NINA VERCHININA E A CONSTRUÇÃO DE UM CORPO EXPRESSIVO

NINA VERCHININA AND THE CONSTRUCTION OF AN EXPRESSIVE BODY

Beatriz Cerbino

(UFF)

Resumo

Esse texto investiga a técnica de dança moderna criada por Nina Verchinina. Serão tomados como referências aspectos e sequências das aulas que elaborou: a aula de chão, de barra, de centro, de joelho e sequências de caídas. Na articulação entre corpo, dança e espaço cênico, Verchinina criou caminhos para ampliar as possibilidades de expressão do corpo. 

Palavras-chave | Nina Verchinina | técnica de dança | dança moderna | corpo | expressividade

Abstract

This article examines the modern dance technique created by Nina Verchinina. Some aspects and combinations from the classes that she developed are used as reference points: the barre; the floor and center exercises; her classes for the knee and her combinations of falls. By elaborating on the body through dance and in the scenic space, Verchinina created means to extend the expressive possibilities of the body.

Keywords | Nina Verchinina | dance technique | modern dance | body | expressiveness

Movimento. Esta é a palavra-chave para se compreender a trajetória profissional e pessoal percorrida pela coreógrafa Nina Verchinina (1910-1995), que viveu em países da Europa, das Américas e da Oceania. Com passagens por diferentes lugares, estando nas mesmas cidades em distintas épocas, Verchinina esteve em contato com inúmeras e variadas formas de pensar e criar, ampliando e enriquecendo suas referências artísticas e intelectuais. Uma necessidade sentida e apontada por ela própria como fundamental para seu desenvolvimento e amadurecimento como artista. (Nina Verchinina: o espírito livre da dança, 1995). Sua técnica, portanto, não está desconectada deste intenso mudar que foi sua vida. Os caminhos por ela percorridos estão, certamente, impressos nas ideias que desenvolveu e nas coreografias que criou. A particularidade de seu movimento e a técnica de dança por ela elaborada guardam, assim, aspectos encontrados nos ambientes em que viveu e produziu.

Nina Verchinina nunca pensou em si mesma apenas como uma bailarina, uma de suas maiores aspirações foi coreografar (CORSEUIL, 1946: p.25). Criar uma técnica de dança foi uma consequência lógica, pois não encontrava nas já existentes a dinâmica e os fundamentos necessários para colocar em movimento suas ideias. Fosse como bailarina, interpretando os papéis que lhe deram fama e reconhecimento internacional, fosse como criadora, buscando os fundamentos de sua técnica, a investigação pela singularidade do movimento do corpo em deslocamento pelo espaço sempre foi fundamental em sua carreira.

Reconhecida como uma das principais figuras da dança moderna no Brasil, Verchinina foi uma referência para bailarinos e criadores nas décadas de 1960 e 1970. As propostas que apresentou para a construção de um corpo - formas, sequências e possibilidades de deslocamento no espaço - marcaram fortemente a dança aqui produzida.

A partir de um corpo com formação eminentemente clássica - Verchinina estudou balé com Olga Preobrajenska (1871-1962) e com Bronislava Nijinska (1891-1972) -, criou e instaurou novos códigos corporais, elaborando e refinando seu próprio vocabulário ao longo de décadas de experimentação e pesquisa. A técnica da dança moderna que elaborou atendeu suas necessidades de bailarina e criadora que não encontrava nas técnicas então disponíveis as características que se adequassem aos movimentos e formas que buscava construir no corpo e no espaço.

De que modo um corpo treinado no balé, como foi o de Verchinina, tornou-se capaz de idealizar e organizar uma técnica de dança moderna? Tal questão ganha relevância quando se compreende que suas ideias não estavam desconectadas temporal e espacialmente de seu ambiente, fazendo parte de um contexto mais amplo de criação, envolvendo a arte de um modo geral, a dança, e também as transformações sociais, políticas e intelectuais em curso. Assim como mudanças aconteciam no cotidiano das pessoas, afetando não só suas vidas diárias, mas também o modo como se relacionavam com o mundo, o corpo apresentado em cena também se modificava. A partir da primeira década do século XX, com as contribuições de Isadora Duncan (1877-1927), Loïe Fuller (1862-1928), Rudolf Laban (1879-1954) e Mary Wigman (1886-1973), entre outros, novas formas foram colocadas em prática na dança.

