CORPOS NUS E SEMINUS NA COREOGRAFIA CONTEMPORÂNEA: INTIMIDADE E EXPOSIÇÃO EM AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS E EM BUNDAFLOR BUNDAMOR

NAKED AND HALF NAKED BODIES IN CONTEMPORARY CHOREOGRAPHY: INTIMACY AND EXPOSURE IN AQUILO DE QUE SOMOS FEITOS AND IN BUNDAFLOR BUNDAMOR

Mônica Fagundes Dantas

(UFRGS)

Resumo             

Este artigo propõe uma reflexão sobre a presença do corpo nu na criação coreográfica contemporânea, tendo como referências Aquilo de que somos feitos, da Lia Rodrigues Companhia de Danças; e Bundaflor Bundamor, da Eduardo Severino Companhia de Dança. Utilizando a etnografia e a autoetnografia como abordagens metodológicas, ressaltam-se os aspectos relacionados à nudez, à intimidade e à exposição a partir do ponto de vista dos intérpretes e da coreógrafa, em Aquilo de que somos feitos, e da perspectiva da própria pesquisadora, que também atua como intérprete em Bundaflor Bundamor.

Palavras-chave | Nudez | Semi-nudez | Coreografia | Etnografia | Auto-etnografia

Abstract

This study proposes a reflection on the presence of the naked body in contemporary choreography, using as examples the pieces: Aquilo de que somos feitos (What we are made of), by Lia Rodrigues Dance Company; and Bundaflor Bundamor, by Eduardo Severino Dance Company. By adopting an ethnographical and auto-ethnographical standpoint, some aspects of nakedness, intimacy and exposure are described: both from the performer’s and the choreographer’s point of view (in Aquilo de que somos feitos) and from the present researcher’s position (in Bundaflor Bundamor, in which the author also partakes as a performer).

Keywords | Naked | Half-naked | Choreography | Ethnography | Auto-ethnography

 

Introdução

A presença do corpo nu na dança contemporânea não é novidade. Huesca (2005) retraça esta presença desde o início do século XX, destacando as criações de dançarinos como Isadora Duncan e Rudolf Laban, a partir de 1910, nas quais o corpo nu encarna a harmonia com a natureza idílica e a regeneração da condição humana. No entanto, o autor não se refere às experimentações dos artistas da chamada dança pós-moderna estado-unidense, mas não se pode esquecer, nesse inventário, de artistas como Yvonne Rainer, que levou à cena uma das versões de Trio A (1966), interpretada por dançarinos nus, cobertos pela bandeira dos Estados Unidos. A partir dos anos 1990, o corpo nu se torna cada vez mais presente na produção coreográfica contemporânea, seja na Europa, na América do Norte ou no Brasil. Desse modo, obras de coreógrafos europeus como Aatt enen tionon (1996) de Boris Charmatz, Self Unfinished (1998) de Xavier Le Roy, Still Distinguished (2000) de La Ribot, de coreógrafos canadenses como Confort et Complaisance (2000) de Benoît Lachambre e Amour, acide et noix (2001) de Daniel Léveillé, ou ainda, obras de coreógrafos brasileiros como Vênus é um menino (1995) de Andrea Druck, O samba do crioulo doido (2003) de Luiz de Abreu, Aquilo de que somos feitos (2000), Formas Breves (2004) de Lia Rodrigues, Bundaflor Bundamor (2008) da Eduardo Severino Companhia de Dança fazem do corpo nu ou seminu a matéria primordial das suas criações. A nudez, nessas coreografias, pode servir a fins diversos: deslocar as referências convencionais sobre a morfologia do corpo humano, expor a fragilidade e a vulnerabilidade do corpo dançante, servir como dispositivo de sedução e/ou de provocação do espectador, questionar os processos de criação e encenação em dança contemporânea.

