AS IMAGENS DE WILLYS DE CASTRO E ABBAS KIAROSTAMI

THE IMAGES OF WILLYS DE CASTRO AND ABBAS KIAROSTAMI

Bruno Melo Monteiro

(UERJ)

Resumo

Este trabalho procura uma nova abordagem para o estudo da imagem, nomeando seus termos a partir de uma “Bildwissenschaft” (antropologia da imagem) como propôs Hans Belting. E, para tanto, duas obras de arte se relacionam nesse contexto teórico-especulativo: O Objeto Ativo de 1959 de Willys de Castro e a fotografia intitulada de Abbas Kiarostami.

Palavras-chave | Imagem | Meio | Corpo | Antropologia

Abstract

This work searchs a new approach to the image study, nominating its terms by a “Bildwissenschaft” (Image Anthropology) as proposed by Hans Belting. So, for that, two works of art are related in this theoretical-speculative context: The “Objeto Ativo” by Willys de Castro and the untitled photography by Abbas Kiarostami.

Keywords | Image | Media | Body | Anthropologie


Desde que Descartes separou mente e corpo que todo visível passou a ser descrito antes como um dado da consciência do que como realidade constituída anterior à visibilidade que a anuncia. Falar de imagem, sobretudo a partir do paradigma cartesiano que inaugurou nossa modernidade, significa falar de uma experiência residual sempre alhures, no domínio da consciência pura, e destituída de definição ontológica.

Ao contrário dessa perspectiva, a pergunta aqui feita – o que é uma imagem? – reconhece-se no âmbito de um questionamento que tenta rever o estatuto da percepção a partir de considerações concernentes ao domínio do ser e, portanto, a partir da inclusão do corpo na dinâmica da visualidade. E, para tal, recorre a autores que insistentemente enfatizaram essa relação - entre corpo e imagem -, autores como Hans Belting e Merleau-Ponty, para alcançar uma definição de imagem que ultrapasse as noções vulgares em que esse conceito se espreme dentro do domínio redutivista da absoluta virtualidade.

Ao vermos uma coisa nos colocamos diante dela como referência tirânica de que aquela coisa pertence ao fiel intervalo em que nos permitimos enxergá-la enquanto objeto ausente de nós. Mas a partir do momento em que essa visão do objeto se declara como a percepção pura derivada de nossa própria consciência, a coisa se dissolve e perde sua objetividade, passando a ser antes um dado psíquico; uma constante residual de nossa experiência da realidade mediada exclusivamente pela lógica do olhar. A imagem, pois, obedece exclusivamente à lógica do olhar? Podemos, seguramente, dizer da imagem que é ela feita da mesma estreita imaterialidade que nos alcança sob a forma fantasmática do olhar? E, no entanto, não nos situávamos antes disso na certeza de que é a coisa quem precede à visão que temos dela? O fato é que diante da impossibilidade de reconhecer uma unidade entre a essência da imagem e a essência do objeto que a ela é correlato, toda discussão ontológica parece ter fugido da relação entre o objeto e a imagem, tentando alcançar o instante preciso de seu surgimento. Para o que, ancorou-se antes na pergunta sobre quem é anterior a quem e não sobre a questão fundamental que é o todo e o relativo da percepção em si. Por isso, dizer que “o mundo já existia muito antes de nós nascermos” não significa dar voz àquela primeira hipótese de que é o objeto quem precede à visão, mas retornar a uma experiência de conhecimento que faça sentido na condição restrita, permititida nessa estreita visada que o ponto de vista humano oferece, o ponto de vista antropológico.