Uma companhia também teve papel fundamental na transformação do cenário da dança: os Ballets Russes de Diaghilev, que abrigou criadores como Michel Fokine (1880-1942), Vaslav Nijinsky (1889-1950), Bronislava Nijinska (1891-1972) e George Balanchine (1903-1983). Dirigida por Serge Diaghilev (1872-1929), durante seus vinte anos de existência, de 1909 a 1929, a companhia estabeleceu ligações com o que havia de mais moderno em termos de música e artes plásticas, levando a ideia de modernidade não apenas para as obras produzidas, mas também para os corpos dos bailarinos. Coreografias, cenários, figurinos e partituras musicais apresentados transformaram a ideia de balé até então existente.  

Se o grupo de Diaghilev inovou, o Ballet Russe de Monte Carlo, companhia fundada pelo Coronel Wassily de Basil (1888-1951) e por René Blum (1878-1942), em 1932, e na qual Verchinina tornou-se primeira bailarina e alcançou fama e reconhecimento internacionais, buscou preservar esta herança. Apesar de muito mais comedidas, as investidas do grupo de Monte Carlo em projetos mais arrojados existiram, como os três balés sinfônicos1 que Léonid Massine (1895-1979) montou para a companhia, na década de 1930. Após quatro anos, em 1936, a sociedade entre os dois diretores foi desfeita, dando origem ao Ballet de Monte Carlo, de Blum, e, mais tarde, ao Original Ballet Russe, dirigido por De Basil.2

Os Presságios, de 1933, primeiro dos balés sinfônicos de Massine e o primeiro em que Nina Verchinina dançou um dos papéis principais, é considerado o ponto de virada de sua carreira. A participação de Verchinina foi fundamental no processo de criação da obra, já que foi em seu corpo, e com sua ajuda, que o coreógrafo realizou e refinou suas pesquisas por uma movimentação distinta da que vinha apresentando até então, aproximando-se do vocabulário moderno. Por sua forte presença cênica nos balés de Massine recebeu o titulo de “Primeira Bailarina Sinfônica”, tornando-se mundialmente reconhecida por sua força interpretativa e maneira de se movimentar.3

Em 1935, após já ter dançado nos dois primeiros balés sinfônicos de Massine, Os Presságios e Choreartium, ambos de 1933, Nina Verchinina passou um ano pesquisando e trabalhando em Nova Iorque, onde entrou em contato com a técnica de dança de Martha Graham (1894-1991) e de Doris Humphrey (1895-1958), período em que também fez aulas com um discípulo de Laban. Assim, com as informações que recebeu, passou a experimentar outras maneiras de organizar o movimento no corpo e no espaço. Em seu retorno à Europa, em 1936, participou de Sinfonia fantástica, o terceiro balé sinfônico de Massine.

Desenvolveu sua técnica ao buscar uma formulação que permitisse entender o corpo não decomposto em partes, mas como um todo capaz de se mover em bloco pelo espaço. Ou seja, o corpo não entraria e se deslocaria no espaço de maneira sucessiva, com uma parte após a outra em movimentos quebrados, mas sim simultaneamente, criando momentos de total conjunção entre cabeça, tronco e membros.

Nina Verchinina expôs uma concepção de dança que foi capaz de solucionar as questões coreográficas e conceituais que surgiam, apresentando uma integração de movimentos e significados que, segundo o entendimento da própria coreógrafa, não estavam desassociados. Ao situar sua técnica na esfera do que nomeou como “dança moderna expressionista”, conectou-a não só à sua percepção espacial, mas principalmente àquilo que entendia como a expressão do corpo em movimento. Sua técnica, de acordo com seu entendimento, possibilitava ao bailarino atuar como um conjunto integrado de músculos e sentimentos, usando em cena toda sua capacidade motora para explicitar as ideias ali apresentadas.