Partindo deste contexto, proponho uma reflexão sobre a presença do corpo nu na criação coreográfica contemporânea, tendo como referência Aquilo de que somos feitos, da Lia Rodrigues Companhia de Danças e Bundaflor Bundamor, da Eduardo Severino Companhia de Dança. Tais reflexões se constituem como desdobramentos da pesquisa realizada para a elaboração da minha tese de doutorado (Dantas, 2008), que visava compreender como a participação nos processos de criação, manutenção e reconstrução coreográfica contribui para a construção de corpos dançantes no contexto da obra de coreógrafos contemporâneos brasileiros, buscando, em paralelo, traços e manifestações de brasilidades nas obras examinadas. Além da Lia Rodrigues Companhia de Danças, realizei um estudo com a companhia dona orpheline danse de Sheila Ribeiro. O estudo com a Eduardo Severino Companhia de Dança não fez parte da tese.

As escolhas metodológicas buscaram coerência com os objetivos da pesquisa, conduzindo a uma investigação qualitativa, de caráter predominantemente etnográfico. Meu trabalho de coleta de informações junto à Lia Rodrigues Companhia de Danças deu-se durante os ensaios preparatórios para a apresentação do espetáculo Aquilo de que somos feitos em São Paulo. As observações dos ensaios começaram no Rio de Janeiro, no local onde a Companhia trabalha normalmente, e continuaram em São Paulo, no local onde o espetáculo foi apresentado, ou seja, em três andares ou mezaninos que constituem uma parte das instalações do Instituto Cultural Itaú, onde estava sendo realizada a exposição de artes visuais “Anos 70: Trajetórias”. Durante esse período, realizei entrevistas com oito intérpretes (Amália Lima, Ana Carolina Rodrigues, Jamil Cardoso, Marcela Levi, Marcele Sampaio, Micheline Torres, Renata Brandão e Rodrigo Maia) e com a coreógrafa (Lia Rodrigues), e utilizei um diário de campo para registrar minhas impressões. Utilizei também, como documentos auxiliares, programas de espetáculos, material de divulgação da companhia, matérias publicadas na imprensa escrita e artigos da crítica especializada. As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, e analisadas a partir da identificação de unidades de base e da posterior elaboração de categorias para análise e interpretação. Com o consentimento dos entrevistados, suas identidades foram desveladas.

O trabalho de campo com a Eduardo Severino Companhia de Dança aconteceu durante os ensaios para a criação do espetáculo Bundaflor Bundamor, de março a maio de 2008, em Porto Alegre, na Sala 209 da Usina do Gasômetro e continuou durante a temporada da peça neste mesmo espaço, durante os meses de maio e junho deste mesmo ano. Em Bundaflor Bundamor atuei como bailarina, num processo de colaboração com os demais intérpretes, Dani Boff, Luciana Hoppe, Eduardo Severino e Luciano Tavares. Os dois também assinam a concepção do espetáculo, que teve direção de Bia Diamante. Participei também da elaboração do material de divulgação da peça e auxiliei em algumas etapas da sua produção. Desse modo, o processo de coleta de informações foi fortemente influenciado pela minha participação como intérprete e co-criadora. De uma experiência como observadora participante, no estudo anterior, passei a uma experiência de participante observadora, ou seja, as sensações, percepções e reflexões decorrentes da minha presença como artista envolvida na elaboração da obra pesquisada constituíram os principais dados a serem coletados. Durante o período de realização dos ensaios, registrei muitas das minhas impressões em notas esparsas, juntamente com alguns diálogos informais ocorridos durante os ensaios. No entanto, muitas outras impressões, diálogos e situações foram ressurgindo durante a preparação deste artigo. Sendo assim, este segundo estudo encontrou na auto-etnografia uma das principais referências metodológicas. Como destaca Fortin (2009), a auto-etnografia vem se consolidando como uma escrita de si, que permite o ir e vir entre as experiências pessoais e as dimensões culturais, buscando reconhecer, questionar e interpretar as próprias estruturas e políticas do eu. Utilizei, também, material de divulgação da peça, matérias publicadas na imprensa escrita e artigos da crítica especializada. A análise da informação ocorreu através da leitura e sistematização do material transcrito, permitindo a emergência de temas que guiaram a reflexão e a escrita.

Neste artigo, ressalto os aspectos das análises relacionados à nudez, à exposição e à intimidade, da perspectiva dos intérpretes e da coreógrafa, em Aquilo de que somos feitos, e o meu próprio ponto de vista como intérprete em Bundaflor Bundamor.

