CORPOS
NUS E SEMINUS NA COREOGRAFIA CONTEMPORÂNEA: INTIMIDADE E EXPOSIÇÃO EM AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS E EM BUNDAFLOR BUNDAMOR
NAKED AND HALF NAKED BODIES IN
CONTEMPORARY CHOREOGRAPHY: INTIMACY AND EXPOSURE IN AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS AND IN BUNDAFLOR BUNDAMOR
Mônica Fagundes Dantas
(UFRGS)
Resumo
Este artigo propõe uma
reflexão sobre a presença do corpo nu na criação coreográfica contemporânea,
tendo como referências Aquilo de que
somos feitos, da Lia Rodrigues Companhia de Danças; e Bundaflor Bundamor, da Eduardo Severino Companhia de Dança.
Utilizando a etnografia e a autoetnografia como abordagens metodológicas,
ressaltam-se os aspectos relacionados à nudez, à intimidade e à exposição a
partir do ponto de vista dos intérpretes e da coreógrafa, em Aquilo de que somos feitos, e da
perspectiva da própria pesquisadora, que também atua como intérprete em Bundaflor Bundamor.
Palavras-chave
| Nudez | Semi-nudez | Coreografia | Etnografia | Auto-etnografia
Abstract
This study proposes a reflection on the presence of
the naked body in contemporary choreography, using as examples the pieces: Aquilo de que somos feitos (What we are
made of), by Lia Rodrigues Dance Company; and Bundaflor
Bundamor, by Eduardo Severino Dance Company. By
adopting an ethnographical and auto-ethnographical standpoint, some aspects of
nakedness, intimacy and exposure are described: both from the performer’s and the choreographer’s point of view (in Aquilo de que somos feitos) and from the
present researcher’s position (in Bundaflor Bundamor, in which the
author also partakes as a performer).
Keywords | Naked | Half-naked | Choreography | Ethnography | Auto-ethnography
Introdução
A
presença do corpo nu na dança contemporânea não é novidade. Huesca
(2005) retraça esta presença desde o início do século XX, destacando as
criações de dançarinos como Isadora Duncan e Rudolf Laban, a partir de 1910,
nas quais o corpo nu encarna a harmonia com a natureza idílica e a regeneração
da condição humana. No entanto, o autor não se refere às experimentações dos
artistas da chamada dança pós-moderna estado-unidense,
mas não se pode esquecer, nesse inventário, de artistas como Yvonne Rainer, que
levou à cena uma das versões de Trio A
(1966), interpretada por dançarinos nus, cobertos pela bandeira dos Estados
Unidos. A partir dos anos 1990, o corpo nu se torna cada vez mais presente na
produção coreográfica contemporânea, seja na Europa, na América do Norte ou no
Brasil. Desse modo, obras de coreógrafos europeus como Aatt enen tionon (1996)
de Boris Charmatz, Self Unfinished (1998) de Xavier Le
Roy, Still Distinguished (2000)
de La Ribot, de coreógrafos canadenses como Confort et Complaisance (2000)
de Benoît Lachambre e Amour, acide et noix (2001)
de Daniel Léveillé, ou ainda, obras de coreógrafos
brasileiros como Vênus é um menino
(1995) de Andrea Druck, O samba do crioulo doido (2003) de Luiz de Abreu, Aquilo de que somos feitos (2000), Formas Breves (2004) de Lia Rodrigues, Bundaflor Bundamor (2008) da Eduardo
Severino Companhia de Dança fazem do corpo nu ou seminu a matéria primordial
das suas criações. A nudez, nessas coreografias, pode servir a fins diversos:
deslocar as referências convencionais sobre a morfologia do corpo humano, expor
a fragilidade e a vulnerabilidade do corpo dançante, servir como dispositivo de
sedução e/ou de provocação do espectador, questionar os processos de criação e
encenação em dança contemporânea.
