cena, pois seus
sentimentos não estariam motivados, e ele acabaria atuando por atuar, sem
objetivos claros e precisos, e sem estar verdadeiramente envolvido com a vida
do personagem (STANISLAVSKI, 1999). Mas o próprio Stanislavski chegou a um
impasse. Percebeu que, por um lado, não se pode fixar os sentimentos, que era preciso
ter uma base mais sólida na qual basear o trabalho do ator, que não seria
possível reviver a cada apresentação aqueles sentimentos simplesmente a partir
da Linha das Forças Motivas com seus elementos estimulantes mentalmente. Por
outro lado, se o ator só pode agir quando seus sentimentos estiverem motivados,
não haverá espetáculo se isso não acontecer?
É então que o Método das Ações Físicas surge como uma saída para este
impasse (BONFITTO, 2007). É se focando na realização de suas ações que poderá se
desencadear processos interiores no ator. A Ação Física age portanto como
catalisadora das Forças Motivas Interiores. E, por outro lado, ao agir, o ator
sentirá a necessidade de justificar para si esta ação, não poderá simplesmente
agir por agir, é preciso haver um sentido que preencha e justifique esta ação.
E são exatamente os elementos da Linha das Forças Motivas que irão preencher e
justificar estas ações. Há portanto uma via de mão dupla entre o corpo e os
processos interiores do ator, que na verdade aproxima o corpo de processos
interiores a um Eu. Não há mais que separá-los.
Pois bem, não há como discordar que Stanislavski pensa o corpo do ator
como fundamental a seu trabalho, que não adianta se focar apenas em processos
psicológicos pois o teatro é ação. É possível perceber também a atualidade e
pertinência deste problema de, como ator, ter que justificar minhas ações, que
é muito difícil “sentir tesão” em realizar ações que não me preenchem ou não
fazem qualquer sentido para mim. Posso até me sentir estimulado a agir segundo
a proposta de um encenador genial, mas depois de um tempo sentirei a
necessidade de justificar estas ações para mim e por mim mesmo. Mas é preciso
estar atento às palavras. Faz sentido e é pertinente a questão da necessidade de
justificar as ações para si, mas esta é a forma que eu colocaria para mim este
problema pertinente? Por uma lógica que aceitamos com uma certa facilidade,
esta necessidade de justificar minhas
ações em cena passa a ser colocada como uma necessidade de acreditar na verdade daquilo que realizo: a famosa fé cênica (STANISLAVSKI, 1999). Não se trata de uma verdade
abstrata que acabaria por me afastar da ação concreta que realizo. Também não
se trata da verdade daquilo que existe realmente, como na vida real. Em cena, a
verdade “consiste em algo que não tem existência de fato, mas poderia acontecer.”
(STANISLAVSKI, 1999: 168). Aristóteles, em sua Poética, propunha o mesmo raciocínio para o que acontecia no enredo
das Tragédias Gregas.
E como o ator poderá acreditar naquilo que não aconteceu com ele, e
nem está acontecendo, de fato, neste momento? Um dos principais elementos do
método constitui-se de duas letrinhas mágicas: se – como eu agiria se isto
acontecesse comigo na vida real. Ao me colocar na situação do personagem,
aproximo-me de sua lógica, e posso então criar associações com experiências já
vividas por mim outrora. Transito assim entre uma realidade ficcional e uma
realidade passada (mas ainda viva em minha memória). O acontecimento cênico
presente é, portanto, justificado por um jogo de realidades ausentes. As ações
de meu corpo são preenchidas por experiências de outrem, seja pelas
circunstâncias dadas do personagem, seja pelas experiências vividas por um Eu
de outrora. Acontecerá com o corpo exatamente aquilo que se processar nestas
instâncias que agem sobre ele como uma entidade ausente que produz toda e
qualquer presença. O que chamamos de presença do ator, neste caso, é fruto do
trabalho de elementos ausentes. Neste caso, portanto, realmente é preciso ter
fé, fé na Presença da Ausência. Para quem tem facilidade de acreditar em Deus e
sua força onipresente, este trabalho não será muito difícil, mas como proceder
se ainda tenho esperança num fazer teatral laico?