Aquilo de que somos feitos: o avesso do corpo, o avesso do mundo

Aquilo de que somos feitos estreou em 2000 no Rio de Janeiro, tendo sido apresentado por mais de cinco anos, percorrendo várias cidades brasileiras, europeias e norte-americanas. A peça segue dois eixos: uma pesquisa sobre a materialidade do corpo, do tempo e do espaço – o que eu chamo de avesso do corpo – e um conjunto de questionamentos e de denúncias sobre o mundo contemporâneo, formulados em forma de dança – o que eu chamo de avesso do mundo. A peça foi concebida para ser apresentada num espaço compartilhado por intérpretes e público. Desse modo, não há cadeiras nem lugares reservados para os espectadores, que podem se sentar no chão e que são convidados a se deslocarem para melhor apreciar uma cena. Em outros momentos, dançarinos e dançarinas se misturam com o público, realizam as sequências coreográficas dispersos entre o público.

Na primeira parte da peça, corpos nus criam formas dispersas por entre o público. Lia Rodrigues conta que, durante a criação da coreografia, pedia aos dançarinos que experimentassem posições e sequências em que o corpo parecia estranho, esquisito, bizarro: “[…] era um coisa muito íntima, essas posições estranhas, às vezes nos ensaios dava nojo, pareciam frangos, pareciam aliens (RODRIGUES, 2001: p.3). Uma das perguntas que ela fazia aos dançarinos era esta: “Como o corpo pode virar uma coisa que não estamos acostumados a ver?” Para provocar esse estranhamento, a coreógrafa e seus colaboradores trabalharam também sobre a temporalidade, propondo uma dilatação do tempo de observação dos corpos. Lia Rodrigues desejava encontrar o tempo necessário para que o espectador pudesse perder suas referências quando olhava para esses corpos. Os dançarinos nus, que, no começo do espetáculo, se transmutam em formas insólitas que secretam uma estranha beleza, tornam-se seres humanos sem identidade, nivelados pela exposição de seus corpos enfileirados em posições estáticas e por sua transformação em carne, quase em cadáveres: corpos empilhados uns sobre os outros, que tremem de tempos em tempos. A cena descrita anteriormente serve de transição à segunda parte do espetáculo, em que os dançarinos retornam vestidos para executar movimentos ritmados por uma música que lembra paradas militares. Eles gritam palavras de ordem – “Peace”, “O povo unido jamais será vencido” – e slogans publicitários – “Nikkon-Sakê-Picachu”, “Porque eu mereço” –; divertem-se, cantam e dançam em círculo; e finalizam o espetáculo com uma marcha em que sussurram “Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás.


Imagem 1: Aquilo de que somos feitos. Foto: Tatiana Altberg.

Nu, mas vestido de ideias

Segundo a coreógrafa e os dançarinos e dançarinas que participaram da criação de Aquilo de que somos feitos — Marcela Levi, Micheline Torres, Rodrigo Maia, Marcele Sampaio – a nudez surgiu como um exigência da coreografia. Micheline conta que durante a criação da primeira parte da peça, enquanto experimentavam as formas/figuras estranhas com seus corpos, eles e elas começaram a perceber que precisavam ficar nus, pois as roupas limitavam os movimentos e escondiam algumas partes dos corpos que seriam importantes para a composição dessas figuras. Assim, quando se tratava do trabalho de composição dessas formas, a nudez era facilmente aceitável para os intérpretes, como ressalta Marcele. Na primeira cena em que ela aparece nua, ela executava a figura da “ema”1 e estava um pouco escondida por duas dançarinas que compunham a figura anterior, o “Ananias”. O fato de estar nua não lhe causava problemas. Marcele explica que na composição desta cena, a luz desenhava o corpo, ajudando a compor as formas. O corpo se apresentava então como uma forma abstrata, sua morfologia se mostrava diferente da habitual. A nudez fazia parte da composição dessa figura e a pele tornava-se o figurino adequado à cena. Mas à medida que a criação de Aquilo de que somos feitos avançava, a nudez parecia ser ainda necessária. Marcele relata que quando da criação da cena da “linha”, a coreógrafa e os intérpretes se deram conta que deviam continuar nus. Nesta cena, dançarinas e dançarinos se colocam lado a lado, mostrando-se de frente, de lado, de costas para o público e acabam por deitar de bruços no chão. Em seguida, eles começam a tremer, empilhando-se uns sobre os outros até formarem uma montanha de corpos; eles recomeçam a tremer e, sempre deitados no solo, atravessam a sala, abrindo caminho entre os espectadores. Ao longo desta cena, dançarinas e dançarinos expõem seus corpos despojados de artifícios como os efeitos da luz e o virtuosismo dos movimentos dançados. Marcele Sampaio e Micheline Torres explicam que, para concordar com essa exposição do seu corpo, cada pessoa na companhia passou por um tipo de conflito pessoal, “[...] porque é muito diferente de você representar personagens, não tem personagem, então é nu e cru” (SAMPAIO, 2001). Elas ressaltam que a nudez provocou um confronto com seu próprio corpo, com suas perfeições e imperfeições: “[...] não foi fácil para a gente ficar sem roupa, principalmente porque […] tem sempre essa coisa da gente ter um ideal de beleza e bailarino deve ter um corpo maravilhoso e cada um tem o seu corpo, não é?” (TORRES, 2001).

