O TRABALHO DO ATOR E SUA ORIGEM ESPIRITUAL

THE CRAFT OF ACTING AND ITS SPIRITUAL ORIGINS  

Adriana Maia

(UNIRIO)

Resumo

Este artigo pretende detectar as origens do trabalho do ator investigando estes primórdios em práticas sagradas e rituais religiosos. Utilizei como referência os seguintes textos: Bailarino, pesquisador e intérprete de Graziela Rodrigues, As máscaras mutáveis do Buda dourado de Mark Olsen, O ator como xamã de Gilberto Icle e O ato de incorporar de Peter Brook.

Palavras-chave | origem | ritual | transmissão | treinamento e prática

Abstract

This paper intends to investigate the origin of the acting in some religions procedures and sacred rituals. I’ve used as a reference the following texts: Dancer, researcher and interpreter by Graziela Rodrigues, The golden Buddha changing masks by Mark Olsen, The actor as a shaman by Gilberto Icle and The act of possession by Peter Brook

Keywords | origin | ritual | transmission | training and practice 

 

   

      


Em seu livro História mundial do teatro, Margot Berthold escreve que o teatro é tão antigo quanto a humanidade. Sabemos da existência de formas primitivas teatrais desde os primórdios do homem. O ato de se transformar numa outra pessoa é uma prática ancestral da expressão humana. O instinto da representação já aparece no homem primitivo quando se comunica com um companheiro, através de gestos, com o intuito de passar alguma informação (a descoberta do fogo, o ato da caça, o gesto de beber água, etc.). Nestas pequenas cenas já vemos o binômio fundamental do teatro — ator e espectador — ainda que o teatro propriamente dito (interpretação, encenação, expressão artística, estética e etc.) ainda não possa ser localizado. No entanto, podemos reconhecer o instinto do jogo e do fato cênico que são encontrados na origem da espécie humana.

A forma e o conteúdo da expressão teatral são condicionados pelas necessidades da vida e pelas concepções religiosas. Dessas concepções um indivíduo extrai as forças elementares que transformam o homem em um meio capaz de transcender-se e a seus semelhantes [...] O homem personificou os poderes da natureza. Transformou o Sol e a Lua, o vento e o mar em criaturas vivas que brigam, disputam e lutam entre si e que podem ser influenciadas a favorecer o homem por meio de sacrifícios, orações, cerimônias e danças [...] Não somente os festivais de Dioniso da antiga Atenas, mas a Pré-história, a história da religião e o folclore oferecem um material abundante sobre danças rituais e festivais das mais diversas formas que carregam em si as sementes do teatro (BERTHOLD, 2000: p.2).   

Os laços que unem o teatro às crenças religiosas, portanto, se estabelecem desde as origens do homem. No Egito, na Grécia, na Pérsia, na Suméria e em todas as religiões tribais xamanísticas, o sacerdote poderia ser confundido com um ator e, tanto um como o outro, tem como objetivo sedimentar um comportamento que extrapole os limites do humano para alcançar o metafísico. Qual teria sido o formato deste teatro ancestral e até que ponto podemos traçar um paralelo entre as funções dos sacerdotes e o ofício dos atores é tema deste trabalho.

Em geral, sabemos que os sacerdotes oficiantes das cerimônias religiosas primitivas se exibiam pintados e trajando vestimentas especiais. Este sacerdote/ator primitivo que tem uma função religiosa na tribo vai se apresentar como que possuído pela entidade da qual é instrumento, conforme ainda hoje podemos encontrar nas diferentes religiões de origem africana no Brasil como a umbanda, a quimbanda e o candomblé. Este sacerdote/dançarino mascarado – um bruxo xamanista – por intermédio de quem os deuses se comunicavam, era alguém que executava comportamentos incomuns, além do humano. Um ator/sacerdote primitivo, veículo e instrumento de mensagens metafísicas, que atingiam fiéis/espectadores, que se exibia em uma cerimônia religiosa carregada de teatralidade.

