PEDAGOGIAS MUSICAIS DE DOIS PIONEIROS: LABAN E STANISLÁVSKI

THE MUSICAL PEDAGOGIES OF TWO PIONEERS: LABAN AND STANISLAVSKI

Jacyan Castilho

(UFBA)

Resumo

O artigo levanta a pertinência de se pensar o espetáculo teatral sob a perspectiva de suas características fundamentais, como musicalidade e plasticidade, especificamente no que tange à contribuição do ator na formação do perfil rítmico e dinâmico do espetáculo. Laban e Stanislávski são lembrados como pioneiros que lançaram seus olhares sobre as possibilidades semânticas que o desenho de movimentos espaço-temporais realizado pelo ator pode agregar na construção do sentido do espetáculo.

Palavras-chave | ator | tempo | ritmo | Laban | Stanislávski

Abstract

This article discusses the relevance of considering theater performance from its fundamental aspects, such as musicality and plasticity. It focuses on the actor´s performance and specifically on his/her contribution to the dynamic and rhythmic outline of the show. Laban and Stanislavski are referred to as pioneers in exploring the semantic possibilities that the time-space associations realized by the actor tend to accumulate in building the signification of a performance.

Keywords | actor | time | rhythm | Laban | Stanislavski


É comum ouvirmos, a respeito de um espetáculo teatral, que ele possui alto senso de musicalidade. Nem sempre se quer dizer com isso que ele apresente canções, nem mesmo que conte com trilha sonora (embora, por vezes, seja esse o caso). Frequentemente essa qualidade – no sentido de característica – é atribuída como qualidade – no sentido de um adjetivo elogioso – ao espetáculo que se faz perceber, pelo espectador, como harmonioso, seja em sua duração, seja na concatenação de seus elementos.  Neste caso, um espetáculo harmonioso é o que não deixa o espectador perceber o tempo passar. Isto é, a percepção temporal da platéia é induzida, pelo prazer da fruição, a entender como curta uma experiência que é gratificante.  Por outro lado, espetáculos tediosos seriam os que causam a impressão de nunca acabar, ou de durar “além do necessário”, quando, aos olhos (e demais sentidos) do espectador, ele já teria completado sua mensagem.

Um espetáculo harmonioso poderia ser também o que concatena de tal forma (prazerosa) suas partes constitutivas (interpretação, texto, cenário, etc.), que dá a impressão de que essas partes estão todas “em seus devidos lugares”, numa justa proporção, contribuindo para a construção de uma obra que, em sua totalidade, soa íntegra e adequada. Essa “justa forma” ganha, frequentemente, a associação com uma sinfonia musical. Na composição musical, a harmonia é a combinação vertical dos desenhos de cada voz ou instrumento – e aqui, por analogia, poder-se-ia dizer que ela resulta da combinação dos elementos que compõem a cena.  Por isso se diz que um bom espetáculo “soa como música”...

Entrementes, a musicalidade, entendida aqui como uma construção dinâmica dos signos plásticos e sonoros do espetáculo, ainda nos remete a algum componente do fenômeno teatral que pertence ao domínio do imponderável: como definir os parâmetros que levarão o espetáculo a “soar como uma sinfonia”? O timing do ator ou da encenação? O senso de proporção entre suas partes?

Compreensivelmente, redobram-se os esforços para cartografar este “fator imponderável” nos últimos anos, em que os Estudos Teatrais, notadamente os estudos sobre a performance do ator começaram a traçar pistas de investigação sobre o que antes era do domínio da intuição. Ainda assim, questões de difícil delimitação como a plasticidade ou a musicalidade do espetáculo, concernentes muito mais ao seu universo léxico do que semântico, permanecem à mercê daquela sensibilidade praticamente intuitiva que foi comentada acima.  Merecem uma tentativa, não diria de sistematização, por considerar pouco razoável essa intenção – mas de aprofundamento da atenção sobre elas, porque assim ajudam o artista-pesquisador a passar do campo intuitivo para o volitivo.

Apoiando-me, assim, nos pressupostos musicais que, numa ousadia metodológica, e sob o viés de um pensamento interdisciplinar, eu penso serem passíveis de serem deslocados do fenômeno sonoro para os fenômenos visual e cinético, afirmo que estes pressupostos são os estruturantes também daquilo que se convencionou chamar de musicalidade na cena (OLIVEIRA, 2008). Com a espinhosa tarefa de delimitar uma noção que é tão subjetiva, vou eleger os conceitos de dinâmica e, principalmente, de ritmo para problematizá-los em seu deslocamento para o campo das artes espaço-temporais.