Construir um corpo que fosse capaz de lidar com as questões que elaborou foi o grande desafio enfrentado por Nina Verchinina. A prática corporal que instaurou colocou em evidência aspectos como força, controle e sustentação, expondo, ao mesmo tempo, qualidades de um corpo que buscava se expandir e ganhar volume no espaço. O movimento, para Verchinina, não era executado em fluxo livre, sem nenhum tipo de apoio espacial, mas de maneira sempre controlada. O corpo verchiniano não está solto no ar, ao contrário, atua em um espaço de alta densidade que molda sua tonicidade muscular, gerando movimentos acentuadamente marcados e contidos que, ao mesmo tempo, se opõem em ações contínuas e opostas de contração e expansão.

A partir de uma formação em dança essencialmente clássica, Verchinina alcançou um outro patamar em sua trajetória: além da mestra que ensinava, como aquelas com quem estudou, tornou-se também uma mestra que inventou, ao elaborar um corpo para dançar com características e formas independentes daquelas apresentadas pelo balé.

Um estado do corpo

A crítica e pesquisadora de dança Laurence Louppe (2000: p.31), em seu texto Corpos Híbridos, fala sobre um “estado de corpo”, referindo-se à criação dos mestres da dança moderna. Concepção que pode aqui ser utilizada para se refletir acerca das formulações de Nina Verchinina. Um estado que pode ser entendido como uma conjunção de princípios estéticos e filosóficos. Um conjunto que, coerentemente, revela as práticas elaboradas e desenvolvidas por cada criador, explicitando tanto as ideias quanto os caminhos escolhidos para sua concretização.

Qual seria então o estado do corpo verchiniano? Que qualidades são ali reconhecíveis? Estas são questões chaves para se entender as ideias que Nina Verchinina materializou em movimento, auxiliando na identificação de aspectos estratégicos de sua obra. Aspectos que, na verdade, podem ser entendidos como marcas que a mestra deixou em suas criações – sejam elas coreografias ou nos corpos de seus bailarinos e alunos.

Nesse sentido, olhar para o corpo criado por Verchinina é entender de que modo uma referência corporal foi constituída com o objetivo de fazer o corpo dançar, já que, para ela, a ideia de dança estava essencialmente ligada ao ato de um corpo deslocando-se pelo espaço.

O jogo de oposições tão presente em suas coreografias – contração/expansão, leveza/força, próximo/longe - foi utilizado pela coreógrafa como uma das fontes de possibilidades tanto para movimentos e sequências que criou, quanto para os significados que ela gostaria de ver engendrados a partir deste binômio. Significados que tinham para Verchinina um papel fundamental em sua obra. Nas palavras dela: “Na dança moderna é muito importante, além da técnica, transmitir sentimento, não apenas uma sequência de passos”. (Jornal da Dança, janeiro de 1991, p.1, coluna 1, nº 16, Ano II).

Ao situar sua técnica na esfera do que nomeou como dança expressionista, Verchinina buscou conectá-la não só a sua percepção de espacialidade mas, principalmente, àquilo que entendia como a expressão do corpo em movimento. Não havia uma relação direta com a dança expressionista alemã, mas ao seu próprio entendimento acerca da necessidade do corpo ser trabalhado como fonte de expressão. Assim, elaborou uma técnica que, segundo seu entendimento, possibilitava ao bailarino atuar como um conjunto integrado de músculos e sentimentos, usando em cena toda sua capacidade motora para assim explicitar as ideias ali apresentadas (Recital TVE – Nina Verchinina, s/d).

É importante perceber que o mesmo tipo de construção que buscou - o do corpo atuando como um grande todo - foi utilizado como um elemento organizador em suas coreografias, isto é, ela trabalhou os grupos de bailarinos como se estivesse esculpindo formas no espaço, armando composições não de pessoas, mas de movimentos, para assim criar seus quadros.