Um xamã – porta-voz dos deuses – dançarino mascarado, que afastava os demônios, assim como o ator de hoje que traz vida à obra do poeta, tanto um como o outro, perseguem um mesmo objetivo, que é a apresentação de uma outra realidade para fiéis (no caso religioso) e espectadores (no caso artístico). A diferença reside justamente na dinâmica da apresentação: o ator necessita de uma plateia, já os iniciados entregam-se a um mestre, a uma comunidade específica ou até mesmo passam por iniciações solitárias.

No livro As máscaras mutáveis do Buda dourado o ator/pesquisador Mark Olsen vai nos contar a história da atuação e do ator traçando a linha espiritual que perpassaria por ela. Já de início Olsen joga com a clássica questão: o que é atuar? Há diversas formas de se responder a esta pergunta. Atuar pode ser representar todos os papéis e responder a eles, ou ainda, simular, fingir, persuadir, convencer, e a escolha de um verbo vai determinar a maneira pela qual queremos olhar para este ofício. Segundo Olsen, a definição cunhada por Richard Schechner é a que mais se aproxima de seu ponto de vista. Schechner elabora a ideia de que o ator ao atuar está “suprindo a sociedade com um ingrediente estético primário e ritualístico denominado comportamento restaurado” (OLSEN, 2004: p.3). Mas o que seria isto? Olsen nos explica:

Comportamento restaurado significa um comportamento que, simultaneamente, é simbólico e reflexivo. Além disso, é uma representação do EU comumente percebida como imóvel e fixa, isto é, sendo de fato um papel ou conjunto de papéis. Resumindo, os atores ressaltam o aspecto efêmero da personalidade ao mesmo tempo em que reafirmam a unidade humana essencial (OLSEN, 2004: p.3).       

Para Schechner, o comportamento restaurado é um conceito que pode ser aplicado para todos os tipos de representações desde o xamanismo e exorcismo até o transe, desde o ritual até a dança e o teatro, desde os ritos de iniciação até os dramas sociais; é uma das principais características da representação. O comportamento restaurado é simbólico e reflexivo, o que “significa fixar, transformando em teatro o processo social, religioso, estético, médico e educacional. A representação significa: nunca pela primeira vez. Isso significa: da segunda até n vezes” (SCHECHNER apud BARBA, 1995: p.206). Grosso modo, representar, portanto, significa repetir um comportamento. Podemos encontrar este comportamento repetido tanto no teatro (ensaios, temporada) quanto nos rituais religiosos, como explica Schechner:

Nem a pintura, escultura ou escrita mostram o comportamento no momento em que acontece. Mas, milhares de anos antes dos filmes, os rituais eram feitos de sequências de comportamento restaurado: ação e conservação da ação coexistiam no mesmo acontecimento. Um grande conforto emanava das representações rituais. Pessoas, ancestrais e deuses se reuniam num “eu fui”, “eu sou” e “eu serei” simultâneos. Essas sequências de comportamento foram repetidas muitas vezes. Mecanismos mnemônicos asseguraram que as representações estavam “certas” – transmitidas através de muitas gerações com pequenas variações acidentais. Ainda hoje o terror da “estreia” não provém da presença do público, mas do fato de os erros, desta vez, não serem mais perdoados (SCHECHNER apud BARBA, 1995: p.206).        

Não é à toa que Mark Olsen elege esta definição para o conceito de atuação; a ideia do comportamento restaurado proposta por Schechner vai estabelecer forte ligação da representação teatral com rituais religiosos mostrando que princípios básicos do teatro se originaram deles como, por exemplo, a construção através da repetição e a transmissão de ensinamento feita pelo mestre (diretor/professor) para o discípulo (ator/aluno).

