TRADUÇÕES DO
CORPO NA DANÇA E NO CINEMA
TRANSLATIONS OF THE BODY IN DANCE AND IN
THE CINEMA
Charles Feitosa
(UNIRIO)
Resumo
O texto tem como objetivo principal refletir sobre
as vantagens e as desvantagens das interações entre dança e cinema.
Palavras-chave | corpo | imagem |
performance | espaço | tempo
Abstract
The text has as main
goal to reflect on the advantages and the disadvantages of the interactions
between dance and cinema.
Keywords | body | image | performance |
space | time
I. Parcerias e Incompatibilidades
Como traduzir corpos
coreografados do palco para a tela? À primeira vista parece haver uma harmonia
perfeita entre as linguagens da dança e do cinema, afinal ambas tem como matéria-prima
o movimento, seja dos corpos em cena, seja das imagens na tela. Essa simbiose explicaria
a presença quase ubíqua de coreografias na história do cinema: já em 1894 o
pioneiro Thomas Edison grava com uma câmera fixa a breve performance da famosa
dançarina Annabela Moore (A Dança da Borboleta).
Diversos astros do cinema mudo, tais como Charles Chaplin ou Rodolfo Valentino
tinham experiência em dança. Daí até os sucessos recentes de filmes como Billy Elliot (2000) ou Moulin Rouge (2001) são mais de cem anos
de parceria, passando pelos musicais norte-americanos (e as chanchadas da
brasileirissima Atlântida) dos anos trinta e quarenta, as adaptações para o
cinema de espetáculos musicais nos anos quinta e sessenta tais como O Rei e Eu (1956) ou West Side Story (1956) ou ainda a
explosão de filmes de dança nos anos setenta e oitenta, tais como Os Embalos de Sábado a Noite (1977), Fama (1980) e Flashdance (1983) entre muitos outros.
Entretanto o encontro entre
a dança e o cinema não é tão harmônico como parece. Parece haver algumas
incompatibilidades entre o corpo que dança e o corpo que se mostra no filme.
Por exemplo, enquanto a linguagem da dança costuma explorar os corpos em seu
volume e profundidade, a linguagem cinematográfica lida essencialmente com
cortes, planos, enquadramentos. “Filmar é recortar espaços”, dizem vários
teóricos do cinema. Fred Astaire, por exemplo, o grande dançarino do cinema
norte-americano, fazia questão que a câmera nunca focalizasse apenas seus pés,
braços ou quadris, enquanto estivesse dançando. Para ele o efeito estético de
sua coreografia dependia fundamentalmente de que o espectador tivesse acesso a
todo o seu corpo e não apenas a partes dele. Em diversos de seus filmes a
câmera restringe-se a seguir seus passos como uma escrava fiel e submissa, em
longos planos-seqüência.
http://www.youtube.com/watch?v=j02k9t4rP50
Fred Astaire
(1899-1977) misturava elementos de sapateado, jazz, cabaré e traços de balé. Nos
seus filmes os números de dança eram perfeitamente integrados na narrativa.
Astaire buscava controlar a distorção da dança pelo aparato fílmico ao menor
grau possível.
Será então que no encontro
entre a dança e o cinema sempre há o risco de que um reprima o outro ou a si
mesmo de alguma maneira?
II.
Metamorfoses Espaciais
Segundo a pesquisadora em
vídeo-dança, Sherryl Doods, da Universidade de
Surrey: “Dança é caracterizada pelo seu uso do espaço, tempo e energia em
relação ao movimento e é especialmente nesses três fenômenos que ela se mostra
mais distorcida através do meio da tela” (DOODS, 2001: 30). O cinema costuma
explorar as modificações espaço-temporais que a dança produz, usando-as como
uma espécie de interlúdio da ação, muitas vezes até evocando atmosferas
oníricas (como nas seqüências coreografadas de Dançando no Escuro, de Lars Von Trier, realizado no ano de 2000).
Nesse caso as coreografias interrompem não apenas o fluxo da narrativa, mas
também da realidade. Mas ao incorporar a dança em sua própria démarche, o filme
transforma nossa percepção dos corpos dançantes.
A primeira metamorfose
espacial está associada a nossa percepção visual do movimento. O espectador
diante de uma performance ao vivo tem diante de si um campo visual que se
assemelha a um triângulo onde o lado mais largo é o que se apresenta em frente,
ao passo que atrás dessa linha imaginária tudo parece se afunilar. Nossa
perspectiva frontal do palco faz com que os bailarinos pareçam menores, na
medida em que se movimentam em direção ao fundo. Através da lente da câmera, ao
contrário, parece que nosso campo visual se assemelha a um triângulo invertido,
mais estreito na frente da tela, mais largo no fundo. Um dançarino que está mais
perto da lente pode dar um passo e sair do campo de visão, um outro que esteja
mais recuado vai precisar dar muito mais passos para desaparecer da vista. No
palco, dançarinos saem e entram pelas laterais; na tela, dançarinos parecem
entrar e sair do nada.