Devo me esforçar para não raciocinar com precipitação. Não digo que
Stanislavski coloca o texto, ou melhor, o papel a ser interpretado e
incorporado pelo ator, como uma onipresença que irá gerar a presença do ator.
Parece se tratar mesmo do contrário. Ele sabe que o personagem é um pedaço de papel
inerte e sem vida, e que é o ator quem irá instilar sua vida humana ali gerando
a presença do personagem. É o ator o responsável pela presentificação
do personagem, e não o contrário. Este irá apenas direcionar a vida do ator
para uma composição particular, pois o ator não irá representar ele mesmo.
O que quero dizer, na verdade, é que isto que se chama “vida humana do
ator” é que age como uma ausência presente sobre o corpo. Em consonância com
Artaud, Nietzsche e Ferracini, afirmo que o Eu
ou esta vida humana foi acrescentada ao corpo e considerada como sua
verdadeira natureza. Assim como se considera o personagem um papel inerte sobre
o qual o Eu do ator instila vida, considera-se o corpo do homem também como
algo morto e inerte no qual Deus instilou vida humana. Ao passar a valorizar o
papel do corpo no teatro, não se deixou de ter a alma como o valor supremo. O
corpo é aparência, a alma é o ser que o preenche. Meu Deus! Trata-se de Platão
ou Stanislavski? Há diferenças, claro. Para Stanislavski, a aparência (o corpo)
é um instrumento necessário. A Verdade e o Ser não estão mais num mundo das
Idéias, mas numa Natureza orgânica. Este é o novo Modelo. E para alcançá-lo, Stanislavski (p. 199) nos deixa um conselho: “Evitem a
falsidade, evitem tudo o que for contrário à natureza, à lógica e ao bom
senso.”
O problema do falso, para Stanislavski, é não podermos acreditar nele.
E o valor da verdade não está nela mesma. Stanislavski rejeita a verdade pela
verdade, como um fim. Para ele a verdade é um meio necessário ou um critério
(Senso de Verdade) para que possamos acreditar no que vemos ou vivemos em cena,
e assim nos envolvermos com sinceridade. Isto serve tanto para o ator, naquilo
que ele faz ou vive em cena, quanto para o espectador naquilo que ele vê em cena.
O importante é que o ator possa justificar sua ação para si mesmo. O que se
busca é a tal sinceridade. É por isso que o sistema de Stanislavski continua se
revelando de uma pertinência inquestionável, pois ele lida com problemas muito
concretos do trabalho do ator, e que continuam se mostrando sem solução. Mas é
preciso estar atento ao invólucro religioso, não-laico, e mesmo um tanto quanto
catequizador que se encontra emaranhado como parte constituinte do problema.
De onde surgiu esta necessidade de acreditar
nas coisas? Será o fato de se trabalhar com coisas que não são produzidas em
ato, de não oferecer ao espectador acontecimentos, mas fantasmas, emoções
geradas no “Reino da Imaginação”? Esta necessidade não surge de uma lacuna que
existe entre o Modelo e a Cópia? A interpretação stanislavskiana
me parece ser uma tentativa de se aproximar o máximo possível do Modelo: a
Natureza. Por isso é preciso fé, fé na legitimidade da cópia enquanto
pretendente a ser escolhido e aprovado pelo Modelo e seus critérios (com o
detalhe de que estes são interiorizados enquanto Senso de Verdade, esta é a
dica do próprio Stanislavski) (STANISLAVSKI, 1999).