Os modelos de xamã e iogue exemplificam esta questão. Tanto um quanto o outro são alçados à condição de sábios após passarem por um treinamento rigoroso feito por mestres que ampliam uma aptidão reconhecida, para depois colocarem este saber a serviço da comunidade, sendo considerados os guardiões das lendas e mitos de suas tribos mediante suas atuações públicas como narradores.

Ainda segundo Olsen, é nas tribos primitivas, antes mesmo do marco grego dos ditirambos, que iremos encontrar o ator original: “o mais altamente qualificado dançarino, cantor, portador de máscaras e xamã da tribo” (OLSEN, 2004: p.7). Este xamã, espécie de sacerdote, transmutava-se fazendo a ligação entre dois mundos: o mundo misterioso do invisível e do incomum e o mundo ordinário dos seres visíveis. E para conseguir isto ele deveria possuir uma técnica bastante desenvolvida; “um largo espectro de talentos, inclusive a habilidade altamente importante da condução dos estados auto-induzidos de êxtase ou transes” (OLSEN, 2004: p.7).   

O historiador e antropólogo Mircea Eliade diz que o xamanismo é um fenômeno religioso mágico e não pode ser generalizado para todas as formas sagradas de rituais nas quais se encontram atividades de transe. O xamanismo, portanto, é um fenômeno específico onde a experiência extática é considerada uma instrução religiosa por excelência, “é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase. Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo = técnica de êxtase” (ELIADE apud ICLE, 2006: p.68).

A característica de encantamento que existe no xamanismo vai se manifestar durante o transe onde se acredita que o xamã cumpre uma viagem transportando sua alma para realizar ou uma subida aos céus ou uma descida aos infernos.

Mircea Eliade vai explicar que o transe no xamanismo não é uma dinâmica descontrolada e caótica, muito pelo contrário, a preparação e a iniciação dos xamãs necessitam de rituais didáticos para educar o principiante, e, no caso do transe, embora possa parecer algo desprovido de organização, na realidade é de uma enorme complexidade técnica, sem a qual não seria possível a realização dos rituais onde são praticados esses tipos de êxtase. É importante perceber que Eliade usa a palavra técnica, o que indica uma organização e um controle inserido no transe para que se possa atingir os objetivos sociais que vão fundamentar a sua existência. O mesmo acontece com o trabalho do ator: são necessários preparação e estudo para se atingir a maturidade do ofício.

Assim como Olsen, Gilberto Icle, em seu livro O ator como xamã, também vai se utilizar do xamanismo e da dinâmica do êxtase como uma metáfora para compreender um estado semelhante ao processo criativo do ator (mais especificamente no trabalho de clown); estado este chamado por ele de consciência extracotidiana. Entendendo-se consciência como algo que existe no trabalho prático do clown e que, primeiramente, é definido como razão e, também, como algo que pode ser abandonado ao longo de um processo criativo com o objetivo de se descobrir alguma coisa mais profunda, que saia do pensamento cotidiano, ou seja, o desvendamento de um outro tipo de “consciência” que habita o inconsciente. Icle vai mostrar, então, que o clown vai trabalhar com “configurações de consciência”: um estado racional aliado a uma dinâmica “irracional” (um despertar do inconsciente), que não podem estar em oposição, assim como não é possível se determinar os seus graus de energia.

Dito isso, Gilberto Icle vai se interessar pelo uso particular que o xamã faz de sua consciência, mais especificamente nas técnicas xamânicas do êxtase.

 No momento da atuação o pensamento se aquieta; mas isso não acontece com toda a razão. Apesar de não pensar, o ator usa a razão, pois o trabalho do ator é um trabalho de inteligência muito rebuscado. No entanto, aquele pensamento linear que funciona no cotidiano para guiar e medir nossas ações não conduz a êxitos, não permite estabelecer relações de presença com a plateia. Provavelmente similar ao que o zen-budismo classifica como não-atribuição, o estado em que se encontra o ator permite uma inteireza da ação a tal ponto que todas as divisões cotidianas entre corpo e mente, entre pensar e agir, ficam provisoriamente suspensas (ICLE, 2006: p.79).  

