POROROCA: UM CORPO POSSÍVEL ENTRE MÍDIAS1

POROROCA: THE BODY BETWEEN ARTISTIC MEDIA

Ana Lana Gastelois2

(UFMG)

Resumo

Este trabalho se utiliza do termo pororoca para criar uma analogia entre o fenômeno da natureza e o encontro que se faz entre duas ou mais mídias. Norteado pela experiência da artista Ana Lana Gastelois, faz um levantamento de questões tratadas pela performance, a fim de verificar onde e como essas questões se cruzam, se sobrepõem e se diferenciam da noção de Pororoca, no sentido empregado pela artista. Busca evidenciar como a Pororoca trata as relações que se fazem tanto entre as artes, a obra e o artista, como entre a obra e o público. Relações em que as margens se desfazem, para se refazerem, em continuo fluxo tempo-espaço, assim como descobrem e traçam as suas próprias características e flexibilidades. Assim a artista absorve o fenômeno da natureza, é contaminada por ele, recria seu significado, e desenrolando sua poética, à deriva, segue.

Palavras-chave | Desenho | Dança | Performance | Arte Contemporânea | Pororoca

Abstract

This article introduces the term Pororoca [the merging of the waters of a river with the sea] to create an analogy between the natural phenomenon and the meeting of two or more artistic media. Based on the author´s experience as an artist, it surveys the issues addressed by the performance, in order to establish where and how these issues crossover, overlap and differentiate themselves from the idea of Pororoca, in the sense applied by the artist. The work also tries to highlight how the concept of Pororoca can be used to describe the relations established between different arts, between the work of art and the artist, or between the work of art and the audience. The word implies relations where the margins disappear, just to appear again in a continuous flow of time and space; relations that discover and trace their own characteristics and adaptability. Thus, the artist absorbs the natural phenomenon, is contaminated by it, recreates its meaning and unleashing its poetry, adrift, moves on.

Keywords | Draw | Dance | Performance | Contemporary Art | Pororoca

O termo pororoca

Pororoca: palavra de origem tupi que indica o encontro de duas águas (FERREIRA, 1988: p.1368). Seu sentido, também de origem tupi (poro+roka), quer dizer estrondo. Esse embate de águas contrárias gera movimento, imagem e som, o fluxo das águas desfaz e refaz as margens. O sol e a lua atuam, influenciando a gravidade dos corpos, da matéria água. Utilizo esse fenômeno como metáfora para pensar o fluxo entre mídias, entre o desenho e a dança, inicialmente. Que corpo é esse da pororoca, que é formado pela junção de outros dois? 

O termo Pororoca3 surgiu da necessidade de uma sistematização teórico-conceitual do que venho realizando para entender e dialogar com esse lugar onde minha prática se encaixa e que é hoje mais conhecido por Performance. Tendo a noção de performance  como uma referência, e mais adiante a de Live Art, o termo Pororoca foi se definindo ao mesmo tempo em que se foi diferenciando, ganhando corpo, apresentando linhas, criando consistência e sedimentação. Ao mesmo tempo em que decifrava o fenômeno, verificando sua analogia com os processos que desenvolvia, fui contaminada por ele.

A partir da realização do trabalho Batedeira, quando me interessei em expor o processo do desenho e integrar o espectador na obra, consideram-me performer.

Imagem 1: BatedeiraS, realizada por vários corpos no mesmo eixo-pés, é um desdobramento do desenho Batedeira, realizado no Grande Orlândia, organizado por Márcia X e Ricardo Ventura no Rio de Janeiro em 2003.

 

Minha atuação sempre se inseriu no encontro entre as artes: pesquiso e realizo trabalhos que relacionam duas ou mais mídias, que tratam o encontro entre obra e espectador e, nessa interação, borram os limites entre a arte e a vida. Esses encontros tornam-se um terceiro corpo que, por sua vez, se desdobra em outros; o processo se faz em constante transformação, efêmero e permanente, ao mesmo tempo, vivo.