Partindo
deste contexto, proponho uma reflexão sobre a presença do corpo nu na criação
coreográfica contemporânea, tendo como referência Aquilo de que somos feitos, da Lia Rodrigues Companhia de Danças e Bundaflor Bundamor, da Eduardo Severino
Companhia de Dança. Tais reflexões se constituem como desdobramentos da
pesquisa realizada para a elaboração da minha tese de doutorado (Dantas, 2008),
que visava compreender como a participação nos processos de criação, manutenção
e reconstrução coreográfica contribui para a construção de corpos dançantes no
contexto da obra de coreógrafos contemporâneos brasileiros, buscando, em paralelo,
traços e manifestações de brasilidades nas obras examinadas. Além da Lia
Rodrigues Companhia de Danças, realizei um estudo com a companhia dona orpheline
danse de Sheila Ribeiro. O estudo com a Eduardo Severino Companhia de Dança
não fez parte da tese.
As
escolhas metodológicas buscaram coerência com os objetivos da pesquisa,
conduzindo a uma investigação qualitativa, de caráter predominantemente
etnográfico. Meu trabalho de coleta de informações junto à Lia Rodrigues
Companhia de Danças deu-se durante os ensaios preparatórios para a apresentação
do espetáculo Aquilo de que somos feitos
em São Paulo. As observações dos ensaios começaram no Rio de Janeiro, no local
onde a Companhia trabalha normalmente, e continuaram em São Paulo, no local
onde o espetáculo foi apresentado, ou seja, em três andares ou mezaninos que
constituem uma parte das instalações do Instituto Cultural Itaú, onde estava
sendo realizada a exposição de artes visuais “Anos 70: Trajetórias”. Durante
esse período, realizei entrevistas com oito intérpretes (Amália Lima, Ana
Carolina Rodrigues, Jamil Cardoso, Marcela Levi, Marcele Sampaio, Micheline
Torres, Renata Brandão e Rodrigo Maia) e com a coreógrafa (Lia Rodrigues), e
utilizei um diário de campo para registrar minhas impressões. Utilizei também,
como documentos auxiliares, programas de espetáculos, material de divulgação da
companhia, matérias publicadas na imprensa escrita e artigos da crítica
especializada. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, e
analisadas a partir da identificação de unidades de base e da posterior
elaboração de categorias para análise e interpretação. Com o consentimento dos
entrevistados, suas identidades foram desveladas.
O trabalho de campo com a Eduardo Severino Companhia
de Dança aconteceu durante os ensaios para a criação do espetáculo Bundaflor Bundamor, de março a maio de
2008, em Porto Alegre, na Sala 209 da Usina do Gasômetro e continuou durante a
temporada da peça neste mesmo espaço, durante os meses de maio e junho deste
mesmo ano. Em Bundaflor Bundamor
atuei como bailarina, num processo de colaboração com os demais intérpretes,
Dani Boff, Luciana Hoppe, Eduardo Severino e Luciano
Tavares. Os dois também assinam a concepção do espetáculo, que teve direção de
Bia Diamante. Participei também da elaboração do material de divulgação da peça
e auxiliei em algumas etapas da sua produção. Desse modo, o processo de coleta
de informações foi fortemente influenciado pela minha participação como
intérprete e co-criadora. De uma experiência como observadora participante, no
estudo anterior, passei a uma experiência de participante observadora, ou seja,
as sensações, percepções e reflexões decorrentes da minha presença como artista
envolvida na elaboração da obra pesquisada constituíram os principais dados a
serem coletados. Durante o período de realização dos ensaios, registrei muitas
das minhas impressões em notas esparsas, juntamente com alguns diálogos
informais ocorridos durante os ensaios. No entanto, muitas outras impressões,
diálogos e situações foram ressurgindo durante a preparação deste artigo. Sendo
assim, este segundo estudo encontrou na auto-etnografia uma das principais
referências metodológicas. Como destaca Fortin (2009), a auto-etnografia vem se
consolidando como uma escrita de si, que permite o ir e vir entre as
experiências pessoais e as dimensões culturais, buscando reconhecer,
questionar e interpretar as próprias estruturas e políticas do eu. Utilizei,
também, material de divulgação da peça, matérias publicadas na imprensa escrita
e artigos da crítica especializada. A análise da informação ocorreu através da
leitura e sistematização do material transcrito, permitindo a emergência de
temas que guiaram a reflexão e a escrita.
Neste artigo, ressalto os aspectos das
análises relacionados à nudez, à exposição e à intimidade, da perspectiva dos
intérpretes e da coreógrafa, em Aquilo de
que somos feitos, e o meu próprio ponto de vista como intérprete em Bundaflor Bundamor.
