ANNE
BOGART
ENTREVISTADA1
POR CLAUDIA MELE, BETH LOPES
E MATTEO BONFITTO
Anne Bogart
(SITI Company e Columbia University, EUA)
Tradução de Isabel Tornaghi
Resumo
Essa entrevista apresenta alguns aspectos
centrais do trabalho da diretora Anne Bogart com a SITI Company, tais como o
papel da composição no processo de criação e o lugar da improvisação. Discute-se
ainda a relação entre a arte e a ciência, o interculturalismo e a interdisciplinaridade.
Anne Bogart analisa a estreita relação entre o ensino, a pesquisa e a criação
artística, situando seu trabalho em um contexto histórico.
Palavras-chave | Anne Bogart |
improvisação | composição |
interdisciplinaridade | interculturalismo
Imagem 1: Anne
Bogart. Foto: Michael Brosilow.
Matteo Bonfitto: Em que nível a composição é explorada
durante os ensaios das peças dirigidas por você?
Anne Bogart: Ah, no começo. Em outras
palavras, é a maneira de começar. Porque para você começar, você tem algumas
ideias, […] você imagina qual o universo da peça. O que eu faço é chegar no
início do processo de ensaio com toneladas de material de pesquisa, como todo
mundo faz. E eu falo cada ideia que já pensei, todas elas, toda mera noção,
cada ideia estúpida ou boa - basicamente, é "botar tudo para fora". A
partir desse momento, o trabalho de composição vira uma maneira para os atores,
e às vezes para a equipe técnica também (cenógrafo, figurinista, iluminador), começarem a fazer o
seu trabalho; não necessariamente “na ordem” da peça, mas para perceber as ideias e
começar a criar um mundo usando tempo e espaço - de modo que é cedo, é
principalmente no início. É um tipo de trabalho de base. É um modo de dizer: -
“aqui temos muitas ideias intelectuais; como fazer para transformá-las em
teatro, em ideias poéticas?” Portanto, é um uso muito prático.
MB:
Ok. Que tipo de materiais você usa nesse processo de composição?
AB: Depende do projeto, por exemplo, eu
estava trabalhando nas fotos do Hotel
Cassiopéia, que é sobre o artista norte-americano Joseph Cornell. Não sei
se você conhece a obra dele, ele fazia trabalhos em pequenas caixas. Então,
você literalmente pega os objetos com que ele trabalharia, ou adereços, ou
pedaços de textos que talvez você esteja pensando em usar... Ou talvez eu
dissesse: - “como se faz para cair sem bater no chão? Vai, tenta entender isso
em uma composição.” Ou: - “de que 22 maneiras uma escada pode ser usada?” Ou...
“Como você pode andar para trás no tempo?” Esse tipo de ideias. Depois é ver o
que os atores trazem como solução para as ideias intelectuais que, em seguida,
tornam-se ideias físicas genuínas.
Claudia Mele: Existe algum espaço para
improvisação nas suas peças?
AB: Nós não gostamos, mas quando
trabalhamos com o dramaturgo Charles Mee – ele é um membro da companhia
– ele sempre quer que a gente faça Viewpoints.
Ele costuma escrever nas suas peças: “Aqui é onde vocês fazem Viewpoints, aqui é onde vocês improvisam”. E nós sempre dizemos
não, não, não! Porque nós somos todos malucos por controle, não gostamos de
improvisar diante de uma platéia, e nós gostamos de ter tudo [marcado]. Mas uma
vez nós fizemos isso por ele, na mesma peça de
que eu estava falando, Hotel Cassiopéia,
aquela sobre Joseph Cornell. Tivemos uma sessão
que foi improvisada, mas fora isso tudo é muito, muito, muito definido. Porque
a ideia é que se você definir as coisas com cuidado, então você tem que
encontrar a improvisação dentro daquilo. Você se diz - “sempre, neste
momento, minha mão está aqui”, mas um tempo pode mudar, então [a respeito da
improvisação] a questão é sempre: o que permanece igual e o que é diferente?