Ao dizer que os bailarinos eram como argila, moldando formas e estudando cuidadosamente o balanceamento do peso dos corpos em cada quadro e cena que criava, Verchinina explicitou tanto o entendimento que tinha de seu material de trabalho quanto o uso que fazia dele: o corpo devia ser trabalhado para realizar em cena os efeitos que ela desejava. As distorções, contrações e caídas idealizadas pela coreógrafa ganhavam, assim, visibilidade na técnica por ela criada.

Ao elaborar movimentos que criavam volume no espaço, apoiados no binômio contração-expansão, Nina Verchinina também necessitou de um corpo que fosse capaz de trabalhar e apresentar esse mesmo volume em cena. Porém, ao contrário da técnica de contração-expansão de Martha Graham, em que a contração situava-se no centro do corpo, próxima à cintura pélvica, Verchinina localizou seu centro na cintura escapular, mais especificamente no plexo solar, de onde o movimento devia partir para se expandir no espaço. Assim, olhar para sua obra é, antes de tudo, perceber ali a organização de um pensamento que tinha na percepção do corpo como um todo um de seus fundamentos básicos:

Minha escola é baseada num trabalho de corpo, da cabeça aos pés. Não tenho nada de braço ou perna separados; é tudo ligado. Não temos, em nosso corpo, nenhum músculo separado; são todos ligados. Tronco, perna, braço, cabeça, em ligação, em harmonia. Com base nisso, crio o movimento para desenvolver os aspectos físicos, juntamente com os mentais, para que eu possa entender o que está sendo feito (Jornal da Dança, janeiro de 1991. p.1, coluna 1, nº 16, Ano II).

Ao partir deste princípio, Verchinina desenvolveu sua técnica, elaborando e organizando suas pesquisas em busca de uma formulação que permitisse entender o corpo não decomposto em partes, mas apresentando-se como um todo capaz de se mover em bloco pelo espaço. Ou seja, o corpo não entraria e se deslocaria no espaço de maneira sucessiva, com uma parte após a outra em movimentos quebrados, mas sim simultaneamente, criando momentos de total conjunção entre cabeça, tronco e membros.

A cabeça, igualmente, deveria ser incorporada ao movimento, acompanhando-o em toda sua extensão e deslocamento pelo espaço. Apesar de sua formação clássica e de usar elementos do balé em suas aulas, como as cinco posições básicas dos pés, os grands battements, os ronds-de-jambes, e até mesmo os pas de bourrés, Verchinina tinha clareza da necessidade de um outro tipo de corpo, e um outro entendimento do movimento, para que as pessoas pudessem dançar o que ela elaborava coreograficamente: “Em dança se diz que todo mundo que dança clássico pode dançar moderno, [mas] é completamente outra técnica, é outra maneira!” (Nina Verchinina: uma concepção de dança, 1989). Assim, elaborou um novo vocabulário, independente daquele da dança clássica, criando semântica e sintaxe próprias. O conjunto de aulas por ela elaborado – chão, centro, barra e joelho – continha as informações necessárias para que o corpo ali formado fosse capaz de dançar suas coreografias.

O centro do movimento

Com ênfase na unidade superior do corpo, Verchinina situou o ponto central do movimento no tronco, especificamente na região do osso esterno, local simbolicamente ligado à emoção, e a que chamou de “central sísmica”. (Nina Verchinina – o espírito livre da dança, 1995). Região reconhecida não apenas por ela, mas também por outros criadores, como aquela em que a emoção está sediada. Laurance Louppe, em seu livro Poétique de la danse contemporaine, cita François Delsarte (1811-1871) como exemplo de um teórico do movimento que percebeu este local como zona em que os complexos emotivos se fixariam e onde o sujeito não apenas se exprimiria, mas se constituiria (LOUPPE, 1997: p.53).

Verchinina trabalhou tridimensionalmente suas sequências, criando movimentos que passavam pelos três níveis do espaço – baixo, médio e alto – priorizando, ao mesmo tempo, a extensão máxima do corpo em todos os momentos. Não à toa, os movimentos transversos, que cruzam o centro do corpo indo de uma extremidade à outra, são os mais utilizados por Verchinina em suas sequências de caídas.