Aquilo de que somos feitos: o avesso do corpo, o avesso do
mundo
Aquilo de que
somos feitos estreou em 2000 no Rio de Janeiro, tendo sido apresentado
por mais de cinco anos, percorrendo várias cidades brasileiras, europeias e
norte-americanas. A peça segue dois eixos: uma pesquisa sobre a materialidade
do corpo, do tempo e do espaço – o que eu chamo de avesso do corpo – e um
conjunto de questionamentos e de denúncias sobre o mundo contemporâneo,
formulados em forma de dança – o que eu chamo de avesso do mundo. A peça foi
concebida para ser apresentada num espaço compartilhado por intérpretes e
público. Desse modo, não há cadeiras nem lugares reservados para os
espectadores, que podem se sentar no chão e que são convidados a se deslocarem
para melhor apreciar uma cena. Em outros momentos, dançarinos e dançarinas se
misturam com o público, realizam as sequências coreográficas dispersos entre o
público.
Na primeira parte da peça, corpos nus criam formas
dispersas por entre o público. Lia Rodrigues conta que, durante a criação da
coreografia, pedia aos dançarinos que experimentassem posições e sequências em
que o corpo parecia estranho, esquisito, bizarro: “[…] era um coisa muito
íntima, essas posições estranhas, às vezes nos ensaios dava nojo, pareciam
frangos, pareciam aliens” (RODRIGUES, 2001: p.3). Uma das perguntas
que ela fazia aos dançarinos era esta: “Como o corpo pode virar uma coisa que
não estamos acostumados a ver?” Para provocar esse estranhamento, a coreógrafa
e seus colaboradores trabalharam também sobre a temporalidade, propondo uma
dilatação do tempo de observação dos corpos. Lia Rodrigues desejava encontrar o
tempo necessário para que o espectador pudesse perder suas referências quando
olhava para esses corpos. Os dançarinos nus, que, no começo do espetáculo, se
transmutam em formas insólitas que secretam uma estranha beleza, tornam-se
seres humanos sem identidade, nivelados pela exposição de seus corpos
enfileirados em posições estáticas e por sua transformação em carne, quase em
cadáveres: corpos empilhados uns sobre os outros, que tremem de tempos em
tempos. A cena descrita anteriormente serve de transição à segunda parte do
espetáculo, em que os dançarinos retornam vestidos para executar movimentos
ritmados por uma música que lembra paradas militares. Eles gritam palavras de
ordem – “Peace”, “O povo unido jamais
será vencido” – e slogans
publicitários – “Nikkon-Sakê-Picachu”, “Porque eu
mereço” –; divertem-se, cantam e dançam em círculo; e finalizam o espetáculo
com uma marcha em que sussurram “Hay que
endurecer, pero sin perder la ternura jamás”.
Imagem 1: Aquilo
de que somos feitos. Foto: Tatiana Altberg.
