CORPO E ESPAÇO NA
OBRA DE PETER BROOK: MARAT/SADE
E OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO
SPACE AND THE BODY IN THE WORK OF PETER BROOK: MARAT/SADE AND THE LIMITS
OF REPRESENTATION
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
(UFRJ)
Resumo
Este artigo propõe
investigar as relações entre corpo cênico e o uso do espaço em Marat/Sade, nas versões de Peter Brook
para o teatro e para o cinema. Na peça, o diretor desconstrói o espaço cênico
ao incorporar o espectador como parte inerente do espetáculo e ao explorar
novas formas de representação da loucura, a partir do excesso e da investigação
de ações coletivas. O objetivo é o de privilegiar a singularidade da criação de
cada ator e, ao mesmo tempo, promover um diálogo com a História, ao se
comprometer com a criação de uma linguagem comum que deflagra um ato político,
coletivo, histórico. No cinema, adotando o espaço teatral como referência e em
continuidade com a proposta anterior, Brook, ao utilizar três câmeras, amplia a
sensação de ruptura com o espaço convencional, lançando os atores em uma
experiência limite até a catarse final e a destruição do cenário.
Palavras-chave
| espaço | teatro | cinema | Peter Brook | Marat/Sade
Abstract
This article aims to
explore the relationship between the body and the scenic use of space in “Marat/Sade”,
by comparing Peter Brook´s theater and cinema versions
of the piece. In the stage play, the director deconstructs the scenic area by
incorporating the viewer as an inherent part of the performance and by
exploring new ways of representing madness: e.g. through the use of excess and
collective actions. The main aim is to emphasize the singularity of what each
actor creates, and, at the same time, to promote a dialog with history by
creating a common language for a political act, which in itself is both
collective and historical. In the film, embracing the theatrical space as a
reference to his previous stage version, Brook, using three cameras, extends
even further the idea of breaking with the conventional space, pushing the
actors to the limit, into a final catharsis and the destruction of the set.
Keywords | space | theater | cinema | Peter Brook | Marat/Sade
É
necessário que tudo se passe na maior claridade... que tudo seja o contrário de
uma imagem da noite. É uma peça que é a celebração dos atos do teatro (BROOK,
1973: s/p).1
Imagem
1: Cena da peça - o momento do assassinato de Marat
A loucura e sua
representação é o tema da peça de Peter Weiss – A perseguição e o
assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do hospício de Charenton
sob a direção do Marquês de Sade – adaptada por Brook para o cinema, mas
antes experimentada nos palcos pelo diretor. A temática abordada por Weiss é o
encontro entre dois importantes e revolucionários personagens da história:
Marat e Sade. Ambos são internos no asilo para doentes mentais de Charenton,
nas proximidades de Paris. Sade, por ordem de Napoleão, passa os últimos onze
anos de sua vida confinado. M. Coulmier, diretor do hospício, um homem
esclarecido e de espírito aberto a novas ideias, autoriza seus internos a
montar peças de teatro para o público parisiense. Sabemos que, enquanto esteve
preso, o Marquês de Sade escreveu e dirigiu dezessete peças dramáticas, uma
dúzia de tragédias, comédias, óperas, pantomimas e peças de um ato2. A ideia de Weiss
foi recriar uma dessas representações. A peça se passa em 1808, na sala de
banhos do hospício.
Brook teve um primeiro
contato com a obra aos 29 de abril de 1964, no momento em que iniciava um
trabalho experimental com os atores do Lamda Theatre – grupo formado na Royal
Shakespeare Company – buscando referências contemporâneas para suas
pesquisas. Dividindo a direção com Charles Marowitz, Brook sugeria exercícios
de improvisação, adotando técnicas respiratórias e corporais, constituindo o
que nomeou O teatro da crueldade. A ideia se baseava nos escritos de
Artaud, mas seguia um rumo novo, original.
Decidimos fazer
um trabalho experimental [...] uma homenagem a Artaud. É por isso que nomeamos
nossa primeira representação de ‘Teatro da crueldade’. Havia elementos baseados
nas questões levantadas por Artaud. Mas isso não queria dizer que
correspondesse a Artaud puro, porque Artaud puro era uma coisa completamente
diferente (BROOK, 1973: s/p).