A noção de Pororoca contribuiu para sistematizar as diferenças entre as experiências desenvolvidas. Impõem-se ali, onde não existe mais a separação de cada mídia específica, mais um lugar possível no entre, no fluxo, no ambiente e nos corpos. Ao mesmo tempo embaixo e em cima, dentro e fora, do lado direito e esquerdo, atrás e na frente, sozinho e no coletivo, em contraponto, em constante equilíbrio, entre um e outro, em movimento espiralar, que contém e está contido no universo.

Utilizo-me dessa metáfora para construir um corpo híbrido em palavras, assimilando os borrões entre as margens que se desfazem para se refazer, repetindo-se em outro tempo, no mesmo espaço, porém diferente. Ao mesmo tempo em que a noção de Pororoca se apresenta, contaminada pelas experiências realizadas, é absorvida, desdobrando-se novamente. A sonoridade contida no movimento do fenômeno e o silêncio do vácuo precedente confirma esse lugar transitório, onde está inscrito o meu corpo, agora, atravessado por todos os outros corpos presentes, real, imaginário e virtual, em fluxo com o universo, produzindo e experienciando a Pororoca.

Escrevo o que venho pesquisando na prática, contaminando os fluxos de consciência em que os limites se apresentam para se desfazerem em busca do todo, no limite de minha pele, entre a atmosfera e o que está contido, dentro, juntos.

Associar a criação artística à sobreposição de águas distintas, precedida de momentos de tensão e silêncio, associá-la a uma embarcação que está à deriva em processo de busca, assim como acontece no fenômeno e na lenda da pororoca, é o que propõe a noção de Pororoca. A metáfora envolve questões de fluxos, corpo, natureza e culturas. A lenda inventa a pororoca, em busca da embarcação Jacy. A pesquisa investiga as relações que envolvem essas características físicas e abstratas do corpo pororoca na natureza e realiza um paralelo com as artes, abrindo uma possibilidade de existência fora e dentro daquele contexto e reafirmando o que o campo da performance afirma: por definição a performance  não se fecha em sua própria noção, permeia os limites.

A metáfora permite que a denominação pororoca não se feche em um fenômeno, ou conceito, mas se torne abrangente e ao mesmo tempo específica. Assim como o ponto de vista de um corpo, ao mesmo tempo em que é proximal – plano dos seres humanos – é distal: está e depende das relações dos corpos contidos no sistema solar. Abarca o encontro que se faz a cada momento no tempo e no espaço, em processo constante, portanto é relativo. Sobrepõe, propaga-se na água, rompe limites, refazendo as margens e está em constante transformação. Escava ao mesmo tempo em que calcifica.

O fenômeno da pororoca é resultado da atração simultânea da Terra em relação ao Sol e à Lua: o movimento desses corpos celestes, que se perfilam no mesmo plano da linha do Equador, gera o fenômeno pororoca. A linha do Equador é uma linha abstrata, que resulta da divisão da superfície da Terra entre o sul e o norte, e é perpendicular ao eixo de gravidade e ao eixo de rotação. Essas três linhas são intrínsecas ao corpo-pororoca que se move em sua gravidade. Por que nosso corpo não o seria?

O fenômeno é o encontro de dois ambientes distintos, dois habitats. Que animais vivem em ambos? Qual é o trânsito e o seu propósito para esses animais? Reprodução, replicação, dar nascimento a outros? Qual o desenho da dança no espaço tridimensional do corpo da pororoca? Como posso fixar o desenho do corpo-pororoca e fazer um paralelo com as artes se ele está em constante transformação?

Recorto uma fração de segundo para estudar as possíveis perspectivas proximais e distais desse corpo, já sabendo que elas se repetirão, mas de forma diferenciada. Sistematizo o desenho com que esse corpo-pororoca percorre o espaço-tempo, para associar ao movimento de outros corpos. Escuto seu silêncio. Seleciono o meio água, por sua capacidade de transmissão e reverberação, como possível referência para estudar o fluxo entre as artes tendo o corpo como um elemento de peso e fluxo.

O ser Pororoca

 Movimento: a dança da Pororoca desenhada ou o desenho do corpo da Pororoca.