De pronto, tais conceitos já se apresentam como problemáticos a partir de sua apreensão pelo senso comum. Tanto “ritmo” como “dinâmica” costumam ser associados à variação, ao andamento, velocidade, e outras categorias que lhes são próximas, mas não os esgotam nem substituem. A mera delimitação dos termos, aliás, é problemática já no campo da disciplina musical. Quando se transporta os conceitos para o campo dos estudos teatrais, os equívocos são tentadores. O primeiro deles é a tendência redutora de se considerar a moldura rítmica de um espetáculo como uma mera questão de velocidade das réplicas e das ações. O outro é o que só reconhece atributos de musicalidade num espetáculo que ofereça canções ou trilha sonora, sem perceber que a musicalidade é um elemento organizador do espetáculo como um todo, responsável pela articulação e proporção entre suas partes. Portanto, um elemento criador de sentido.

Este equívoco acontece também em relação ao trabalho do ator, de quem frequentemente se diz que é um ator “musical” quando e somente quando são reconhecidos nele uma técnica apurada para o canto ou o virtuosismo num instrumento.

Não obstante ter sido eleito, especialmente no último século, um objeto preferencial de pesquisa nas artes cênicas, o ator ainda sofre, por sua própria natureza, a dicotomia de pertencer tanto ao universo inefável do espírito (no sentido original da palavra spiritus, o “sopro” divino da inspiração, que o dotaria de sensibilidade artística), quanto ao universo das ciências cognitivas, que o leva, através de sistemas de treinamento e de prática, a conquistar terrenos que o “espírito” original não pode suprir. As linguagens contemporâneas confiam ao ator a possibilidade de adquirir saberes que o dotem de cada vez maiores possibilidades expressivas. Neste terreno movediço entre o talento, a vocação e a aprendizagem, o intérprete ainda se vê às voltas com a expectativa de que se torne, cada vez mais, um artista completo, capaz de dar conta das múltiplas e interdisciplinares tarefas que o teatro contemporâneo lhe impõe: lidar com a palavra em verso e prosa; conquistar uma organização corporal fluida e equilibrada, dotada de resistência e flexibilidade; ter formação musical e boa versatilidade vocal; ser detentor de uma cultura geral ampla; converter-se em cidadão consciente e responsável pelo equilíbrio social; conhecer e se possível dominar uma gama diversa de tradições e convenções teatrais, etc. etc.

Aqui é preciso ressaltar a diferença de mentalidade, na formação pedagógica do ator, entre adquirir habilidades técnicas e imbuir-se dos elementos essenciais que cada disciplina artística – a literatura, a música, artes circenses, artes corporais, as artes plásticas – oferece, no sentido de formar artistas múltiplos, não artistas multi-virtuosos. 

Essa é a noção defendida por Ernani Maletta (2005), que vê na prática pedagógica que ele denomina de polifônica um processo de formação totalizante, que engloba os aspectos elementares das várias linguagens artísticas, a fim de dotar o ator da capacidade de aglutinar e dialogar com esses aspectos em seu processo criativo e expressivo.

O artista múltiplo a que me refiro não será necessariamente aquele que desenvolveu as diversas habilidades na sua máxima expressão de virtuosismo, mas o que conseguiu incorporá-las em seus elementos fundamentais (MALETTA, 2005: p.21-22, grifo do autor).

Cada linguagem artística pode dotar o ator de elementos essenciais, que contribuirão, de forma integrada, para sua formação contínua de intérprete. O estudo da música, das artes corporais, das artes visuais, não visa à formação de atores-músicos, atores-bailarinos, atores-cenógrafos, etc. Visa a formação de artistas múltiplos, dotados de sensibilidade ao tempo e ao espaço, possuidores de um apurado senso de percepção de ritmo, dinâmica, timbre, altura, intensidade, forma, cor, volume, textura, plasticidade, destreza, tonicidade, equilíbrio.

Neste breve artigo, retomo a palavra de dois pioneiros pedagogos dos estudos da atuação e do movimento cênico – Constantin Stanislávski (1863-1938), e Rudolf Laban (1879-1958) – para, à luz dos pressupostos musicais aqui expostos, renovar-lhes o frescor que sempre oferecem à formação de uma pedagogia teatral.

