O OUTRO NA
PESQUISA E AÇÃO DA DANÇA CONTEMPORÂNEA
THE OTHER IN THE RESEARCH AND ACTION OF
CONTEMPORARY DANCE
Jussara
Xavier
(UDESC)
Resumo
O artigo é tecido
a partir de observações da execução do projeto Retrato do Outro, realizado durante o ano de 2009 em Joinville,
Santa Catarina (SC), com improvisações de dança da bailarina Erika Rosendo num
espaço público. Recorre-se a teóricos voltados aos estudos do corpo, da dança
contemporânea, do teatro pós-dramático e, em especial, das relações entre gesto
e percepção, para explicitar o fenômeno problematizado.
Palavras-chave | Dança contemporânea | Corpo | Percepção | Espaço | Tempo
Abstract
The article is built on
observations of the project Retrato do Outro,
realized during 2009 in Joinville, Santa Catarina
(BR) and which consisted of dance improvisations by Erika Rosendo in a public
space. Theoretical studies about the body, texts on contemporary dance,
post-dramatic theater and, in particular, on the relationship between gesture
and perception, are used to describe the object of study.
Keywords | Contemporary dance | Body |
Perception | Space | Time
A dança contemporânea busca continuamente diferentes alternativas para
construção e atualização de procedimentos estéticos. Uma de suas estratégias
consiste em modificar as possíveis relações entre corpo e objeto, ou seja,
provocar mudanças materiais para requalificar e redefinir a diversidade de
elementos da composição cênica e, sendo assim, a própria dança. Trata-se de
pensar e testar diferentes usos dos signos e instituir outras lógicas de configuração.
Dedicada à prática do experimento e disposta a correr riscos (portanto
vulnerável também ao fracasso), firma-se como ponto de encontro provocador de novos
modos de percepção, do corpo que enuncia ao corpo que observa, e vice-versa. O
caráter heterogêneo, paradoxal e distorcido pertence à contemporaneidade da
dança, que solicita uma renovação acerca das perspectivas da recepção. Neste
contexto, a sinestesia aparece como traço marcante em
muitas propostas cênicas. Lehmann (2007: p.141)
explica que
O aparato sensorial humano
dificilmente suporta a falta de referência. Privado de seus nexos, ele procura
referências próprias, torna-se “ativo”, fantasia “descontroladamente”, e o que
lhe ocorre então são semelhanças, conexões, correspondências, mesmo as mais
remotas. O rastreamento de conexões anda junto com a desamparada concentração
da percepção nas coisas que se oferecem. [...] A sinestesia imanente ao
acontecimento cênico, [...] não mais consiste em um elemento implícito do
teatro como obra de encenação oferecida à contemplação, mas em uma oferta
explícita da atividade no teatro como processo de comunicação.
Esta percepção
sinestésica é ainda produzida pela estruturação não-hierárquica dos elementos
compositivos e a simultaneidade, capazes de sobrecarregar o aparato perceptivo.
Como não há possibilidade de apreender tudo que se oferece num mesmo instante,
a percepção é fragmentada e cabe ao espectador escolher e acompanhar não a
totalidade do espetáculo, mas aquilo que ele mesmo selecionou. Uma liberdade de
cunho excludente e limitado (LEHMANN, 2007: p.147).
Contrariando as tradições, a dança contemporânea solicita uma
percepção flutuante. A ação toma o lugar do discurso e derruba paradigmas. Instaura-se
como acontecimento único, situação instável e provocativa, atuação em processo
(e não como produto pronto e finalizado).
Este artigo explora importantes variáveis da cena da dança
contemporânea a partir da experiência da bailarina-criadora Erika Rosendo1
no projeto Retrato do Outro2:
corpo, espaço, tempo, além de dualidades como palco-platéia, artista-espectador,
realidade-ficção, natureza-cultura, dentro-fora. No entanto, o ponto
primordial, de ligação entre todos os fatores apontados, é a percepção tomada
como algo particular, sempre “em relação a”. Considero que a significação do
movimento de dança ocorre tanto no corpo daquele que faz, quanto no corpo
daquele que observa. Godard (2001: p.24) explica que
O movimento do outro coloca em jogo a experiência de
movimento própria ao observador: a informação visual provoca no espectador uma
experiência cinestésica (sensações internas dos movimentos de seu próprio
corpo) imediata. As modificações e as intensidades do espaço corporal do
dançarino vão encontrar ressonância no corpo do espectador. O visível e o cinestésico, absolutamente indissociáveis, farão com que a
produção de sentido no momento de um acontecimento visual não deixe intacto o
estado do corpo do observador: o que vejo produz o que sinto e, reciprocamente,
meu estado corporal interfere, sem que eu me dê conta, na interpretação daquilo
que vejo.
