3. UMA GESTUALIDADE PARA KATTRIN, PERSONAGEM DA PEÇA MÃE CORAGEM E SEUS FILHOS, DE BERTOLT BRECHT

3. A GESTUALITY FOR KATTRIN: A PROPOSAL FOR THE CHARACTER IN BERTOLT BRECHT'S MOTHER COURAGE AND HER CHILDREN

Nara Keiserman

Resumo              

Organizado na forma epistolar, trata-se de um estudo de Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht, tendo como foco a construção de uma gestualidade para a personagem Kattrin, de acordo com os princípios do épico brechtiano.  Investe-se claramente na certeza de que a teoria brechtiana está indissociada da cena em que ela se resolve.

Palavras-chave | Brecht | Teatro épico | Construção de personagem | Gestualidade

Abstract

Organized in epistolary form, this study of the play  Mother Courage and Her Children, by Bertolt Brecht focuses on the construction of a gestuality for the character Kattrin, according to the principles of brechtian theories for the epic theater.  It is based in the certain knowledge that Brechtian theory is inseparble from stage practice.

Keywords | Brecht | Epic theater | Character construction | Gestuality

Nara Keiserman é Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO e tem Pós-doutorado na Universidade de Lisboa (2010); Professora Adjunta IV na UNIRIO, onde atua na graduação e no PPGAC.

Nara Keiserman holds a Doctorate in Scenic Arts from UNIRIO and a post-doctoral work at the University of Lisbon (2010).  She is Adjunct Professor IV at UNIRIO, where she teaches in the Graduate Program in Scenic Arts. 


UMA GESTUALIDADE PARA KATTRIN, PERSONAGEM DA PEÇA MÃE CORAGEM E SEUS FILHOS, DE BERTOLT BRECHT

                                                                               Nara Keiserman

Introdução

Este artigo é construído sobre uma situação ficcional, em que eu é uma jovem atriz brasileira de um grupo de teatro, que se encontra na Alemanha para frequentar Seminário, Oficina e Prática de Montagem com um grupo, digamos de Frankfurt, em que se investiga o trabalho de Bertolt Brecht. A forma epistolar foi escolhida por possibilitar a espécie de diálogo em que o interlocutor ganha concretude, e por franquear ao narrador uma linguagem mais próxima da realidade vivida em situação de ensaios, em que a elaboração da cena se dá em sintonia com as discussões teóricas.

Uma questão que se coloca é como e em que medida um capital teórico, relativo ao universo brechtiano, é material eficaz para a composição gestual da personagem, de modo que fundamente efetivamente as assertivas de ordem prática, e esteja presente nas escolhas estéticas e no processamento das ideias. Considerando que os interlocutores imaginados, os atores do grupo de teatro ficcional, conhecem os pressupostos teóricos, há a opção por uma economia dissertativa, confiando na ideia de que é na prática que a teoria brechtiana se ilumina.

As Cartas

Carta 1 – O teste

Pessoal!

Vocês podem imaginar minha total comoção! Passei no teste! Não escrevi antes porque preferi aguardar os resultados, e então alegrar ou entristecer vocês com minha vitória ou derrota. Está bem, eu sei, apenas o fato de estar aqui já é uma vitória, etc. e tal.

Mas, convenhamos, ter um papel para fazer é muito melhor do que ficar assistindo e anotando. É claro que vou anotar tudo, talvez até mais, porque as coisas aqui são feitas de maneira absolutamente detalhista e isto requer, exige, não sobrevive, sem muita anotação – eu, pelo menos, não sobreviveria sem a boa e inestimável ajuda de lápis e caderno.

Vou mandando notícias conforme o trabalho for se desenvolvendo, mas não prometo estabelecer com vocês uma rotina como uma carta a cada três dias, ou qualquer coisa assim. Acho que vou mesmo é ir mandando o meu diário de ensaios, para que possam acompanhar o processo conforme for acontecendo. Bem, de algumas coisas só vou poder falar depois de amadurecidas, então não prometo aquela minha ordenação de pensamento e pautas a que acostumei vocês neste bom tempo em que temos - felizes! – trabalhado juntos.

Participaram do teste para a montagem de Mãe Coragem praticamente todos os atores que frequentaram o Seminário e a Oficina. Éramos uns 30, de várias nacionalidades, muitos falando corretamente o alemão, com acentos variados.