Os tempos e os ritmos

Stanislávski foi extremamente importante para a conscientização de um domínio técnico do ator no tocante aos “climas” da cena, com seu estudo sobre o que ele chamava do “tempo-ritmo” no trabalho de seus atores. Não pretendo fazer aqui uma exposição das ideias contidas principalmente em seu A Construção da Personagem (1982), no qual ele aborda diretamente a questão. Há incontáveis estudos que problematizam e lançam luzes sobre o pensamento do velho mestre, incluindo um clássico brasileiro, o livro Ator e Método de Eugênio Kusnet (2003). Importa-me, não obstante, reconhecer que papéis Stanislávski atribuiu ao ritmo na construção de sua técnica psicofísica, uma vez que esses papéis também se prestaram como elementos basilares no viés metodológico que, a partir do mestre russo, difundiu-se pelo teatro ocidental no século XX.

Para Vasili Toporkov, ator que trabalhou no Teatro de Arte de Moscou (TAM) sob a orientação de Stanislávski por onze anos, ninguém até então soubera dizer com clareza no que consistia o trabalho sobre o ritmo para o ator. Toporkov (2001) descreveu num livro os anos finais com o encenador, divulgando etapas do processo criativo que o próprio jamais conseguiu publicar.

A partir da constatação de que só encontrava, da parte de teatrólogos e diretores, vagas generalizações ao invés de um pensamento sobre o tema, o ator russo constatou que a ideia do “ritmo” da cena era – como ainda é, eu acrescentaria – confundida, de maneira imprecisa, com o “tom” da cena, o que no jargão teatral poderia significar sua temperatura “energética”. Para ilustrar com jocosidade essa sua crença, Toporkov lança o exemplo do ator a quem, na coxia, é dada a tarefa urgente de “levantar o tom” do espetáculo com sua entrada, nos dias em que este se apresenta “arrastado”. Quase sempre, a tarefa resulta em correria e afobação por parte do pobre coitado: “Eu penso que o que eles estavam procurando corresponde à ideia que Stanislávski mais tarde definiu como ritmo” (TOPORKOV, 2001: p.30). Para o mestre, a correspondência entre os sentimentos adequados à cena e os ritmos em que esta transcorre é que poderia lhe conferir o “tom” adequado. Isso valia tanto para a ação física, expressa em movimentos e fala, quanto na ação internalizada, sem movimento aparente. O exemplo mais famoso desse “ritmo na imobilidade” também vem do livro de Toporkov: numa cena, em que a personagem contava com pouquíssima ação física e uma fala curta, cabia ao ator expressar um forte sentimento que mesclasse angústia e urgência.  O diretor Stanislávski argumenta que o ator não sente o ritmo apropriado da cena; em suas palavras, ele “não está de pé no ritmo certo” (TOPORKOV, 2001: p.31). O estranhamento é total por parte do elenco. Como ficar parado, em pé, “no ritmo certo”? Então o diretor orienta um exercício simples, onde cabe ao ator ficar de pé e em vigília, com um porrete imaginário nas mãos, aguardando um rato sair da toca num canto da sala. A um sinal do diretor, o rato imaginário passa por ele, e o ator tem que acertá-lo. Diversas tentativas são feitas, até o diretor reconhecer que o ator finalmente “pulsa” sua ansiedade num ritmo correto, e está pronto para acertar o rato no momento em que este surgir. Stanislávski reconhece no ritmo o fator de criação da tensão, do tônus, do “tom” apropriado da cena, necessariamente dilatado e distinto do corpo cotidiano. Um tônus verdadeiramente emocional, e, ao mesmo tempo, físico.