Por estar situado na parte superior do corpo, este centro dá ao tronco e aos braços a liderança do movimento, dando àquele a possibilidade de realizar movimentos de diferentes qualidades e em variadas direções e ainda assim permanecer em estado de suspensão. Um estado que nunca é abandonado pelo corpo verchiniano, mesmo quando realiza sequências no chão. O espaço, em nenhum momento, deixa de ser utilizado como apoio.

Tendo como ponto de partida esta central sísmica, todo movimento realizado no corpo teria início lá e estaria apto a alcançar sua maior expansão e dimensão no espaço. Assim, Verchinina criou exercícios, sequências e coreografias em que a cintura escapular está livre, possibilitando à coluna vertebral aumentar seu grau de flexão, extensão, inclinação lateral e rotação. Os ombros também estão livres, organizando, em conjunto com os braços, o equilíbrio e a movimentação do corpo.

A aula de chão

Com o centro impulsionador do movimento situado na cintura escapular, Verchinina tratou de dar ao abdômen, seu centro de sustentação, a força necessária para que suas sequências pudessem ser executadas. E fez isto trabalhando conjuntamente as pernas, que identificou como o suporte móvel do corpo que construiu. Os exercícios de chão dão força e elasticidade à musculatura, alternando séries em que vigor, resistência e sustentação são empregados e articulados. O corpo, neste momento, mantém forte tonicidade e usa o solo não só como apoio, mas, principalmente, como fonte de resistência para conservar-se neste estado. Nesta aula, são adquiridos os requisitos necessários para se manter em equilíbrio mesmo quando se está fora de eixo ao se realizar um movimento.

Como em suas coreografias, o corpo na aula de chão também é trabalhado como um todo, de maneira simultânea, e não sucessiva. Desde o início da aula há uma integração da unidade superior com a inferior, priorizando-se sua extensão máxima. Já no aquecimento inicial, o tronco e os braços são acionados, buscando-se amplitude dos movimentos.

 

Imagem 1: Primeira sequência realizada no chão, estes exercícios para aquecimento simultâneo das unidades inferior e superior do corpo apontam o forte trabalho muscular a ser realizado

desde o início da aula.

 

 

       Os exercícios são organizados de maneira crescente, isto é, a cada série são adicionadas novas passagens, trabalhando constantemente um grupo muscular. Havia uma progressão de exercícios no decorrer das aulas, isto é, ao longo do dia, as sequências iam sendo ampliadas na mesma proporção em que o grau de dificuldade ia crescendo. Uma intensa preparação é feita para que a musculatura do abdômen, das pernas e também da coluna vertebral tenha a força requerida para as muitas transferências de peso, de direção e de apoio existentes nas sequências preparadas por Verchinina. O alongamento da coluna e das pernas é trabalhado constante e incisivamente, construindo um corpo não apenas forte, mas também alongado.

O trabalho de chão mostra-se essencial não apenas para a técnica de dança desenvolvida pela coreógrafa, já que ela o entendia quase como um partner, mas se apresenta também como um tema recorrente em sua obra, isto é, esta ligação com o chão, representava, para ela, a conexão do homem com a terra, traduzindo “um contato mais direto com o mundo” (Nina Verchinina: o espírito livre da dança, 1995).

A aula de centro

Se no chão o bailarino de Nina Verchinina adquire força e alongamento muscular, nas aulas de centro ele aprende a utilizar estes dois aspectos de sua formação, coordenando-os a fim de realizar as sequências e os exercícios propostos pela coreógrafa.

Com uma estrutura básica de aula que, se a princípio parece guardar alguma semelhança com a de balé, já que é iniciada com pliés, passando pelo trabalho de pernas até chegar às grandes extensões, Verchinina, mais uma vez, distancia-se daquela, como na aula de chão, propondo uma dinâmica que, desde os primeiros exercícios, trabalha fortemente o corpo. Outro aspecto próximo ao balé é o uso da rotação lateral das pernas (en dehors), com a diferença de que também lança mão da rotação medial (en dedans). No entanto, se a terminologia é a mesma do balé, a forma de realizar tais passos é completamente distinta da técnica em que Verchinina se inspirou para elaborar sua aula.