Outras propostas
fora do pensamento religioso do teatro
Se não há Modelo, não é preciso fé, pois não haverá Juízo de Deus. A
potência do Simulacro ou do falso não precisa de fé, mas de poder de
engendramento ou de produção. É o Juízo que obriga o ator a ser convincente. E
eis que o ator afunda cada vez mais num círculo vicioso (ou virtuoso, já que é
o Juízo que nos inclina para a virtude): é preciso fé para embarcar neste mundo
psicológico, e para desenvolver esta “fé orgânica” é preciso criar raízes cada
vez mais profundas no interior deste mundo psicológico. Por isso tudo deve ser pessoal, pois é o único vínculo que
ainda resta, já que não se pode mais desencadear devires ou produzir
acontecimentos puros. Não trabalhando mais com as produções do corpo, é preciso
então não se perder das raízes da delicada alma. O que acontece é que as ações
físicas perdem sua autonomia, tornando-se dependentes da alma e sua fé. Se Eu
não acredito nas produções do corpo, restam duas soluções:
. Tornar estas produções convincentes para o Eu.
. Eliminar o Eu e seu critério de convencimento e exigência de
credibilidade. Assim não haverá ninguém para convencer, devolvendo a autonomia
às produções do corpo.
A segunda me parece ser mais interessante, mas por algum motivo
Stanislavski insiste na primeira. Por que será? Minha hipótese se baseia na
proposição de que ele ainda é assombrado por pressupostos metafísicos, pois,
apesar deles, ele detecta fenômenos e propõe procedimentos que poderiam ser
eficientes para alcançar a solução que me interessa.
Se dissermos a um ator que seu papel está
cheio de ação psicológica, profundidades trágicas, começará logo a se contorcer
e exagerar sua paixão, fazê-la em pedaços, escavar a alma e violentar seus
próprios sentimentos. Mas se lhe dermos algum simples problema físico para
resolver e envolvermos esse problema em condições interessantes, comovedoras, ele
tratará de executá-lo, sem se alarmar ou sequer preocupar-se muito em saber se
o que faz resultará em psicologia, tragédia ou drama (STANISLAVSKI, 1999: 188).
Mas por que este “simples problema físico para resolver” deve
funcionar como um instrumento, um catalisador, uma isca para aquilo que é
considerado o santo graal do ator: a sinceridade de sua alma, sua verdadeira
natureza, e esta nunca é o corpo, mas é sempre através dele que se poderá
encontrá-la? Stanislavski percebe que não se pode abordar diretamente os
sentimentos pois isso seria violentá-los, e então ele elabora uma técnica
psicofísica. Percebe ainda que sem as ações físicas não é possível fixar os
sentimentos. Mas como afirmar que as ações físicas possuem autonomia em seu
sistema, se elas servem como uma finalidade
de expressar sentimentos, e precisam sempre estar envolvidas “em condições interessantes, comovedoras”? O corpo e a
técnica parecem surgir como um mal necessário que deve interferir o mínimo
possível na verdadeira criadora: a Natureza, que age sempre como um modelo a
ser perseguido, e que serve assim como parâmetro para aquilo que é ou não
verdadeiro, é ou não uma expressão sincera
dos sentimentos.
Para que o corpo assuma uma autonomia a partir da qual não seria mais
preciso ter fé ou acreditar em suas produções, é preciso desvincular-se, por um
lado, do modelo da natureza que serve como parâmetro para a verdade, e de
outro, do Eu que necessita de uma justificação para aquilo que não surge dele,
que surge do corpo do qual ele faz parte. O problema é que meu Eu precisa criar
associações de causa e efeito para que esta ação pareça proveniente de uma
intenção sua. E é isso que parece ser eficiente em preencher e justificar a
ação: a intenção de um Eu, verdadeiro e sincero em sua expressão. É o Eu
quem usará seu senso de Verdade para legitimar e verificar se a ação está ou
não conectada ao Modelo da Natureza.