Imagem 1: Erika Rosendo,
Projeto Retrato do Outro, 2009.
Foto: Eneas Lopes.
Corpo(s) outro(s)
Erika Rosendo realizou, ao longo do ano de
2009, uma série de performances de dança num espaço público bastante
movimentado da cidade onde habita: uma praça no centro de Joinville. Ao todo,
foram realizadas 15 interferências artísticas com duração de 1 hora cada, num
local de intenso trânsito de pessoas com personalidades, aparências e objetivos
muito diversos. Tais eventos foram agrupados num projeto nomeado Retrato do Outro, pensado dentro
da tendência da arte contemporânea de se voltar para o espaço da rua e da
vida cotidiana. O “outro”,
numa abordagem antropológica, se refere a uma construção identitária, ou seja,
um processo pelo qual um grupo constitui valores, representações e sentidos
próprios. Serve também para distinguir e indicar o diferente, o que não é o
mesmo. A proposta do trabalho Retrato do Outro consistiu na produção de imagens e ideias a partir
da percepção do outro, e utilizou a improvisação em dança para configurar o ato
cênico.
A improvisação teve papel
importante no projeto, elaborado como experimento para provocar diferentes
modos de pensar, fazer e ver dança. Por outro lado, a disposição em atuar num
espaço público, quer dizer, num local não convencional
para exibição da dança, revela um interesse em
extrapolar os limites dos espaços fechados para propor uma arte aberta e viva. Nesta
perspectiva, o espectador deixa de ser observador distanciado e torna-se parte
integrante do trabalho.
No momento inicial, a conduta de Erika consistia
em caminhar pela praça, procurando perceber tudo aquilo que ali se manifestava
enquanto outro. A composição da dança ocorria no trânsito das múltiplas
informações reconhecidas. A ideia era a de que tudo o que tem existência
material e sensível concorre para a dança. Uma movimentação refinada e
diferente da habitual se desenhava no corpo da intérprete. Em primeira
instância, nota-se que o assunto mais imediato de sua dança é o corpo.
Os estudos do corpo não cessam de problematizar
as relações que ocorrem entre corpo e ambiente. Como o corpo conhece? Como a
bailarina percebe e reconhece o ambiente? Como o outro se conecta ao seu próprio
corpo? Como se articula com sua memória, imaginação, consciência, desejo? Em
que medida tais trocas modificam seus estados corporais? Trata-se apenas de um
ver, ouvir, sentir?
Pesquisas atuais enfatizam a relação entre biologia e cultura no
próprio corpo humano, esse sistema altamente complexo dotado de movimento. “O
corpo anatômico e o corpo vivo atuando no mundo, tornaram-se inseparáveis.
[...] não é apenas o ambiente que constrói o corpo, nem tampouco o corpo que
constrói o ambiente. Ambos são ativos o tempo todo”. (GREINER, 2008: p.43). Segundo
Greiner (2008, p.73), a dramaturgia de um corpo que
dança pode ser entendida como
uma espécie de nexo
de sentido que ata ou dá coerência ao fluxo incessante de informações entre o
corpo e o ambiente; o modo como ela se organiza em tempo e espaço é também o
modo como as imagens do corpo se constroem no trânsito entre o dentro (imagens
que não se vê, imagens-pensamentos) e o fora (imagens implementadas em ações)
do corpo organizando-se como processos latentes de comunicação.
Como o corpo funciona no ato perceptivo? Annie Suquet
afirma que ação e percepção são indissociáveis, qualquer abalo sofrido pelo
corpo
não é mecânico, mas é função da intenção, do desejo, que
fazem o sujeito voltar-se para o mundo. Um componente afetivo filtra sem cessar
o exercício da percepção. É esse componente que colore e interpreta o trabalho
da sensação para organizá-la em uma paisagem de emoções (SUQUET, 2008: p.514).