Ainda no
mesmo ano, Brook recebe o convite de Peter Hall, à época diretor da Royal
Shakespeare Company, para co-dirigir a companhia, dividindo a função com
ele e com Michel de Saint-Denis. A esse convite, ele responde com uma
contraproposta: aceita o desafio com a condição de poder desenvolver,
paralelamente, um laboratório teatral, sem que isso o obrigasse a encenar ou a
produzir o que quer que fosse. A condição exigida, portanto, é a liberdade de
criação sem nenhum tipo de intervenção externa. A mudança de orientação é
radical, uma vez que a pesquisa, antes restrita à montagem de uma peça, se
desvincula do espaço cênico, ganhando autonomia e, pela primeira vez, aprofunda-se
no questionamento da linguagem e no significado da representação teatral.
O grupo
buscava criar uma linguagem própria através de uma séria e dedicada pesquisa
cênica, explorando a linguagem teatral como uma possibilidade de comunicação
mais ampla e verdadeira entre público e atores. Os ecos da pergunta proferida
por Brook – “Pourquoi le théâtre?” (BROOK, 1977: p.88) começavam a ser
escutados e repetidos na prática diária de um trabalho coletivo. Três meses
após a criação do Lamda, o grupo apresentou ao público sketches
de som e movimentos, colagens de A Guilhotina e Banho Público,
este último reprisado em Marat/Sade, cenas de Paravents, uma colagem
de Hamlet dirigida por Marowitz e Ars Longa, Vita Brevis.
Rompendo com a tradição teatral de um passado repetitivo e de uma memória
cultural paralisante porque presa a detalhes irrisórios e figuras emblemáticas,
Brook afirma seu teatro como um teatro vivo, um “lugar de vida”, em
contraposição ao teatro mortal, ao culto do “autor morto”, tão difundido até
então. Esta proposta de ruptura se dá não somente no plano do repertório, que
começa a ser questionado e modificado, mas também no modo como a pesquisa é
encaminhada. Não interessava mais, por exemplo, a “relíquia de saber” dos
atores: técnicas, impostações, truques e todo um saber do ofício pronto para
ser repetido a cada novo trabalho. Os atores, ao contrário, passam a ser
escolhidos, na medida em que apresentam uma abertura para o novo, para o
desconhecido, para um aprendizado adquirido na prática, na relação direta com a
platéia, sem subterfúgios e sem distanciamentos pré-impostos ao público.
As audições
para a escolha do elenco eram realizadas a partir de exercícios de improvisação
que, a todo o momento, exigiam dos atores que mudassem seus pontos de vista e
se adaptassem a novas situações quase que imediatamente. Era um método eficaz
de saber o grau de abertura individual e a capacidade de adaptação de cada
membro que se candidatava a fazer parte do grupo. O conceito de “espaço vazio”
era explorado pelo diretor com o intuito de absorver novas experiências ao
desconstruir/desfragmentar o espaço teatral e, ao mesmo tempo, ao implodir
internamente referências corporais dos atores, cristalizadas por anos a partir
de uma prática desprovida de reflexão. O “espaço vazio”, portanto, denota um
duplo encaminhamento: o corpo des-figurado de clichês, traumas, vícios
repetitivos pode, com liberdade, vivenciar um outro estatuto: ao se deslocar de
forma inteiramente nova pelo espaço, é capaz de se reconhecer em uma espécie de
estranhamento proveniente da descoberta de novos músculos, ossos, pele,
lançando mão de inovadoras possibilidades de representação. Recusando a
tradição, Brook busca na ruptura e na pesquisa do novo, do que ainda está por
vir, um retorno à origem, ao mito, ao ritual de um teatro vivo e em constante
mudança. A obsessão pela busca de uma origem vai ao encontro da recusa de uma
memória cultural cristalizada.
O que busco
no teatro é um ato que não tem nome – talvez, possamos chamá-lo de um ato de
comunhão – uma experiência de uma qualidade intensa reconhecível, mas que
aparece somente em raros momentos, um momento que podemos chamar de mágico – a
Flor (BROOK, 1974: p.275-276).