Hans Belting nos fala, então, de uma Antropologia da imagem (Bildwissenshaft). Recorre, assim, à Vernant para buscar no contexto da antiga Grécia uma topologia conceitual no que parece ser a origem da distinção entre aparência e ser. Vernant, segundo Belting, teria se debruçado nos limites do significado da palavra grega eidolon em contraste com o conceito de Kolossos no pensamento pré-clássico. O eidolon encarnaria uma imagem fantasmática, uma imagem sem corpo físico e, portanto, a imagem do ponto de vista insubstancialista - totalmente despida de categorias físicas. A esse binômio, que se forma com a idéia de kolossos enquanto materialidade de seu objeto - o meio (medium) pelo qual a imagem se pode manifestar -, um terceiro marco é acrescentado - o corpo e sua inevitabilidade no cerne deste processo -, com o que Belting emite os termos fundamentais de sua posição acerca da discussão em torno da anterioridade do objeto ao fato perceptivo ou o oposto, no pressuposto de uma reificação inaugural:

Em termos antropológicos eu contestaria qualquer dualismo rígido, que tão freqüentemente separa a representação interna da externa – utilizando-nos aqui da terminologia atual em pesquisa neurobiológica – e que, portanto, as designa para duas áreas inteiramente distintas. [...] As imagens não existem só na parede (ou na tevê) nem somente em nossas cabeças. Elas não podem ser desembaraçadas de um exercício contínuo de interação que deixou tantos vestígios na história dos artefatos (BELTING, 2005: 73).

Belting ainda reitera sua convicção quando, citando Bernard Stiegler, escreve que “nunca houve imagens físicas sem a participação de imagens mentais, uma vez que uma imagem, por definição, é algo que é visto (e só é algo quando é visto)” (BELTING, 2005: 73). Ainda citando Stiegler, continua – “Reciprocamente, as imagens mentais também dependem de imagens objetivas, no sentido em que aquelas são o retour ou a rémanence destas.” Concluindo com a máxima: “A questão da imagem sempre diz respeito ao vestígio e à inscrição.”

É assim, baseado nessa triangulação indissociável entre imagem, medium e corpo, que Hans Belting procura um patamar seguro para o entendimento do fitar1 enquanto termo ordenador da realidade percebida, fazendo referência ao trabalho de Debray e Freedberg para justificar essa violência que o próprio Belting reconhece na fatidicidade do “fitar”. O fitar como limite da indissolubilidade entre a aparência do visto e o ser de quem vê; como gesto de um corpo passivo-atuante; em suma, a forma como o corpo se manifesta em relação às propriedades visíveis. O fitar, portanto, não é uma resposta sensível a uma suposta natureza visível das coisas, como se a visibilidade fosse o imperativo das propriedades que as próprias coisas asselam. Como nos fala Merleau-Ponty:

Não há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se ofereçam a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a não ser apalpando com o olhar, coisas que não poderíamos sonhar ver ‘inteiramente nuas’, porquanto o próprio olhar [gaze] as envolve e as veste com sua carne (MERLEAU-PONTY, 2005: 128).

O que caracteriza, no entanto, a imagem como apresentação da coisa vista é o fato de que a coisa para se oferecer ao olhar, precisa - de uma forma mais ou menos imperiosa - obedecer à lógica desse olhar e permanecer heterogênea na homogeneidade da imagem vista. A imagem pressupõe sua unidade e é a consciência que delineia os aspectos do mundo. A consciência é o lado de dentro do corpo, o fitar (gaze) o lado de fora. O fitar nesse sentido se coloca como princípio estruturante e é nesse exato ponto que Hans Belting parece estabelecer um ponto de contato significativo com a obra de Merleau-Ponty, já que esse princípio estruturante do gaze se dá na interseção entre a percepção e a consciência; entre o sujeito e o fenômeno.

Existe, entretanto, um ponto para o qual Belting dá atenção especial, quando considera sobre a obra de Vernant: “uma ruptura no pensamento grego que teria sido necessária para causar a nossa compreensão do conceito de imagem(ibid)”.Refere-se ao surgimento do termo eikon que teria desvalorizado o eidolon e definido para este uma “significação negativa” enquanto “cópia ou imitação inerte”. Já que o eikon encerrava em si tanto a idéia de ser como a de aparência, atraindo para ele a necessidade de uma definição ontológica, o eidolon passava a se justificar apenas como um conceito que fosse inteiro aparência, sem as atribuições consideráveis e cabíveis ao desígnio do ente.