Imagem 2: Aquilo de que somos feitos. Foto: Tatiana Altberg.

Como explicam Marcele e Micheline, uma das razões pelas quais elas experimentaram sentimentos confusos em relação à nudez está no fato de não perceber o seu corpo como um corpo perfeito, de acordo com os modelos de corpo prescritos para os dançarinos: magro, musculoso, alongado e de proporções perfeitas. Esse modelo de corpo, com algumas variações, é também hegemônico nas sociedades contemporâneas. De certo modo, a nudez em Aquilo de que somos feitos confronta intérpretes e público ao fenômeno da corpolatria, tão presente nas sociedades brasileiras (MALYSSE, 2002), acostumadas à presença de corpos seminus, em situações constantemente veiculadas pelas mídias, como a praia e o carnaval. No entanto, essa seminudez é, em geral, adornada, possibilitando a exposição de um corpo sedutor se projetando igualmente na vida cotidiana. Malysse  sublinha que, se o corpo se desnuda, a seminudez não é natural, mas culturalmente regulamentada, seguindo códigos de como se vestir e se desvestir: “[...] no Brasil, é o corpo que parece estar no centro das estratégias do vestir. [...] as brasileiras expõem o corpo e frequentemente reduzem a roupa a um simples instrumento de sua valorização, uma espécie de ornamento” (MALYSSE: 2002, p.110).  Para o autor, essa corpolatria institui o corpo bronzeado, musculoso e sempre em exposição como um dos principais elementos de definição da identidade individual. Desse modo, o aspecto do corpo de cada pessoa torna-se uma verdadeira fachada social.

 

Em Aquilo de que somos feitos, a presença do corpo nu não reforça esse modelo de corpo, pois a nudez não é adereço e não serve necessariamente para seduzir o público. Talvez a nudez tenha mesmo uma função oposta, pois o corpo nu se apresenta como um corpo despojado e até mesmo frágil. Como destaca a coreógrafa, a nudez se impunha como uma condição: “Estávamos criando um espetáculo para falar do que está dentro, do avesso desse país, da banalidade com que Benetton, Carandiru e Pikachu são apenas palavras no noticiário”. Lia relata ainda que o grupo começou a ler “[...] essas revistas de personalidades e rir e ter nojo. Estar nu, confrontar as pessoas com o corpo real, o que está por baixo das roupas de grife, da lipoaspiração, dos uniformes, foi sendo claro para nós” (RODRIGUES apud LOPEZ, 2001: p.12).  

A nudez, em Aquilo de que somos feitos, revela também a intimidade e a fragilidade dos intérpretes. Lia comenta que a peça fala da intimidade de cada um; ela diz que não seria talvez capaz de estar nua em cena, porque teria vergonha. Este desvelar da intimidade aparece na composição das figuras da primeira parte da peça, quando as posições dos corpos permitem ver as protuberâncias, as dobras, os orifícios, as fendas, os pelos, tudo o que geralmente está escondido ou disfarçado no corpo. E se materializa também nos momentos em que os intérpretes estão simplesmente de pé, de frente para o público, ou quando se empilham como uma montanha de cadáveres.  