O movimento da pororoca é formado por quatro vetores. Existe o deslocamento na linha horizontal, e sua direção é a do corpo do rio; a linha vertical, perpendicular à horizontal, tem o eixo gravitacional do corpo-pororoca, e quando há o aumento da superfície, sua altura sobrepõe a água do rio, gerando a onda que pode durar até trinta minutos. A terceira linha está perpendicular à horizontal e à vertical, estabelecendo a amplitude do corpo pororoca, está limitada às margens móveis do rio refazendo-as. Podemos também considerar uma quarta linha, abstrata, relativa ao tempo-espaço, e é a única linha que não se repete no ciclo4. As imagens (2a e 2b) ilustram a forma e os vetores desse corpo.


 

Imagens 2a e 2b: Vetores da pororoca. Fonte:

<fogonazos.blogspot.com/2007/03/pororoca-surfing-amazon.html.>

Esses traços e linhas descritos esboçam o desenho do corpo-pororoca e suas relações de movimento em relação à esfera terrestre. Utilizo a referência das linhas desse corpo para relacionar a dança ao desenho e para discernir os fluxos, bidimensional e tridimensional, nos trabalhos que venho realizando. E se as construções na dança e no desenho descobrissem pontos provisórios de contato e aliança, como se falassem juntas um novo idioma estrangeiro, que já não fizesse parte das mídias reconhecidas de qualquer delas?

Desdobro a Batedeira novamente e ela se transforma em Engrenagem. Acrescento mais um eixo-pés5 – para cada ambiente um número de eixos-pés. O conjunto dos eixos gera uma dança que se faz das relações entre os corpos. O diálogo transparece no ritmo e fluxo de cada participante, refletindo e ecoando em toda a estrutura do desenho.

Imagens 3a, 3b, 3c e 3d: Engrenagem, trabalho apresentado na FUNARTE, RJ, 2003. Performers: Ana Gastelois, Amália Lima, Gustavo Barros, Sandro Amaral, Joana Ribeiro, Jamil Cardoso e Alexandre Pring.

 Corporificado em linhas no plano, surge e ressurge o desenho, a partir de cada registro, confirmando seu caráter pororoca efêmero e de re(e)xistência, sugerindo um motor de autoconhecimento, em que a repetição da ação contribui para seu entendimento. Desdobro o tema homem-máquina, propondo o movimento humano das engrenagens corpóreas. Aqui o desenho e a dança se confrontam para experimentar uma pororoca, vertem para o mesmo espaço camaleônico, onde os grafites registrados do desenho são corpos móveis que se desdobram a cada tempo.

O som da ação emerge do movimento do grafite na superfície, afirmando sua unidade multifacetada. Torna-se mais um elemento e traz novas possibilidades para o movimento, contaminando-o. Aparece o jogo da composição sonora, que por sua vez faz o movimento; a ação subverte-se. Assim, os elementos que surgem ao acaso no jogo – som, pulsão, diálogo de eixos – vão se inserindo à composição e são incorporados. Transformam-se ao longo do processo, ecoam a partir do embate inicial até à ondulação final, que se fixa nos desenhos sobrepostos das novas margens e camadas resultantes do movimento conjunto de todos esses corpos r(e)existindo.

Na interpretação de Leonardo da Vinci do homem de Vitruvius – com suas proporções áureas definidas –, é interessante notar as relações de linhas apresentadas, tendo como referência um estudo de linhas das proporções humanas harmoniosas. Entre outras coisas, observa-se que a medida de altura de um homem “bem formado” é igual à medida do alcance de seus braços estendidos. Essas duas medidas formam um quadrado que encerra o corpo inteiro, enquanto as mãos e os pés tocam o círculo que inscreve o corpo.

Imagem 4: Interpretação de Leonardo da Vinci do homem de Vitruvius,

com as suas proporções áureas adicionais.

 

A respeito dos estudos do matemático Luca Paciolli Vitruvius, Da Vinci escreve que “toda parte tem em si a predisposição de unir-se ao todo, para que, assim, possa escapar à sua própria imperfeição, perceber a preocupação da unidade ao mesmo tempo em que não se omitem os buracos” (1960: p.153). Nas proporções observadas por Da Vinci, além das dicotomias que se complementam (orgânico e abstrato, unidade e buraco) percebemos as relações de tamanho entre as partes do corpo plano.