O teste era “narrar um acontecimento de rua que carregasse um significado social”. Contei uma cena a que nunca assisti, mas posso bem imaginar, de policiais desbaratando uma pequena feira de camelôs no centro da cidade, quando uma pessoa que passava é feita refém. Executei o exercício diversas vezes e a cada uma, mesmo antes de eu terminar a história, me solicitavam que adotasse pontos de vista diferentes, contra, a favor de uma ou de outra personagem, salientando uma ou outra contradição dentro da própria narração, e finalmente, que o fizesse apenas por gestos, numa espécie de relato géstico, que não fosse uma pantomima, frisaram. Isto tudo nós havíamos praticado na Oficina, e parecia simples. Claro que nunca é simples, mas era uma proposta pelo menos conhecida por todos, o que nos deixou um pouco menos nervosos. O sentido coletivo fora tão enfaticamente trabalhado já mesmo no Seminário que, mesmo sendo concorrentes, permaneceu entre nós, durante o teste, um forte sentimento de grupo.

Bem, sem querer menosprezar a minha performance em língua alemã, acho que me saí melhor na gestualidade, porque ganhei o papel de Kattrin, a filha muda da Mãe Coragem!

Escolhido todo o elenco, ficou acertado que ninguém leria a peça, que todos já conheciam, é claro, antes do primeiro ensaio, para não comprometer a ideia da memorização das primeiras impressões de uma leitura coletiva. Estas impressões, designadas principalmente a partir de reações de surpresa e espanto, deveriam ser não apenas o ponto de partida para a construção da personagem numa abordagem que privilegia sempre a contradição, mas também se constituir numa espécie de “subtexto” (compreendido não à moda do mestre Stanislavski, mas como um pensamento crítico do ator), que acompanha o pensamento do ator durante a representação, auxiliando-o, inclusive, na tarefa de falar como quem cita e movimentar-se como quem mostra (Benjamin, 1973).

Isto, de falar como quem cita e movimentar-se como quem mostra, parece-me das coisas mais difíceis de executar. A tendência de assumir como seu tudo que é da personagem, o próprio fascínio que esta exerce sobre o ator, o desejo do ator de agradar ao público através da personagem, de querer que o público goste dele – tudo isto torna esta proposta um objetivo que requer treinamento e constante, constante mesmo, atenção. Quero dizer, não se pode simplesmente fazer a personagem, do tipo act naturally, porque senão sai isto: natural e descabido na proposta dialética da encenação.

Volto a escrever depois do tão esperado primeiro ensaio.

Beijos para todos.

Carta 2 – Primeiras Leituras

Meus queridos amigos!

Desculpem ter demorado tanto em escrever. As coisas aqui são tão intensas, fico tão completamente tomada pelos ensaios, pelo prazer do pensamento partilhado nas leituras e discussões sobre a peça que, confesso, começo a achar pequenas demais todas as nossas tentativas de fazermos um teatro inteligente.

Começo dizendo que essa carta é longa. Transcrevo do meu caderno as anotações que fiz quando das primeiras leituras do texto.  Não vou ficar chateada se discordarem do que penso, ou se acharem minhas conclusões limitadas, ou bobas, ou pretensiosas, ou... – POR FAVOR, DISCORDEM!!!        

Eu tinha gravadas na minha memória duas cenas de Kattrin: quando ela rouba as botas vermelhas de Yvette e a cena final, quando bate o tambor para acordar a cidade em perigo, resultando daí a sua morte. Pareciam-me ser as duas grandes cenas da personagem, e à medida que líamos a peça juntos pela primeira vez, eu ansiava por chegar nelas. É claro que isto afetou a qualidade da minha atenção não só na peça como um todo, na fábula propriamente, como nos outros personagens e nas outras cenas de Kattrin. Por sorte, estas primeiras impressões não se referem, obviamente, ao pé da letra, à primeiríssima leitura, senão eu estaria perdida, teria que abandonar tudo, fracassada. Mesmo porque, as primeiras impressões são, normalmente, confusas, e clareza e precisão é uma das metas do trabalho. 

De modo que, conforme foram ocorrendo os ensaios de leitura e discussões subsequentes, pude ir elaborando, cena por cena, aquilo que me chocava, por inesperado ou contraditório na personagem, ao mesmo tempo em afinava meu entendimento da fabulação, da composição das cenas por saltos, do comportamento dos personagens, conforme se relacionavam uns com os outros. Precisava conhecer, sem dúvida, para poder comentar, criticar, apontar as falhas ou virtudes, ter a atitude de quem conhece a história toda e, portanto estar em condições de julgar, de ter uma opinião lúcida e histórica a respeito. Precisava conhecer para distanciar, para que o espectador, pelo processo do distanciar, pudesse conhecer. “Tudo vai se concentrar no cultivo das distâncias”, ensina Gerd Bornhein (1992: p.259).