Por outro lado, a nudez, tal como foi abordada na peça, representa também uma possibilidade de se tornar mais potente, de amadurecer e de se tornar “mais respeitoso em relação a si mesmo”, como diz Marcele Sampaio, pois Aquilo de que somos feitos oferece um contexto para a nudez, e o corpo nu não é percebido pelos intérpretes como um evento gratuito. Assim, mesmo estando completamente nus, bailarinas e bailarinos se sentem vestidos pelas ideias veiculadas pela obra. Rodrigo Maia relata que, tendo sido questionado sobre o figurino da peça, respondeu: “é nu”. Ele explica que isso provocou outras reflexões sobre a nudez: “comecei a perceber que me sinto vestido, pois estou completamente de acordo com o que acontece nesse trabalho”. Rodrigo sublinha que “[...] as ideias são minhas roupas e então não tem importância se eu me mostro com o pênis flácido, se eu mostro a bunda para todo mundo. Por quê? Porque as ideias são fortes” (MAIA, 2001). É possível perceber nas falas dos dançarinos e das dançarinas que a maneira como cada um se prepara, se apresenta e se comporta em cena resulta da profunda convicção com que cada um se engaja no trabalho. Assim, se os intérpretes de Aquilo de que somos feitos se sentem vulneráveis por causa da nudez e da proximidade com o público, sentem-se igualmente íntegros e conectados entre si e com o público. Como destaca Rodrigo, tudo o que se faz na peça está de acordo com uma verdade que se deseja comunicar e da forma como é comunicada. Assim, essa forma de nudez é a maneira mais adequada de se expressar o que esses artistas desejam nessa criação. Nesse sentido, a nudez é também uma demanda poética.

Bundaflor Bundamor: qual a personalidade de sua bunda?

Budaflor Bundamor, como a maior parte das obras da Eduardo Severino Companhia de Dança, foi concebida por Eduardo Severino e Luciano Tavares. Geralmente, os dois são também os intérpretes de suas criações, mas neste trabalho fizeram parte mais três bailarinas: Dani Boff, Luciana Hoppe e eu. Fomos chamadas porque, para dançar a bunda, se fazia necessária a presença de mulheres. Luciana fazia o papel do diabo, que “costurava” as cenas.

Budaflor Bundamor era um projeto que amadurecia há pelos menos dois anos na companhia. Quando fui chamada para compor o elenco, já havia algumas cenas e sequências coreográficas prontas. Participar deste projeto, para mim, significava retornar a uma forma de criação em grupo que fizera parte da minha trajetória, mas da qual eu estava afastada há quase nove anos, embora, na minha pesquisa para o doutorado, tivesse observado grupos de dança em processos de criação. Mesmo já tendo concluído minha pesquisa, não pude deixar de me interessar pelo fato de que Bundaflor Bundamor era, também, uma interrogação que Eduardo e Luciano faziam à sua brasilidade. Eles propunham uma brincadeira com clichês de uma possível cultura brasileira, tais como a bunda como “paixão nacional” e instigavam reflexões acerca de nossas concepções e vivências de brasilidade.

A obra tem inspiração, como não poderia deixar de ser, na bunda de cada um, mas também na bunda que habita o imaginário de todos. Diversas referências foram utilizadas: o livro Breve história das nádegas de Jean-Luc Henning (1997); o poema A bunda que engraçada de Carlos Drummond de Andrade (2002); a observação de bundas (como apêndices de pessoas) caminhando pelas ruas; as semelhanças e diferenças entre as nádegas femininas e masculinas.

Durante o processo de criação, relembramos brincadeiras infantis que se relacionassem a essa parte do corpo; revisitamos elementos de antigos carnavais; ironizamos os desfiles de moda; buscamos movimentos que se originassem dos quadris, tentando precisar uma “técnica da bunda”, que permitisse a emergência de uma gestualidade própria a esta região do corpo. Durante o processo de criação, Eduardo nos questionava: “Como seria a personalidade da bunda de cada um?”