Nu, mas vestido de ideias
Segundo a coreógrafa e os dançarinos e dançarinas que participaram da
criação de Aquilo de que somos feitos
— Marcela Levi, Micheline Torres, Rodrigo Maia, Marcele Sampaio – a nudez
surgiu como um exigência da coreografia. Micheline conta que durante a criação
da primeira parte da peça, enquanto experimentavam as formas/figuras estranhas
com seus corpos, eles e elas começaram a perceber que precisavam ficar nus,
pois as roupas limitavam os movimentos e escondiam algumas partes dos corpos
que seriam importantes para a composição dessas figuras. Assim, quando se
tratava do trabalho de composição dessas formas, a nudez era facilmente
aceitável para os intérpretes, como ressalta Marcele. Na primeira cena em que
ela aparece nua, ela executava a figura da “ema”1
e estava um pouco escondida por duas dançarinas que compunham a figura
anterior, o “Ananias”. O fato de estar nua não lhe causava problemas. Marcele
explica que na composição desta cena, a luz desenhava o corpo, ajudando a
compor as formas. O corpo se apresentava então como uma forma abstrata, sua
morfologia se mostrava diferente da habitual. A nudez fazia parte da composição
dessa figura e a pele tornava-se o figurino adequado à cena. Mas à medida que a
criação de Aquilo de que somos feitos
avançava, a nudez parecia ser ainda necessária. Marcele relata que quando da
criação da cena da “linha”, a coreógrafa e os intérpretes se deram conta que
deviam continuar nus. Nesta cena, dançarinas e dançarinos se colocam lado a
lado, mostrando-se de frente, de lado, de costas para o público e acabam por
deitar de bruços no chão. Em seguida, eles começam a tremer, empilhando-se uns
sobre os outros até formarem uma montanha de corpos; eles recomeçam a tremer e,
sempre deitados no solo, atravessam a sala, abrindo caminho entre os
espectadores. Ao longo desta cena, dançarinas e dançarinos expõem seus corpos
despojados de artifícios como os efeitos da luz e o virtuosismo dos movimentos
dançados. Marcele Sampaio e Micheline Torres explicam que, para concordar com
essa exposição do seu corpo, cada pessoa na companhia passou por um tipo de
conflito pessoal, “[...] porque é muito
diferente de você representar personagens, não tem personagem, então é nu e cru”
(SAMPAIO, 2001). Elas ressaltam que a nudez provocou um confronto com seu
próprio corpo, com suas perfeições e imperfeições: “[...] não foi fácil
para a gente ficar sem roupa, principalmente porque […] tem sempre essa coisa
da gente ter um ideal de beleza e bailarino deve ter um corpo maravilhoso e
cada um tem o seu corpo, não é?” (TORRES, 2001).
Imagem 2: Aquilo de que somos feitos. Foto:
Tatiana Altberg.
Como explicam Marcele e Micheline, uma das razões pelas quais elas
experimentaram sentimentos confusos em relação à nudez está no fato de não
perceber o seu corpo como um corpo perfeito, de acordo com os modelos de corpo
prescritos para os dançarinos: magro, musculoso, alongado e de proporções
perfeitas. Esse modelo de corpo, com algumas variações, é também hegemônico nas
sociedades contemporâneas. De certo modo, a nudez em Aquilo de que somos feitos confronta intérpretes e público ao
fenômeno da corpolatria, tão presente nas sociedades
brasileiras (MALYSSE, 2002), acostumadas à presença de corpos seminus, em
situações constantemente veiculadas pelas mídias, como a praia e o carnaval. No
entanto, essa seminudez é, em geral, adornada,
possibilitando a exposição de um corpo sedutor se projetando igualmente na vida
cotidiana. Malysse sublinha que, se o corpo se desnuda, a seminudez não é natural, mas culturalmente regulamentada,
seguindo códigos de como se vestir e se desvestir: “[...] no Brasil, é o corpo
que parece estar no centro das estratégias do vestir. [...] as brasileiras
expõem o corpo e frequentemente reduzem a roupa a um simples instrumento de sua
valorização, uma espécie de ornamento” (MALYSSE: 2002, p.110). Para o autor, essa corpolatria
institui o corpo bronzeado, musculoso e sempre em exposição como um dos
principais elementos de definição da identidade individual. Desse modo, o
aspecto do corpo de cada pessoa torna-se uma verdadeira fachada social.
Em Aquilo de que somos feitos,
a presença do corpo nu não reforça esse modelo de corpo, pois a nudez não é
adereço e não serve necessariamente para seduzir o público. Talvez a nudez
tenha mesmo uma função oposta, pois o corpo nu se apresenta como um corpo
despojado e até mesmo frágil. Como destaca a coreógrafa, a nudez se impunha
como uma condição: “Estávamos criando um espetáculo para falar do que está
dentro, do avesso desse país, da banalidade com que Benetton, Carandiru e
Pikachu são apenas palavras no noticiário”. Lia relata ainda que o grupo
começou a ler “[...] essas revistas de personalidades e rir e ter nojo. Estar
nu, confrontar as pessoas com o corpo real, o que está por baixo das roupas de
grife, da lipoaspiração, dos uniformes, foi sendo claro para nós” (RODRIGUES
apud LOPEZ, 2001: p.12).