MB: Então, é
uma espécie de nível oculto de improvisação?
AB: É
exatamente isso. Então, a interpretação [varia], por exemplo: a emotividade é
sempre diferente; o tempo é sempre diferente. Mas o quê, o corpo, será o
mesmo, embora o ataque seja muito diferente – então é exatamente isso.
MB: Você sabe o ponto de partida e o
ponto final, e aí a viagem pode ser uma espécie de [improvisação]...
AB: O que poderia ser: o ponto de
partida [está] aqui, e [o] ponto final aí. Então, entre aqui e aí, há um monte
de variações. Mas se tem um público assistindo eles vão dizer sempre: - “ah, é
a mesma peça – parece que tem algo diferente, mas eles não estão fazendo
nada de diferente; mas é diferente”.
MB: Depois de
ler seus livros e refletir sobre as suas peças e a formação que você oferece, é
possível perceber que o interculturalismo permeia seu trabalho em três níveis:
na sua companhia; no processo explorado por você, por exemplo, a associação
entre as técnicas Suzuki e Viewpoints; e através da presença de
atores de culturas diferentes nas suas oficinas e nas oficinas conduzidas pelos
seus atores. Então, baseado nisso, como você vê o interculturalismo no seu
trabalho?
AB: Bem, eu li
recentemente que o único jeito de não ficar velho é se confrontar
constantemente com coisas que não fazem o menor sentido. E eu estou interessada
nisso, já que estou ficando velha. Em outras palavras, o ser humano tende a
suposições e definições – por isso, ser intercultural é um ato de sobrevivência como
artista. Isso significa que cada peça deve ter algo que não é conhecido, seja
uma pessoa, ou uma ideia, ou uma língua que tenha sido incorporada. Para mim,
torna-se cada vez mais importante, como uma escolha consciente, trabalhar
interculturalmente. E isso pode se manifestar de muitas maneiras. Pode ser
intercultural no sentido de países diferentes, mas também pode ser no sentido
de tipos de profissão diferentes, por exemplo, que um físico quântico se
envolva em um trabalho, ou que a temática seja algo com que você discorde -
então é um tipo de interculturalidade diferente. Isso se torna central para a
abordagem, para que não se envelheça, eu acho.
MB: Na verdade,
seu trabalho também é muito interdisciplinar, você pode falar um pouco sobre
isso também?
AB: Sim, tem
isso também. Eu estou interessada no teatro que existe no momento em que você
diz: “espera um minuto isso não é teatro, isso
é ópera”, ou “isso não é teatro, é dança”, ou “isso não é teatro, é música”, e quando
[...] Eu sempre tenho a impressão de que na fronteira onde duas disciplinas se
encontram tem uma área em ebulição que é muito viva. Quer dizer, o que é
maravilhoso no teatro é que ele pode ser tantas coisas, pode ter tantos tipos
diferentes de relação com o público. Então, eu acho que é sempre importante em
cada projeto trabalhar com alguém de outra disciplina, ou trabalhar com um
assunto que é interdisciplinar.
MB: Eu li no
seu blogue que você também está interessada em neurociência. Para você, esse
tipo de relação entre arte e ciência é importante?
AB: Sim, muito
mesmo. Principalmente, porque eu acho que artistas e cientistas estão
trabalhando, em alguns aspectos, nas mesmas questões. Por isso, se você
observar historicamente e olhar para, digamos,
1915, que é um momento muito importante, você tem ao mesmo tempo [...] a
descoberta do Princípio da Incerteza, por Werner Heisenberg, e a [publicação
da] teoria Geral da Relatividade [de Einstein], mas no mesmo tempo você também
tem o Cubismo de Picasso - de repente, a maneira como se pensa sobre arte e experiência [mudou].
