MOVIMENTO
COMPARTILHADO
SHARED
MOVEMENT
Ivana
Buys Menna Barreto
(PUC/SP)
Resumo
Este artigo é um
estudo sobre a contribuição da neurociência, notadamente através da descoberta
dos neurônios-espelho, para o processo de criação do movimento e suas implicações
sociais. Proponho um recorte sobre a relação dos neurônios-espelho e as emoções
no corpo para investigar como, através da empatia, um movimento inicial é capaz
de produzir outros, tornando-se resposta (ou pergunta) aos estímulos e
provocações feitos pelo que já está no mundo. Esta proposição fala da
alteridade como estratégia de sobrevivência, indo ao encontro do pensamento de
Giorgio Agamben – há muito mais coisas envolvidas num gesto que apenas um
significado (AGAMBEN, 2007), porque só sobrevivemos coletivamente, porém há uma
dificuldade em entender o que diz o outro. A empatia parece ser uma chave
fundamental.
Palavras-chave
| movimento | criação | compartilhamento
| neurociência | neurônio-espelho
Abstract
This article is a study on how neuroscience can
help us understand the process of creating movements and its social
implications, especially since the discovery of the mirror neuron. I limit the
study to the relationship between the mirror neuron and the emotions in the
body, in order to study how, through empathy, an
initial movement can produce other movements, which in turn become answers (or
questions) to the incentives and provocations made by elements that already
exist. This proposition presents otherness as a survival strategy, in reference
to Giorgio Agamben's thought: there are many more
things involved in a gesture than just a signification (AGAMBEN, 2007). We only
survive collectively, even so, it is difficult to
understand what the other says. Empathy seems to be a fundamental clue.
Keywords | movement | creation | sharing | neuroscience | mirror neuron
A partir dos
estudos do neurocientista Giacomo Rizzolatti sobre os neurônios-espelho,
abre-se uma possibilidade de compreensão sobre o conhecimento e o aprendizado
através dos mecanismos motores. Existe uma primeira noção de imitação como
capacidade para reproduzir uma ação, depois de havermos visto outros realiza-la;
uma segunda supõe que, mediante a observação, podemos aprender um padrão de
ação novo e sermos capazes de realizá-lo. Há, nessas duas noções, o problema da
correspondência: como podemos, baseando-nos na observação, realizar uma ação
análoga à que percebemos?
Rizzolatti
esclarece que o sistema visual e o sistema motor utilizam diferentes parâmetros
de codificação; e que é preciso entender os processos corticais envolvidos
nessa operação, assim como as transformações sensoriomotoras necessárias
(RIZZOLATTI e SINIGAGLIA, 2006: p.139-140), isto é, precisamos saber como se dá
este mecanismo de tradução. É importante ressaltar que na aprendizagem, por
exemplo, há transmissão de competências, de habilidades motoras que não estão
presentes em nosso vocabulário de ações. O desafio que se coloca é: como
adquirir novas capacidades para atuar? Como traduzir a visão de um conjunto de
movimentos, aparentemente privados de sentido, em uma possibilidade de ação com
um significado para nós?
A primeira forma
de imitação, que descrevemos acima, se baseia em uma nítida separação entre os
códigos sensorial e motor – a imitação seria possível graças a processos
associativos que uniriam elementos, em princípio, sem nada em comum. A segunda
forma, por outro lado, presume que a ação observada e a realizada devem
compartilhar um mesmo código neural, e isto constitui-se numa condição
fundamental da imitação (RIZZOLATTI e SINIGAGLIA, 2006: p.140). Este último
modelo, segundo alguns pesquisadores, é compreendido como “compatibilidade
ideomotora”, segundo a qual, quanto mais um ato percebido se assemelha a outro,
pertencente ao patrimônio motor do observador, mais tende a induzir à execução
do mesmo; assim, a percepção e execução das ações deveriam possuir um “esquema
representacional comum”, modulado pela compreensão, por parte do observador, do
tipo de ação, ou do objetivo dos movimentos realizados pelo demonstrador (RIZZOLATTI
e SINIGAGLIA, 2006: p.141). Haveria, portanto, uma identificação com os
movimentos do outro, a partir do que já existe como possibilidade de realização
em nós mesmos, sendo esta identificação um processo feito por similaridade.