Para a autora, a percepção está ligada a mobilidade. Argumenta que o sensível
e o imaginário dialogam no corpo humano “com infinito refinamento, suscitando
interpretações, ficções perceptivas que dão origem a outros tantos corpos
poéticos”. O movimento seria um continuum, e tanto “a mobilidade íntima do
corpo como também sua projeção no espaço respondem a um princípio de
propagação, de contágio reativo. Não existe imobilidade, somente gradações da
energia, às vezes infinitesimais” (SUQUET, 2008: p.516-520).
A dança de Erika ou, em termos gerais, a dança contemporânea, se
distancia de uma organização mental inteligível. O corpo se expõe como
realidade autônoma e ganha destaque em sua substância física e gestualidade.
Não se apresenta como portador de sentidos, mas como tema absoluto da dança, não “narra” mediante gestos esta ou aquela emoção, mas se manifesta com sua presença como um lugar
em que se inscreve a história coletiva” (LEHMANN, 2007: p.160).
O arranjo da dança expõe uma corporeidade
intensiva e, neste sentido, entende-se que a dança falha ao querer indicar ou
explicar fenômenos externos ao corpo. O sentido da dança é a própria ação de
dançar, de realizar uma combinação específica de movimentos, segundo uma lógica
própria. A dança de Erika reivindica existência a partir de sua
materialidade, onde o movimento é expressivo em si mesmo. Neste caso, de acordo
com Febvre (1995), a questão do corpo dançante não é
abordada no sentido de uma produção significante, mas no da realização. A
pergunta que se oferece é: o que pode fazer um corpo? Ao invés de: como o corpo
pode exprimir ou significar algo?
Por este viés, a dança é compreendida como um ato do/no corpo. A
professora Jussara Setenta (2008: p.17) sustenta a tese de que o corpo que dança
é o próprio realizador da ideia que comunica. Entende a dança que se organiza num
corpo como uma fala do mesmo. Porém, trata-se de uma fala distinta, pois não
fala sobre algo fora da fala, mas inventa “o modo de dizer”, ou seja, cria “a
própria fala de acordo com aquilo que está sendo falado”. A autora denomina tal
modalidade como um “fazer-dizer.” A dança contemporânea teria, então, a
necessidade de inventar um modo singular do corpo “dizer”, pois suas ideias
estariam localizadas em seu próprio fazer.
Como o corpo de Erika elabora seu dizer
sobre o(s) “outro(s)”? Em que medida seu corpo utilizou a percepção do outro
para transformar sua fala, ou seja, a fala “típica” do seu corpo enquanto dança?
Imagem 2: Erika Rosendo,
Projeto Retrato do Outro, 2009.
Foto: Eneas Lopes.
Dança como acontecimento da perceptibilidade
Como a dança de Erika foi recebida pelas
pessoas que transitavam na praça? Quais
as implicações de dançar num espaço não institucionalizado, de livre passagem
coletiva?
Usualmente, um espetáculo de dança é
concebido para se apresentar num teatro, ou seja, um edifício que abriga dois pólos
distintos: o palco para os artistas e a platéia com poltronas para o público. Há
uma separação clara entre quem se exibe e quem observa ou contempla. Trata-se
de um esquema clássico de apresentação cênica. No entanto, dentre tantas fronteiras
já derrubadas, a dança contemporânea não cansa de buscar e testar alternativas
para borrar limites. Um de seus projetos experimentais implica na mistura
artista-espectador, colocando-os no mesmo espaço físico da cena da dança. Seria
tal estratégia suficiente para destruir ou modificar a polaridade destes
corpos? Que novas funções e possibilidades cognitivas tal alteração atribuiria
a cada um? Considerando o processo ininterrupto de troca entre corpo e
ambiente, onde um modifica continuamente o outro, quais seriam as conseqüências
geradas pela proximidade material? Que tipo de osmose seria possível?
Dançar numa praça seria apenas uma entre
tantas modalidades para criar um tipo inusitado de relação entre artista e
público. Um ponto do centro da cidade não é um espaço cênico nem tampouco
apenas um lugar. Ele discursa sobre uma experiência, uma situação urbana que incorpora
o pessoal e o coletivo. Nele se instala a possibilidade da dança
ser não apenas um acontecimento
de exceção, mas uma situação provocadora para todos os envolvidos. Usar o
conceito de “situação” ao lado do conceito mais usual de “acontecimento” tem o
sentido de pôr em jogo a tematização da situação pela filosofia da existência (Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty) como uma esfera instável
tanto da escolha, que é ao mesmo tempo possível e imposta, quanto da virtual transformabilidade da situação (LEHMANN, 2007: p.172).