Toda a necessidade aparente dessa distinção filosófica entre aparência e ser baseada na etimologia me parece, todavia, um caminho bem mais sinuoso, pois devemos considerar que a palavra imagem deriva diretamente da palavra latina imago, derivada da mesma raiz deimitatio. A primeira, no entanto, tem uso recorrente referindo-se a um retrato de pessoa morta, uma sombra ou um espectro e a segunda se aproxima consideravelmente do atual conceito de imitação. Já o eidolon grego, segundo Junito de Souza Brandão:

[...] pressupõe o indo-europeu weid que exprime a idéia de ‘ver’ e ‘saber’. Não há que se estranhar no caso o ver e o saber: é que sendo o eidolon uma réplica do morto ele é uma imagem que se vê e, por conservar um resíduo latente de consciência, é algo que se sabe. Em termos de mito e religião grega eidolon é uma espécie de “corpo astral, insubstancial”, um simulacro que reproduz os traços exatos do falecido em seus derradeiros momentos (BRANDÃO, 1991: 322).

O eikon, por sua vez, ainda que sua origem me pareça obscura, pode ser encontrado na República de Platão sob o desígnio de cópia (PLATÃO, 2004: 21), contrariando assim, em certo aspecto, o argumento de Vernant de que tal “significação negativa” conferida ao termo eidolon fosse justificada no simples surgimento do termo eikon, já que para este último o peso negativo do valor de cópia também teria emergido nos escritos de Platão. O que não se pode perder de vista é que em todos os casos, os conceitos parecem se dirigir para a idéia de um duplo, porque se trata não de uma forma unificada do ser, mas de um conhecimento, uma apreensão “insubstancial” do mundo.

É, então, o ponto que parece consensual para essa imagem que tentamos decifrar/reconstruir. Trata-se da manifestação presente de uma ausência. Se a imagem diz respeito à aparência e não ao ser, é porque ela se conecta diretamente à inexistência daquilo que ela apresenta ou representa.

É nesse ponto que alcançamos a origem da exata contradição que para sempre caracterizará a imagem: imagens, como todos concordamos, fazem uma ausência visível ao transformá-la em uma nova forma de presença. A presença icônica do morto, todavia, admite, e até mesmo encena intencionalmente, a finalidade desta ausência – que é a morte (BELTING, 2005: 69).

A morte para Belting simbolizaria essa ausência “praticada” pela imagem. Mas é justamente a imagem que determina a morte enquanto ausência, já que é ela que faz referência ao morto e, portanto, o morto só pode ser alguma coisa através da consciência do corpo em que está inscrito. “[...] logo, a medialidade de imagens é originada da analogia ao corpo físico e, incidentalmente, do sentido em que nossos corpos físicos também funcionam como meios – meios vivos contra meios fabricados” (ibid). E aqui, a referência a obra de Damien Hirst se faz tão pertinente quanto conciliadora, na medida em que esse, se servindo do cadáver de um tubarão imerso em formol, declarou no termo central de sua obra - A imagem como “a impossibilidade física da morte na mente de uma pessoa viva” (The physical impossibility of death in the mind of someone living2).

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Objeto Ativo, Willys de Castro

Oportunamente, o Objeto Ativo de 1959 de Willys de Castro me parece uma forma muito significativa de tratar a imagem enquanto conceito. Não simplesmente por uma relação tópica dos monocromáticos tridimensionais com o surgimento da arte conceitual, mas pela natureza simplória e significante desse objeto, que se estende verticalmente pela parede à altura dos olhos como referência estratégica de que é justamente aos olhos que a imagem se oferece. “A execução duradoura e límpida” garante que a homogeneidade da pintura seja o fio condutor de uma idéia de imagem que faça questionar a própria natureza da neutralidade que a modernidade declarou ao branco. A “tela em branco” seria o espaço vazio onde o pintor interviria com seu gesto para fundar a expressão que elevasse aquela tela ao estatuto de arte. Desmentindo essa trajetória, Willys de Castro garante que o branco ali é o próprio propósito da pintura. O que está sendo exposto é justo essa dualidade que precisamos enfrentar no aprofundamento do conceito de imagem, quando a imagem prescinde desse enfrentamento fatal com o seu medium.