Os desenhos para o corpo que dança, projetados por Schlemmer, revelam algumas preocupações geométricas, relacionadas à funcionalidade do corpo: ao mesmo tempo em que as linhas das engrenagens corporais se estendem para o espaço, relacionando-se com ele, desenham a geometria do movimento, no tridimensional. Schlemmer desenha as articulações do corpo humano no plano para, no movimento, projetar seus volumes; relaciona a quarta dimensão ainda não impressa em Da Vinci. Joga com o processo de desenhar no espaço, construindo figuras, desdobrando o experimento em figurinos, como podemos ver nas figuras seguintes (5a, 5b e 5c).

 

 

 

 

Imagens 5a, 5b e 5c: Diagrama realizado por Schlemmer para a Dança do gesto.  C. Slat Dance.

 

 

Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo e Bauhaus utilizavam a arte como um meio de provocação e desafio, num contínuo embate para romper com o tradicional e impor novas formas, “[...] diminuindo de um lado a distância entre arte e vida, e por outro lado, [propondo] que os artistas se convertessem em mediadores de um processo social” (Glusberg, 2003: p.53).

Os móbiles de Calder, iniciados em 1932, constroem um volume virtual, quando são manipulados pelo vento, ou pelo gesto ou sopro do espectador. A transformação se faz pela natureza ou pelo homem, ou por ambos em diálogos dinâmicos. A obra visual integra das artes cênicas à experiência estendida do tempo. Segundo Krauss (1998: p.233), “a trajetória dos móbiles de Calder conduz, partindo das geometrias abstratas de Gabo, ao conteúdo antropomórfico da ação intermitente do corpo”.

A coreógrafa Marta Graham percebeu nos móbiles a dramaticidade inata de sua atuação e encomendou uma série deles para funcionarem como “interlúdio plásticos”, durante as apresentações de sua companhia de dança (KRAUSS, 1998: p.262).

Desenho o corpo da pororoca, em palavras, para verificar os deslocamentos e referências desse corpo à metáfora criada, rebater as relações do percurso, a maneira de sua construção, criando um meio para o cultivo da Pororoca. 

Imagem da pororoca

Para utilizar o fenômeno pororoca como metáfora, inspiro-me na obra de Mark Johnson e George Lakoff (Lakoff, 2002: p.311). Os teóricos afirmam que, longe de serem fenômenos marginais, as metáforas são de importância vital para o próprio funcionamento da mente humana, uma vez que, sem a sua atuação constante, o pensamento em si se tornaria impossível. Para os autores, as nossas metáforas mais fundamentais são, todas elas, diretamente ligadas às nossas percepções do mundo, a começar por nossa relação com nosso próprio corpo. Ou seja, a mente e o corpo não são tão independentes como quer a longa tradição metafísica do mundo ocidental. Ao contrário, se complementam.

Aqui, interessa a metáfora pelo papel que desempenha na compreensão do ser humano, na compreensão da obra de arte e também por constituir fenômenos e modelos conceituais. Johnson (2002) mostrou que a via metafórica é uma maneira de pensar e que a empregamos para organizar e transmitir os nossos pensamentos. Encontramos na metáfora matéria de estudo e compreensão dos modos de agir do ser humano; a estrutura conceitual não é simplesmente uma questão de intelecto, ela envolve todas as dimensões naturais de nossa experiência, incluindo percepções de nossas experiências sensoriais, tais como: cor, forma, textura, som etc. Os conceitos surgem em grande parte da estrutura da experiência corpórea e é por esse leito que navego.

Propor a pororoca como metáfora, dando um sentido e contextualizando-a, agrega valores culturais e formais, confirmando e experienciando o que propõem Johnson e Lakoff. A noção de pororoca se caracteriza pelo encontro que se dá entre dois ou mais corpos, num momento especifico; efêmera e permanente, abrangendo transformações próprias da natureza, para refazer as margens. Aproprio-me, ao mesmo tempo em que sou surpreendida por ela, construo um diálogo do Absurdo, ao mesmo tempo, coerente.

As relações entre o corpo e o ambiente se dão por processos que produzem uma rede material e virtual, de predisposições perceptuais, motoras, sensitivas. A rede não cessa, está viva, em equilíbrio constante. Na atuação artística Pororoca, os limites se refazem, se misturam, e se sobrepõem. O seu eco primeiro escava as margens, no segundo momento, calcifica. Pontuada no tempo e no espaço, realiza o desenho da sedimentação, que fica ali fixo, até que a próxima pororoca se apresente. Assim, também na arte, a criação Pororoca é sempre provisória, não há absolutos. O novo é relacional e se dá no fluxo e no entrelaçamento de diversos fatores.