Tal proposta de atuação e integração
converte os espectadores em participantes. A composição coreográfica se torna uma
“situação social” na qual o espectador vem a perceber o quanto sua experiência
depende não só dele próprio, mas também dos outros” (LEHMANN, 2007: p.173). As
ações de dança se efetivam nos moldes de uma experiência partilhada, de força e
energia compartilhada (e não de uma comunicação na qual a informação corre de
um emissor a um receptor).
O projeto de composição para a dança de Erika aproxima-se de um
acontecimento, portanto de algo que remete ao acaso, ao imprevisto, ao
inesperado. Está distante de uma concepção espetacular, ou seja, uma produção fantasiosa
com cenários e figurinos elaborados, valorizada com recursos de iluminação,
sonorização e vídeo, dentre outras opções criativas. A mostração
de Erika não contém artificialismos e a pretensão de se impor
como espetáculo: o figurino é a roupa do dia-a-dia, ou seja, a artista veste-se
de si mesma, a luz do sol dispensa holofotes, a arquitetura da rua, da praça,
da cidade, formam o cenário, a platéia transita num “teatro” a céu aberto e compõe
a cena da dança. A ação de Erika tem o tom de convocação. As respostas e reações
do público são díspares (confirmando a multiplicidade dos corpos humanos):
alguns demonstram interesse, param para admirar, comentam, aplaudem, outros
ignoram, estranham, demonstram desconforto, olham com espanto. Alguns até
arriscam acompanhá-la com gestos “de dança”.
No corpo da dançarina, sempre em movimento relativo a algo outro,
ocorre uma aventura política, a partilha do território.
Uma nova organização do espaço e das tensões que o habitam vai interrogar os
espaços e as tensões próprias do espectador. É a natureza desse “transporte”
que organiza a percepção do espectador. É, então, impossível falar da dança ou
do movimento do outro sem lembrar que falamos de uma percepção particular, e que
a significação do movimento ocorre tanto no corpo do dançarino, como no corpo
do espectador. Assim, a rede complexa de heranças, aprendizagens e reflexos que
determina a especificidade do movimento de cada indivíduo determina também o
modo de perceber o movimento dos outros (GODARD, 2001: p.25).
As formas de relação e diálogo entre Erika e “os
outros” foram múltiplas. Enquanto proposta de contemporaneidade instiga questionamentos
acerca da vida, do mundo, da arte. Tais performances colaboram para contestar a
compreensão da dança como um modo artístico estanque, fechado, universal e
imutável. Por outro lado, incitam a entender a dança enquanto realização cênica
que recusa a submissão a regras e hierarquias, a obrigação da harmonia e da perfeição.
Numa das performances, eu acompanhava à distância os
“passeios dançantes” de Erika pela praça. Vendo que eu prestava atenção, um
homem se aproximou de mim e começou a tecer comentários: “Essa menina é louca,
ela está drogada”. Do seu ponto de vista, Erika não era uma dançarina, mas uma
pessoa desequilibrada e perturbada, pois agia de forma incomum. O homem surpreso
percebia um corpo em crise (não-saudável), não um corpo em arte. Para ele, as
ações de Erika não se assemelhavam àquilo que denominamos como dança e, definitivamente,
aquele lugar não era um espaço da dança. Diante do estranhamento, o espectador
optou por virar de costas e ignorar a dançarina. Fechar-se.
De modo contrário, abrir o corpo é uma escolha para
“despertar nele todos os seus poderes de hiperpercepção,
e transformá-lo em máquina de pensar”, ou seja, reativar “o que todos os
regimes de poder do corpo procuram apagar, esforçando-se por produzir o corpo
unitário, sensato” (GIL, 2004: p.169). Apreender o atual, a contemporaneidade,
é buscar penetrar no espaço do risco. É válido para quem deseja viver o tempo
do real, artista ou não.