Ritmo = emoção

O ponto central do interesse de Stanislávski sobre o ritmo, mais tarde confirmado pelo avanço no desenvolvimento das ciências cognitivas (SACKS, 2007), é a associação imediata entre este e a emoção. Comecemos pensando que aquilo que ficou conhecido como seu Método de Ações Físicas parte do pressuposto de que são as ações materiais, concretas, que produzem estados psíquicos necessários ao senso de credibilidade da cena – o sentimento de verdade. Em outras palavras: ações físicas definidas por um objetivo proveniente das circunstâncias dadas pelo texto detonariam as emoções correspondentes a essas circunstâncias. Em seus momentos finais, segundo Toporkov, Stanislávski já não acreditava que o trabalho sobre a memória das emoções pudesse consistir num suporte para a repetição diária do ator, porque a memória, tal como as emoções, são voláteis, de difícil fixação. As ações físicas, ao contrário, são passíveis de repetição, são passíveis até mesmo de serem fixadas numa partitura. O trabalho sobre as ações físicas consistia em criar uma sequência de ações, inspirada pelos objetivos imediatos das personagens, emanados do texto; em seguida, modelar essa sequência em sua dinâmica, experimentando-se variações, alterações e repetições, até que fosse fixada em uma detalhada partitura. Os estados emocionais criados seriam, necessariamente, resultantes desse processo. O exercício com o ritmo se converte, dessa forma, numa verdadeira ferramenta de trabalho, um meio material e tangível de acessar as emoções. “Vocês não dominarão as ações físicas se vocês não dominarem o ritmo”, diz o diretor, segundo Toporkov (2001: p.122).

Nos dois capítulos destinados ao tempo-ritmo1, termo cunhado pelo autor, Stanislávski busca demonstrar, através de exercícios, que a aceleração e desaceleração da velocidade da ação executada chegam a alterar as imagens mentais de seu executor, capazes, portanto de criar novos estímulos para a cena. No famoso exemplo do exercício da bandeja, o aluno que tem que distribuir objetos imaginários em uma bandeja cria para si diversos contextos diferentes para esta mesma ação, em decorrência dos diferentes andamentos que o professor “bate” para estimulá-lo: o andamento lento lhe evoca solenidade, como numa distribuição oficial de medalhas; o andamento acelerado lhe suscita a imagem de um garçom numa festa, servindo bebidas; o acréscimo da síncope (deslocamento do acento de seu lugar natural) lhe faz supor que seu garçom esteja bêbado, já que tropeça nas “frases” rítmicas. Em outro exercício, um determinado motivo – o embarque numa estação de trem – adquire contornos cada vez mais tensos com a aceleração progressiva do andamento. Em outra ocasião o professor pede que seus alunos tentem fazer coincidir em suas falas as sílabas tônicas das palavras com as ênfases na ação. São diversos expedientes para fazer despertar, nos alunos-atores, o que Stanislávski chama de “sensibilidade” ao ritmo. Uma vez dotados dessa sensibilidade, os alunos poderiam até mesmo se abstrair de tal preocupação – já que esse fenômeno passaria a acontecer “naturalmente”. Um “ritmo certo” da cena seria, então, “naturalmente” intuído. Uma vez adestrados na sensibilidade aos ritmos da cena, seus corpos e mentes já estariam “re-naturalizados”.

O único problema, nesse interessante raciocínio, é a premissa de que exista um ritmo “certo” o qual o ator precise acessar – em contraposição a ritmos e sentimentos “inadequados” (sobre os quais o diretor adverte repetidamente). É preciso levar em consideração que a técnica de interpretação de Stanislávski se baseia numa tentativa de apreensão de uma “verdade”, supostamente emanada do texto dramático, a qual despertaria no ator os sentimentos e objetivos “adequados”, que lhe bem correspondam. Hoje, quando o texto dramático já tem perdida sua prerrogativa de centro aglutinador do fenômeno teatral, quando já não se reconhece mais que seja detentor de uma essência irredutível, seria no mínimo discutível nos determos sobre a pertinência da procura de um ritmo essencial, “verdadeiro”.

Outro problema, este bem lembrado por Ana Dias (2000), é o da própria definição de tempo-ritmo. Segundo as considerações da autora, o termo conjugado é eleito por Stanislávski sem que ele esclareça totalmente os critérios desta eleição; suas definições são um tanto discutíveis e de difícil apreensão para leigos e mesmo para não-leigos. O problema maior, porém, é a associação do termo à noção de compasso, portanto a um sistema métrico ocidental codificado. Stanislávski estudou música e canto na juventude, chegando a sonhar por breve tempo em ser cantor de ópera. Tentou elaborar, junto ao seu professor de canto daqueles anos, um sistema de treinamento baseado na música, no qual, relata, “passávamos fins de tardes inteiros em movimentos, sentados ou calados em ritmo [...]. Aqueles fundamentos então vagos eu vislumbrei também na cena dramática”, relata o autor, (STANISLÁVSKI, 1989: p.132, grifo meu). De fato, parece ter sido a partir da forte impressão causada pelo trabalho realizado junto aos atores-cantores de ópera do Teatro Bolshoi que o pedagogo intuiu o sentimento plástico do ritmo como fundante do jogo teatral. O uso sistemático do treinamento de fala e movimentos sobre durações definidas – semínimas, colcheias, semicolcheias, etc.; a preocupação em fazer coincidir acentos lógicos e temporais; o uso da síncope – todos confirmam as bases métricas de seu trabalho com o ritmo. 