O esforço a fim de sublimar o objeto de material artístico, tem o principal desígnio de encontrar o ponto em que as propriedades de ambos [idéia geradora e brutalidade da matéria] entram em concerto, transcendendo da opacidade da condição de coisa para a transparência da apreensão de ordem fenomenológica (DE CASTRO, 2005: 154).

Assim, enquanto a forma da pintura se entrega ao recebimento frontal do olhar, a forma tridimensional da escultura tenta se ocupar da dimensão tátil da imagem, oferecendo um escoamento da visão ao entorno da coisa vista; o volume da peça nos vem declarar de que se trata também de um corpo. Como se a história não pudesse comprovar de fato essa distinção essencial que há entre as imagens da pintura e as da escultura. A relação entre imagem e medium no contexto da História da Arte merece um pequeno espaço no correr destas linhas, porque diz respeito a um domínio cultural da imagem, e, talvez aí, uma antropologia encontre nesse trabalho um momento de reconhecimento dos mais significativos. Seguindo as palavras de Thierry De Duve:

The medium in its specificity is not simply a matter of physival constituents; it comprises technical Know-how, cultural habits, working procedures and disciplines – All the conventions of a given art whose definition is throughout historical – even more so that the self-critical (or self-referential, but better called reflexive) tendency of modernism is to take those conventions for subject-matter and to test their aesthetic validity. [O meio na sua especificidade não é simplesmente uma questão de constituintes fisícos; dispõe de know-how técnicos, hábitos culturais, procedimentos de trabalho e disciplinas – todas as convenções de uma determinada arte cuja definição é toda histórica – ainda mais considerando que a tendência autocrítica (ou auto-referencial, mas melhor ainda chamado de reflexivo) do modernismo é tematizar essas convenções e testar sua validade estética] (DE DUVE, 1990: 252).

Se o formalismo moderno reduziu à forma todo conteúdo das obras de arte, ele não pôde fazê-lo sem, contudo, emitir um julgamento de valor que definisse essa forma enquanto sustentáculo de uma suposta evidência de qualidade em detrimento das condições espaciais desses quadros, e a terceira dimensão, dessa forma, passa a ter uma conotação negativa. Nessa busca de uma forma pura revelada por uma construção artística historicamente fabricada, a arte não poderia se deitar no berço dourado da abstração sem que a planaridade (flatness) da pintura ganhasse um estatuto de centralidade; enquanto o medium se sobrepunha à imagem, a escultura se encontrava no limite (excedido) onde esse medium (picture) se tornaria um “objeto arbitrário”.

The essential norms or conventions of paiting are also the limiting conditions with which a marked-up surface must comply in order to be experienced as a picture. Modernism has found that these limiting conditions can be pushed back indefinitely before a picture stops being a picture and turns into to an arbitrary object. [As normas essenciais ou convenções da pintura também são os condições de limitação que uma superfície desenhada deve respeitar a fim de ser vivida como uma imagem. O Modernismo descobriu que estas condições de limitação podem ser reprimidas indefinidamente antes que uma imagem deixe de ser uma imagem e se transforme em um objeto arbitrário] (DE DUVE, 1990: 246).

De Duve, em seu ensaio “The monochrome and the Blank Canvas” fala justamente de uma resistência que o modernismo, especificamente o modernismo de Greenberg, mostrou ao se deparar com a nova realidade da arte em obras de artistas como Frank Stella e nas obras dos minimalistas, que se desfazendo das convenções limites da pintura levaram as suas obras ao patamar indeterminado de “objetos”.