A ondulação do tronco enfatiza a movimentação dos braços que, de modo geral, acompanham a direção daquele, ampliando o suporte do corpo no espaço. Verchinina, porém, não os limitou a este uso, utilizando-os também em outras direções, criando assim uma resistência entre as linhas espaciais. Nos dois casos, seu objetivo foi atingir o máximo da extensão corporal, se não por igualdade, por oposição de sentidos.

 

Imagem 2: Os pliés e os grand plíes da aula de centro foram criados por Verchinina para coordenar o aquecimento e o alongamento muscular, e para trabalhar mudanças de direção e de níveis no espaço. Aqui é apresentada uma série em segunda posição, em que se percebe tais mudanças. As sequências de pliés são feitas na 1ª, 2ª, 4ª e 5ª posição de pés.

 


Coerente com o emprego da unidade inferior como suporte móvel, a bacia é usada por Verchinina como um ponto fixo no espaço, permanecendo como apoio enquanto o tronco se lança e ganha volume no espaço. Este se dobra para frente, para trás e para os lados, se contrai e se alonga, mas não deixa de estabelecer com as pernas um diálogo constante, apresentando uma compacta organização do corpo.

A restrição do movimento da articulação coxofemoral também está presente nas aulas de joelho, porém, na aula de centro, a articulação intermediária da perna, o joelho, assim como a do tornozelo, permite uma maior liberdade de movimentação, não precisando fixar-se em um só ponto do chão.

O centro do corpo é utilizado nesta aula como elemento norteador de seu equilíbrio, impulsionando-o para o alto e permitindo que permaneça estável mesmo quando fora de seu eixo.

A aula de barra

Além da aula de centro, Nina Verchinina também desenvolveu a aula de barra, trabalho em que linhas espaciais paralelas ao chão são utilizadas para nortear o direcionamento do corpo. Os músculos das costas e do abdômen são extremamente exigidos neste tipo de aula, dando ao bailarino o que chamava de “apuro físico” (Recital TVE – Nina Verchinina).

Empregados pela coreógrafa como séries para fortalecer e, principalmente, alongar o tronco e as pernas, estes exercícios proporcionam não só maior equilíbrio ao bailarino, como também permitem que a entrada no espaço de maneira ampla, ou seja, com maior projeção, seja experimentada com mais segurança.

 

 

Imagem 3: Aqui o alongamento e o fortalecimento das pernas são trabalhados vigorosamente, por meio da sustentação e da tonicidade muscular realizadas a partir do apoio da barra. Ao mesmo tempo, o equilíbrio do corpo, como um todo, é buscado a partir das diversas trocas de

direção do tronco.

 

 


É também na barra que a força das pernas é evidenciada, produzindo um estado de sustentação que se instala em todo o corpo. Estado existente em todas as suas aulas, principalmente na de centro, mas que aqui ganha uma outra perspectiva por estar o bailarino fazendo uso de um elemento externo, a barra. Esta é utilizada por Verchinina da mesma maneira que o chão, isto é, não se trata de usá-la apenas como apoio para a execução dos movimentos, mas de encontrar e usufruir as possibilidades de impulsão que ela apresenta.

Exercícios como pliés, extensões do tronco e dos braços, assim como o lançamento das pernas também são realizados, porém, buscando-se uma qualidade de alongamento da musculatura mais intensa do que aquela experimentada na aula de centro. Na verdade, a barra surge como um complemento ideal para as demais aulas idealizadas por Verchinina, funcionando muitas vezes como um preparatório para as sequências de joelhos, já que também busca preparar e adequar o corpo aos padrões por ela idealizados de movimentação.