A grande dificuldade na condução deste trabalho sobre a métrica surgiu, provavelmente, no momento de conduzir o ator no trabalho rítmico sobre a prosa. Afinal, verso possui, em si, uma musicalidade definida; ele propõe acentos e recorrências que “conduzem” não só a organização sintática, mas a própria configuração semântica do texto. Acentos recaem sobre as ênfases emotivas e de significado; recorrências conduzem a perspectiva cíclica de ascensão e queda da ênfase. Já na prosa, que não conta com uma métrica regular, a busca pela construção de um perfil rítmico definido esbarra na atribuição de acentos subjetivos, de temporalidades mais “livres”. De forma um tanto contraditória, o conceito de tempo-ritmo atrelado à métrica do compasso usado por Stanislávski distancia-se de sua aplicação nos exercícios em que busca reconhecer esse conceito na prosa e nos movimentos não-dançados.

Nestes casos, o encenador-pedagogo parecia acreditar que seria possível traduzir os ritmos da cena a partir de sua temperatura emocional – “batendo” os ritmos ditados pelas “circunstâncias dadas” do enredo. A partir daí, Stanislávski amplia a questão para o reconhecimento dos tempos-ritmos da peça inteira, ressaltando que eles podem, e devem, ser variados, múltiplos, e tanto mais interessantes quanto mais variados forem. Bons atores seriam, justamente, os que passeiam por uma grande diversidade de ritmos, tomando os devidos cuidados para não fazer sua atuação desandar no cabotinismo e na vaidade da própria técnica. Stanislávski remete sempre ao exemplo de Salvini, ator italiano que foi seu modelo de observação, o qual era capaz de, com o uso apropriado de variações rítmicas e grande riqueza de entonações, evocar imagens mentais e associações emocionais em seus espectadores, mesmo os que, como Stanislávski, ignoravam a língua italiana; eis uma experiência a qual já tiveram oportunidade de confirmar os que encontram intérpretes em língua diferente da sua, capazes de fazer-lhes acompanhar a narrativa pela coloração, dinâmica e plasticidade de sua atuação – como sucede, por exemplo, a quem acompanha uma performance de Dario Fo.

Tempo-ritmo interno x tempo-ritmo externo

A despeito da predominância de uma ideia de ritmo atrelada ao compasso, penso que pode ter sido no imbricamento de vários tempos-ritmos diferentes, nem sempre calcados na métrica, que Stanislávski procedeu a uma de suas maiores contribuições à prática do ator. Refiro-me à impressão de vivacidade e riqueza de detalhes que pode suscitar a discrepância entre os tempos-ritmos interno e externo da mesma personagem.

Se em personagens trágicas “imperam a certeza e a convicção de suas obrigações morais”, estabelecendo uma linha rítmica dominante, Stanislávski lembra que, numa personagem com um espírito como o de Hamlet, “onde a decisão luta com a dúvida”, tornam-se necessários vários ritmos em conjunção simultânea. “Em tais casos, vários tempos-ritmos diferentes provocam um conflito interior de origens contraditórias. Isto acentua a experiência do ator em seu papel, reforça a atividade interior e excita os sentimentos”, acredita o autor (STANISLÁVSKI, 1982: p.230). Vários exemplos de cenas improvisadas por seus alunos reforçam a ideia de que uma complexidade muito interessante é criada quando, por exemplo, a um tempo-ritmo externo calmo, ponderado, corresponde um tempo-ritmo interior agitado. É o que Eugenio Kusnet nomeia “tempo-ritmo composto”, que, em sua opinião “dá a verdadeira dimensão da contradição humana” (KUSNET, 2003: p.91).  Paradoxalmente, já que com objetivos diferentes, salta à lembrança a cena de Mãe Coragem e seus filhos, em encenação de B. Brecht com o Berliner Ensemble, na qual a personagem da mascate, interpretada por Helene Weigel, “produz” uma máscara facial e corporal de extrema dor e angústia, ao passo que gesticula de maneira aparentemente calma e contida, já que deve omitir que reconhece, no cadáver de um inimigo, o filho morto2. Aqui, a contradição entre o tempo interno agitado, de alta densidade emocional, e o tempo externo aparentemente plácido é o canal para a exposição dos absurdos da máquina de guerra.