Para Icle, o ator se parece com um xamã realizando uma viagem para fora de si, “uma transcendência do corpo e da mente” (ICLE, 2006: p.79). E são várias as semelhanças cênicas entre uma cena de teatro e um ritual xamânico. Como um contador de histórias, o xamã se utiliza da mímica para “encenar” a história de sua viagem em direção aos Céus, sua descida aos Infernos e o diálogo que travou com os deuses. O xamã, também, pode lançar mão de bonecos ou até mesmo de técnicas como a ventríloqua para dar conta destes relatos. Usa figurinos especiais, adereços, objetos, música e até alguns efeitos de luz, além de realizar trocas de cena. Isto não é exatamente a descrição de uma performance teatral que estamos acostumados a assistir em um palco de teatro?

Gilberto Icle também chama a atenção para um fato bastante peculiar que ocorre na dinâmica do êxtase: o corpo ordinário deste homem desaparece para dar lugar a um corpo totalmente diferente, alheio a tudo que acontece ao “antigo” corpo. Um fato que ilustra isso é a suspensão da dor no ato do ritual. Quando o xamã abandona verdadeiramente o seu corpo ordinário e, “estando noutro lugar que não seu próprio corpo, não sente as dores cotidianas” (ICLE, 2006: p.71). Ele também menciona o caso de iniciados em determinados rituais primitivos “nos quais o praticante deve pisar sobre brasas ou fazer outras ações que envolvam a dor física, sem contudo estar sensível a ela” (ICLE, 2006: p.71). O mesmo vai acontecer com os atores. São inúmeros os relatos que falam de atores com febre, dores musculares, males de diversos tipos que ao entrar em cena abandonam este corpo cotidiano, que está enfermo, para habitar um “outro” corpo, o corpo da personagem, que, no caso, é imune às dores deste corpo ordinário do ator. Trata-se da dimensão extracotidiana existente no trabalho do ator, alcançada através de um estado extático, que “celebra com os observadores o resultado dessa viagem xamânica” (ICLE, 2006: p.71).

Outras semelhanças entre o trabalho do ator (clown) e a prática do xamanismo são apontadas. No caso deste trabalho, julgo que o mais interessante da questão levantada por Icle diz respeito à plenitude alcançada pelo ator em função deste estado extático. A experiência de ser transportado para fora de si, através da dinâmica do êxtase gera no interior do ator “um prazer muito intenso, de um deslocamento, um movimento em direção ao outro” (ICLE, 2006: p.69). Isto nada mais é do que uma imagem genuinamente xamânica, pois o que o xamã experiencia é “uma viagem de si para o mundo mítico-mágico, para o illud tempus” (ICLE, 2006: p.69). E esta dinâmica de plenitude que transporta o ator para fora de si, em combinação com um outro movimento inverso, que pode ser caracterizado como possessão, poderia ser uma síntese que envolve aspectos importantes do ofício do ator.

Mas o que vem a ser a possessão? Gilberto Icle vai definir a possessão como um “movimento em que os espíritos se apoderam do corpo do oficiante para se manifestar” (ICLE, 2006: p.70). Essa ideia de estar possuído, de personificação, de ser tomado por um ser exterior, sem perder o controle da situação, sem sombra de dúvida é o objetivo do trabalho de uma grande parcela dos atores ocidentais, pois segue uma tradição teatral que exige este tipo de estética. Assim como a própria dramaturgia que permeia essa opção estética que acaba conduzindo o artista a uma relação pouco distanciada entre ator/personagem. Cumpre notar, porém, que a ideia de possessão como metáfora do trabalho do ator nem sempre pode ser aplicada. Não é toda performance teatral que tem como fundamento a realização arraigada de um personagem; o ator pode atuar sem ter consigo a ideia da encarnação.