Nas discussões trazidas pelas leituras, noto que não se colocam questões de base como: o teatro que se quer fazer, com que objetivos e para quem; o efeito de distanciamento como recurso para a sua concretização; do gestus sendo a possibilidade da representação materializada dos conteúdos – essas noções, já estabelecidas e discutidas à exaustão no Seminário, formavam como a estrutura sólida sobre a qual a edificação das cenas e dos personagens vão sendo construídas.

Não se discute a eficácia do efeito, mas em que momentos e com que recursos provocar o distanciamento, estranhamento, alienação. Também não se discute a qualidade dos adereços, que serão, por princípio, reais, já usados, com a marca do homem em seu uso. A discussão é: quais os objetos que esclarecem, por exemplo, a classe social da personagem, a relação social entre os personagens e como usar o objeto, para que ação e com que gestos. Servindo-me do tripé: fábula, gestus e distanciamento, parto para a construção da minha Kattrin.

A partir da fábula, sem que haja de início uma preocupação específica de cada um com o seu personagem, vai sendo analisado o que se quer mostrar, exemplificar, chamar a atenção do espectador, para que dali ele possa tirar um ensinamento - não esquecer que o prazer maior do homem da era científica vem do conhecimento.

A passagem da fase de leituras à cena se dá a cada vez que um episódio parece já não oferecer mais nenhum material produtivo para ser discutido – produtivo no sentido de possibilitar a elaboração de gestus que cumprissem sua função de esclarecedores das relações sociais. Não são jamais atividades estanques: ler, discutir, improvisar e marcar. Voltamos ao texto sempre que necessário e a volta para a cena acontece num mesmo fluxo de pensamento sempre dialético, indagador. Tanto numa situação quanto na outra, algumas palavras parecem proibidas, mas não o tempo todo - dogmatismo é a única atitude terminantemente proibida. Observações do ator como: não é natural, não é como eu sinto, parece falso são exemplos do que deve ser evitado – indicam que o ator está conduzindo seu trabalho na direção errada, rumo à identificação com a personagem. Outras, ao contrário, parecem sempre bem vindas: estranho, produtivo, esclarecedor, histórico...

Os procedimentos das primeiras semanas de ensaio me mostraram que só a partir dos pequenos gestos, de um trabalho sobre detalhes, é que eu poderia chegar a uma visão completa e dialética de Kattrin. Isto porque aqui não se trabalha com generalizações, ou seja, não é útil para o ator, não serve como ponto de partida, porque não o impulsiona na composição das ações que fazem a personagem aparecer materialmente, no nível da concretude desejada. Não há uma compreensão generalista da personagem, por se levar em conta suas contradições e a própria dialética dos acontecimentos, cuja resolução não é nem mesmo apontada pelo autor; é uma dialética que nem sempre se resolve pela síntese.

O que se pode apreender sobre as relações sociais a partir das ações de Kattrin – parece ser um ponto de partida produtivo. A primeira pergunta que elaborei foi qual a função da personagem na peça para depois elaborar um título específico para Kattrin a cada cena, o que poderia indicar uma sequência de gestus da personagem. Quando, em casa, me pus a escrever sobre a tal função geral, cheguei a isto:

Mãe Coragem é o centro de uma constelação ao redor da qual transitam seus filhos e outras personagens. Se a cada uma delas é atribuída uma virtude (sem conotação moral, estamos numa guerra), a de Kattrin é a de oferecer um contraponto, expondo de maneira extremamente clara a contradição essencial de Anna Fierling, entre ser Mãe ou Coragem. Kattrin, a princípio, precisa de uma mãe, por ser uma mulher fragilizada por sua mudez vivendo em meio a uma guerra, na qual se vê envolvida diretamente pelos interesses comerciais de Coragem. Comparando com os irmãos, Kattrin é a única a oferecer um desenho com algum traço menos tipificado. Sua ação demonstra sentimentos fortes de amor fraterno e maternal - ??????

E aí parei, com todas estas interrogações na cabeça. Minha conclusão me pareceu completamente inútil e mesmo superficial, óbvia. Mesmo que esteja correta, não me serve, ou oferece muito pouco material que possa ser convertido em gestualidade. A partir disso, ou de posse disso, como poderia eu passar para o palco? A verdade é: não me trazia nenhuma pista para as ações da personagem. Lembrou-me aquele diretor que tivemos, não preciso dizer o nome, que depois de ouvi-lo filosofar horas sobre a peça, perguntávamos: “Legal, mas por que lado eu entro?”.