A nudez, em Aquilo de que somos
feitos, revela também a intimidade e a fragilidade dos intérpretes. Lia
comenta que a peça fala da intimidade de cada um; ela diz que não seria talvez
capaz de estar nua em cena, porque teria vergonha. Este desvelar da intimidade
aparece na composição das figuras da primeira parte da peça, quando as posições
dos corpos permitem ver as protuberâncias, as dobras, os orifícios, as fendas,
os pelos, tudo o que geralmente está escondido ou disfarçado no corpo. E se
materializa também nos momentos em que os intérpretes estão simplesmente de pé,
de frente para o público, ou quando se empilham como uma montanha de
cadáveres.
Por outro lado, a nudez, tal como foi abordada na peça, representa
também uma possibilidade de se tornar mais potente, de amadurecer e de se
tornar “mais respeitoso em relação a si mesmo”, como diz Marcele Sampaio, pois Aquilo de que somos feitos oferece um
contexto para a nudez, e o corpo nu não é percebido pelos intérpretes como um
evento gratuito. Assim, mesmo estando completamente nus, bailarinas e
bailarinos se sentem vestidos pelas ideias veiculadas pela obra. Rodrigo Maia
relata que, tendo sido questionado sobre o figurino da peça, respondeu: “é nu”.
Ele explica que isso provocou outras reflexões sobre a nudez: “comecei a
perceber que me sinto vestido, pois estou completamente de acordo com o que acontece
nesse trabalho”. Rodrigo sublinha que “[...] as ideias são minhas roupas e
então não tem importância se eu me mostro com o pênis flácido, se eu mostro a
bunda para todo mundo. Por quê? Porque as ideias são fortes” (MAIA, 2001). É
possível perceber nas falas dos dançarinos e das dançarinas que a maneira como
cada um se prepara, se apresenta e se comporta em cena resulta da profunda
convicção com que cada um se engaja no trabalho. Assim, se os intérpretes de Aquilo de que somos feitos se sentem
vulneráveis por causa da nudez e da proximidade com o público, sentem-se
igualmente íntegros e conectados entre si e com o público. Como destaca
Rodrigo, tudo o que se faz na peça está de acordo com uma verdade que se deseja
comunicar e da forma como é comunicada. Assim, essa forma de nudez é a maneira
mais adequada de se expressar o que esses artistas desejam nessa criação. Nesse
sentido, a nudez é também uma demanda poética.
Bundaflor Bundamor: qual a personalidade de sua bunda?
Budaflor Bundamor, como a maior parte das obras da Eduardo Severino Companhia de Dança,
foi concebida por Eduardo Severino e Luciano Tavares. Geralmente, os dois são
também os intérpretes de suas criações, mas neste trabalho fizeram parte mais
três bailarinas: Dani Boff, Luciana Hoppe e eu. Fomos
chamadas porque, para dançar a bunda, se fazia necessária a presença de
mulheres. Luciana fazia o papel do diabo, que “costurava” as cenas.
Budaflor Bundamor
era um projeto que amadurecia há pelos menos dois anos na companhia. Quando fui
chamada para compor o elenco, já havia algumas cenas e sequências coreográficas
prontas. Participar deste projeto, para mim, significava retornar a uma forma
de criação em grupo que fizera parte da minha trajetória, mas da qual eu estava
afastada há quase nove anos, embora, na minha pesquisa para o doutorado,
tivesse observado grupos de dança em processos de criação. Mesmo já tendo
concluído minha pesquisa, não pude deixar de me interessar pelo fato de que Bundaflor Bundamor era, também, uma
interrogação que Eduardo e Luciano faziam à sua brasilidade. Eles propunham uma
brincadeira com clichês de uma possível cultura brasileira, tais como a bunda
como “paixão nacional” e instigavam reflexões acerca de nossas concepções e
vivências de brasilidade.
A obra tem inspiração, como não poderia
deixar de ser, na bunda de cada um, mas também na bunda que habita o imaginário
de todos. Diversas referências foram utilizadas: o livro Breve história das nádegas de Jean-Luc Henning
(1997); o poema A bunda que engraçada
de Carlos Drummond de Andrade (2002); a observação de bundas (como apêndices de
pessoas) caminhando pelas ruas; as semelhanças e diferenças entre as nádegas
femininas e masculinas.