Enquanto me aproprio da metáfora, sou atravessada por ela, descubro seus sentidos, influenciando-me pelos acontecimentos do fenômeno, construindo significados nas experiências realizadas, que se transformam na escrita Pororoca. Experiências realizadas no meu corpo, no ambiente, nos encontros de outros corpos e das mídias – a qual gera um terceiro corpo que é a própria produção teórica Pororoca. E assim, torno-me também um pouco pororoca. Como falar da Pororoca sendo eu a própria? O processo é buscar o discernimento do meio.

É uma abordagem no campo das construções realizadas que permite estabelecer uma ponte entre os mitos objetivista e subjetivista, segundo Lakoff e Johnson: uma explicação do modo como a compreensão usa os recursos primários da imaginação, via metáfora, e de como é possível dar novo sentido à experiência e criar novas realidades (Lakoff, 2002: p.311).

O corpo pororoca se coloca no lugar do corpo físico como suporte, e se torna um corpo meio de cultura, que está em diálogo constante com o ambiente e a cultura. Contamina-se, cria relações que se fazem nos embates e interseções das artes, em fluxo ininterrupto e em propagação. Transforma ambientes, corpos, apresenta um outro lugar, definitivamente não imanente.

Ruminar a palavra, no embate, sobrepor, para criar novos ambientes e refazer os limites. Ler o corpo do fenômeno pororoca para fundamentar o corpo da pesquisa. Bidimensionalizar para tridimensionalizar, fazer emergir as possíveis perspectivas, proximais e distais. Atracar em águas profundas ou enseadas para não haver estragos na carcaça. A Lenda da pororoca apresenta a busca e a esperança do encontro da embarcação que navega à deriva. Até que ponto o rastro realizado pela Pororoca é um objeto de arte? Onde a Pororoca se corporifica como obra, realizando um experimento artístico? Quando posso rebater suas ideias contidas no termo, na arte e na vida?

A Pororoca ocorre quando há o embate de uma ou mais mídias, e o que vemos – tanto no rastro como no corpo-objeto – contém todos os meios empregados, aparentes ou não. Interessa verificar o ponto de contato que se estabelece no processo e na apresentação, identificando cada corpo e o corpo conjunto, buscando novas possibilidades, numa corrida constante na apreensão da realidade, do meu corpo, do outro, e do mundo. As artes se juntam, para formatar uma terceira coisa, que não é qualquer uma delas em separado, mas as duas – ou mais – ao mesmo tempo, simultâneas e sobrepostas, em equilíbrio e constantes negociações.

Um exemplo de imagem da Pororoca poderia ser o texto resultante do encontro entre Deleuze e Guattari, que não é o pensamento individual de cada um, mas sim um terceiro, que é o encontro e a mistura dos dois pensamentos. Para especificar essa junção, Deleuze utiliza a relação de confluência entre as águas: “Éramos dois riachos que se juntam em um terceiro”6.

O som da pororoca

A chegada do fenômeno físico-geográfico é observada quando ocorre o total silêncio. O silêncio estabelece um ambiente atmosférico entre os corpos ativos, para a escuta de um outro corpo específico e distante, invisível ao olhar, mas já sensível aos ouvidos; aqui ainda é uma relação distal, imaginária. O vácuo do som tem uma perspectiva diversa do olhar, atravessa paredes, percorre o ar, a água e atravessa florestas. O fluxo dos corpos instantâneos da natureza se imobiliza no tempo do acaso, para a escuta da pororoca. O som também acontece; em contraponto, o corpo passa de um extremo a outro, para estar no mundo. Sua escolha está relacionada e, portanto, é influenciada pelo ambiente, proximal e distal. O impulso vem cheio de silêncio e antecipa o estrondo certeiro. Escutar o silêncio para perceber a chegada da pororoca, no acaso, é estar atento.