Naquela época, no teatro também se fez algumas [descobertas]... Eu acho que uma das
razões pelas quais Viewpoints é
interessante, e pela qual as pessoas se interessam por Viewpoints, é porque o Viewpoints
é realmente um reflexo de uma nova maneira de se criar, e uma nova maneira de
se viver, que é não-hierárquica, da mesma forma que um computador ou um
hipertexto é não-hierárquico. Portanto, ele é um reflexo de certas mudanças
culturais que estão acontecendo - que os cientistas estão identificando, e os
artistas estão encontrando formas para essas coisas.
MB: Muito
interessante.
Beth Lopes: Qual é a sua percepção sobre a divulgação das suas
práticas através das oficinas internacionais da SITI Company?
AB: Bem, é uma
rua de mão dupla. Porque toda vez que trabalhamos internacionalmente nós
mudamos, porque aprendemos alguma coisa. Então é um pouco egoísta... para nos
desenvolvermos como artistas precisamos de relações internacionais, e
precisamos ser contestados a respeito das nossas próprias ideias. Eu acho que
cada vez que você traz aquilo a que você está acostumado no seu treinamento,
por exemplo, para um ambiente onde aquilo significa algo diferente, isso nos
permite olhar de um jeito diferente. Quero dizer, eu sempre acho que quando
estou neste país [Estados Unidos] eu não sei quem eu sou, porque isso é tudo
que existe, mas se vou para o Japão posso realmente ver o que significa ser
deste país. Da mesma forma, se eu levar o meu trabalho, ou formação, para um
contexto diferente: [por exemplo] duas semanas atrás eu trabalhei com
adolescentes, eu nunca tinha feito isso antes, foi fantástico. Eu aprendi mais
do que eles. Eles são como uma cultura diferente e eu fui muito nutrida por
essa circunstância. É por isso que a noção de intercâmbio internacional é
fundamental para a nossa missão, para o que estamos fazendo.
MB: Existe
alguma ligação entre seu trabalho como diretora e seu trabalho como professora?
AB: Com
certeza. Claro. Até o fim do comunismo, na Rússia, você poderia ter dois anos
para ensaiar uma peça, certo? Agora talvez sejam dois meses, mas aqui nós temos
três semanas, e é só isso! Então você não pode fazer investigação dentro do
processo de ensaio. O ideal seria se nós tivéssemos dois anos para trabalhar em
uma produção - eu não precisaria ser professora, ou seja, eu não teria que
colocar a pesquisa aqui e ensaio ali. Então, como o nosso período de ensaio é
tão curto - por razões financeiras - eu preciso da mesma forma de um tempo para
fazer pesquisa. O trabalho como professora é o que me permite passar um tempo
com os alunos nesse tipo de investigação. Eu também pensei - tem um equilíbrio
- que [...] vem de uma noção que os médicos cirurgiões têm, eles dizem: um
terço estudo, um terço prática, um terço ensino. E quando eu ouvi isso eu
pensei: - Oh! Isso é o que eu preciso também! Eu preciso de um terço do tempo
para estudar, um terço do meu tempo para prática, e um terço do meu tempo para
ensinar. Se isso fica embaralhado, se essa proporção fica: dirigir muito e não
dar aulas o suficiente, eu não fico tão saudável. Manter tempo o suficiente
para o estudo, tempo suficiente para dirigir e tempo suficiente para ensinar [é
primordial] – esses tempos têm de se manter em equilíbrio uns com os
outros.
MB: Você pode
situar o seu trabalho dentro do teatro contemporâneo? Eu sei que é uma pergunta
complexa.