A aula de joelho

Criada e introduzida no Brasil por Nina Verchinina, a aula de joelho estabeleceu uma nova forma de se preparar o corpo para dançar. Assim como na aula de chão, em que os exercícios realizados na posição sentada educam o corpo para as séries de joelho, nesta aula os bailarinos recebem informações que os preparam para as sequências de caídas.

       Com as pernas encurtadas pelo fato de estarem dobradas e voltadas para trás, os joelhos fixam-se no chão, atuando como base, enquanto a coxa é exaustivamente fortalecida e alongada. Porém, ao mesmo tempo em que esta base se fixa no solo, puxando o corpo para baixo, um trabalho em oposição é realizado e o tronco é alongado ao máximo, projetando-se para cima.

Se nas aulas de chão as pernas são intensamente trabalhadas, ganhando uma carga extra de exercícios, para sustentarem a unidade superior do corpo durante as séries e os deslocamentos realizados em pé, nas aulas de joelho o tronco e os braços são privilegiados, conduzindo a ação e direcionando os movimentos. O fato de a articulação coxofemoral estar parcialmente restrita dá à coluna grande mobilidade e amplitude de movimentação, tendo a possibilidade de ondular em movimentos de contração e extensão.

Como os joelhos estão fixos, a bacia tem poucas possibilidades de movimentação, podendo ser utilizada em posição alongada para frente, enquanto a coluna é projetada para trás, ou ainda pode ser jogada para trás, com a coluna sendo trabalhada para frente. Além disso, a bacia também pode mover-se para os lados, em inclinação lateral externa e interna. A região lombar da coluna é muita exigida neste momento, assim como a parede abdominal. Estas duas regiões mantêm o corpo não só em seu eixo, como permitem que ele seja deslocado de sua verticalidade, promovendo os ajustes necessários para que um novo equilíbrio seja encontrado.

 

 

Imagem 4: Esta sequência, na quarta posição de joelho, exemplifica a força necessária no tronco para realizar os movimentos e as trocas de direção propostas. É a partir desta posição que os giros feitos sobre os joelhos são executados.

 


Com uma intensa exigência muscular, as aulas de joelho apresentam-se como um complemento para as informações já recebidas nas aulas anteriores. De posse de todas estas instruções, o bailarino de Nina Verchinina encontra-se, então, apto a executar as sequências de caídas.

As sequências de caídas

Não se trata, especificamente, de um tipo de aula, já que não há uma aula só de caídas. Estas séries são realizadas ao fim das aulas de centro ou de joelhos, como uma finalização para os exercícios realizados ao longo da aula. Mais do que passos ou movimentos isolados, as caídas elaboradas por Nina Verchinina podem ser entendidas como a conjunção de suas ideias acerca das possibilidades de movimentação do corpo por ela construído.

Utilizando os três níveis espaciais e diferentes pontos de apoio e suporte ao longo destas sequências - mãos, braços, tronco, pernas e joelhos -, as chamadas caídas não configuram, propriamente, uma sequência de quedas, já que o corpo não se projeta solto para o espaço sem uma direção pré-determinada, mas como uma ida controlada ao chão, em que tensão e jogos de oposição são mantidos ao longo de toda a série.

Da mesma maneira que o bailarino, controladamente, chega ao chão, ele também retorna ao nível alto, construindo uma trajetória em que as mudanças de direção são fator preponderante em sua elaboração.

 

 

Imagem 5: Nesta sequência, pode-se perceber que, mais do que simples movimentos, Verchinina construiu uma lógica de movimentação em que força e leveza, agilidade e velocidade

são pontos chaves para sua execução.

 


   

 

Com um corpo em deslocamento constante, não apresentando um eixo fixo, as caídas elaboradas por Nina Verchinina não apenas projetam o corpo no espaço, como também criam a possibilidade para que este o preencha, usando para isso diferentes planos e eixos. Direções variadas e múltiplas transferências de peso fizeram destas séries uma experimentação constante para as pesquisas de movimento realizadas por Verchinina.