Percurso da performance e identidade da Pororoca

A performance é o campo atuante nas artes em que a Pororoca se encaixa, se desencaixa, se esbarra muitas vezes e vai se definindo também como um corpo móvel. Qual é o corpo que está entre a performance e a Pororoca? Quais as diferenças e proximidades? O que posso relacionar da performance à fisicalidade da pororoca? Poderia fazer uma analogia com o que foi chamado de Obra de Arte Total? Segundo Kaprow (1958), a noção de Obra de Arte Total aparece na época de Wagner e mais tarde, no Simbolismo. Baseia-se nos dramas litúrgicos da Idade Média, que utilizam várias artes, mantendo a autonomia de cada uma, pois cada gênero estava separado e era identificável.

Segundo Turner (apud Dawsey, 2007: p.37)

A experiência se completa através de uma forma de “expressão”. A performance completa uma experiência. Porém o que se entende como completar? Essencial à performance - e, aqui, também recorremos a Turner - é a sua abertura. Ou em outros termos, o seu não-acabamento essencial. Daí, a sua atenção aos ruídos...

Além da atenção aos ruídos, que enfatiza o conceito do acaso, desenvolvido pela parceria do compositor John Cage (1912-1992) com o coreógrafo Merce Cunningham (1919-2009), Turner deixa claro que uma característica implícita da performance é o caráter de sua impermanência. No fenômeno da pororoca e na performance é intrínseco o constante refazer das margens, a ideia de movimento é imanente, já na Pororoca, aqui conceituada, o rastro faz parte da obra e se torna obra também, independente. Como a performance foi se configurando em vários campos, sua definição percorre um caminho de identidades diferenciadas e que tentam, cada uma à sua maneira, delimitar o que vem a ser ela. O pensamento e a prática artística nos Estados Unidos e na Europa, a partir dos anos 1950, foram crescentemente impregnados da palavra performance como ideia-força capaz de saltar o espaço entre arte e vida.

Na exposição Son et Lumière (Sons & Lumière, 2005: p.12), que aconteceu no Centre Pompidou, em Paris, no início do século XXI, podemos perceber uma necessidade de sistematização da junção de mídias, relacionando ideias que perpassam pela extremidade, os campos do som e da luz. Inicia-se com a notação musical através das cores na formatação bidimensional, procurando estabelecer correspondências entre som, cor e movimento, e termina com a instalação de fumaça, do artista Huyghe, que comenta: “uma expedição poética que contribui para a produção de um afastamento de zonas turbulentas e incertas, e logo, a exposição é a experiência sensorial” (Sons & Lumière, 2005: p.12 – Tradução livre da autora). De fato, nas expressões atuais, a obra se oferece sobrepondo o espaço no tempo e o tempo no espaço, os corpos se misturam em rede, formando um único corpo que contém seus vários fluxos e relações incertas.

Entre as margens da performance e da Pororoca, torna-se possível verificar como e porque os limites se identificam e se diferenciam, investindo no possível rastro da fissura entre elas. Então a analogia proposta, acima, com a Obra de Arte Total torna-se imprópria, pois estas não se misturavam: cada gênero estava separado e identificável, tornando-se multimídia e não mixmídia7.


Na Pororoca, assim como na vida, o corpo humano “dentro-fora” da natureza, presente em relações intrínsecas ao ambiente é composto de sua consciência e de seus fluxos no espaço-tempo. Impregnado da perspectiva do universo, assim como da perspectiva cinesférica8, este corpo escolhe sua postura e se relaciona com o outro, com a obra e com o todo ao mesmo tempo, existindo, assim, na “quarta dimensão”.

É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de cortes retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado. Agora adivinho que a vida é outra. [...]. A vida oblíqua é muito íntima. [...]. Viver essa vida é mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto (LISPECTOR apud FERNADES, 2000: p.139.).

Estabeleço as noções, uma após a outra, como ondas, como ecos, como elementos da construção, esclarecendo os conceitos e borrando os limites, descobrindo e esmiuçando onde se encontram as semelhanças e diferenças, as interseções, confluências e divergências na existência da Pororoca. O corpo imerso nas memórias vivenciadas, pré-enchido pela ausência da palavra, do silêncio precedido ao fenômeno. O fluxo por dentro-fora, derramando imagens, descompassos, desfazendo margens, refazendo limites, com a massa do entre-as-mídias, preenche os buracos, busca o todo, formata Pororocas.