A peça inicia com uma corrida de revezamento na posição sentada, homens contra mulheres, onde o bastão é uma banana, ingerida logo em seguida. Segue-se um trenzinho de carnaval à moda antiga, ao som de uma célula de percussão repetida inúmeras vezes. Até aqui, as bundas estão todas vestidas. Nós as despimos na cena seguinte e tornamos a vesti-las para parodiar um desfile de moda. Segue-se a cena de expulsão do diabo, ao som da frase “Acreditava-se, antigamente, que o diabo não tinha bunda: era sua fraqueza” repetida inúmeras vezes pelo elenco e que culmina com a coreografia para o Melô do Piripiri, de Gretchen. Encaminhando-se para o fim, cada dançarino explora as qualidades de movimento de sua bunda, agora vestida, através de curtos solos, emoldurados por um corpo de baile composto por nádegas desnudas. Na cena final, aproveitando as condições próprias da sala, as bundas são emolduradas na parede, como quadros.

Imagem 3: Cartaz de Bundaflor Bundamor. Fotografias de Lu Mena Barreto. Ilustração de Cárcamo. Projeto gráfico: Adriana Sanmartin.

A nudez das bundas

Talvez uma das melhores qualidades da peça seja o bom humor e a ironia com que o tema é abordado: “Severino investe no humor, no lúdico, o que repercute com sorrisos e risadas da platéia durante o espetáculo, desarmando quem entra na sala 209 tensionado com a expectativa de presenciar nudez de uma parte tão, digamos, sensível”, como destaca Mendonça (2008). A presença de corpos nus (ou de bundas nuas) em cena pode realmente provocar embaraços nos espectadores, pois, como ressalta Pavis (2007), há um erotismo inevitável ao se confrontar uma pessoa de carne e osso nua à sua frente, mas há também um constrangimento ainda maior, um prazer atenuado pelo medo de ser pego em flagrante delito de voyeurismo. Como intérpretes, também tivemos de lidar com certos constrangimentos ao longo da criação e das apresentações. Recorrer ao lúdico ajudou a tornar mais leve o fato de termos que desnudar as nádegas.

Por outro lado, tentamos evitar as referências mais explícitas às funções eróticas ou sexuais da bunda. Como escreve Bia Diamante no programa do espetáculo, “Falar da parte posterior do corpo e em especial da bunda não é fácil. O tema é forte e cheio de ciladas, tipo bum-bum de biquíni asa-delta. Não era isso que queríamos. Mas também fingir que elas não existem não dá, não é mesmo?”. O que não significa que não havia sensualidade no trabalho: havia momentos em que me sentia voluptuosa como uma vedete de teatro de revista. Durante a criação da peça, a exploração de movimentos oriundos do quadril permitiu a emergência de uma postura corporal de base bastante sinuosa, que fazia com que eu percebesse meu corpo mais amplo e dilatado. E mais sensual.

Paradoxalmente, os momentos de maior sensualidade na peça eram aqueles em que a bunda estava vestida; eram menos sensuais porque consistiam em, simplesmente, mostrar a bunda. Em uma destas cenas, parados de frente para o público, um a um abaixamos a parte posterior da roupa (bermuda em cotton para os homens, calcinhas grandes e estampadas em lycra para mulheres), cruzamos os braços e nos viramos de costas para o público. Ao som de Não me diga adeus, de Aracy de Almeida, ficamos um tempo parados, intercalando tremidas dos quadris e contrações esparsas dos glúteos. A música é repetida mais duas vezes, e Eduardo e Luciano executam uma coreografia que, num primeiro momento, ressalta movimentos e posturas masculinas, mas que termina com um delicado e sinuoso solo de Luciano.  Estes eram, para mim, alguns dos momentos mais íntimos do trabalho, embora houvesse outras cenas em que dançávamos com as nádegas à mostra. No entanto, nenhuma outra situação me provocava essa sensação de exposição e intimidade, pois desvestir a bunda e virar de costas para o público é oferecer uma parte vulnerável do corpo, compartilhando algo que me é íntimo. Recordo que algumas vezes pensava no que poderiam pensar os espectadores instantes antes de eu virar de costas; havia, pois, entre a ação de abaixar as calcinhas e de virar de costas, uma certa hesitação. Hesitação semelhante a que sinto ao escrever sobre minha experiência em dançar com a bunda à mostra, o que não deixa de ser uma outra maneira de me expor.