AB: Quando fui
para a faculdade, estudei o que é hoje chamado de “estudos de performance”, na
NYU [New York University] - chamava-se na época “crítica de teatro” ou algo
assim. Mas eu sempre me interessei pela relação entre:
de onde o teatro vem e para onde o teatro está indo, não só historicamente, mas
antropologicamente e sociologicamente também. Meu trabalho tem sido pensar a
respeito do passado de um jeito que me faça entender como as formas estão
mudando. Assim, a minha missão na vida é alterar o DNA do teatro, transformá-lo
de alguma maneira, e contribuir para esse desenvolvimento. É aí que se situa
muito do nosso trabalho, é a razão pela qual às vezes você diria a respeito da
SITI Company que é uma companhia que trabalha para outras pessoas de teatro,
que ela lhes serve de inspiração. Mas tudo bem, porque é para ser assim mesmo,
a gente pensa a respeito dessa área, para onde
o teatro está indo culturalmente...
MB: Em termos
de investigação sobre a linguagem do teatro ou em experimentação, você acha
que, com a sua companhia, você tenta fazer uma pesquisa sobre a hibridação, em
linguagens híbridas, também?
AB: Você quer
dizer literalmente, línguas faladas?
MB: Não, em
termos de códigos teatrais.
AB: Sim, a
resposta é sim. E isso através de uma relação com a antropologia, a sociologia,
e as formas tradicionais em que o teatro é comunicado e como essas formas vão
se metamorfoseando. Refiro-me a como a percepção está mudando agora por causa
da tecnologia, e o que isso significa em termos de teatro.
MB: Você está
interessada em ultrapassar limites também, porque, por exemplo, essa
experiência com a companhia da Martha Graham2...
Você está interessada em romper limites, a não definir o que é teatro, o que é
dança, o que são outros tipos de gêneros teatrais?
AB: Sim!
MB: Ok, então a
última pergunta: você tem consciência da ressonância produzida no Brasil pela
sua abordagem de Viewpoints, e você
estaria disposta a conduzir um workshop no Brasil?
AB: Não e sim.
[Risos] – Não, a Roberta Pereira me diz, certo, que as pessoas prestam
atenção no Brasil. Não tenho a menor ideia, mas adoraria, sim.
MB: Porque o Viewpoints, [...] Suzuki também, mas
principalmente o Viewpoints tem uma
ressonância enorme no Brasil.
AB: Bem, é tão
legal que muitos brasileiros vêm treinar com a gente, isso é fantástico, então
estou me dando conta disso. Mas fico feliz por saber, obrigado pela informação.
Notas
1 Entrevista realizada por
Claudia Mele, Beth Lopes e Matteo Bonfitto com a diretora Anne Bogart, em
11/02/2010, na sede da SITI Company, em Nova Iorque, durante o curso de inverno
2010 de Suzuki e Viewpoints, ministrado pelos atores da Companhia.
2 Em 2010, Anne
Bogart e a SITI Company foram convidadas para criar uma peça – American
Documents – para a companhia de dança moderna Martha Graham Dance Company. A peça é baseada na obra homônima de
Martha Graham de 1938. [N.E.].
ANNE
BOGART é graduada em Artes pelo Bard College (1974), com Mestrado em Artes pela
New York University's Tisch School of the Arts (1977). Fundou
o Saratoga International Theatre Institute (SITI Company) com o diretor japonês
Tadashi Suzuki, em 1992.
Recebeu inúmeros prêmios, tais como: Obie award (duas vezes), Bessie
award; e foi bolsista da Guggenheim. Atualmente é Profa. Me. da Columbia University.
Dirigiu para a SITI Company, entre outros: Radio Macbeth; Hotel Cassiopeia;
Death and the Ploughman; La Dispute; Score; bobrauschenbergamerica; Room; War
of the Worlds; Cabin Pressure; The Radio Play; Alice's Adventures; Culture of
Desire; Bob; Going, Going, Gone; Small Lives/Big Dreams; The Medium; Hay
Fever e Private Lives; Miss Julie; e Orestes. É autora de
vários livros que concernem o trabalho do ator, como: A Director Prepares, The Viewpoints Book e And Then, You Act.