Noto que há uma espécie de passo a passo, que leva o ator por uma construção paulatina, detalhada e indutiva da personagem. Então, calmamente e cena por cena, algumas importantes e outras menos importantes, o que é uma das marcas deste tipo de construção épica, lá fui eu anotando tudo o que me estranhou, espantou, ou pareceu produtivo para a composição de Kattrin, para depois transformar o material assim colhido em gestos reveladores.  Detive-me nas cenas em que ela aparece.

Carta 3 – Análise do texto

Queridos amigos!

Vou direto ao assunto profissional, que me trouxe até aqui, tão longe de casa! É claro que morro de saudade de todos! Eu disse que a carta anterior era longa? Preparem-se para essa!

Mesmo afiadíssima na língua alemã, não pude dispensar a leitura da peça em português. Utilizei a tradução de Geir Campos, na Edição da Paz e Terra do Teatro Completo, volume 6 (p. 171 –266). Todas as citações do texto referem-se a esta edição, fica mais fácil para vocês me acompanharem. Aí vão as falas que me impressionaram e alimentaram minha compreensão, sempre focada em Kattrin, cena por cena em que ela aparece:

“Cena 1 Primavera de 1624. Em Dalarne, o General Oxenstjerna recruta tropas para a campanha da Polônia. A vivandeira Anna Fierling, conhecida pelo apelido de Mãe Coragem, fica sem um dos seus filhos”.

“Sargento: De onde vem a moral, pergunto eu?” (p. 175). Diz isto defendendo a guerra como a única possibilidade de organização social. E mais adiante: “Como tudo o que é bom, a guerra também é difícil, no começo” (p. 176). A peça é uma crônica da Guerra dos Trinta Anos, e a moral, a ética da guerra já aqui se estabelece.

“Mãe Coragem: Eu atravessei o fogo da artilharia de Riga, com cinquenta pães na carroça; eles já estavam dando bolor, não havia tempo a perder, eu não tinha outro jeito” (p. 177). Para Mãe Coragem, seus negócios são mais importantes que a própria vida. O ato heroico que lhe rendeu o nome de Coragem se justifica pelo perigo da falência.

Numa rubrica, há a indicação de que Kattrin e Queijinho divertem-se com a maneira como a Mãe Coragem explica ao Sargento o fato de seus três filhos terem nomes diferentes (p. 178). O humor é uma das chaves da peça, eles parecem satisfeitos com o tipo de sociedade familiar criada para eles por sua mãe.

“Recrutador: A guerra dá lucro e dá glória”, para convencer Mãe Coragem a permitir que seu filho Eilif o acompanhe. De novo, os benefícios, a moral da guerra.

“Mãe Coragem: O tenente é noivo da minha filha” (p. 180), ameaçando o Sargento. É mentira, e deve ofender profundamente Kattrin. Mostra um aspecto da sua relação com a Mãe.

No episódio de tirar a sorte, em que Mãe Coragem mistura papéis dobrados, uns em branco e outros em que desenha cruzes que, se tiradas indicam a morte, na vez de Kattrin tirar um, é a própria Mãe Coragem quem o faz. Encontra a cruz e recomenda: “Kattrin, de agora em diante não seja nunca boazinha demais, nunca mais: há uma cruz no seu caminho” (p. 184). Outro aspecto: Mãe Coragem faz tudo por ela, no lugar dela, determinando inclusive a sua sorte. E mais: não vale a pena ser generoso quando se vai morrer logo, fica-se sem a devida recompensa, ou, nada se faz sem esperar por uma recompensa.

Rubrica: “A muda Kattrin salta da carroça e solta uns gritinhos roucos, quando vê Eilif ser levado pelo Recrutador” (p. 186). Mostra uma atitude atenta e participante de Kattrin, ótima indicação para a atriz. Parece estranho: Queijinho não vê, ou vê e não reage?

Questão: quando e como o espectador se dá conta da mudez de Kattrin? A atriz pode agir como se simplesmente não tivesse o que dizer, ou como se quisesse falar e não pudesse. O que é mais interessante para a fábula?

Sargento, para Mãe Coragem depois que Eilif se foi: “Você queria viver às custas da guerra, sem se meter nela, nem você nem os seus: mas de que jeito?”. A questão aponta a grande contradição de Mãe Coragem, que parece ser o cerne da questão da peça.

Rubrica: “Queijinho e Kattrin atrelam-se ao varal da carroça e puxam-na” (p. 186). Imagem forte, duas crianças, eles devem ser muito jovens, substituindo animais.