Não foram poucas as reações que me levaram a pensar
sobre o papel ocupado por um dançarino no mundo atual. A aventura política de
Erika comprovou que ao lado da admiração e do respeito conquistados, há desdém
por sua profissão, acompanhada de uma forte ideia da dança como passatempo, coisa
inútil e sem valor para o desenvolvimento humano. O individualismo impera nas
ruas, onde muitos rostos ensimesmados e preocupados se cruzam, sem se perceber ou
reconhecer. Talvez o maior desafio de Erika tenha sido o de estabelecer uma conexão
intensa e real com o outro.
Graças ao Festival de Dança, promovido anualmente desde 1983, Joinville
é divulgada e conhecida como a “cidade da dança”. Certo dia, durante a
performance, um grito irrompeu da janela de um prédio em direção a Erika: “O festival
de dança já acabou!”. A artista, sem interromper sua movimentação, retrucou com
ironia: “Mas isto aqui não é a cidade da dança?”
Quando a arte se oferece de modo tão explícito e
direto, numa proposta de intensa troca com o público, a previsibilidade de
ações e reações praticamente se extingue. Tal estratégia equivale a um ato de
exposição desafiador e por vezes perigoso para o artista. Por outro lado, o
risco arrasta potencialidades artísticas e descobertas inéditas, tão valiosas aos
criadores.
Imagem 3: Erika Rosendo,
Projeto Retrato do Outro, 2009. Foto: Eneas Lopes.
Passeio num tempo-espaço
de real e ficção
Além das pessoas, a arquitetura do espaço
aparece como elemento importante para constituir dança no projeto Retrato do Outro. Prédios, bancos,
construções, edifícios, lixeiras, enfim, qualquer construção e objeto outro,
merece ser percebido e utilizado na ação criativa. Em grande medida, a dinâmica
da movimentação ocorre em função do espaço. Ele também fala. É co-participante.
Partes do mundo dialogam com a trajetória da bailarina. Seu caminho ocupa e
enfatiza o espaço real da dança, “ressaltado em sua constituição sensorial”. Sua
operação reconduz o espaço particular “a si como ser-assim e ser-aqui, como
perceptibilidade intensificada” (LEHMANN, 2007: p.269).
Erika, a bailarina, “evolui num espaço
próprio, [...] cria o espaço com o seu movimento” (GIL, 2004: p.47). O espaço
do seu corpo imbrica-se no espaço objetivo, forja seu próprio espaço.
O corpo tem de se abrir ao
espaço, tem de se tornar de certo modo espaço; e o espaço exterior tem de
adquirir uma textura semelhante à do corpo a fim de que os gestos fluam tão
facilmente como o movimento se propaga através dos músculos. O espaço do corpo,
como espaço exterior, satisfaz esta exigência. O corpo move-se nele sem
enfrentar os obstáculos do espaço objetivo estranho, com os seus objetos, a sua
densidade, as suas orientações já fixadas, os seus pontos de referência
próprios. No espaço do corpo, este cria os seus referentes aos quais as
direções exteriores devem submeter-se (GIL, 2004: p.50).
O tempo influi de diferentes modos. Considere
simplesmente a ocasião na qual o outro se encontra (com pressa, por exemplo), a
qual condiciona seu interesse de entrar ou não em relação com o que lhe é
apresentado. Pense acerca das alterações climáticas neste contexto, definitivas
para uma ação artística que ocorre a céu aberto. O tempo é exclusivo de cada
pedestre em seu movimento. A dança, experiência não-cotidiana no espaço da
praça, apresenta-se como tempo compartilhado e vivido. Dá-se um processo inestancável,
sem começo, meio e fim, que modifica a paisagem circundante.
Erika dança “isolada” em seu papel de intérprete-criadora. Não existe
música para acompanhar a dança. O barulho dos carros, misturado às vozes dos
transeuntes, moldam a paisagem sonora do tempo-espaço. Não há qualquer
artifício para sugerir uma atmosfera não-habitual ou “teatral”. Nestas condições,
seria possível criar um espaço fictício? O corpo e a dança seriam suficientes
para produzir teatralidade?
Ao aproximar dança e cotidiano, Erika ressalta
e redefine o contexto da cidade e da arte. Neste caso, a dança explicita “o
campo do real como permanentemente ‘co-atuante’, tornando-o de modo factual, e
não apenas conceitual, como objeto
não só da reflexão”, mas da própria configuração performativa (LEHMANN, 2007:
p.163).