Durante o processo de criação,
relembramos brincadeiras infantis que se relacionassem a essa parte do corpo;
revisitamos elementos de antigos carnavais; ironizamos os desfiles de moda;
buscamos movimentos que se originassem dos quadris, tentando precisar uma
“técnica da bunda”, que permitisse a emergência de uma gestualidade própria a esta
região do corpo. Durante o processo de criação, Eduardo nos questionava: “Como
seria a personalidade da bunda de cada um?”
A peça inicia com uma corrida de
revezamento na posição sentada, homens contra mulheres, onde o bastão é uma
banana, ingerida logo em seguida. Segue-se um trenzinho de carnaval à moda
antiga, ao som de uma célula de percussão repetida inúmeras vezes. Até aqui, as
bundas estão todas vestidas. Nós as despimos na cena seguinte e tornamos a
vesti-las para parodiar um desfile de moda. Segue-se a cena de expulsão do
diabo, ao som da frase “Acreditava-se, antigamente, que o diabo não tinha
bunda: era sua fraqueza” repetida inúmeras vezes pelo elenco e que culmina com
a coreografia para o Melô do Piripiri, de Gretchen.
Encaminhando-se para o fim, cada dançarino explora as qualidades de movimento
de sua bunda, agora vestida, através de curtos solos, emoldurados por um corpo de baile composto por nádegas
desnudas. Na cena final, aproveitando as condições próprias da sala, as bundas
são emolduradas na parede, como quadros.
Imagem 3: Cartaz de Bundaflor Bundamor. Fotografias de Lu
Mena Barreto. Ilustração de Cárcamo. Projeto gráfico: Adriana Sanmartin.
A
nudez das bundas
Talvez uma das melhores
qualidades da peça seja o bom humor e a ironia com que o tema é abordado:
“Severino investe no humor, no lúdico, o que repercute com sorrisos e risadas
da platéia durante o espetáculo, desarmando quem entra na sala 209 tensionado
com a expectativa de presenciar nudez de uma parte tão, digamos, sensível”,
como destaca Mendonça (2008). A presença de corpos nus (ou de bundas nuas) em
cena pode realmente provocar embaraços nos espectadores, pois, como ressalta
Pavis (2007), há um erotismo inevitável ao se confrontar uma pessoa de carne e
osso nua à sua frente, mas há também um constrangimento ainda maior, um prazer
atenuado pelo medo de ser pego em flagrante delito de voyeurismo. Como
intérpretes, também tivemos de lidar com certos constrangimentos ao longo da
criação e das apresentações. Recorrer ao lúdico ajudou a tornar mais leve o
fato de termos que desnudar as nádegas.
Por outro lado, tentamos
evitar as referências mais explícitas às funções eróticas ou sexuais da bunda.
Como escreve Bia Diamante no programa do espetáculo, “Falar da parte posterior
do corpo e em especial da bunda não é fácil. O tema é forte e cheio de ciladas,
tipo bum-bum de biquíni asa-delta. Não era isso que
queríamos. Mas também fingir que elas não existem não dá, não é mesmo?”. O que
não significa que não havia sensualidade no trabalho: havia momentos em que me
sentia voluptuosa como uma vedete de teatro de revista. Durante a criação da
peça, a exploração de movimentos oriundos do quadril permitiu a emergência de
uma postura corporal de base bastante sinuosa, que fazia com que eu percebesse
meu corpo mais amplo e dilatado. E mais sensual.
Paradoxalmente, os momentos de maior sensualidade na peça eram aqueles
em que a bunda estava vestida; eram menos sensuais porque consistiam em,
simplesmente, mostrar a bunda. Em uma destas cenas, parados de frente para o
público, um a um abaixamos a parte posterior da roupa (bermuda em cotton para os
homens, calcinhas grandes e estampadas em lycra
para mulheres), cruzamos os braços e nos viramos de costas para o público. Ao
som de Não me diga adeus, de Aracy de
Almeida, ficamos um tempo parados, intercalando tremidas dos quadris e
contrações esparsas dos glúteos. A música é repetida mais duas vezes, e Eduardo
e Luciano executam uma coreografia que, num primeiro momento, ressalta
movimentos e posturas masculinas, mas que termina com um delicado e sinuoso
solo de Luciano. Estes eram, para mim,
alguns dos momentos mais íntimos do trabalho, embora houvesse outras cenas em
que dançávamos com as nádegas à mostra. No entanto, nenhuma outra situação me
provocava essa sensação de exposição e intimidade, pois desvestir a bunda e
virar de costas para o público é oferecer uma parte vulnerável do corpo,
compartilhando algo que me é íntimo. Recordo que algumas vezes pensava no que
poderiam pensar os espectadores instantes antes de eu virar de costas; havia,
pois, entre a ação de abaixar as calcinhas e de virar de costas, uma certa
hesitação. Hesitação semelhante a que sinto ao
escrever sobre minha experiência em dançar com a bunda à mostra, o que não
deixa de ser uma outra maneira de me expor.