No livro Bailarino, pesquisador, intérprete de Graziela Rodrigues, a questão da encarnação vai ser explorada tendo como objeto de investigação a dinâmica da incorporação e desincorporação existente nas práticas religiosas brasileiras do candomblé e da umbanda. A pesquisadora vai se interessar por este tema para compreender melhor o que ela chama de “o processo de linguagem de um corpo pleno” (RODRIGUES, 1997: p.81).

Rodrigues não está preocupada em desvendar crenças ou religiões e, sim, em investigar o corpo em transe, quando se verifica uma mudança significativa neste corpo do médium e, também, quando esta mudança é crível pela sua atuação. Como ela diz: “não estivemos estudando espíritos, mas a pessoa encarnada” (RODRIGUES, 1997: p.81).

A investigadora percebeu em seu objeto de pesquisa que a dinâmica de incorporar e desincorporar tem como referência um corpo que está disponível para concretizar uma série de conteúdos e sentidos que vivenciam “uma saída de seu próprio eixo” (RODRIGUES, 1997: p.81). Mais especificamente, na incorporação existe um somatório de imagens que se juntam em apenas um corpo e, ainda, no desincorporar há um desdobramento, pois acontece o “ganhar corpo” e o “perder corpo”. Rodrigues (1997: p.81) explica: “observa-se metamorfoses, nas quais a plasticidade é um argumento irrefutável – nossos olhos vêem e por isso cremos que uma entidade está chegando a terra”.

Para que esta metamorfose se realize é necessário que o médium (umbanda) ou o “cavalo” (candomblé) se desbloqueie e ative uma sensibilidade não racional sem receios dos movimentos corporais que possam emergir. Graziela, então, vai comparar esta atitude a uma outra postura, completamente oposta, dos profissionais da dança. Para ela, este estado de sensibilidade buscado pelos médiuns ou “cavalos”, em geral, é bloqueado pelos bailarinos. O artista da dança parece ter receios em procurar caminhos não conhecidos, movimentos “desorganizados”, fora de padrões estéticos consagrados. Isto acaba por atrofiar o “músculo” da sensibilidade artística destes profissionais gerando, com isso, uma forma de expressão artística padronizada e fixa. Penso que o mesmo pode ser estendido em relação aos atores. A liberdade de expressão de um médium deveria ser uma referência a ser alcançada. A questão do medo e preconceito levantada por Graziela é uma barreira que também o ator enfrenta no momento de sua criação e de sua performance diante do público. O médium encarnado não se preocupa em acertar; ele se ocupa em dar vida à entidade. Assim deveria ser com os atores. No entanto, com receio de não agradar ou de executar algo “errado” durante sua performance o ator coloca barreiras, aposta no que é conhecido e acaba por represar sua sensibilidade artística. No filme Brook by Brook, de Simon Brook, Peter Brook vai comentar exatamente esta questão:

Quando um bom ator chega à maturidade, a riqueza de sua experiência de vida vai lhe permitir ser totalmente o personagem, que por sua vez, vai se nutrir com tudo que existe no corpo do ator, tomando posse dele. Se for possível conseguir remover ou reduzir o medo, então, o ator está apto a assumir os riscos de deixar a intuição funcionar. Se o ator está com medo, ele bloqueia a ação da intuição. Se o ator não está com medo então ele vai deixar fluir um gesto inesperado, uma entonação inesperada, um movimento e até uma atitude que não estejam sendo guiadas por uma razão lógica até uma determinada destinação. Quando você rompe com os padrões, o risco não é mais um risco e você pode nadar livremente (BROOK, 2001 - Tradução livre da autora).