O descobrimento
dos neurônios-espelho acrescenta uma requalificação no princípio de compatibilidade
ideomotora: o esquema representacional comum não seria abstrato, mas “um
mecanismo de transformação direto das informações visuais em atos motores
potenciais”. Após uma série de experimentos, tornou-se cada vez mais evidente
que “a transformação da informação visual em uma apropriada resposta motora se
produz no sistema dos neurônios-espelho; e mais precisamente, que os
neurônios-espelho traduzem em termos motores os atos elementares que
caracterizam a ação observada” (RIZZOLATTI e SINIGAGLIA, 2006: p.147).
Há, portanto, uma
classe de neurônios que se ativa quando
alguém desenvolve a mesma atividade executada por outro indivíduo,
especialmente quando há uma proximidade em algum nível entre eles. Rizzolatti
centrou-se no problema da correspondência, nos processos corticais envolvidos e
nas transformações sensoriomotoras necessárias a esta operação, desencadeando
na pesquisa outras questões, como a transmissão de competências e habilidades
motoras que não estão presentes em nosso vocabulário de atos – o processo de
tradução. Os mecanismos de imitação e correspondência passam pela tradução de
uma informação visual em movimento, e esta complexa operação se faz rapidamente,
envolvendo uma identificação em algum nível dos sujeitos, uma empatia
emocional.
Neste ponto é
necessário entendermos um pouco mais sobre os mecanismos da emoção, fundamental
para a compreensão da empatia. As emoções são um instrumento essencial para orientação
do nosso cérebro entre as inúmeras informações sensoriais que ele recebe para
poder responder de forma oportuna, garantindo nosso bem-estar, colocando em
andamento automaticamente as respostas mais adequadas à nossa sobrevivência (RIZZOLATTI
e SINIGAGLIA, 2006: p.167). Boa parte de nossas interações com o ambiente e com
nossos próprios comportamentos emotivos depende de nossa capacidade para
perceber e compreender as emoções alheias. Há uma espécie de ressonância emotiva (RIZZOLATTI e
SINIGAGLIA, 2006: p.170), que permite a cada organismo perceber ameaças e
oportunidades, e também instaurar e consolidar vínculos.
Temos a
capacidade de reconhecer as emoções alheias e ler no rosto, nos gestos ou na
postura do corpo dos demais os signos de dor, medo, asco ou alegria. Segundo
Antonio Damásio, que desenvolveu proposta bem avançada sobre este tema, a visão
de um rosto expressando asco ou dor determinaria no cérebro do observador uma
modificação na ativação de seus mapas corpóreos, de modo que este perceberia a
emoção alheia “como se” fosse ele mesmo sentindo. Damásio fala sobre esta
classe de neurônios como responsável pela ativação de um processo de simulação
interna:
Estes
neurônios podem representar no cérebro de uma pessoa os movimentos que este mesmo
cérebro vê em outro indivíduo e enviar sinais às estruturas sensoriomotoras de
maneira que os movimentos correspondentes sejam “vistos de antemão” já em
alguma modalidade de simulação, já efetivamente realizados (DAMÁSIO apud
RIZZOLATTI e SINIGAGLIA, 2006: p.180).
Há, portanto, uma
antecipação, pela simulação de algo que já foi experienciado pelo corpo. Nosso
sistema motor entra em ressonância frente aos movimentos de outros. As
informações procedentes das zonas visuais que descrevem rostos ou corpos expressando
uma emoção chegam a uma região do cérebro chamada “ínsula”, onde ativam um
mecanismo espelho autônomo e específico, que as codifica imediatamente em seus
formatos emotivos. Esta região é o centro deste mecanismo espelho, onde não
estão representados apenas os estados internos do corpo, “mas também constitui
um centro de integração visceromotora cuja ativação provoca a transformação dos
inputs sensoriais em reações
viscerais” (RIZZOLATTI e SINIGAGLIA, 2006: p.181). A ativação visceral é
responsável por um “colorido emocional”. Este colorido emocional depende, na
verdade, da ação de compartilhar as respostas visceromotoras que contribuem
para definir as emoções.
Este
comportamento empático permeia boa parte de nossas relações. O paralelismo com
a compreensão das ações realizadas pelos demais pode servir-nos de grande
ajuda, determinando o surgimento de um espaço de ação potencialmente
compartilhado, “com formas de interação cada vez mais elaboradas (imitação,
comunicação intencional, etc), que se apoiam por sua vez em sistemas de
neurônios-espelho cada vez mais articulados e diferenciados” (RIZZOLATTI e
SINIGAGLIA, 2006: p.183).