A origem
mítica para a qual Brook orienta a sua busca – a Flor – é alcançada em cena a
partir de uma construção e reflexão diárias. Percebendo o teatro como um lugar
em que a vida é apresentada em uma espécie de combustão de forças, através da
qualidade de ações dos atores, concentradas a um ponto máximo, a um limite da
realidade, Brook introduz, na pesquisa que desenvolve, uma reflexão sobre o
modo de pensar o teatro. Discurso e prática juntos formam um só corpo, uma
unidade multiplicadora de outras vivências. Tudo o que é dito é praticado em
cena cotidianamente. Artista e obra falam a mesma língua. Em Marat/Sade, de Peter Weiss, Brook ousa a
criação de um espetáculo que se recusa a dar explicações, a fazer um balanço de
si mesmo. Respeitando o texto de Weiss, imbuído de uma dupla reflexão sobre a
historicidade da loucura e a loucura da história, Brook irrita-se com boa parte
da crítica teatral que classificava a peça como uma espécie de síntese entre
Artaud e Brecht. Sempre avesso às classificações reguladoras e limitadoras que,
adotando “nomes” e “conceitos”, iludiam a conjugação de um léxico para suas
criações, afirmava: “Acredito que o teatro, como a vida, é construído em torno
de um conflito permanente entre as impressões e os julgamentos – a ilusão e a
desilusão coabitam dolorosamente e são inseparáveis” (BROOK, 1992: p.74).
Imagem
2: A adaptação cinematográfica de Peter Brook - privilegiando os espaços
Incorporando
o ponto de vista proposto por Weiss em Marat/Sade
–“O importante é que você se levante puxando seus próprios cabelos. Virando-se
do avesso para ver o mundo inteiro com olhos novos” (BROOK, 1992: p.76) – Brook
procurava não responder às críticas niveladoras, suscitando, por meio de sua
resposta “aberta” para múltiplas leituras, novas perguntas sem resposta. Afinado
com as propostas de Brecht, Artaud e Grotóvski, Brook cria um caminho singular: contestador da realidade, assim como
Brecht; revolucionário no sentido empregado por Artaud; e rico, em contraposição
ao teatro pobre grotovskiano, o que para ele
significava praticamente a mesma coisa: “... busco um teatro rico tanto quanto Grotóvski busca um teatro pobre, porque para mim é quase a mesma coisa” (BROOK,
1992: p.76). A busca, a que se refere o diretor, é fundamental ao processo e
reveladora das escolhas. O fato de ter optado por representar Marat/Sade significou um marco
importante para o aprofundamento de uma certa liberdade cênica, calcada em
pesquisas experimentais, que o levaria, alguns anos depois, à criação do Centre International de Créations Théâtrales
(C.I.C.T), em Paris.
Brook monta
inicialmente Marat/Sade no Aldwych Theater, para o público de
teatro londrino. Apesar de o processo de criação ter se iniciado através de uma
pesquisa baseada em improvisações, nenhuma ação ocorria ao acaso. A loucura era
a mola da representação e difícil de ser apreendida, uma vez que se tratava de
personagens-loucos representando personagens, ou seja, a temática era a peça
dentro da peça. A intensidade do jogo cênico variava conforme o ritmo da
ascensão da loucura de cada um, deslocando-se em um crescendo, desenhando no
palco trajetórias múltiplas até a catarse final.
A encenação
de Brook demonstra bem como o teatro é capaz de retirar da representação da
loucura os efeitos mais impressionantes. A intensidade dos movimentos e dos
jogos de cena, em Marat/Sade, se fundem nesta representação e se revelam na
primeira imagem, na qual se vê os doentes que devem representar a peça de Sade
dispostos em posição fetal, ou petrificados em transe, ou tremendo todos os
membros, ou seguindo um rito obsessional... (SONTAG, 1966: p.137).