Esse, no entanto, não é simplesmente o caso do Objeto Ativo de Willys de Castro. Ao colocar sobre a superfície de seu objeto uma tela rigorosamente pintada, o que ele faz é justamente reafirmar o conteúdo cultural e histórico de sua obra, definindo para o domínio de seu medium uma imagem que não pode ser descolada. Estando, ainda, impregnada de uma subjetividade (individual e coletiva). Portanto, menos que um compromisso com o revolucionário, no contexto do Objeto Ativo havia um compromisso com o caráter público e institucional da imagem, ao que a simples constatação da nova realidade dos monocromáticos, na Arte Moderna, não poderia reduzir o entendimento desse momento singular na história que é o Objeto Ativo. É, de toda forma, significativo para a história da Arte Moderna essa relação tão geograficamente desconectada que a arte construtiva desenvolveu no contexto das Américas. De um lado a figura de Greenberg, cujo formalismo ascético direcionou para uma redução do estatuto da arte ao limite de um conteúdo formal que dizia respeito quase que exclusivamente ao domínio da pintura e, como a pintura, por sua vez, procurava um lugar de competência exclusiva sua – a bidimensionalidade.

Flatness was unique and exclusive to that art... Flatness, two-dimensionality was the only condition paiting shared with no other art, and so modernist paiting oriented itself to flatness as it did to nothing else. [Planaridade foi única e exclusiva para aquela forma de arte... Planaridade, bidimensionalidade, foi a única condição que a pintura não compartilhou com nenhuma outra forma de arte, e assim a pintura modernista se orientou para a planaridade de um tal modo como não fez para mais nada] (DE DUVE, 1990: 250).

De outro lado, encabeçada por Frank Stella, a criação dos objetos dos minimalistas que, conduzidos por um sentimento de repulsa ao enclausuramento formalista, viram-se no cerne de uma ruptura ostensiva com a tradição dos suportes.

These works – and there are many others – depart from the two-dimensionality of painting by adding a three-dimensional element to it. They deliberately seem to transgress the limit where, according to Greenberg, a picture stops being a picture and turns into an arbitrary object. Moreover they claim this arbitrariness as a quality in itself. [Estas obras - e há muitas outras – partem da bidimensionalidade da pintura, adicionando-lhes um elemento tridimensional a elas. Elas parecem deliberadamente transgredir o limite onde, de acordo com Greenberg, uma imagem deixa de ser uma imagem e se transforma em um objeto arbitrário. Além disso, eles alegam essa arbitrariedade como uma qualidade em si.] (DE DUVE, 1990: 248).

E no centro o recorte conciliador de Willys de Castro que através de uma confusão estratégica – e, talvez, não conflitante – entre os suportes da pintura e da escultura nos leva ao ponto onde um a posteriori do medium não pode ser entendido como a experiência fundamental. A imagem, então, parece ser um conceito que ultrapassa esse domínio específico que Greenberg acreditava constituir a pintura.

Ora, se é justamente esse positivismo moderno que se preocupou com o estabelecimento de competências específicas para tantas áreas do conhecimento como a Teoria da Arte ou a Antropologia, o que aqui se acredita revelar é que estudar um objeto tão evasivo quanto o Objeto Ativo de Willys de Castro é, por si só, em sua natureza crítica e anti-convencional, extrapolar os limites de uma “Teoria da Arte” e penetrar sensivelmente no espaço de uma “Antropologia da Imagem”. Talvez, por isso, tenha eu me reservado ao direito de circunscrever o conceito de imagem através de um recorte sob o qual objetos aparentemente tão desconectados tomam o lugar da análise.

A Fotografia Como Religião, A Arte Como Crença

Na busca pela sua Antropologia da Imagem, Hans Belting procura estabelecer que o universo da imagem não coincide perfeitamente com o universo da arte. Eis porque, para ele, falar de imagem necessitaria de um discurso “levemente diferente”3. Ora, a expectativa aqui será também, então, levemente diferente. Sem incorrer nos abusos de uma linguagem peremptoriamente neutra, para mim, é tão válido falar de imagens através da arte, quanto falar de estruturas familiares através da antropologia. Supondo todas as realidades como de alguma forma construídas, nem mesmo uma imagem pretensiosamente cabal do mundo pode ser apresentada sob um discurso absolutista ao ponto que o próprio Merleau-Ponty tratava seu objeto de entendimento a partir dessa desconfiança, quando atribuía a todo objeto visto o princípio de uma “fé perceptiva” (MERLEAU-PONTY, 2005: 96-104).4