Em sua pesquisa de campo Graziela Rodrigues vai descrever várias cenas de incorporação e desincorporação que assistiu em rituais de umbanda e candomblé. A partir disto, a investigadora tece reflexões acerca destes rituais, especificando os movimentos das partes do corpo como ponto de partida para se identificar cada “personagem” (entidade) que aparece nestes rituais. Como, por exemplo, os Exus que sempre surgem com os pés entranhados na terra: “os pés muitas vezes se fazem garras revolvendo a terra” (RODRIGUES, 1997: p.47). Ou, então, os pés de Oxum que se apresentam com maior sutileza, pois o seu movimento é de suspensão e “o solo é trabalhado pelos pés em pequenas porções como se o estivessem acariciando, denotam sensibilidade” (RODRIGUES, 1997: p.47). E, ainda, a Pomba-Gira que se utiliza de todo o apoio dos membros inferiores, pois costuma se sustentar na meia-ponta, uma característica de sua vaidade. Por causa disto, a Pomba-gira é dona de uma grande elasticidade e seus pés não têm limites na execução de movimentos. A pesquisadora vai descrever, também, o movimento e atitude de outras partes do corpo (mãos, tronco, bacia, joelhos, cabeça) no ato da encarnação que acabam por criar a forma concreta da entidade encarnada. É interessante notar que o médium ou o “cavalo” não sabe exatamente quais são os aspectos físicos da entidade e suas características emocionais, até o momento de incorporar a entidade, “mesmo que já a tenha visto em sonhos e em imagens mentais no estado de vigília” (RODRIGUES, 1997: p.82). Como explica Graziela: “o desenvolvimento da entidade irá ocorrer na medida em que houver sucessivos Incorpora e Desincorpora, o que quer dizer, pôr a entidade em união com seu “cavalo” para trabalhar” (RODRIGUES, 1997: p.82). Novamente podemos notar que o mesmo acontece com o ator. A construção de uma personagem é feita de forma gradual, no decorrer dos ensaios ou até mesmo na duração de uma temporada teatral. O corpo do ator vai se reorganizando para dar vida a uma personagem “quando a proposta é vivê-la em carne e osso a partir de um conteúdo vivencial” (RODRIGUES, 1997: p.83). Não é à toa que o pai-de-santo Raul de Xangô afirma que “o artista é um médium em potencial” (XANGÔ apud RODRIGUES, 1997: p.83).

Para finalizar, gostaria de ressaltar um aspecto observado por Graziela Rodrigues em seu livro, a respeito das diferenças que ocorrem com o médium ou “cavalo” quando a entidade é recebida pela primeira vez e quando já aconteceram outras incorporações no mesmo indivíduo. Para isto, ela vai colher o depoimento do umbandista Carlos Alberto da Costa. A dinâmica descrita por ele vai revelar que o ato de incorporar e desincorporar vai se desenvolvendo no médium até alcançar o seu estado de maturidade. Em comparação, podemos pensar numa analogia com o ator e a sua busca artística. 

Quando você começa a Incorporar, as Entidades vêm de forma bem brusca, sacudindo você, jogando você no chão. As pessoas têm que ficar te amparando, te segurando. Na medida em que você vai nesta coisa de Incorpora e Desincorpora, você vai fortalecendo os seus chackras, você vai fortalecendo as tuas energias e as tuas Entidades começam a se adaptar ao seu estado físico do dia-a-dia. Começa a ter uma ligação com a sua maneira de ser normalmente. O Espírito quando ele vem, vem muito agitado e com o passar do tempo, não só você vai se estruturando fisicamente para suportar este Espírito, como este Espírito vai se doutrinando e atuando de uma forma mais branda. Às vezes você tem Incorporação que as pessoas nem percebem que você incorporou. Porque, você se prepara fisicamente, psicologicamente e atua. Na verdade noventa por cento da Incorporação do Espírito ela se faz apenas na tua moleira ou Ori (cabeça). O Espírito quando começa a Incorporar, quando ele começa a prestar a caridade dele, ele vem como se fosse uma pedra bruta. O médium é que tem que ir lapidando, lapidando, lapidando, lapidando. Isto você não tenha dúvida, o médium é a peça fundamental de tudo (COSTA apud RODRIGUES, 1997: p.83).   