O que nos é permitido fazer no espaço
público? Quais regras se impõem neste terreno? O local traria em si a tendência
da dança para se impor ao espectador enquanto realidade ou ficção? Seria este
limite um problema e um objeto de configuração da própria dança? O jogo poético
da dança com o real poderia surgir como provocação política e questionamento
das normas de comportamento social? Potencializar uma estética da irrupção do
real seria um modo apropriado para conectar dança e realidade? Ou para chamar a
atenção do outro para estas realidades em si mesmas (dança, vida)? Como provocar
a sensibilidade do outro por meio da dança e desregular uma rotina pré-fixada?
O espaço urbano é estabelecido
como local de convivência social. Mas, a correria do dia-a-dia, a indiferença e
as difíceis condições de vida colaboram para afastar o homem das atividades
culturais e sociais. Neste contexto, o projeto Retrato do outro aparece como tentativa de
dirigir a criação artística às coisas do mundo, potencializando
reflexões e uma tomada de consciência mais crítica. Além disto, colabora para desestabilizar
a definição da dança e colocar em questão o caráter das representações
artísticas. Assim, interpela criticamente o mercado e o sistema de validação da
dança. Incentiva a refletir sobre a evolução dos sentidos no contexto das artes
cênicas. De fato, a relação proposta de troca extingue hierarquias, transforma
e reorganiza os sentidos.
Ao lado do olhar – que ocorre geralmente de forma
focalizada – coloca-se, no mínimo com igual importância, o ouvir. Trata-se de
ouvir não na forma como se faz com uma língua (e a compreende), mas na forma de
um estar-no-meio-de-som-e-sonoridade. Um ouvir que atua diretamente sobre o
corpo enquanto espaço de ressonância e sobre o sentir corporal direcionado para
uma troca de energia entre agentes da apresentação [...] e espectadores, bem
como as “atmosferas” [...] que existem num espaço e nas quais todos os
participantes “submergem”. [...] com a criação de campos energéticos e de
outros “entre-espaços”, o teatro formula um novo saber cultural [...]. É um
saber performativo que não pode ser transmitido discursivamente através da
língua, mas apenas experimentado no próprio corpo. Ou seja, é um saber que só
pode ser obtido por caminhos que percorrem experiências profundamente
desconcertantes e perturbadoras (FISHER-LITCHTE, 2007: p.137).
Imagem 4: Erika Rosendo,
Projeto Retrato do Outro, 2009.
Foto: Eneas
Lopes.
Retrato final
Semiótica e
fenomenologia, entre outros campos de estudo, nos lembram que a realidade é
“irreal”, ou seja, é ideia, mediação, interpretação, ponto de vista. Tudo o que
é, existe como possibilidade. A realidade é única, é aquela que meu corpo pode
perceber, é do jeito que é porque é para mim.
O olho tem propriedades e
modos de funcionar determinados pela anatomia. Como a natureza evolui em
interface com a cultura, também a função do ver é um aprendizado, um canal de
apreensão da vida que pede treino para construir seu saber.
A recepção do mundo como
imagem capta apenas pedaços, fragmentos, recortes. Retrata somente um instante,
sempre fugidio. Ao recortar o momento, isola o detalhe. O retrato não copia,
reinventa o real.
Com Retrato do Outro apreciei uma busca para abrir caminhos de
sensibilidade e humanidade. Uma proposta de intervenção artística – ao mesmo
tempo simples e complexa – que oferece dança como vida na sua realidade de
percepção, afecção, ação e transformação.
Imagem 5: Erika Rosendo,
Projeto Retrato do Outro, 2009.
Foto: Eneas Lopes.
Referências
FEBVRE, Michèle. Danse contemporaine et theâtralité. Paris: Editions Chikon,
1995.
FISHER-LICHTE, Erika. Transformações. Revista Urdimento. Florianópolis, SC, n.9, Dez. 2007.
GIL, José. Movimento total: o corpo
e a dança. São Paulo: Iluminuras,
2004.
GODARD, Hubert.
Gesto e percepção. In: SOTER, Silvia e PEREIRA, Roberto. Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2001.
GREINER,
Christine. O corpo: pistas para
estudos indisciplinares. 3ed. São Paulo: Annablume, 2008
LEHMANN,
Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São
Paulo: Cosac Naify, 2007.
SETENTA, Jussara
Sobreira. O fazer-dizer do corpo:
dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008.