O processo
de criação da peça teve como ponto de partida uma investigação sobre a loucura
a partir de um estudo realizado através de visitas a hospitais psiquiátricos
londrinos e a leituras do grupo sobre o assunto. Não estigmatizar a loucura foi
uma premissa para o aprofundamento do espetáculo. Os atores buscaram a sua
própria loucura em interação à loucura do Outro – dos personagens de Weiss e de
seus colegas. A percepção de que traços psicóticos de comportamento são comuns
a todos, liberou o elenco para explorar matizes distintos através de uma ampla
dedicação ao estudo de movimentos repetitivos, olhares fixos, vazios, passando
por uma investigação sobre a articulação das palavras, como o belo trabalho
desenvolvido por Glenda Jackson na composição de Charlotte Corday, uma paciente
melancólica que traduz, na fala desarticulada e fragmentária, um corpo pontuado
por hesitações, que se locomove aos tropeços, arrastando os pés, girando o
pescoço levemente para os lados. O alto rigor de elaboração dos personagens,
independentemente de sua importância na peça (a freira, o guarda e outros
coadjuvantes passaram todos pelo mesmo processo coletivo de criação de uma
linguagem comum) se deve não só à compreensão de que a proposta política de
Weiss tem ecos na análise da condição humana e na dificuldade, inerente a todos
nós, em lidar com a realidade emergente de crises sucessivas, assim como também
a um exercício livre de criação de uma linguagem coletiva que dialogasse com a
História, com o passado e com o presente, e que fosse legítima à proposta do
grupo.
A loucura em Marat/Sade é a autêntica representação da paixão e se transfigura
em expressão violenta. Os fatos históricos sustentam as cenas e evocam
acontecimentos trágicos. Em um dos momentos principais da peça, Sade sentado em
sua poltrona e Marat na banheira interrogam-se sobre o sentido da Revolução
Francesa, sobre “as preliminares psicológicas e políticas da história moderna”
(SONTAG, 1966: p.138). A obra de Sade, incluindo Diálogo entre um padre e um moribundo e A filosofia na alcova, expõe uma concepção dramática, na qual as
análises e os diálogos filosóficos se alternam com uma encenação repleta de
excessos corporais. Na proposta brookiana, os atores se deslocam
permanentemente pelo espaço, ocupando lugares estratégicos, compondo uma
dimensão circular da cena em que o excesso de movimentação é ditado por um coro
sempre pronto a intervir nas mudanças provenientes dos acontecimentos
principais. O coro – composto por bufões – traz o excesso na maquiagem, no
figurino e na superatuação, mesclando traços histriônicos a uma irreverência
presente em ações que trazem a marca de uma coletividade comicamente desafiadora.
A
confrontação imaginária entre Marat e Sade foi a temática escolhida por Weiss
ao tomar conhecimento de que Sade teria
escrito um elogio fúnebre ao revolucionário, por ocasião de sua morte. “Um
discurso ambíguo, porque ele se pronunciou para salvar sua própria cabeça que,
à época, [...] figurava na lista da guilhotina” (WEISS, 2000: p.111). O foco da
peça é, portanto, o conflito entre o individualismo elevado ao extremo e a ideia
de uma transformação política e social. Para Weiss, Sade concordava com a
necessidade da existência da Revolução, com o ataque à aristocracia corrompida,
mas recuava diante das medidas de terror tomadas pelos novos dirigentes. Ou
seja, o Marquês foi fiel às suas ideias, que terminaram por serem reprovadas e
taxadas de “monstruosas” pelo seu conteúdo eminentemente transgressor.
Marat, por
sua vez, apresentava uma doença de pele psicossomática, motivo de grande
sofrimento até o final de sua vida. A fim de amenizar seus efeitos, passava
horas e horas dentro de uma banheira. Em 13 de julho de 1793, enquanto tomava
mais um de seus longos banhos, morreu apunhalado por Charlotte Corday. Weiss
procurou reproduzir os fatos históricos que narram este episódio. Na
perspectiva adotada pelo dramaturgo, Marat foi um dos homens que trabalharam
para modular o conceito de socialismo, apesar de suas teorias terem sido
consideradas violentas e subversivas. Os diálogos entre o personagem e Sade são
acrescidos de um sem número de detalhes referentes ao espaço, aos figurinos, ao
cenário. “Tudo, na descrição do autor, visa instaurar uma rigorosa perspectiva [...]
tudo contribui para transformar a cena em uma espécie de tribunal, onde a peça
irá julgar o processo da História” (VEILLON, 1985: p.313). Brook decide
transformar o espaço cênico em um círculo, um espaço concreto e metafórico, “um
círculo de uma espiral que desce ao inferno” (VEILLON, 1985: p.313). O público,
inserido no contexto da peça, é convidado a participar de forma ativa da representação.