E que outro modo existiria
para lidarmos com nossas ações físicas em cena? O importante é pensar que devem
existir múltiplas, mas quero investigar aqui um modo que me interessa e que
poderíamos chamar da construção de um corpo sem órgãos. Deleuze e Guattari citam e refletem sobre um procedimento do artista
plástico Vladimir Slepian:
[...] Slepian tem a idéia de utilizar sapatos, o artifício dos
sapatos. Se minhas mãos estão calçadas, seus elementos entrarão numa nova
relação donde decorrem o afecto ou o devir
procurados. Mas como eu poderia amarrar o sapato em minha segunda mão, já
estando a primeira tomada? Com minha boca que, por sua vez, encontra-se
investida no agenciamento e que torna-se cara de cachorro à medida que a cara
de cachorro serve agora para amarrar o sapato. A cada etapa do problema, é
preciso não comparar órgãos, mas colocar elementos ou materiais numa relação
que arranca o órgão à sua especificidade para fazê-lo devir “com” o outro
(DELEUZE e GUATTARI, 1997: 44).
Ao executar este simples problema físico (amarrar os sapatos nas mãos)
não se desencadeia em Vladimir Slepian associações
com experiências de outrora ou sentimentos pessoais e sinceros. Muito pelo
contrário, desencadeia-se devires para os quais estas associações e
sentimentos, exatamente na medida em que são pessoais, agiriam como âncoras que
interromperiam o processo. O que se dá é uma reconfiguração do funcionamento de
seu corpo, seus órgãos passam a exercer funções para as quais não estariam
destinados, e então o devir surge como uma linha de fuga do organismo e de sua
subjetividade fixa. Neste processo pode-se chegar a experimentar um corpo sem
órgãos.
Enquanto Stanislavski propõe ao ator: “Nunca se perca no palco. Atue
sempre em sua própria pessoa, como artista. Nunca se pode fugir de si mesmo...
Assim, por mais que atue, por mais papéis que interprete, nunca conceda a si
mesmo uma exceção à regra de usar sempre os próprios sentimentos” (STANISLAVSKI,
1999: 216); Deleuze e Guattari propõem: “vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso corpo sem órgãos, não desfizemos ainda
suficientemente nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a
interpretação pela experimentação” (DELEUZE e GUATTARI, 1996: 11). Se quisermos
falar em termos de ações físicas no processo de construção de um corpo sem
órgãos não podemos considerá-las como catalisadoras de processos interiores a
um Eu, mas antes como desfazedoras de qualquer liame entre um corpo e um Eu,
com seu organismo hierarquizado por um cérebro. O Eu traz de volta toda
experimentação do corpo sem órgãos para a apreensibilidade
das experiências pessoais. Talvez deveria dizer que as ações-experimentações do
corpo sem órgãos não são “ações físicas” a serem preenchidas e justificadas por
forças motivas interiores. Sim, há um processo de preenchimento do corpo sem órgãos, mas este não funciona como justificação para suas experimentações.
Estas não são ocas como um continente a ser preenchido por um conteúdo. O
preenchimento não é uma finalidade, mas um acontecimento produtor do próprio
tipo de corpo sem órgãos.
Talvez não faça sentido dizer que um corpo sem órgãos é um corpo em
ação, pois sua ação é sempre a de fabricar um
corpo (sempre no artigo indefinido, alertam Deleuze e Guattari) (1996). Portanto, não há um corpo que faz alguma
coisa simplesmente, mas um tal que, ao fazer, se faz. Fazer é sempre se fazer.
Então se eu disser que o corpo é a matriz geradora da ação física, devo dizer
juntamente que a ação (experimentação) é a matriz geradora do corpo.
Temos assim um procedimento, que é a fabricação do CsO,
e os elementos da ação, que é tudo aquilo que passa pelo corpo sem órgãos preenchendo-o, sendo que os procedimentos
já implicam que algo será produzido, sem podermos saber o quê. Não há como
desvincular uma coisa da outra. Mas a questão não é de saber se aquilo que
percorre o corpo sem órgãos irá justificar
ou não suas ações, mas simplesmente de saber se algo passa ou não. Com isso
surge ao invés da necessidade de justificar a ação, a necessidade de elaborar
estratégias que desfaçam aquilo que impede a circulação. O que circula?