“Cena 2 – Nos anos de 1625 e 1626, Mãe Coragem, acompanhando o exército sueco, atravessa a Polônia. Em frente à Fortaleza de Wallhof, torna a encontrar o filho Eilif. Venda oportuna de um pato e dias de glória do filho corajoso” (ainda p. 186). Kattrin não está nesta cena.

“Cena 3 – Três anos depois, Mãe Coragem é aprisionada com parte de um regimento finlandês. Seu filho é salvo, e é salva a carroça, mas Queijinho é morto” (p. 194).

A rubrica inicial da cena indica a ação de Mãe Coragem e Kattrin, que estão dobrando a roupa em cima do canhão. Vejo aí a exposição da vida cotidiana levada dentro da guerra; a tarefa doméstica, pequena, levada num cenário histórico amplo, a guerra.

Mãe Coragem negocia a compra de balas com um Artilheiro. Pergunto: importa à Kattrin os negócios de sua mãe? Ela presta atenção, acompanha as negociações?

Mãe Coragem envolve Kattrin no negócio, pedindo a ela que vá pegar o dinheiro para a compra das balas. A rubrica diz que “Kattrin leva a sacola (com as balas) para trás da carroça, e o Artilheiro vai com ela” (p. 195).

Maquete da peça Mãe Coragem  e seus filhos, exposta no restaurante Brechtkeller, que fica num sótão da casa em que morou o casal Brecht-Weigel. Foto: Nara Keiserman.

 

Nesta mesma cena, que poderia ter aqui uma divisão, Kattrin vê a chegada de Yvette Pottier, descrita como “uma mulher bonita, tendo diante de si um copo de cachaça” (p.194), conta e comenta suas aventuras amorosas, suas relações e o que pensa dos homens. Pergunto: como Kattrin reage a isto, ela que tem, supõe-se, uma visão idealizada do casamento, uma visão romântica do amor? Ao final do episódio, Mãe Coragem manda a moral: “Que isso lhe sirva de lição, Kattrin: não me vá arranjar coisa com soldados! Para concluir: ser muda é uma dádiva do céu” (p. 198).

O Capelão, ao conhecer Kattrin, refere-se a ela como uma criatura encantadora. Resposta da Mãe Coragem: “Não é encantadora, coisa nenhuma, é uma pessoa honrada” (p. 199). É a primeira referência ao possível encanto de Kattrin, o que para sua mãe significa perdição moral – ou prejuízo nos negócios, já que não pode dispensar sua ajuda?

Mais uma vez, a exposição do pessoal em contraste com o social: quando Yvette sai de cena, Mãe Coragem, o Capelão e o Cozinheiro vão para trás da carroça e discutem a política, os motivos e a situação da guerra, enquanto Kattrin veste o chapéu colorido e as botas vermelhas de salto alto de Yvette, imitando os seus gestos e andar. É interrompida por tiros de canhão e a volta precipitada de Mãe Coragem e dos outros. A guerra interrompe, impede os seus sonhos, a sua possibilidade de ser ou pelo menos de sentir-se feminina, o social massacrando o individual, tornando-o sem sentido, menor. Mãe Coragem preocupa-se em salvar as suas coisas e só algum tempo depois é que repara em Kattrin, que está vestida com os sapatos e o chapéu de Yvette. Obriga-a a tirá-los, sob um “quer que descubram você, e façam de você uma prostituta?” (p. 202).

Na função de resolver às pressas a situação, todos tentam salvar a própria pele. Mãe Coragem, para salvar a filha dos soldados católicos, cobre o rosto de Kattrin com cinzas: “Não precisa temer, agora não vai lhe acontecer nada” (p. 203). Pergunto: como Kattrin reage a isto?

Novo episódio na mesma cena: Mãe Coragem encontra os sapatos vermelhos de Yvette, que Kattrin havia escondido sob as saias. Reafirmando que qualquer possibilidade de amor na guerra faria dela uma prostituta, Mãe Coragem determina que Kattrin “espere pela paz, com toda fidalguia” (p. 206). Mais uma vez, é mencionado que Kattrin é atraente.

Segue-se um diálogo aparentemente banal entre Kattrin e Queijinho, ele parece compreender bem a sua linguagem de gestos. Indo até a carroça buscar para ele um copo de bebida, dá com dois homens, que logo percebe estarem procurando seu irmão. Queijinho ficara com o cofre do Regimento, e por isso corre perigo. Kattrin tenta avisá-lo, mas o nervosismo torna seus gestos confusos. Queijinho não entende e sai. Quando Mãe Coragem volta, Kattrin consegue se fazer entender. Como na cena 1, Kattrin, a que não fala, é aquela que vê.