Diversos dramaturgos e diretores, nas décadas de 60 e 70, pressupunham-no como
parte ativa do espetáculo. Ionesco, em A
cantora careca, tencionava terminar a peça com um massacre dos espectadores. Ao final de Marat/Sade, Brook dirigiu os atores da seguinte forma: ao receber
os aplausos da platéia, eles respondiam com estranhos estalados de mãos,
interrompendo, desta forma, as manifestações espontâneas do público, causando
um desconforto generalizado. Os críticos foram duros tanto com a direção de
Brook, quanto com a peça de Weiss, considerada de valor literário inferior, e, por
este motivo inadequada para uma montagem. Outro aspecto era relativo à
incoerência da composição dos personagens. Segundo a crítica, suas motivações
deveriam ser mais inteligíveis, e, por último, a exigência era a de que os
fatos fossem tratados sob a clave de uma “verdade histórica”, o que de forma
alguma era a intenção primeira de Weiss.
A peça é
digna de admiração e o prazer que a representação me proporcionou não é
evidentemente suficiente para provar sua qualidade [...] Por outro lado, as
críticas, tanto as dos jornais cotidianos, como as das revistas mais
especializadas, foram quase unânimes em formular reservas... (SONTAG, 1966:
p.140).
Da peça ao
filme, Brook aprofunda suas descobertas, mantendo-se fiel à concepção inicial,
pesquisando os limites do que pode ser considerado representável na História:
os limites da representação artística. O que pode ser transposto para a tela e
o que inevitavelmente fica de fora? E ainda: quais são os limites entre as
representações cênica e cinematográfica? Brook filmou a peça utilizando o mesmo
cenário, os mesmos atores, o mesmo conhecimento do tema partilhado por todos.
Desde o começo do projeto, houve problemas de produção. Mais uma vez, os
recursos eram insuficientes e a solução foi filmar em apenas dezoito dias. Um
recorde de tempo que modificou o espaço dos sets de filmagem, transformando-o
em um ambiente que lembrava “uma luta de boxe”. Através dessa experiência,
Brook adquiriu uma visão altamente subjetiva da ação.
Quando
dirigira a peça, não buscara impor meu próprio ponto de vista à obra; pelo
contrário, procurara torná-la tão multifacetada o quanto pudera. Como
consequência, o público estivera continuamente livre para escolher, a cada cena
e a cada momento, os aspectos que mais o interessavam. É evidente, no entanto,
que eu também possuía minhas preferências e fiz, no filme, aquilo que um diretor
de cinema não pode evitar, que é mostrar aquilo que seus próprios olhos vêem (BROOK,
1992: p.250).
O que chamou
especialmente sua atenção foi a percepção da diferença entre os processos que
ocorrem com o espectador no cinema e com o espectador no teatro. O poder da
imagem no cinema faz com que, de certa forma, o espectador permaneça em uma
posição mais passiva, sendo guiado pelo olhar-câmera do diretor. No teatro, o
espectador pode variar sua atenção para um ou outro personagem com o qual tenha
maior identificação e, caso deseje, pode prestar atenção a um detalhe do
cenário, do figurino ou à iluminação. A distância entre espectador e espetáculo,
portanto, é variável, dependendo de inúmeros fatores internos e externos. No
cinema, não existe essa plasticidade de variação e são os closes, as tomadas
panorâmicas, os fade-out e os fade-in, e demais recursos técnicos que
mobilizam a aproximação e o distanciamento do espectador.