Hibridismos, sobreposições, desdobramentos e transformações de limites corroboram para a transparência do trabalho e sedimentação de Pororoca, que é processo e contém rastro resultante do encontro, existindo independentemente como obra, após o evento. Contribui, deste modo, para a compreensão das experiências vivenciadas, gera um conceito, uma ação que se refaz e sistematiza em forma de palavras os trabalhos Batedeira, Engrenagem, Horizontes Prováveis, CorRespondentes, Beau de l’air e Pororoca 019.

No encontro das águas opostas, a única força que permanece é a certeza das possibilidades do clarão de luz nas ondas que se quebram, realizando o branco. Há vida, há possibilidade de consciência. Assim como o rastro da baleia branca desejado pelo Capitão Kieb citado por Jean-Clet Martin na literatura de Moby Dyck.

O branco não é uma unidade orgânica ou lógica, mas linha de fragmentação que arrasta todas as perspectivas possíveis... O branco começa somente onde se afirmam dois lados dessemelhantes e distantes... O branco de que falamos é o grande todo que Deleuze inscreve na dimensão do aberto, é o todo que não é um conjunto fechado, mas a passagem intersticial de um conjunto a outro, de uma margem a outra... O branco é uma totalidade fragmentária (MARTIN, 1989: p.11).

O rastro branco da baleia desenha possíveis trocas entre corpos, vislumbrando luzes, como na essência do nascimento da pororoca; no encontro de águas distintas, desfazem-se margens e permite-se o vislumbre da fissura, surgem possibilidades de borrões, do acidente, do acaso, da vida. O corpo ainda obscuro, sem ver o todo, imerso nas experiências, à procura dos brancos, das fissuras do rastro de Moby Dick, para registrar nos encontros das águas, os sons, os movimentos e as imagens.

Escolho a metáfora pororoca porque implica um movimento na dimensão da natureza, do homem, do imaginário. A metáfora além de designar um fenômeno conhecido da natureza, é brasileira, está impregnada da nossa cultura, é específica e, ao mesmo tempo, plural, sem fronteira. Trato como Pororoca os trabalhos que realizei, que surgem com características intrínsecas ao fenômeno, se assemelham e se diferenciam dos experimentos performáticos e esbarram em questões que estão presentes na Live Art. Mas aqui a arte se faz em todos os lugares e situações, abarcando tudo que alguém disse ser arte. A Pororoca tem o tempo como um dos elementos da composição, explora ideias de processo e presença, em que as fronteira são borradas, rejeita a mercantilização das artes. O corpo se torna objeto e sujeito, investiga as relações com o público, rompe com a distinção entre espectador e participante, é como um espaço ativo e, frequentemente, transgressor. Trata da interação ambiente e habitat. É o encontro de partes distintas que se tornam um único corpo de movimento, imagem e som.

Há muito, os meios nas artes se entrecortam, misturam-se, expandem-se e transformam-se sem, no entanto, deixar de dialogar com uma tradição específica da arte em que já se transformou a performance. Por isso, baseando-se nela, evidenciam-se as diferenças, mas tornam-se muito sutis e próximas no espaço-tempo da Live Art. A Pororoca se faz, se constrói, se diferencia partindo da sua poética, para experimentar o corpo uno entre as artes, entre os fluxos dos corpos, e ainda, entre as culturas. Nas inúmeras possibilidades que a arte nos coloca e nas constantes transformações em que nossos corpos se encontram no ambiente e no universo, o movimento de repetições dos fenômenos – formas que o universo nos impõe – explicita uma impessoalidade, uma espécie de maquinaria humana, mesmo que identificatória.

Pela repetição, o corpo explora sua existência conflituosa e paradoxal, entre o natural e o linguístico, o experiencial e o automático, o pessoal e o social. O corpo “reconta” e “redança” sua própria história de dominação, continuamente repetindo e transformando – “redefinindo” – dança (FERNANDES, 2000: p.40).

Cabe ao meu corpo dar continuidade à busca errante do encontro... da consciência... e experienciar as possibilidades da poética da Pororoca.