Queijinho é preso e, durante todo o longo episódio, Mãe Coragem negocia a sua soltura, pelo que pagaria com o dinheiro da venda da carroça para Yvette. Coragem regateia tanto, por tanto tempo, que acaba por perder o filho.  Kattrin e o Capelão estão lavando copos e areando talheres, até o momento em que Kattrin, “de repente, soluçando corre para trás da carroça” (p. 216). Pergunto: quais as ações de Kattrin durante todo este momento em que vê a mãe negociar a vida do irmão, tentando, também aí, fazer o negócio mais vantajoso?

Vem, então, a cena sempre mencionada como um grande momento da atuação exemplar de Helene Weigel, em que ela diz não conhecer o filho, quando este é trazido morto para identificação. E Kattrin, que está ali, ao seu lado e que também é obrigada, pela guerra, a não chorar o irmão?

Preciso confessar que esta cena, e não apenas esta, deixou alguns de nós com a voz indisfarçavelmente embargada. Não há como não se discutir a questão da emocionalidade, sua presença no texto, como o ator deve lidar com ela, e o que se espera do espectador nestes momentos. Vou parar um pouco para isto, mais adiante.

“Cena 4 – Mãe Coragem e a “Canção da Grande Capitulação” (p. 217). Kattrin não está.

“Cena 5 – Passados dois anos. A guerra estende-se a territórios cada vez mais distantes. Num viajar sem descanso, a pequena carroça de Mãe Coragem atravessa a Polônia, a Morávia, a Baviera, a Itália, e outra vez a Baviera. Ano: 1631. A vitória de Tilly, em Magdeburgo, custa a Mãe Coragem quatro camisas de oficiais” (p. 222).

Mais uma vez, a contradição entre o social e o individual, na última frase do título desta cena.

Enquanto Coragem vende bebida a dois soldados, o capelão chega com a notícia de que há feridos numa casa de camponeses próxima dali. É grande a aflição de Kattrin. Nesta cena, torna-se clara a grande contradição, a oposição entre mãe e filha, entre a personagem negociante, e a personagem humana, se é que posso dizer assim. Coragem não quer, categórica e claramente, “desperdiçar” um pano sequer para com ele fazer uma atadura para os feridos. É o desespero de Kattrin que contrasta com sua firmeza. Talvez as duas atitudes tenham a mesma sustentação, em chaves opostas. A diferença é que o desespero de Kattrin a fragiliza, e a firmeza de Mãe Coragem a fortalece, mas a humanidade vence por uma terceira via. O Capelão afasta Coragem do caminho e apanha na carroça as camisas de que precisam. É a primeira cena em que Kattrin volta-se contra a sua mãe – “levanta uma tábua e ameaça a mãe” (p. 224) - e a afronta. Quando Kattrin fica sabendo que há um bebê na casa corre até lá para salvá-lo, e só então Coragem se mostra a mãe, realmente preocupada com o destempero da filha. O apelo do texto ao sentimento é inegável. Ao voltar com o bebê, Kattrin o embala e “balbucia uma canção de ninar...”.

“Cena 6 – Diante da cidade de Ingolstadt, na Baviera, Mãe Coragem assiste aos funerais de Tilly, General do Império, morto em combate. Fala-se de heróis e da duração da guerra. O Capelão lamenta que suas habilidades não sejam aproveitadas, e Kattrin ganha os sapatos vermelhos. Ano: 1632” (p. 225).

Individual x social: o balanço das mercadorias x a morte do general. Kattrin participa da ação de contar as mercadorias, numa gestualidade certamente bem diferente da utilizada por Coragem, já que a relação de cada uma delas com estes objetos é oposta. Isso responde em parte a algumas perguntas feitas anteriormente sobre a participação ou não de Kattrin nos negócios. Penso agora que esta se dá, sim, mas com uma gestualidade – entendo gestualidade como o recurso corporal para designar o gestus – que aponte a oposição, a contradição entre as duas.