Em O ato de incorporar, Peter Brook vai olhar para os atores de uma maneira “mediúnica” que remete à exposição descrita acima. Segundo Brook, o ato de representar começa através de um pequeno movimento interior. Este impulso pode ser até imperceptível, mas durante os primeiros ensaios ele surge a partir de uma situação proposta e vai gerar um primeiro movimento. Para que este movimento percorra todo o corpo e seja manifestado, é necessário que exista um relaxamento total por parte do ator; seja este estado de relaxamento algo natural ou construído através do trabalho. Isto é o que vai distinguir os atores dos não atores: “o ator é um instrumento mais sensível e nele o tremor pode ser detectado” (BROOK, 1993: p.12). O ato de representar, segundo Brook, é “mediúnico – a ideia repentinamente toma conta do todo em um processo de imaginação – na terminologia de Grotóvski os atores incorporam – incorporam eles mesmos” (BROOK, 1993: p.12). Esta dinâmica vai sendo conseguida através do trabalho, do esforço nos ensaios, da dedicação do ator. Parafraseando o umbandista Carlos Alberto da Costa poderíamos também dizer que o ator é a peça fundamental de tudo e para que este alcance sua maturidade artística e para que isto aconteça, ele precisa ir lapidando, lapidando, lapidando...

Referências

BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. Trad. Luis Otávio Burnier (supervisão de uma equipe). São Paulo/Campinas: Hucitec e Unicamp, 1995.

BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. Trad. Maria Paula Zurawski, J. Guinsburg, Sérgio Coelho e Clóvis Garcia. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.

BOOK, Peter. O ato de incorporar. Trad. Maria José Pimenta. Cadernos de Teatro nº 132, Publicação do Teatro O Tablado, RJ, 1993.

BROOK, Peter in Brook by Brook, documentário de Simon Brook, Paris, 2001.

CARVALHO, Enio. História e formação do ator. São Paulo: Ática, 1989.

ICLE, Gilberto. O ator como xamã. São Paulo: Perspectiva, 2006.

OLSEN, Mark. As máscaras mutáveis do Buda dourado. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2004.

RODRIGUES, Graziela. Bailarino, pesquisador, intérprete. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.

ADRIANA MAIA é atriz, diretora e pesquisadora teatral. Concluiu seu mestrado na UNIRIO e atualmente é doutoranda pela mesma instituição. Foi uma das coordenadoras do programa Horizontes Culturais, um projeto de formação de plateias e valorização da cultura artística nas escolas da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Iniciou sua carreira de atriz no grupo Além da Lua onde recebeu o Prêmio Molière de Incentivo ao Teatro Infantil em 1986. Foi integrante do Centro de Demolição e Construção do Espetáculo de Aderbal Freire Filho, além de ter atuado em espetáculos dirigidos por Amir Haddad e Camila Amado. Como diretora, encenou Infância, texto inédito de Thornton Wilder, onde recebeu indicação ao Prêmio Coca Cola de Teatro Infantil como diretora, além do Prêmio Mambembe de Melhor Espetáculo do Ano, em 1988. Desde maio de 2007 dirige o grupo Teatro das Possibilidades, onde organiza um laboratório permanente de investigação teatral.

ADRIANA MAIA is an actress, director and theater researcher. She earned a MA at UNIRIO and is doing her PhD at the same institution. She coordinated Horizontes Culturais, a project improving access to culture in public schools of Rio de Janeiro. Her acting career started at Além da Lua, a group that received several awards, such as the Prêmio Molière de Incentivo ao Teatro Infantil. She was a member of Centro de Demolição e Construção do Espetáculo, a group of the director Aderbal Freire Filho and worked as actress in productions of Amir Haddad and Camila Amado. In 1986, staged Childhood, by Thornton Wilder, and received a nomination to the Coca Cola Award of Children´s Theater for best director, and the award Mambembe as one of the best plays of the year. Since 2007 she directs her own group, Teatro das Possibilidades, which is a permanent laboratory for theater research.