Em Bundaflor Bundamor não se trata necessariamente da nudez do intérprete, mas da nudez da bunda. Ou mesmo de uma seminudez, pois as nádegas são emolduradas pelas calças abaixadas. Retornando a Malysse (2002), é preciso sublinhar que a seminudez aqui proposta não é necessariamente aquela que ressalta a sedução; comparando novamente com as bundas femininas expostas nas praias brasileiras, com seus biquínis que adentram pelos vãos das nádegas, as calcinhas abaixadas expõem a bunda na sua inteireza, sem muitas possibilidades de disfarce. Assim, na maior parte das vezes em que as bundas estão nuas, elas não são mais um elemento na composição plástica da cena, desenhadas pela luz e transformadas pelas formas que assumem, elas aparecem como são, bundas dançantes em carne, osso, pele, tecido adiposo.


Imagem 4: Bundaflor Bundamor. Foto: Lu Mena Barreto.

Encaminhando considerações transitórias

Na primeira parte de Aquilo de que somos feitos, corpos nus e silenciosos se entregam ao público. Em Bundaflor Bundamor, bundas são desnudadas sem artifícios. Em ambos, a intimidade de cada intérprete é compartilhada com os espectadores.  Para desvelar esses corpos íntimos, dançarinas e dançarinos tiveram de aceitar seus corpos nas suas perfeições e imperfeições, tiveram de se fragilizar e se expor, abdicando de uma corporeidade gloriosa e virtuosa para favorecer uma presença corporal mais modesta e ordinária – eu diria mesmo, mais humana.

Retornando ao primeiro parágrafo deste texto, eu me interrogo se a presença do corpo nu nas obras analisadas insere-se numa certa tendência da dança contemporânea. De certa maneira, sim, pois o corpo nu como material para a composição plástica, a fragilidade dos corpos nus expostos sem artifícios ao olhar do público, a nudez como forma de posicionamento político e ideológico são aspectos presentes em Aquilo de que somos feitos e em Bundaflor Bundamor, assim como em outras produções contemporâneas em dança, sejam europeias, norte-americanas, latino-americanas ou brasileiras. Os artistas que participaram destes dois trabalhos têm consciência de que compartilham determinadas visões de corpo, de dança e de mundo com tantos outros artistas mundo afora. No entanto, estão também conscientes das relações assimétricas que podem se estabelecer quando se confrontam produções brasileiras/latino-americanas com produções europeias e norte-americanas.

Muitas vezes, Aquilo de que somos feitos é comparada a Self Unfinished, de Xavier Le Roy, e Lia é indagada sobre a influência de Self Unfinished na sua obra. Mas a coreógrafa diz que na primeira vez em que encontrou Xavier Le Roy, ele lhe perguntou sobre a influência de Lygia Clark no seu trabalho. Lia devolve então a pergunta: “Aquilo de que somos feitos é uma imitação? Quem copia quem? Em relação ao nu, agora todo mundo dança pelado”, exclama a coreógrafa, ressaltando que a nudez é um aspecto presente na cultura brasileira: “eu digo que os europeus aprenderam a ficar nus com a gente” (RODRIGUES, 2001). A resposta irônica de Lia pode soar como uma provocação, mas ela sinaliza para o desejo e a necessidade de afirmar a qualidade de uma produção artística ainda considerada como periférica. Além disso, inverte as expectativas em relação à ideia do original e da cópia, sugerindo que a nudez é um fenômeno familiar aos brasileiros – a nudez dos povos indígenas, a nudez da praia, a nudez do carnaval – recuperada pelos europeus.

Bundaflor Bundamor, por sua vez, embaralha as expectativas sobre a exposição da bunda nas sociedades contemporâneas, seja por privilegiar a ostentação da bunda masculina em detrimento da bunda feminina, seja por exibir de modo semelhante bundas masculinas e femininas: a bunda, em Bundaflor Bundamor, seja ela masculina ou feminina, é curva e plenitude, dobra e reentrância, é carne ambígua. E é ambiguidade encarnada.