Aconselhando Mãe Coragem sobre a compra ou não de novas mercadorias, o Capelão afirma sua certeza de que a guerra vai existir sempre, por ser do interesse de imperadores, reis e papas, fazendo um verdadeiro elogio da guerra (p. 227-229). A indicação da rubrica dá conta apenas de que “Kattrin parou o que estava fazendo, e olha fixamente para o Capelão, para em seguida, de repente atirar ao chão um cesto de garrafas e sair correndo” (p. 229). Penso que, neste episódio, se trata de compor uma sucessão de gestos e atitudes que a atriz vai desenvolvendo à medida que ouve o texto que vai finalizar na ação indicada. Não se trata da elaboração de ações interiores que, através de pequenas nuances feitas principalmente através do uso do tempo-ritmo, possam explodir nas ações de parar, olhar e jogar o cesto. Todos os pensamentos que a atriz for elaborando deverão ser materializados em gestos e atitudes que possibilitem ao espectador a leitura clara destes pensamentos, que terão um caráter de crítica social às palavras do Capelão. Atenção: isto eu anotei no meu diário de trabalho antes de levantar para fazer a cena, não sei ainda como a questão se resolve na prática.

Por ordem de sua mãe, Kattrin vai com o Escrevente à cidade buscar mais mercadorias, o que significa que a guerra promete continuar e seus sonhos de paz, da possibilidade de uma vida cotidiana estabilizada, estão cada vez mais distantes. Ainda ouve de sua mãe que “com você, nada pode acontecer. Vá direitinho, e não se deixe roubar: pense no seu enxoval!” (p. 229). Leia-se: você não é suficientemente desejável nem para os soldados que anseiam por qualquer mulher, favoreça nosso lucro na guerra, para que depois você possa usufruir disto, ou seja, o lucro da mãe é a desgraça da filha: a guerra.

Ao retornar, Kattrin vem abraçada nas mercadorias, inclusive o tambor que irá utilizar na última cena, e traz um ferimento na testa. Para compensar o seu feito, Coragem dá a ela os sapatos vermelhos de Yvette, que havia guardado, e brinda-lhe com um discurso cujo ensinamento é “quanto mais feia, melhor”, as bonitas só servem enquanto são bonitas, e quando a beleza acaba são logo abandonadas – isto para consolar a filha sobre a cicatriz que possivelmente vai lhe desfigurar o rosto. Pergunto: como reage Kattrin? Qual a gestualidade que corresponde à rubrica: “Kattrin deixa os sapatos e mete-se na carroça”? (p. 233)

O espectador é informado, por uma fala de Mãe Coragem que Kattrin teria passado uma única noite fora, depois do que passou a trabalhar com mais vontade. O que de fato aconteceu nesta noite não é revelado.

Numa fala esclarecedora e exemplar do pensamento/linguagem de Brecht, não em relação à fábula propriamente, mas ao modo como ele a vê, Mãe Coragem esbraveja contra a guerra que estragou sua filha, matou Queijinho e afastou-a de Eilif. É esta situação que Mãe Coragem assume como histórica, em resposta à fala do Capelão que designa como um momento histórico este em que o General está sendo enterrado. Mãe Coragem conclui a cena com um arrepiante “Maldita seja a guerra” .

“Cena 7 – Mãe Coragem, no auge da sua carreira de vendedora ambulante”.

Numa bela contradição, Mãe Coragem inicia esta cena com “Não admito que me falem mal da guerra” (p. 234) e canta. O Capelão e Kattrin estão em cena. Será que participam de alguma forma da canção? Como?

“Cena 8 – Nesse mesmo ano, Gustavo Adolfo, Rei da Suécia, morre na batalha de Lützen. Pesa ameaça de paz sobre os negócios de Mãe Coragem. Eilif realiza mais uma proeza e tem um fim ignominioso” (p. 235).

No título, o estranhamento entre duas palavras: ameaça, habitualmente compreendida como perigo, aqui referida à paz.

Kattrin passa a cena inteira dentro da carroça. Envergonhada de sua aparência, não quer que a vejam. Nem mesmo a paz anunciada, que dura poucos momentos, a faz sair.  Quando o Cozinheiro entra na carroça para falar-lhe, cobre o rosto com um cobertor. Não fica sabendo, assim, da morte de Eilif. Surge em cena apenas quando Mãe Coragem anuncia que “a paz acabou de novo. E nós vamos embora” (p. 248).

“Cena 9 – Já está durando dezessete anos a grande guerra religiosa. [...] No outono de 1634, encontra-se Mãe Coragem na montanha alemã de Fichtel, longe da estrada por onde passa o exército sueco. [...] Os negócios vão mal, o jeito é mendigar. O Cozinheiro recebe uma carta de Utrecht e é despedido” (p. 249).