Outro aspecto espacial
contrastante é obviamente a questão da bidimensionalidade do filme. O olhar
ocidental foi treinado adequadamente para lidar com a bidimensionalidade de uma
imagem (Nesse sentido a recente moda do 3D fascina e ao mesmo tempo assombra
pelo risco iminente das futuras gerações perderem a capacidade de traduzir
adequadamente as imagens em 2D). Mesmo assim a falta de volume e distância da
tela alteram nossas percepções: a imagem de um corpo inteiro parece apequenada
na tela, por outro lado detalhes normalmente imperceptíveis podem ser vistos
com exatidão em close-up. Finalmente uma diferença fundamental em termos de
percepção espacial está no fato de que no espetáculo costumamos nos colocar em
um ponto fixo de observação, ao passo que os movimentos da câmera nos
proporcionam diversos ângulos e perspectivas, de cima, de baixo, ao redor. Ao
viajar ao redor do corpo a câmera permite que se ganhe uma impressão de
movimento mesmo quando o dançarino em aparente repouso.
O aparato fílmico permite
construir relações espaciais impossíveis de ser experimentadas no palco entre o
corpo dançante e o espectador. Inversamente, porém, a câmera tende a “aplainar’
os corpos, enfraquecendo conseqüentemente a dinâmica dos movimentos em cena. Essa
ambigüidade se repete também em relação aos aspectos temporais da tradução da
dança em cinema.
III.
Metamorfoses Temporais
Na tradução da coreografia
para as telas ocorrem também alterações de nossas percepções temporais dos
corpos em movimento. Um dançarino pode, no palco, atrasar ou acelerar seus
passos, pode até mesmo parar. O cinema pode fazer tudo isso de maneira mais
intensa, o cinema pode quebrar até mesmo com o princípio da irreversibilidade
do tempo, tão presente tanto na vida cotidiana como nos palcos. A força e as
limitações da performance ao vivo são as mesmas da existência. O cinema, ao
contrário, tem sua vitalidade revelada na capacidade de transcender a
linearidade através dos recursos de edição. O cinema pode reorganizar tempo e
espaço, por exemplo, através do aceleramento, desaceleramento, congelamento,
superposição e inversão das imagens, de forma que a linearidade do movimento da
dança seja recriada criativamente de muitas maneiras. O recurso cinematográfico do slow motion pode ser imitado (como nos recentes trabalhos de Bruno
Beltrão, a frente do Grupo de Rua de Niterói), mas dificilmente poderá ser
reproduzido plenamente (impossível saltar em câmera lenta).
Essa diferença na percepção
temporal do corpo em movimento não é sempre uma vantagem. Se por um lado o
filme abre outras possibilidades de acesso ao corpo que dança, por outro lado
ocorre também uma espécie de fraca “empatia cinética” entre o espectador de
cinema com o movimento corporal projetado na tela. No espetáculo ao vivo o
corpo do espectador parece se sintonizar com a distribuição de energia
provocada por outros corpos em movimento. Pode-se dizer que o público dança com
o performer, sente a vertigem dos movimentos, balança no mesmo ritmo, mesmo sem
se movimentar na cadeira. Já os recursos técnicos do cinema fazem com que o
senso de esforço do dançarino seja distorcido, transmitindo freqüentemente uma
impressão de espontaneidade em cada gesto. A respiração ofegante, o suor, os
erros e os riscos da performance ao vivo costumam ser eliminados após a edição.
A transformação do corpo fluido ao vivo para o corpo exposto na tela passa por
uma série de mediações e distanciamentos, que implicam em uma redução das
possibilidades de percepção do movimento.
Quem já assistiu a um
espetáculo do Grupo Cena 11 Cia. de Dança, de Florianópolis (SC), sabe que as
diversas quedas dos dançarinos em cena são vivenciadas sempre e de cada vez
como se fossem a própria queda.