Com uma forte movimentação, em que até mesmo a leveza ganha nuanças de força, e uma dinâmica pautada na sustentação espacial, foram construídas sequências complexas com usos alternados de diferentes apoios e níveis espaciais. As caídas idealizadas, tanto as séries de exercícios quanto as partes integrantes das coreografias, expõem o entendimento que Verchinina tinha de corpo assim como de dança. Uma dança ligada essencialmente à movimentação e ao deslocamento corporal, criando volumes e projetando-se no espaço. Um corpo que guarda traços de técnicas que fizeram parte da sua formação, como o balé, a dança moderna alemã e a norte-americana, mas que foi elaborada de maneira independente, a partir do desenvolvimento de seu próprio vocabulário.

Em todas as suas coreografias essa construção é visível, entre elas vale destacar Rhapsody in blue (1955), com música de George Gershwin, Zuimaalúti (1960), música de Claudio Santoro e libreto de Manuel Bandeira, a partir do poema Toada do pai do mato, de Mário de Andrade, Metastasis (1967), música de Iannis Xenakis, e Suíte barroca (1973), com partitura de vários compositores barrocos.

       Reconhecer o corpo construído por Nina Verchinina é perceber nele os aspectos fundamentais da técnica que o impregnou e que permitem, por sua vez, distinguir a prática corporal que ali se faz presente. Prática que, durante décadas, manteve-se como referencial de dança moderna no Rio de Janeiro, instruindo profissionais e instaurando nos corpos de seus alunos um pensamento distinto do até então apresentado nas salas de aula cariocas.

Referências

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Vídeos

Nina Verchinina: o espírito livre da dança. Project Vídeo Produtora, 1995.

Nina Verchinina: uma concepção de dança. Sunlight Produtora e Iser Vídeo, s/d.

Recital TVE – Nina Verchinina. Produção e direção Gilberto Motta, s/d.

Gravação da coreografia Agnoscere, música de Bela Bartok. TV Continental, produção de Roland Henze, 1968

Gravação de aula com alongamento, sequência de joelho, preparatório para caídas e caídas, 06/10/1992.

Gravação de Suíte Barroca, seguida de entrevista com Nina Verchinina. Aula completa, com aquecimento e sequências de pliés, de chão e de joelho, s/d.

 



 

Notas

1 Este termo foi cunhado em 1933, em referência ao primeiro dos balés sinfônicos de Léonid Massine. Recebeu esta denominação por utilizar sinfonias como trilha sonora e por manter a divisão musical como separação dos atos dos balés. Ao longo de sua carreira, Massine criou dez balés sinfônicos.

2 Para detalhes consulte-se GARCÍA-MÁRQUEZ, 1990.

3 Para uma discussão sobre a participação de Nina Verchinina no processo de criação dos três balés sinfônicos de Massine de que participou consulte-se CERBINO, 2003.

BEATRIZ CERBINO é pesquisadora e dramaturga de dança. Fez graduação em dança no Centro Universitário da Cidade/UniverCidade, no Rio de Janeiro. É mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/São Paulo, e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio de doutoramento na New York University, no departamento de Performance Studies. Além do trabalho artístico em dramaturgia da dança, é professora do Departamento de Artes e Estudos Culturais da UFF, no Pólo Universitário de Rio das Ostras, e no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte/PPGCA. É autora de textos e livros sobre a dança, entre eles “Nina Verchinina: um pensamento em movimento” (Funarte, 2001).

BEATRIZ CERBINO is a researcher and dance dramaturge. She earned her Bachelor´s degree in Dance at the University Center City/UniverCidade, in Rio de Janeiro. She holds a Master´s degree in Communication and Semiotics from the PUC/São Paulo and has earned her PhD in History at the Fluminense Federal University (UFF), which included a doctoral apprenticeship at New York University's Department of Performance Studies. Besides her artistic work, she is a teacher at the Department of Arts and Cultural Studies at UFF, at the University Centre of Rio das Ostras/PURO, and at the postgraduate Program in Science of the Arts/PPGCA. She is the author of articles and books about dance, such as "Nina Verchinina: a thought in motion" (Nina Verchinina: um pensamento em movimento Rio de Janeiro: Funarte, 2001).