A impressão que fica da leitura dos textos de Stanislávski é que este percebeu que a sensibilidade ao ritmo ou aos ritmos da encenação era um dos expedientes mais potentes para alcançar o rigor da pesquisa artística, no que tangia ao trabalho tão subjetivo do ator. “Até mesmo a desordem e o caos têm seu tempo-ritmo”, ponderou o diretor do TAM (STANISLÁVSKI, 1982: p.249). Para Stanislávski, eles são um meio, um canal, para se atingir estados psíquicos. Na tríade pensamento-vontade-sentimento, sobre a qual repousa todo o sistema de interpretação deste último, o ritmo tem importância fundamental:

O efeito direto sobre a nossa mente é obtido com as palavras, o texto, o pensamento, que despertam consideração. Nossa vontade é afetada diretamente pelo superobjetivo, por outros objetivos, por uma linha direta de ação. Nossos sentimentos são trabalhados diretamente pelo tempo-ritmo (STANISLÁVSKI, 1982: p.268, grifo do autor).

Laban e o tempo da decisão

A correspondência entre estados emocionais e o tempo-ritmo não é exclusividade da prática de Stanislávski. Na Alemanha do início do século, estava em curso um processo de consolidação da dança moderna, cuja linhagem se iniciara no ocidente com Isadora Duncan e François Delsarte, e que tinha no austro-húngaro Rudolf Laban, coreógrafo e pedagogo da dança, um emblema. Este processo entendia a dança como manifestação de pulsões para o movimento nascidas da fusão de atitudes internas e estímulos externos, que lhe imprimiam as mais variadas qualidades expressivas; um de seus paradigmas é o reconhecimento dos fatores Peso, Tempo, Espaço e Fluência como fatores do movimento, que resultariam em qualidades expressivas.

Quando estabelece relações entre os fatores do movimento, chamando de Esforço a pulsão interior que dá origem ao movimento (LABAN, 1978), o coreógrafo conclui a associação entre impulsos psíquicos e fatores de realização no tempo e no espaço que Stanislávski, por exemplo, intuíra. Desconheço se os dois artistas chegaram a se conhecer. Mas a similaridade entre suas abordagens é instigante, mormente no tocante à consideração dos aspectos dinâmicos e energéticos do trabalho do ator-bailarino.

O fraseado expressivo e o acento

Além das disposições internas que motivam a realização dos Esforços, o estudo dos fatores do movimento suscita outro aspecto importante da análise efetuada por Laban: a composição do Fraseado Expressivo, como traduz Ciane Fernandes (2002).

Uma “frase de movimentos” é o desenvolvimento de uma açãotulo Quinto)cit.)ases de preparaççaoizaçntuitivo da personalidade, atua na decisa resptea, terna, apaixonada, entusiasmada e so que responde a uma estrutura de organização intrínseca a ela; portanto, uma sequência de movimentos que tem uma lógica interna, o que poderia equivaler à criação de uma partitura, similar à que Stanislávski sugerira. Ações corporais simples, como sentar-se em uma cadeira, pegar uma caneta ou beber um copo d’água constituem frases de movimentos. Trechos de coreografia que combinam ações de sustentar, cair, recolher e expandir, articuladas em complexos movimentos corporais e rítmicos também o são. A diferença imposta por sua sistematização é a atribuição de qualidades expressivas a essas frases, de acordo com a distribuição de acentos.

Os acentos são importantes para a variação rítmica. Toda pulsação contínua, sem mudanças, produz um fluxo regular que leva à monotonia. Todo movimento conta, em princípio, com uma polaridade bifásica, como a pulsação binária em música e, no caso do movimento físico, de um esforço/recuperação3 – como as polaridades dormir/despertar, trabalho/descanso, condensação/dissipação da tensão, luta/indulgência (BARTENIEFF, 1993). A partir do estabelecimento dessa célula inicial, as ações vão se tornando mais complexas, até chegarem a formar um padrão de comportamento – sendo, no caso da dança e do teatro, comportamentos codificados. A riqueza expressiva desse comportamento reside no fato de que, como em música, esta pulsação básica é enriquecida, quebrada, retomada e variada por seus desdobramentos rítmicos e pela distribuição dos acentos.