Outro fator
observado por Brook é que a ação em Marat/Sade
estimulava o público a exercitar a imaginação na complementação das cenas. Por
outro lado, no cinema, este processo mostrou-se inviável: a realidade da imagem
fornecia ao filme uma força expressiva extraordinária e também uma limitação. A
literalidade da fotografia impossibilitava sugestões. A verossimilhança
“cobrava” um outro posicionamento. Em contrapartida, Brook também observou que
a força da imagem pode fazer com que o espectador não consiga libertar-se dela,
daí a necessidade de dosá-la, de estabelecer o tempo de permanência de uma
determinada cena, da atenção para que o conjunto de um filme não se perca pelo
excesso de exposição de uma determinada ação.
No cinema [...]
trava-se uma luta perpétua contra o problema da importância excessiva da
imagem, que é intrusiva e cujos detalhes perduram muito tempo depois da sua
necessidade ter desaparecido. Caso se tenha uma cena de dez minutos de duração
numa floresta, nunca mais se conseguirá livrar-se das árvores (BROOK, 1992:
p.253).
Sade se
dedica a pronunciar longos monólogos e a observar todas as cenas, com um frio e
sarcástico distanciamento. Marat, envolto em lençóis brancos, lança ao espaço
um olhar fixo e ausente. Charlotte Corday dorme e acorda, lembrando-se e
esquecendo-se do papel que deve representar e da ação principal da peça: o
assassinato de Marat. O deputado girondino Duperret é interpretado por um jovem
eretômano, magérrimo, alto e de topetes no cabelo. Simone Éverard, enfermeira e
amante do revolucionário, tem dificuldades em se movimentar e parece, também,
possuir um problema de visão. Há ainda o coro de bufões que fazem um
contraponto à história, pontuando os diversos momentos de transição, cantando e
tocando músicas, cujas letras refletem o ritmo das cenas. Além de outros
internos – duas freiras sádicas, um homem amarrado a uma camisa de força, etc.
– cada qual com uma espécie de “doença” particular. Os Coulmier – diretor do
hospício, sua esposa e filha – representam a burguesia parisiense,
deleitando-se em fazer parte de uma espécie de experiência exótica. À medida
que o filme avança, porém, a família submerge à desorientação do grupo,
passando de um leve incômodo ao excitamento, ao horror e à catarse final.
Imagem
3: Marat e Sade juntos refletindo sobre o destino da humanidade
Brook
reproduz na tela o espaço teatral, incluindo a platéia. Há um plano geral da
cena que representa o olhar do espectador da última fileira do teatro. Esta
tomada de câmera é repetida diversas vezes ao longo do filme, a fim de
sublinhar a existência do público como uma marca de teatralidade, aproximando
as linguagens cênica e cinematográfica. Brook opta, ainda, por separar atores e
público através do uso de grades. Os personagens permanecem por trás das
grades, como se literalmente fossem prisioneiros da história e da encenação
dirigida pelo Marquês de Sade.
Há um outro
aspecto relevante ligado à separação do público e dos atores: Marat/Sade se inscreve na clave do
risco, no tênue limite entre ficção e realidade. A todo momento, tem-se a
impressão de que os atores poderão romper as grades, destruir tudo e se
misturar com a platéia. Por inúmeras vezes, eles se lançam com violência ou
lançam objetos que, por pouco, não atravessam os limites do palco. O risco é
uma constante, e os personagens transitam no limiar entre a vida e a morte, no
controle total de ações que podem, de uma hora para outra, se tornar
incoerentes e fatais. A tensão avança até a cena da catarse final, na qual o
grupo destrói todo o cenário. Brook, utilizando três câmeras, fez apenas um take da cena e o resultado é
surpreendente: se a descontinuidade é explorada desde o início do filme, no
final ela é alçada ao seu limite.
A montagem é
o ponto forte de Marat/Sade,
considerado um dos filmes mais cinematográficos de Brook. Apesar das marcas de
teatralidade, o filme é repleto de efeitos, tais como a cena do pesadelo de
Marat, em que a câmera reproduz o olhar do personagem: são sombras, imagens
distorcidas, todo um universo onírico do sonho que adquire um tratamento
especial. A “colagem” dos planos é cuidadosa e, ao mesmo tempo, ousada. Os
planos são muito curtos e Brook reproduz o olhar do espectador de teatro: ao
invés de privilegiar uma ou outra atuação, focaliza todos os personagens e seus
múltiplos ângulos. Mesmo os secundários ganham destaque na montagem. São muitos
os closes, planos fechados, planos
abertos, planos de cima da cena que se alternam repetidas vezes. A
descontinuidade é proporcional ao ritmo, que se acentua à medida que o filme
avança; um ritmo histérico que ganha seu ápice na cena da destruição
final.