A capacidade do
cérebro para ressoar diante dos gestos alheios permite uma co-participação
empática que orienta nossas condutas e relações. O mecanismo dos
neurônios-espelho nos mostra que, antes de toda mediação conceitual e linguística,
há uma forma de compreender que está imediatamente relacionada à nossa
experiência diante dos outros e do mundo.
Os
neurônios-espelho abrem, portanto, uma discussão sobre espaço compartilhado e movimento
compartilhado. O espaço compartilhado é um espaço de ação; compreender o espaço
do outro não é necessariamente fazer o que ele faz. É possível aproximar-se do
que é feito a partir de uma observação, de um estudo dessa ação; e à medida que
se imita um movimento, outras conexões são criadas, a internalização produz uma
tradução. A observação também (e não apenas a ação) é uma experiência, e por
isso uma outra possibilidade de se organizar o conhecimento. Existe empatia quando
um espaço foi aberto por um gesto, que é mediação.
Faço aqui um
breve comentário sobre o gesto como mediação, recorrendo ao pensamento do filósofo
italiano Giorgio Agamben, por sua pertinência ao assunto que estudamos neste artigo.
Tecendo relações
entre política e criação, Agamben fala da autoria como gesto de mediação1; um
lugar aberto entre o autor e o leitor, algo que só acontece no momento do
encontro e por isso é sempre inacabado, pondo em jogo muito mais coisas do que
apenas um significado: há implicações emocionais e políticas neste
compartilhamento. Para o filósofo, um autor põe sua vida em jogo na obra, ainda
que ela se constitua no domínio da representação; e na obra está sua
expectativa de comunicação com o outro, ainda que esta comunicação seja apenas
um meio para conhecer-se a si próprio. Falamos para o outro para saber quem
somos, e a partir do momento em que falamos, isto que dizemos já é
transformado. A criação seria, pois, uma “experiência na qual o sujeito e o
objeto se formam e se transformam um em relação ao outro e em função do outro”
(FOUCAULT apud AGAMBEN, 2007: p.57); não seria, portanto, algo dado unicamente pelo
autor, por sua individualidade, porque ela é um espaço aberto onde ele se põe
em risco, seu pensamento é ali jogado, nunca possuído, porque será construído a
partir de uma leitura. O gesto do autor é desta forma ilegível, e só se torna
possível quando lido. Esta experiência exige a presença dos corpos, porque,
“por definição, um sentimento e um pensamento exigem um sujeito que os pense e
experimente. Para que se façam presentes importa, pois, que alguém tome pela
mão o livro, arrisque-se na leitura” (AGAMBEN, 2007: p.62).
Agamben aborda a criação
como algo que exige um contágio, um contato físico, e recorre à metáfora da
profanação para falar da arte, como possibilidade de restituição das coisas
sagradas ao livre uso dos homens. Profanar seria usar aquilo que nunca poderia
ser tocado; tocar, por exemplo, as vísceras de um corpo sacrificado, que seriam
destinadas aos deuses, seria um “contágio profano, um tocar que desencanta e
devolve ao uso aquilo que o sagrado havia separado e petrificado” (AGAMBEN,
2007: p.66). Este contágio seria um meio de aproximar, disponibilizar,
compartilhar algo que estava intocável. A profanação é, deste modo, uma
operação política, que “desativa os dispositivos do poder e devolve ao uso
comum os espaços que ele havia confiscado” (AGAMBEN, 2007: p.68).
Ao recorrer à
metáfora das vísceras profanadas, Agamben coloca a arte como território de
profanação, e o artista como aquele que se coloca visceralmente em risco numa
obra, porque nela pode sacrificar suas certezas – o que resulta de seu
pensamento não vem apenas dele, mas também de outro que o lê.
O artista, ao se
colocar em jogo, abre um espaço de criação, mas esse gesto não é impune, porque
exige um comprometimento visceral ao ser jogado em sua exposição no mundo. O
que será lido por outros, portanto de alguma forma traduzido, não será nunca
apenas o que ele sonhou, mas também o que os outros estão a cada dia sonhando,
quando o lêem.