O trabalho também brinca com a bunda mestiça, seja pela incorporação de movimentos inspirados no samba, seja pela presença de Luciano Tavares, afro descendente dono da bunda mais bonita em cena. Em seus solos, são realizados movimentos em que os braços estão imobilizados juntos às costas, com uma mão segurando o outro punho cerrado. Seus movimentos são suaves e sinuosos, há muita delicadeza quando ele dança; e, não obstante a beleza da cena, as imagens que suscitam em mim remetem ao corpo negro escravizado.

Como reconhece Pavis (2007: p.263), “se a nudez não é mais, pelo menos no Ocidente, um problema ético, ela é sempre o espaço de uma crise existencial, o tubo de ensaio e a caixa de ressonância da visualização da vida e da morte, do gozo e do terror”. Aquilo de que somos feitos e Bundaflor Bundamor, cada um à sua maneira, convidam o espectador a se desestabilizar, a olhar de outro modo para os corpos nus e seminus à sua frente ou ao seu redor e, talvez, a olhar e a perceber o seu próprio corpo (e a sua própria bunda) de maneiras diversas.


Referências

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DANTAS, Mônica. Ce dont sont faits les corps antropophages: la participation des danseurs à la mise en œuvre chorégraphique comme facteur de construction de corps dansants chez deux chorégraphes brésiliennes. 2008. 434 f. Tese (Doutorado) Université du Québec à Montréal, Montreal, 2008.

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FORTIN, Sylvie. Contribuições possíveis da etnografia e da auto-etnografia para a pesquisa na prática artística. Revista Cena, n. 7, 2010. <http://seer.ufrgs.br/cena/article/view/11961>. Consultado em abril de 2010.

HENNING, Jean Luc. Breve história das nádegas. Lisboa: Terramar, 1997.

HUESCA, Roland. Les différents corps de la technique. Quant à la danse, n. 2, juin, p. 30-40. 2005.

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TORRES, Micheline. Entrevista concedida à autora. São Paulo, 21 de novembro de 2001.

Vídeo - extensão para youtube:

Aquilo de que somos feitos: http://www.youtube.com/watch?v=kDu4zKnKZvM

Bundaflor Bundamor: http://www.youtube.com/watch?v=-Qk3z-Crz3s

 

 



Notas

1 Os intérpretes inventam nomes para os diferentes momentos da coreografia.

 

 

MÔNICA DANTAS é Doutora em Estudos e Práticas Artísticas pela Université du Québec à Montreal (Canadá) e Mestre em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunta da UFRGS desde 1995, nos cursos de graduação em Educação Física e em Dança é também professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/Mestrado do Instituto de Artes da UFRGS e integra o conselho editorial da Revista Movimento (UFRGS), da Revista Cena (UFRGS) e da Revista da Fundarte (FUNDARTE/UERGS). Bailarina com formação em dança moderna e contemporânea, fez parte de diversos grupos e coletivos de dança em Porto Alegre. Integra o Coletivo de Artistas da Sala 209 – Projeto Usina das Artes. Em 2010 concebeu e coordenou o projeto “dar carne à memória, celebração do repertório coreográfico de Eva Schul”, agraciado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança 2009.

MÔNICA DANTAS earned a PhD in Études et pratiques des arts at the Université du Québec à Montréal and her M.A. in Human Movement Sciences at the Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). She is an associate professor of UFRGS in Porto Alegre, Brazil, since 1995, where she teaches at the undergraduate program in Physical Education and in Dance. She is also adjunct professor at the master´s course of the postgraduate program in Performing Arts of the Arts Institute of UFRGS and a member of the editorial council of the magazines: Revista Movimento (UFRGS), Revista Cena (UFRGS) and Revista da Fundarte (FUNDARTE/UERGS). She is a dancer trained in modern and contemporary dance and has been part of various groups and dance collectives in Porto Alegre. She is a member of the artist´s collective Sala 209 – projeto Usina das Artes. In 2010 she conceived and coordinated the project “dar carne à memória, a celebration of the choreographic repertory of Eva Schul”, which was awarded the Prêmio Funarte Klauss Vianna de Dança of 2009.