No teatro, a
atenção de cada um muda constantemente de objeto. Às vezes, você focaliza a
ação principal; às vezes, um ator no fundo da cena; às vezes um detalhe da
cena; às vezes, você toma consciência da presença do público. Nenhuma câmera,
nenhum microfone, pode recriar diretamente essas condições, mas pode orientar e
focalizar sua atenção e mostrar também a ação secundária. O cinema pode produzir
sua própria teatralidade (BROOK, 1966: s/p).
O cenário,
com poucos objetos – alguns baldes, a bandeira francesa, uma mangueira de água
e objetos de uso pessoal dos personagens – todos eles utilizados, apresenta
calabouços de madeira em forma circular. Quando há necessidade de “limpar a
cena”, os atores entram nos calabouços. Em outro momento, Marat transforma um
deles em uma banheira. Os personagens bufões, por exemplo, cantam e tocam
músicas que narram e pontuam os momentos de transição, além de realizarem diversas
coreografias, entrando e saindo dos calabouços, desenhando no espaço pequenas
ações. O grupo de atores, dirigido por Brook, apresenta um alto nível de
precisão nas ações físicas; há uma sincronia impressionante, uma vez que se
trata de um grupo grande, que permanece em cena praticamente o tempo inteiro.
A iluminação
é outro elemento interessante de ser observado. Brook afirma ter optado por uma
única fonte proveniente da lateral esquerda do palco, imitando a luz natural e
regulada por tecidos na cor bege pendurados em uma espécie de varal. Deste
modo, a cena é escurecida ou clareada conforme esses tecidos são expostos ou
retirados. Brook se aproveita desse recurso, por exemplo, na cena do discurso
de Marat: um plano fechado do personagem de perfil, quase na penumbra, sendo
iluminado por uma luz tênue. Excetuando uma ou outra cena, de um modo geral, Marat/Sade é um filme realizado “às
claras”, deixando o espectador com a sensação de ser testemunha do espetáculo
dirigido pelo Marquês.
As câmeras são
parte integrante da equipe e se misturam com os atores; não as vemos, mas é
como se fossem coladas aos olhos dos participantes. Tal qual um terceiro-olho,
elas preenchem os espaços, mostrando os diferentes universos de cada
personagem. Nesse sentido, Marat/Sade
é múltiplo, como é múltiplo o olhar do espectador de teatro, na liberdade de
selecionar o fragmento que deseja ver/perceber. Essa é a maior contribuição da
experiência teatral de Brook ao filme. Por outro lado, Marat/Sade é um dos filmes mais cinematográficos do diretor,
diferenciando-se dos demais exatamente pela diversidade de tomadas de cena e
pela ousadia da montagem, que tem como enfoque maior a descontinuidade.
Na última
cena, os espaços cinematográfico e teatral se fundem através da destruição do
cenário. O espectador não vê mais a peça dentro do filme. E não vê mais o filme
dentro da peça. A impressão que se tem é de que Brook, exercitando-se no limiar
entre as duas linguagens, alcança um espaço vazio, o espaço vazio tão desejado.
Não sabemos se são os atores destruindo tudo ou se são os personagens, e isso é
o que menos importa. Algo ultrapassou o limite e, por isso, nada mais resta.
Fim do filme, fim da peça. Começo de uma nova pesquisa.
Filmamos a
última cena no final das filmagens. Os atores que encenavam a peça há dois anos
não aguentavam mais. E quando propus tudo demolir, tudo quebrar, tudo destruir,
tivemos um dos happenings mais extraordinários a que assisti... Tivemos trinta
minutos de selvageria e de destruição completamente alucinante... rodamos sem
parar, com três câmeras, exatamente como em um motim. Os operadores de câmera
iam pro lado para recarregar o aparelho e depois voltavam. Os atores saltavam,
gritavam, punham fogo. Eles puseram fogo no cenário, depois vinham com água para
apagar (BROOK, 1966: s/p).