Em Bundaflor Bundamor não se
trata necessariamente da nudez do intérprete, mas da nudez da bunda. Ou mesmo
de uma seminudez, pois as nádegas são emolduradas
pelas calças abaixadas. Retornando a Malysse (2002),
é preciso sublinhar que a seminudez aqui proposta não
é necessariamente aquela que ressalta a sedução; comparando novamente com as
bundas femininas expostas nas praias brasileiras, com seus biquínis que
adentram pelos vãos das nádegas, as calcinhas abaixadas expõem a bunda na sua
inteireza, sem muitas possibilidades de disfarce. Assim, na maior parte das
vezes em que as bundas estão nuas, elas não são mais um elemento na composição
plástica da cena, desenhadas pela luz e transformadas pelas formas que assumem,
elas aparecem como são, bundas dançantes em carne, osso, pele, tecido adiposo.
Imagem 4: Bundaflor
Bundamor. Foto: Lu Mena Barreto.
Encaminhando considerações
transitórias
Na primeira parte de Aquilo de que
somos feitos, corpos nus e silenciosos se entregam ao público. Em Bundaflor Bundamor, bundas são
desnudadas sem artifícios. Em ambos, a intimidade de cada intérprete é
compartilhada com os espectadores. Para
desvelar esses corpos íntimos, dançarinas e dançarinos tiveram de aceitar seus
corpos nas suas perfeições e imperfeições, tiveram de se fragilizar e se expor,
abdicando de uma corporeidade gloriosa e virtuosa para favorecer uma presença
corporal mais modesta e ordinária – eu diria mesmo, mais humana.
Retornando ao primeiro parágrafo deste texto, eu me interrogo se a
presença do corpo nu nas obras analisadas insere-se numa certa tendência da
dança contemporânea. De certa maneira, sim, pois o corpo nu como material para
a composição plástica, a fragilidade dos corpos nus expostos sem artifícios ao
olhar do público, a nudez como forma de posicionamento político e ideológico
são aspectos presentes em Aquilo de que
somos feitos e em Bundaflor Bundamor,
assim como em outras produções contemporâneas em dança, sejam europeias,
norte-americanas, latino-americanas ou brasileiras. Os artistas que
participaram destes dois trabalhos têm consciência de que compartilham
determinadas visões de corpo, de dança e de mundo com tantos outros artistas
mundo afora. No entanto, estão também conscientes das relações assimétricas que
podem se estabelecer quando se confrontam produções
brasileiras/latino-americanas com produções europeias e norte-americanas.
Muitas vezes, Aquilo de que somos
feitos é comparada a Self Unfinished, de Xavier Le Roy, e Lia é indagada sobre a
influência de Self Unfinished
na sua obra. Mas a coreógrafa diz que na primeira vez em que encontrou Xavier
Le Roy, ele lhe perguntou sobre a influência de Lygia Clark no seu trabalho.
Lia devolve então a pergunta: “Aquilo de
que somos feitos é uma imitação? Quem copia quem? Em relação ao nu, agora
todo mundo dança pelado”, exclama a coreógrafa, ressaltando que a nudez é um
aspecto presente na cultura brasileira: “eu digo que os europeus aprenderam a ficar
nus com a gente” (RODRIGUES, 2001). A resposta irônica de Lia pode soar como
uma provocação, mas ela sinaliza para o desejo e a necessidade de afirmar a
qualidade de uma produção artística ainda considerada como periférica. Além
disso, inverte as expectativas em relação à ideia do
original e da cópia, sugerindo que a nudez é um fenômeno familiar aos
brasileiros – a nudez dos povos indígenas, a nudez da praia, a nudez do
carnaval – recuperada pelos europeus.