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MOSER, Walter. As relações entre as artes: por uma arqueologia da intermidialidade. In Aletria: Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte, FALE/UFMG, n. 14, p.40-63, jul.-dez. 2006.

VALÉRY, Paul. Degas, Dança, Desenho. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

VITRUVIUS, Pollio. The ten books on Architecture. New York: Dover Publication, 1960.

 

 



Notas

1 Dissertação apresentada em 2009 no Programa de Mestrado em Artes da EBA/UFMG, sob a orientação da Profa. Dra. Lucia Gouvêa Pimentel.

2  anagastelois@hotmail.com

3  Pororoca, grafada em itálico, designa, deste ponto em diante, a proposição deste trabalho.

4 Devido à oscilação do eixo de rotação e à sua flexibilidade, a posição do Equador não é rigorosamente constante, razão pela qual é adotada, para efeitos geodésicos, uma posição média.

5  O eixo é fixado no chão com a imagem do pé, ponto de princípio e referência do eixo de cada participante.

6   DELEUZE, in: <http://www.youtube.com>. Acessado em 23/10/08.

7  Segundo Claus Cluver, a diferença entre multimídia e mixmídia é que a primeira trabalha com as mídias independentes entre si, em relação única daquele espaço-tempo, assim como a Obra de Arte Total, a Performance e a Live Art em muitos casos; já as mixmídias misturam os elementos formatando um terceiro.

8  Relativo à Cinesfera = kinesfera, é a esfera que delimita o limite natural do espaço pessoal, no entorno do corpo do ser movente. Esta esfera cerca o corpo esteja ele em movimento ou em imobilidade, e se mantém constante em relação ao corpo, sendo “carregada” pelo corpo quando este se move. É delimitada espacialmente pelos alcances dos membros e outras partes do corpo do agente quando se esticam a partir do centro do corpo, em qualquer direção, a partir de um ponto de apoio. É um conceito que pertence ao Método Laban de Análise do Movimento.

9  Pororoca 01. Realizada em Vitória em 2006.

ANA LANA GASTELOIS atua nas áreas de artes visuais, artes cênicas e educação. Formada em desenho EBA/UFMG, pós–graduada em educação UCAM/RJ, mestre em artes visuais EBA/UFMG. Contemplada com a bolsa do Governo Espanhol para a America Latina e bolsa CNPQ para o mestrado. Selecionada no FIT para realizar o projeto Objetos Voadores: Beau de l’air e para a Performance AND de Gary Stevens, no Panorama de Dança. Estagiou no Grupo Teatro Potlach, Itália. Participou de exposições e festivais, entre eles; FIT Dinamarca, FIT/MG, FID/MG, MIP/BH, FIP Madrid, Videobrasil SP, FlAAC Brasilia, Imagginni Itália, RioCenaContemporânea, FUNARTE RJ/SP, SAMAP/PB, Grande Orlândia RJ, Itaú Galeria CG. Ministrou aulas de cenário e figurino no Teatro Universitário/UFMG, na extensão EBA/UFMG, nos Festivais de Invernos: Antonina/PR, Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Diamantina MG. Premiada melhor cenário de dança, 2000/MG.

 

       ANA LANA GASTELOIS works in the fields of visual arts, performing arts and education. She has an undergraduate degree in drawing from Escola de Belas Artes/UFMG, where she also holds an MFA in visual arts. She was awarded a scholarship in Spain from the Programa de Formación para Iberoamérica del Ministério de Educación y Cultura. She was selected to perform her project Objetos Voadores: Beau de l'air at FIT and to perform in "AND" by Gary Stevens, at the Panorama de Dança Festival. She has worked as a trainee in the Potlatch Theatre Group in Italy and has taken part in exhibitions and festivals, among which: FIT Denmark, FIT-MG, FID-MG, MIP-BH, FIP Madrid, Videobrasil SP, FlAAC Brasilia, Imagginni Itália, RioCenaContemporânea, FUNARTE RJ/SP, SAMAP-PB, Grande Orlândia RJ and Itaú Galeria CG. Was awarded a prize for best dance set design in 2000(MG). She has also taught Set and Costume Design at the faculty theater of EBA/UFMG, as well as at the winter festivals of Antonina (PR), Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei and Diamantina (MG).