Intensidades que não assumem o caráter de sentimentos ou experiências
apreensíveis. O que bloqueia a passagem? Entre outras coisas, o Eu e seu
esforço em tornar tudo pessoal, íntimo e sincero (ou seja, crível porque
verdadeiro).
Então o corpo sem órgãos é um lugar ou um suporte onde acontecem tais
intensidades? Não, é ele próprio quem acontece ao ser atravessado por elas.
Para a experimentação do corpo sem órgãos não importa que algo aconteça ou se manifeste através dele, só importa a
experimentação que irá construí-lo e a construção que permitirá experimentá-lo.
Nada de experiências vividas antes da produção-ação. Estas não são nem as
matrizes geradoras e nem aquilo que passa pelo corpo sem órgãos. Se insistirmos
muito nelas, acabarão por agir como aquilo que bloqueia a circulação e o
desencadeamento de devires.
Ao invés de pensar o corpo como uma casa ou um templo, parece-me mais
interessante pensá-lo como uma porta ou um corredor. Não que ele possua portas
que ao se abrirem, algo passará preenchendo-o. Ele mesmo é a porta pela qual as
intensidades passam, e que só sente preenchido quando estas atravessam seu limiar, e não quando elas
ficam ali.
Mas se não importa as experiências vividas outrora, a memória deve ser
abandonada? Não, mas ela funcionará exatamente pelo recurso do esquecimento,
como virtuais que atravessam o corpo sem precisarem se identificar como esta ou
aquela experiência desta ou daquela fase da vida. É como a memória involuntária
de Proust (DELEUZE, 1964). Ela não acontece se nos esforçarmos pela anamnese.
Nada a ver com conteúdos guardados num sótão e que devem ser acessados,
despertados e rememorados. A memória não é necessariamente a repetição do
mesmo, pois a própria repetição já é outro modo de acontecer, de viver a coisa,
e assim a própria coisa já se torna outra. É quando tento interpretar que acabo
por reconhecer e identificar como sendo “aquele” acontecimento que retorna. E
isto, ao invés de desencadear devires em meu corpo, irá sempre convencê-lo de
que não importa os trajetos e vôos que ele tente alçar, estes nunca deixarão de
ser apreendidos e identificados como experiências pessoais de um si sempre o mesmo.
Tentei portanto discutir a necessidade e as possibilidades que se
abrem ao desvincular o corpo de um suposto Eu que se expressa através dele.
Sobre a questão “O corpo não é um instrumento de trabalho do ator, o corpo é o
ator” colocada por Ferracini,
tentei mostrar a diferença radical entre encará-la como uma necessidade de se
aproximar corpo e espírito, meu corpo de mim mesmo, sujeito e objeto, e
encará-la como uma necessidade de afastar de vez o corpo da tutela do Eu, pois
o corpo é muito maior do que este ínfimo Eu que foi inventado pelo próprio
corpo, por mais que se tente convencê-lo do contrário.
Referências
ARTAUD, Antonin. Oeuvres Complètes. França: Gallimard, 2006.
BONFITTO, Matteo. O Ator-Compositor: as
ações físicas como eixo: de Stanislavski a Barba. São Paulo: Perspectiva, 2007.
DELEUZE, Gilles. Proust et les signes. França: PUF, 1964.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Como Construir para Si um Corpo sem Órgãos.IN:
Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia
vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto. São Paulo : Ed. 34, 1996.
__________________________. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol.
4. Tradução de Suely Rolnik. São Paulo: Ed. 34, 1997.
NIETZSCHE,
Friedrich. Assim falou Zaratustra.
Tradução Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro S.A.
STANISLAVSKI, Constantin. A Preparação do ator. Tradução de Pontes
de Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
TIAGO FORTES é Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO e Prof.
Assistente da Graduação em Teatro da UFC.
TIAGO FORTES is Master in Artes Cênicas by UNIRIO and Prof.
Assistant of the Graduation in Theater of the UFC.