SUQUET, Annie. O
corpo dançante: um laboratório da percepção. História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Vol. 3. Petrópolis: Vozes, 2008.
Notas
1 Natural de Natal
(RN), Erika Rosendo reside em Joinville (SC) desde 2007. Atua como intérprete,
coreógrafa e professora. Formada em dança contemporânea pela Escola do Teatro
Bolshoi no Brasil (Joinville, 2007), em coreografia pelo projeto Arte Ação
(Natal, 2006) e em balé clássico pela Escola de Dança do Teatro Alberto
Maranhão (Natal, 2000). Professora de dança contemporânea na Escola do Teatro
Bolshoi no Brasil. Professora e coreógrafa do Grupo Fernando Lima. Integra o
elenco da AMA Cia. de Dança. Recebeu o Prêmio de Melhor Bailarina no 26o
Festival de Dança de Joinville 2008, ano em que coreografa
e interpreta seu primeiro espetáculo: Auto-retrato. Com este solo realiza diversas apresentações independentes
e em encontros como Múltipla Dança (Florianópolis), Mostra Contemporânea de Dança do Festival de
Dança de Joinville, Mostra Primeiros
Passos do SESC Pompéia (São Paulo) e Aldeia
giratória do SESC Joinville. Integrou o elenco da Companhia Clébio
Oliveira (RJ) como
bailarina convidada (2008). Em 2006 recebeu a indicação de melhor bailarina do
24º Festival de Dança de Joinville. Acumula premiações em primeiros lugares na
categoria dança contemporânea solo feminino avançado em muitos festivais
nacionais.
2 Projeto que
realizou intervenções de dança contemporânea com Erika
Rosendo na Praça Nereu Ramos, Centro de Joinville (SC), nos dias 30 de julho,
27 de agosto, 17 de setembro, 8 de outubro e 19 de novembro de 2009, sempre em
três horários: 10, 12 e 17 horas.
JUSSARA XAVIER é doutoranda em
Teatro (UDESC). Mestre em Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e Especialista em
Dança Cênica (UDESC). Co-organizadora dos livros Tubo de Ensaio: experiências em dança e arte
contemporânea (2006) e Pesquisas em
dança: coleção dança cênica (2008). Diretora do documentário Ballet Desterro. Contemporaneidade na dança
catarinense (2009). Curadora dos encontros Múltipla Dança e Tubo de
Ensaio, em Florianópolis (SC). Pesquisadora
do Programa Rumos Itaú Cultural Dança desde 2000 (SP). Coordenadora e
produtora do projeto Laboratório corpo e
dança (2008/2009). Recebeu Bolsa Funarte de Estímulo à produção
crítica em dança (2008). Diretora e produtora do espetáculo Auto-retrato (2008). Foi gestora de
projetos e professora das disciplinas de improvisação, composição coreográfica,
produção cultural e dramaturgia da dança na Escola
do Teatro Bolshoi no Brasil (2001-2007). Integrou o Grupo Cena 11 Cia. de Dança (SC) como bailarina, ensaiadora e
diretora administrativa (1992-1999). Dançou ainda nos grupos Álea (SC) e Raça (SP).
JUSSARA XAVIER is Ph.D. student in Teatro (UDESC). Master in Comunicação e Semiótica (PUC/SP) and Specialist in Dança
Cênica (UDESC). Co-organizer of the books Tubo de Ensaio: experiências em dança e arte
contemporânea (2006) and Pesquisas
em dança: coleção dança cênica (2008). Director of the documentary
Ballet Desterro. Contemporaneidade na dança catarinense (2009). Curator
of dance in festivals like Múltipla Dança and Tubo de Ensaio, Florianópolis (SC). Researcher
of Rumos Itaú Cultural Dança since 2000 (SP). Coordinator and producer of the
project Laboratório corpo e dança (2008/2009). Received a Funarte´s price
for critical production in dance (2008). Director and producer of the
spectacle Auto-retrato (2008).
Worked as project manager and teacher of improvisation, choreography, arts
administration and dance dramaturgy at Escola do Teatro Bolshoi no Brasil (2001-2007). Joined Cena 11 Cia. de Dança (SC) as a dancer, rehearsal and
administrative director (1992-1999). Also performed
as a dancer in Álea
(SC) and Raça
(SP).