IV. Pas de
Deux entre Dança e Cinema
Sabemos que o filme pode
fazer muito mais do que apenas registrar passivamente o movimento de um corpo
(embora alguns dos primeiros filmes da história do cinema tenham sido
coreografias filmadas) e que a interação do cinema com a dança não se resume
apenas a um esvaziamento da performance ao vivo. Um dos primeiros artistas a
perceber que a câmera também poderia dançar foi a cineasta e coreógrafa
norte-americana Maya Deren (1917-1961). Em 1945 ela filma Estudo em Coreografia para Câmera, um curta silencioso de cerca de
2 minutos, onde corpo e câmera estão tão intimamente conectados, que gestos,
tempos e geografias normalmente impossíveis se tornam repentinamente visíveis. Um pouco antes, em 1943, ela filmou Meshes in the Afternoon [Malhas na
Tarde], um filme de dança sem dançarinos, misturando elementos da psicanálise e
do surrealismo. Deren via seus filmes como tendo uma estrutura poética ou
musical que se distinguia da lógica linear do cinema tradicional. O fato de seus
filmes não apresentarem narrativas lineares não implicava em uma composição
caótica. Seu cinema seguia outras lógicas, que conjugavam simultaneamente
filosofia, poesia e experimentação. Curiosamente esse “choreo-cinema”
experimental e de vanguarda se realiza paralelamente à chamada era de ouro de Hollywood,
caracterizada por filmes que se mantinham presos às mesmas fórmulas de cada
gênero, seja musical, noir, western ou comédia romântica. Sobre esse ponto a
pesquisadora Maria Pramaggiore, da North Carolina State University, observa:
“As dificuldades de exibir e distribuir filmes experimentais nesse período não
deve ser subestimada. Segundo vários relatos Deren começou exibindo seus filmes
nas paredes dos seu apartamento em Nova Iorque e quando amigos de seus amigos
começaram a pedir para vê-los, ela passou a organizar exibições em
universidades e a alugar salas de projeção (PRAMAGGIORE, 1997: 24).
Talley Beatty desafia as leis da gravidade e da física no filme Estudo em Coreografia para Câmera (1945)
de Maya Deren
(http://www.youtube.com/watch?v=jh_srk8jJqQ)
V. Estratégias contra a Tendência para a
Descorporeificação
As traduções do corpo na dança e no cinema não
são sempre equitativas. O cinema contribuiu para a popularização da dança, a
dança agregou uma dimensão performativa aos filmes. Desde os anos setenta ocorre um boom de filmes que
associam a dança a uma forma de malhação do corpo ou de escapar do tédio da
vida cotidiana. Por outro lado inúmeros coreógrafos, tais como William
Forsythe, Merce Cunningham e Pina Bausch, experimentam novas formas de colocar
corpos e imagens em movimento. No século XXI a dança e o cinema interagem com o
vídeo, o computador e a internet, abrindo uma nova e perigosa tendência para as
artes do movimento: a desmaterialização do corpo.
Existe um filme de dança chamado Ghostcatching (07”, 1999),
realizado pelos artistas digitais Paul Kaiser e Shelley Eshkar, que faz um
dançarino (Bill T. Jones) parecer uma mera animação gráfica computadorizada. A
proposta do filme é capturar o essencial do movimento, aquele resíduo último
sem o qual a dança não seria possível. Através de complicados processos
digitais foram gravadas primeiro cenas do dançarino girando e dançando, depois
o desenho de seu corpo foi apagado e apenas seus movimentos foram preservados,
sendo então representados como riscos de giz coloridos num quadro negro
tridimensional.
O resultado é muito belo e perturbador. A idéia de apresentar a dança
sem o corpo, por mais paradoxal que seja, corresponde a uma das mais fortes
tendências da arte contemporânea, a saber, a desmaterialização do humano
através do crescente uso da tecnologia. Um gesto tecnicista, só comparável à
famosa passagem de Descartes (II. Meditação) onde o filósofo busca a
verdadeira essência de um pedaço de cera aproximando-o do fogo, destruindo
assim todas suas propriedades sensíveis (cor, densidade, sabor) e acaba
destruindo a cera inteira também. Mas é muito interessante ver o filme e
constatar que embora os computadores tenham feito um ótimo trabalho ao apagar
toda carne e músculos da imagem, uma instância material sutil permanece
resistindo no fundo, como que nos lembrando que essa coisa que dança não se
reduz a um mero conjunto de vetores gráficos. Trata-se da voz do dançarino, que
ora geme com a dificuldade do movimento, ora cantarola de alegria ao dar uma
cambalhota. Parece que os produtores do
filme esqueceram que a voz, embora invisível e impalpável, é uma das marcas
mais nítidas da nossa corporeidade. Em uma era da reprodutibilidade infinita de
imagens digitais a dança e o cinema podem às vezes se associar como um foco de
resistência, um espaço onde a materialidade do corpo não apenas é exposta, mas
também celebrada. O estatuto híbrido da associação entre dança e cinema permite
construir um corpo fluido que tem o potencial de alterar e enriquecer nossas
perspectivas. Uma tal tradução híbrida do corpo exige uma abordagem igualmente
híbrida, que conjugue filosofia e teorizações multidisciplinares das artes e da
cultura.
Referências
DOODS, Sherryl. Dance on
Screen. Genres and Media from Hollywood to Experimental
Art. Palgrave. New York, 2001: 30.
PRAMAGGIORE, Maria. “Performance and Persona in
the U.S. Avant-Garde: The Case of Maya Deren”, in: Cinema
Journal 36, no. 2, winter 1997: 24.
CHARLES FEITOSA é
Doutor em Filosofia e Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO.
CHARLES FEITOSA is Doctor in Philosophy and Professor and Researcher of
the Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas (PPGAC) by UNIRIO.