Da mesma forma que o Objeto Ativo, as fotografias de Abbas Kiarostami tem muito a nos dizer sobre a imagem. As fotografias de Kiarostami são sempre fotografias de paisagem. São, como bem definiu Youssef Ishaghpour, “imagens da natureza sem homens, revelando-se ao olhar de uma solidão essencial em busca de absoluto.” (ISHAGHPOUR, 2004: 89) E, de fato, Kiarostami não estava tão preocupado com a fotografia, pois que era a imagem o verdadeiro objetivo de seu gesto. Kiarostami recorre frequentemente ao enquadramento de árvores – muitas vezes uma só arvore isolada na colina – na paisagem desértica que remete diretamente a uma vivência particularmente geográfica de sua origem iraniana.

Certo dia em que não tinha nada o que fazer, comprei uma câmera Yashica bem barata e tomei o caminho da natureza. Eu queria me confundir com ela. Ela me conduzia. [...] Minhas fotografias não são resultado de meu amor à fotografia, mas do amor que dedico à natureza (KIAROSTAMI apud ISHAGHPOUR, 2004: 89).

Dessa passagem, extraímos o que realmente nos interessa das fotografias de Kiarostami. O desprendimento que tinha do dispositivo que utilizava para captar as imagens é justamente o resultado dessa separação muitas vezes idealista que diz respeito ao domínio do corpo (consciência) mais que ao domínio do medium.

Para quem nasceu em um apartamento e está habituado aos grandes edifícios, aos carros, aos engarrafamentos, aos túneis, à linguagem publicitária e cuja vida se passa sob um céu cinzento e encoberto a natureza tem uma significação inteiramente diversa. Em minha opinião essa natureza é o oposto da natureza humana e de suas necessidades (Ibidem).

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Abbas Kiarostami

É esse “inteiramente outro” que Ishaghpour suscita das palavras de Kiarostami como a qualidade sugestiva da imagem da natureza enquanto tema (subject matter) que Kiarostami coloca - quase como um pintor - em suas fotografias. A imagem da arte, então, não pode estar livre de significados, ela não é uma imagem pura. Ora, mas a imagem da percepção também não é. Ela não vai diretamente da coisa aos olhos, como se nada na passagem pudesse significar ou transformar-se:

Meu corpo, como encenador da minha percepção, já destruiu a ilusão de uma coincidência de minha percepção com as próprias coisas. Entre mim e elas há, doravante, poderes ocultos, toda essa vegetação de fantasmas possíveis que ele só consegue dominar no ato frágil do olhar (MERLEAU-PONTY, 2005: 20).

Falar da imagem através da arte é perfeitamente legítimo para uma antropologia da imagem, porque nem aqui, nem alhures, existe essa instância precisa em que a imagem natural é ela mesma independente de qualquer construção ou intencionalidade. “A natureza não tem nada de natural: ela é uma função da cultura, essencialmente quando se retorna a ela para redescobrir as fontes.” Seguindo as palavras de Ishaghpour, que continua dizendo:

Uma vez que uma paisagem só tem realidade para aquele que a contempla – coisa bem mais rara do que se pensa -, não é de estranhar que a paisagem tenha sido inventada por citadinos e pintores [...] Dizia Cézanne que ‘entre camponeses, bem, algumas vezes duvidei que soubessem o que é uma paisagem, uma árvore (ISHAGHPOUR, 2004: 91).

A paisagem aqui é uma árvore que repousa intocável na terra seca dos altos planaltos do Irã. Estampada no medium preto e branco da fotografia, a imagem da árvore só é visível porque destoa de todo aquele branco que parece emanar uma iluminação quase espiritual da terra infecunda daquela natureza expansiva. A imagem da árvore coincide ali com sua própria sombra (imago); é a ausência de luz, e representa o ser pontual que sobrevive sob o espaço iluminado de uma natureza quase intolerante; de uma luz autoritária que se sobrepõe a tudo. Há que se considerar, então, que não seja “por acaso que, há muito tempo, uma religião da luz nasceu nesses planaltos e montanhas” (ISHAGHPOUR, 2004: 93).