Quando ocorre essa distribuição de qualidades expressivas na frase de movimento, Laban passa a chamá-la de um Fraseado Expressivo (FERNANDES, 2002). É em função da colocação do acento que Laban faz a classificação do Fraseado Expressivo. Esse acento pode ser uma ênfase em qualquer um dos fatores do movimento – uma intensificação do peso, uma aceleração do tempo, uma mudança na direção espacial, um súbito controle da fluência antes liberada. Ou uma reversão no fluxo; uma pausa; uma mudança súbita de tônus. Isto é: à semelhança dos acentos musicais, os acentos do movimento podem ser rítmicos, plásticos, dinâmicos; e, nesse caso, espaciais. Sua distribuição, ao longo da frase não só denota escolhas de ênfase como, em consequência disso, atribui propriedades conotativas aos signos.  Basta pensarmos na ampliação do termo “frase” ou “partitura” para toda e qualquer sequência espaço-temporal com uma lógica interna, e veremos que a atribuição de acentos é o mote da construção subjetiva da frase-movimento, da frase-texto, da frase-música, da frase-arquitetura.

Neste sentido, a contribuição de Laban, ao mapear possibilidades de acentuação (conforme nomenclatura atribuída por FERNANDES, 2002), se espraia para campos disciplinares insuspeitados:

1.                Quando o acento recai sobre o início da frase, ou o movimento inicia com uma qualidade expressiva intensa que diminui gradualmente, temos a sensação de que um impulso inicial foi tomado. Por isso o Fraseado, nesse caso, é Impulsivo.  

Exemplos de Fraseado Impulsivo são o lançamento de um pião que gira até parar; um grito que vai esmorecendo ao final; o início da Sinfonia 25 em Sol menor, de Mozart, que “ataca” com todos os instrumentos em dinâmica forte para decrescendo.

2.                Quando o acento recai sobre o fim da frase, o movimento inicia “morno”, vai gradualmente se intensificando, até atingir um clímax no final. A sensação é a de um impacto ao final, como num soco, um golpe, o disparo de um arco. Metaforicamente falando, é o suspense revelado no fim do filme, a descoberta do “assassino”. Desse Fraseado se diz que é Impactante.

3.                Na frase com Balanço há um aumento gradual da intensidade expressiva, que depois arrefece, como um clímax seguido de um anticlímax. Ou seja, o acento está “em meio” à frase. Tal como um movimento pendular (embora não seja necessariamente simétrico), ele estabelece certo equilíbrio na distribuição das expectativas do movimento.

Boa parte dos textos dramáticos, mormente os de caráter realista/naturalista, comporta esse tipo de “curva”, produzida pela estrutura conflito/reviravolta/desenlace. Movimentos físicos que também se distinguem por igual importância nas fases de preparação, realização e recuperação seriam: lançar uma bola com qualquer parte do corpo; executar uma pirouette (pirueta) no balé clássico; iniciar, acelerar e desacelerar uma corrida.

4.                Vários acentos de igual importância, distribuídos ao longo da frase, tornam este Fraseado do tipo Acentuado. Ele comporta uma série de ênfases.

Esse tipo de acentuação produz uma sensação de regularidade, sem ser tediosa. As encenações que trabalham as cenas como unidades autônomas, como as de Brecht, ou os textos organizados em quadros/fragmentos, típicos da dramaturgia moderna e contemporânea, distribuem dessa forma seus acentos.

5.                Quando a Frase não altera seu grau de expressividade do início até o fim, o Fraseado é Constante, seja ele em pausa ou movimento. Tenhamos em mente o quanto são necessários estes momentos numa cena ou coreografia. Afinal, é preciso estabelecer um mínimo de regularidade no ritmo, já que a acentuação infinitamente variada produz o mesmo efeito de acomodação da atenção do espectador (tédio) que a não-variação.

6.                Finalmente, uma frase com movimentos quase imperceptivelmente acentuados, de forma constante, produz um estado Vibratório.  São os movimentos vibrados, ondulatórios, de fluência livre.