Referências
BROOK, Peter.
Entretien avec Denis Bablet. Travail Théâtral, n°10. Paris: Éditions de la Cité Lausanne,
outubro/janeiro, 1973, s/p.
______.
Depoimento dado ao jornal inglês The Guardian. Londres, 28 de junho de
1966, s/p.
______. Entrevista à Margareth Croyden.
Lunatics, lovers and
poets. The contemporary
experimental theatre. Nova York: Mc Graw Hill Book Company, 1974.
______.
L’espace vide. Paris: Seuil, 1977.
______.
Points de suspension. 44 ans
d’exploration théâtrale. 1946-1990. Paris: Éditions du Seuil, 1992.
SONTAG, Susan.
Marat-Sade….Et Artaud. In: L’œuvre parle. Essais. Paris: Seuil, 1966.
VEILLON,
Olivier-René. Marat/Sade: la célébration des actes du théâtre. Brook. Les
voies de la création théâtrale, vol. XIII. Paris: CNRS, 1985.
WEISS, Peter. Notes sur
l’arrière-plan historique de la pièce. Marat/Sade ou La Persécution et
l’Assassinat de Jean-Paul Marat représentés par le groupe théâtral de l’hospice
de Charenton sous la direction de Monsieur de Sade. Drama em dois atos. Traduzido do alemão por Jean Baudrillard. Paris: L’Arche, 2000.
Notas
1 As traduções são de minha autoria.
2 De todas as suas peças,
somente uma foi montada em um teatro, no período em que Sade esteve fora da
prisão (1790 a 1801) – Oxtiern ou as
desgraças da libertinagem. A peça, considerada um escândalo, foi retirada
imediatamente de cartaz.
GABRIELA
LÍRIO GURGEL MONTEIRO é Professora Adjunta de Direção Teatral na Escola de
Comunicação da UFRJ. Possui graduação em Comunicação Social (Jornalismo/1995),
Mestrado (1999) e Doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (2004), com estágio doutoral na Université Paris III
Sorbonne-Nouvelle (2002). Sua tese de doutorado Teatro e cinema na obra de
Peter Brook, co-orientada por Georges Banu, tem lançamento previsto para o
ano que vem. É autora dos livros A procura da palavra no escuro
(7Letras, 2001) e Interseções: Cinema e Literatura (7Letras, 2010).
Pesquisadora do CNPq, desenvolve atualmente a pesquisa A teatralidade
cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de imagens
(bolsas PIBIC-UFRJ/FAPERJ). Acaba de iniciar uma nova pesquisa intitulada Autobiografia
na cena contemporânea: entre a ficção e a realidade.
GABRIELA LÍRIO GURGEL MONTEIRO is associate
professor of stage direction at the School of Communication of the Federal
University of Rio de Janeiro – UFRJ. She is bachelor of Social Communication
(Journalism/1995). She earned a Master of Arts (1999) and a PhD in Arts from
the Catholic University of Rio de Janeiro (2004) as well as a scholarship to do
part of her PhD studies at Université Paris III (2002). A book based on her
doctoral thesis – Theater and Film in Peter Brook´s work (Teatro e cinema na
obra de Peter Brook), supervised by Georges Banu – is scheduled for release
next year. She is also the author of: The Search for the Word in the Dark (A
procura da palavra no escuro, 7Letras, 2001) and Intersections: Film and
Literature (Interseções: Cinema e Literatura, 7Letras, 2010). She is
currently a researcher of the CNPq program, developing the project: The
Cinematic Theatricality and Use of New Devices in the Production of Images (A
teatralidade cinematográfica e o uso de novos dispositivos na produção de
imagens) (PIBIC-UFRJ/FAPERJ scholarships). She recently started a new
research project entitled: Autobiography in the Contemporary Scene: between
Fiction and Reality (Autobiografia na cena contemporânea: entre a ficção e a
realidade).