A abstração metafísica que tinge, ao que se diz, a espiritualidade iraniana, com sua porção de irreal, de distanciamento, talvez provenha dessa elevação, como se o mundo fosse desde já uma imagem imaterial, suspensa um pouco mais alto, diante de sua própria materialidade (Ibidem.)

A sombra, dessa forma, carimba sobre a percepção um significado de negação que é tão iluminador quanto a positividade da luz. Ela se manifesta de forma a tornar visível o corpo do objeto (Objeto Ativo) e é, ainda assim, uma presença fantasmática, que se erige sobre a condição de que o branco não pode declarar em termos absolutos a sua transparência. A neutralidade do branco, dessa forma, se perde na medida em que é esse mesmo branco que impede a passagem de luz e produz essa forma de presença ausente que é a sombra. Em todo caso, quando a luz consegue atingir toda a superfície desse objeto, equilibrando os vetores de luz que incidem sobre sua presença materializada numa sala de museu, o branco novamente se mostra inerte e se dissolve na neutralidade moderna coincidindo – apesar da projeção no espaço – com o branco perene das paredes do museu. É, assim, de se supor que o museu para Willys de Castro seja como a natureza que envolve a árvore de Kiarostami. Eis porque sua crença no racionalismo moderno se revela um valor cultural tanto quanto a espiritualidade que Kiarostami depositava na sua relação com a natureza.

Ao triângulo essencial de Belting formado pela imagem, pelo medium e pelo corpo, adicionemos esse quarto componente histórico-cultural, que também não se pode dissociar – porquanto esteja dissolvido no processo como um todo - nem do medium, enquanto produto da técnica, nem da imagem ou do corpo que tantas vezes parecem habitar o pretensioso patamar de “instâncias naturais”.

Contudo, o que merece exaustiva atenção ao final desse exercício diletante é o entendimento de uma antropologia – aqui, referentemente, uma antropologia da imagem – menos como um domínio específico de determinados objetos de estudo do que como um esforço em nome de um conhecimento decisivamente amparado nos limites de uma experiência essencialmente humana. Se é que, assim, e a partir daí, seja possível um entendimento com respeito a uma verdadeira “natureza humana”, como o próprio Kiarostami parecia acreditar: uma natura naturata do homem em oposição a uma natura naturans da natureza.

 

Referências

BELTING, Hans. “Por uma antropologia da imagem”. Revista Concinnitas n. 8, Rio de Janeiro, 2005.

BRANDÃO, J. S. Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991.

CONDURU, Roberto. Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

DE CASTRO, Willys. “Objeto Ativo”. Em, Willys de Castro. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

DE DUVE, Thierry. “The Monochrome and the Blank Canvas”. Em, Reconstructing Modernism: Art in New York, Paris, and Montreal 1945-1964. Massachusetts: The MIT Press, 1990.

ISHAGHPOUR, Youssef. “O real, cara e coroa”. In: Abbas Kiarostami. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

LICHTENSTEIN, Jaqueline (org.). A Pintura - vol. 5: Da imitação à expressão. São Paulo: Ed. 34, 2004.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2005.

 

 



Notas

1 Traduzido do termo inglês gaze.

2 Título da Obra de Damien Hirst.

3 Ver BELTING, Hans. Por uma antropologia da imagem. In: Revista Concinnitas n. 8. Rio de Janeiro, 2005.

4 Ver MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BRUNO MELO MONTEIRO é graduado em Produção Cultural pela Universidade Federal Fluminense e mestre em História e Crítica de Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

BRUNO MELO MONTEIRO is graduated in cultural production by Fluminense Federal University and a master's degree in art history and Criticism by the University of the State of Rio de Janeiro.