Aqui podemos
fazer uma ponte entre o pensamento de Agamben e a discussão anterior. Arte é
compartilhamento na medida em que precisamos dessa ressonância no outro para
saber quem somos. O conhecimento, assim como a criação, está vinculado à ideia
de uma interação, uma colaboração tácita entre o sujeito e o mundo. Há algo de
singular na maneira como organizamos o conhecimento ou um processo de criação
artística, porém este singular é também uma construção do comum, ou seja, já está
contaminado, afetado pelo embate entre o que está no corpo e o que circula pelo
mundo2. A
singularidade é, pois, sempre temporária, porque se constitui de movimentos que
não dependem unicamente de nós.
Se estamos na
dependência do que não conhecemos, há conflitos e embates: é difícil
compreender o outro, o que dizemos nem sempre ressoa como gostaríamos. Os
processos de formação do conhecimento e da percepção são múltiplos e distintos
em cada um, estamos sempre traduzindo o que vemos, ouvimos e sentimos. Não
agimos de determinada maneira porque assim o queremos, nossas ações estão
impregnadas de traços, marcas, maneiras de fazer de outros, que já passaram por
nós com seus pensamentos, tonalidades de voz, atitudes, formas de caminhar. O
que está em nós é uma possibilidade de comunicação, de tradução daquilo que já
foi dito ou feito por outros.
Nesta perspectiva,
a proposta de Rizzolati sobre os neurônios-espelho me parece importante
ferramenta para o estudo do movimento criativo, porque revela o quanto o corpo
está implicado na construção do pensamento e da linguagem, ao abordar a emoção
e o fenômeno da empatia como chave para nossa percepção e identificação com
determinados movimentos e comportamentos.
O aprendizado do
movimento não poderia, neste aspecto, estar dissociado de uma compreensão sobre
o processo de tradução, intrínseco ao funcionamento do cérebro. O que
aprendemos seria, nesta abordagem, também fruto do que criamos, porque não há
imitação total, há perdas e desvios nesta operação; e esta criação em fluxo
constante não cria o novo que nunca existiu, mas emerge de uma permanente
reorganização de tudo o que entra em contato com aquilo que já estava em nós.
Dependemos daquilo
que vemos, percebemos e selecionamos à nossa volta, dos movimentos e emoções
alheias, para sobreviver e para reorganizar permanentemente nosso pensamento e
nossas atitudes no mundo. Porém, esta reorganização passa por um processo de
reconhecimento interno de nosso “colorido emotivo”, que estabelece uma conexão
empática com o que é do outro, porque precisamos dar um significado para o que
vemos, ainda que esse significado seja temporário. E é nesta política de
reconhecimento e perdas que construímos o que somos.
Referências
AGAMBEN, Giorgio.
O autor como gesto. Profanações. São
Paulo: Boitempo, 2007.
GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos
indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.
NOE, Alva. Action in Perception. Cambridge: The MIT Press, 2004.
RIZZOLATTI, Giacomo e SINIGAGLIA, Corrado. Las
Neuronas Espejo. Barcelona: Paidós, 2006.
VIRNO, Paolo. A Grammar of the
multitude: For an Analysis of Contemporary Forms of Life. Nova York: Semiotexte, 2004.
NEGRI, Antonio.
II Seminário Internacional – Capitalismo
Cognitivo: Economia do Conhecimento e a Constituição do Comum. 2005.
Notas
1 Ver “O autor como gesto”, in AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.
2
Sobre este
tema da singularidade e compartilhamento, Antonio Negri, em palestra proferida
no “II Seminário Internacional – Capitalismo Cognitivo: Economia do
Conhecimento e a Constituição do Comum”, diz que a singularidade se define na
relação com o outro; e que no controle da produção global há algo que falta,
que precisa ser amarrado, articulado, e isso se concretiza justamente por uma
singularidade. Acrescenta ainda que hoje singularidade e cooperação são
fundamentais na construção de qualquer produto.
IVANA
MENNA BARRETO is a dancer, creator and researcher from Rio de Janeiro. She has
studied literature, classic and contemporary dance, choreographic composition
and theatrical interpretation. She has a Bachelor´s degree in Literature
(UERJ), a Master of Performing Arts (UNIRIO) and is currently a PhD researcher
in Communication and Semiotics at PUC-SP. She is interested in the dialogue
between the body, the spoken word and the image. From 1993 on, she has
developed several artistic works with Cia. Movimento e Luz, as a
director and dancer. At present, she is performing the solo Leia-me, in
collaboration with lighting designer Fred Pinheiro,
dancer and creator Cláudia Müller and multimedia
artist Theo Dubeux.