Considero que o estudo do Fraseado, por parte do ator-bailarino, é uma dos maiores instrumentos não só de precisão e autonomia na composição de suas partituras psicofísicas, mas também um estimulante generoso para seu processo criativo, em si. Num exercício de abstração, este conceito tão eminentemente plástico, físico, pode ser ampliado para as estratégias de análise de texto, para a composição dos jogos de cena, para a criação de estados corporais e emocionais específicos. Pensadas dessa forma, analisar uma cena sob a ótica de seus acentos, tentando decifrar um caráter impulsivo ou impactante, pode abrir surpreendentes caminhos para o intérprete e o encenador. A ambos seria dada a opção de, ao invés de percorrer intrincados meandros psicológicos na análise de personagem, buscar fazê-lo através do ritmo e da respiração do texto, reconstituindo aos poucos um sentimento integrado na maneira de dizer esse texto. Da mesma forma, organizar uma cena levando em conta seus acentos principais e secundários, constantes ou irregulares, faz tangível, palpável, aquele aspecto imponderável do teatro que permanece ainda quase sempre sob o domínio da intuição: como prender a atenção do espectador, para que este não sinta o tempo passar?

 

 

Referências

BARTENIEFF, Irmgard. Body movement: coping with the environment. Pennsylvania: Langhorne, 1993.

DIAS, Ana. A musicalidade do ator em ação: a experiência do tempo-ritmo. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2000.

FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.

KIEFER, Bruno. Elementos da linguagem musical. Porto Alegre: Movimento/INL/MEC, 1973.

KUSNET, Eugênio. Ator e método. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Funarte, 2003.

LABAN, Rudolf.  Domínio do movimento. Org. Lisa Ullmann. São Paulo: Summus, 1978.

MALETTA, Ernani de Castro. A formação do ator para uma atuação polifônica: princípios e práticas.  Tese de Doutorado. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

OLIVEIRA, Jacyan Castilho. O ritmo musical da cena teatral: a dinâmica do espetáculo de teatro. Tese de Doutorado. Salvador: UFBA, 2008.

SACKS, Oliver. Alucinações musicais – relatos sobre a música e o cérebro. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

STANISLÁVSKI, Constantin. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.

______. Minha vida na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

TOPORKOV, Vasili Osipovich. Stanislávski in rehearsal The final years.  New York: Theatre Arts Books, 1979.


 



Notas

1  “Tempo-ritmo no movimento” e “Tempo-ritmo na fala”, ambos de STANISLÁVSKI (A Construção da Personagem, 1982).

2  A cena, costumeiramente chamada do “grito mudo”, pode ser vista na versão fílmica da peça, dirigida por Peter Palitzsch e Manfred Wekwerth em 1961 e nas fotografias de Roger Pic sobre a encenação de 1957.

3   Aqui o termo esforço é aplicado em seu sentido mais corriqueiro, de ação física vigorosa, não com a conotação que Esforço tem na gramática labaniana.

JACYAN CASTILHO é Dra. em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia, onde atua como profa. adjunta nos cursos de graduação e no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, desde 2002. Tornou-se mestre em Teatro pela UNIRIO, onde também se formara no bacharelado, com habilitação em interpretação. Atriz, bailarina formada pela Escola Angel Vianna, diretora teatral, reside há oito anos na Bahia, onde participou do Grupo Vilavox e fundou, em 2008, o Groove Estúdio Teatral, coletivo dedicado à produção de espetáculos e ações de formação. Com vinte e cinco anos de carreira artística, participou de cerca de cinquenta espetáculos de teatro e dança, entre Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo e Salvador, agregando indicações e prêmios em diversos festivais. Coordenou a edição do livro “Dança e Educação em Movimento” (Ed. Cortez, 2003/2009), além de publicar regularmente artigos em diversos periódicos eletrônicos e impressos.

JACYAN CASTILHO earned her PhD at Universidade Federal da Bahia, where she is currently working as a Professor of the Theater Studies Center, teaching graduate and post-graduate courses. She earned her MA at Universidade Federal do Rio de Janeiro, where she also holds a BA in interpretation. Jacyan Castilho is an actress, a director and a dancer, trained at the Angel Vianna Contemporary Dance School of Rio de Janeiro. For the last eight years, she´s been living in Bahia, Brazil, directing and performing in such groups as Vilavox. In 2008, she founded the Groove Estúdio Teatral, a group that promotes artistic productions and educational activities. Her professional career, performing all over Brazil for the last 25 years, has earned her awards and recognition. She was the coordinator of the book: “Dance and Education in Movement” (Dança e Educação em Movimento, Ed. Cortez, 2003/2009).