Bundaflor Bundamor, por sua vez, embaralha as expectativas sobre a exposição da bunda nas
sociedades contemporâneas, seja por privilegiar a ostentação da bunda masculina
em detrimento da bunda feminina, seja por exibir de modo semelhante bundas
masculinas e femininas: a bunda, em Bundaflor
Bundamor, seja ela masculina ou feminina, é curva e plenitude, dobra e
reentrância, é carne ambígua. E é ambiguidade encarnada.
O trabalho também brinca com a bunda mestiça, seja pela incorporação de
movimentos inspirados no samba, seja pela presença de Luciano Tavares, afro
descendente dono da bunda mais bonita em cena. Em seus solos, são realizados
movimentos em que os braços estão imobilizados juntos às costas, com uma mão
segurando o outro punho cerrado. Seus movimentos são suaves e sinuosos, há
muita delicadeza quando ele dança; e, não obstante a beleza da cena, as imagens
que suscitam em mim remetem ao corpo negro escravizado.
Como reconhece Pavis (2007: p.263), “se a nudez não é mais, pelo menos
no Ocidente, um problema ético, ela é sempre o espaço de uma crise existencial,
o tubo de ensaio e a caixa de ressonância da visualização da vida e da morte,
do gozo e do terror”. Aquilo de que somos
feitos e Bundaflor Bundamor, cada
um à sua maneira, convidam o espectador a se desestabilizar, a olhar de outro
modo para os corpos nus e seminus à sua frente ou ao seu redor e, talvez, a olhar
e a perceber o seu próprio corpo (e a sua própria bunda) de maneiras diversas.
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Paulo, 24 de novembro de 2001.
TORRES, Micheline. Entrevista concedida à autora. São
Paulo, 21 de novembro de 2001.
Vídeo
- extensão para youtube:
Aquilo de que somos feitos: http://www.youtube.com/watch?v=kDu4zKnKZvM
Bundaflor Bundamor: http://www.youtube.com/watch?v=-Qk3z-Crz3s
Notas
1 Os
intérpretes inventam nomes para os diferentes momentos da coreografia.
MÔNICA DANTAS é
Doutora em Estudos e Práticas Artísticas pela Université du Québec à Montreal
(Canadá) e Mestre em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunta da UFRGS desde 1995, nos cursos
de graduação em Educação Física e em Dança é também professora colaboradora no
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/Mestrado do Instituto de Artes da
UFRGS e integra o conselho editorial da Revista Movimento (UFRGS), da Revista
Cena (UFRGS) e da Revista da Fundarte
(FUNDARTE/UERGS). Bailarina com formação em dança moderna e contemporânea, fez
parte de diversos grupos e coletivos de dança em Porto Alegre. Integra o
Coletivo de Artistas da Sala 209 – Projeto Usina das Artes. Em 2010 concebeu e
coordenou o projeto “dar carne à memória, celebração do repertório coreográfico
de Eva Schul”, agraciado com o Prêmio Funarte Klauss
Vianna de Dança 2009.
MÔNICA DANTAS earned a PhD in Études et pratiques des arts at the Université du Québec à Montréal
and her M.A. in Human Movement Sciences at the Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). She is an associate professor
of UFRGS in Porto Alegre, Brazil, since 1995, where she teaches at the
undergraduate program in Physical Education and in Dance. She is also adjunct
professor at the master´s course of the postgraduate program in Performing Arts
of the Arts Institute of UFRGS and a member of the editorial council of the
magazines: Revista Movimento (UFRGS), Revista Cena (UFRGS) and Revista da Fundarte (FUNDARTE/UERGS). She is a dancer trained in
modern and contemporary dance and has been part of various groups and dance
collectives in Porto Alegre. She is a member of the artist´s collective Sala 209 – projeto Usina das Artes. In 2010 she conceived and coordinated the
project “dar carne à memória,
a celebration of the choreographic repertory of Eva Schul”,
which was awarded the Prêmio Funarte
Klauss Vianna de Dança of 2009.