Kattrin ouve a conversa entre Coragem e o Cozinheiro, em que ele diz que a proposta de se instalarem em Utrecht não a inclui. Este é um dos poucos momentos em que se vê o lado materno de Mãe Coragem, numa fala em que se refere aos sentimentos de Kattrin. Por sorte, quer dizer, por opção do autor, a personagem não está em cena. Eu não saberia o que fazer dentro da proposta de uma encenação que pretende um distanciamento crítico, ao ouvir: “[...] que pesadelos ela deve ter! De noite eu ouço os gemidos dela, ainda mais depois de uma batalha. O que ela vê quando sonha, eu não sei” (p. 252).

Kattrin decide fugir enquanto os dois, Mãe e Cozinheiro, são recebidos numa casa, na frente da qual mendigavam por um prato de sopa, cantando a Canção de Salomão, que, aliás, também aparece na Ópera dos três vinténs – e aqui é enorme a tentação, a que vou resistir, de discorrer sobre o uso da música no teatro épico de Brecht.

A mensagem de Kattrin é clara. Ela deixa sobre a roda da carroça uma calça do Cozinheiro e uma saia de sua mãe. Coragem sai da casa com um prato de sopa para a sua filha a tempo de impedir-lhe a fuga, não com a fala que se possa esperar de uma mãe, mas com um “Não pense que eu mandei o Cozinheiro andar por sua causa: eu fiz isso por causa da carroça! [...] por causa dela é que eu não fui com ele, não foi por sua causa. [...] Agora nós duas vamos em frente!” (p. 255-256). Quais as atitudes a serem assumidas pela atriz quando: sai da carroça decidida a fugir; coloca em cena as roupas dos dois personagens; é interrompida por sua mãe; ouve os seus motivos; acata sua ordem?

“Cena 10 – Durante o ano de 1635. Mãe Coragem e sua filha Kattrin andam pelas estradas da Alemanha Central, no rastro de tropas cada vez mais esfarrapadas” (p. 256).

Mãe Coragem e Kattrin puxam a carroça e param diante de uma casa para ouvir uma voz que canta uma canção. No melhor estilo brechtiano, a letra da canção fala da segurança e tranquilidade daqueles que possuem uma casa e um jardim, em absoluto contraste com a casa/carroça e as condições de vida das duas personagens, que seguem seu caminho.

“Cena 11 – Janeiro de 1636. As tropas imperiais ameaçam a cidade luterana de Halle. As pedras entram em cena. Mãe Coragem perde a filha e continua sozinha o seu caminho. A guerra está ainda longe do fim” (p. 257).

Profundamente tocada pela violência dos soldados de um lado e a fala Da camponesa de outro, que menciona a presença de crianças na cidade em perigo, Kattrin, num ato de extrema coragem e desapego à própria vida sobe ao telhado do curral, onde, em desespero, toca um tambor até que a cidade desperte. É morta um pouco antes de conseguir o que deseja: salvar as pessoas da guerra. Segundo Jean-Claude François (In: Bablet, 1970: p.22), este ato de Kattrin não tem um significado heroico, sendo como um extravasamento de seu grande medo até então refreado pelos argumentos da mãe a favor da guerra. Ao despertar a cidade de Halle para salvar os sobrinhos do camponês, ela renega os ensinamentos da mãe, segundo os quais para obter lucros com a guerra, não se pode ter preocupações com os outros.

Aqui, não há como não se comover. A cena é escrita de forma absolutamente dramática, no sentido de envolver o espectador no drama de Kattrin, na luta que empreende contra as desgraças da guerra – obstinada, solitária e armada apenas com o som do tambor.

Como nas mortes de seus outros filhos, Mãe Coragem não está em cena. Ela sequer sabe que Eilif está morto.

“Cena 12 – Noite amanhecendo. Ouvem-se tambores e flautins de tropas que se afastam marchando” (p. 264).

Ainda na linha do “impossível não se comover”, Mãe Coragem ajoelha-se ao lado do corpo de Kattrin:Ela talvez esteja dormindo”. E canta “Dorme, dorme, bonequinha!” (p. 264). Paga aos Camponeses para que enterrem sua filha.

Brecht, ao descrever como Helene Weigel realiza esta cena diz que “ela se pôs a contar o dinheiro na mão e tornou a guardar uma moeda na bolsa de couro” (Brecht, 1978: p. 179). Significado: entre a Mãe e a Coragem vence a guerra.

A peça termina com a imagem solitária e guerreira de Mãe Coragem puxando a sua carroça ao som de tambores e flautins, gritando: “Esperem por mim!” (p.266).

Pessoal, semana que vem volto ao correio – belíssimo pretexto para um passeio na cidade fora do trajeto casa-ensaio-casa (temos feito as refeições na cantina do teatro: salsichas, peixes, batatas, uma maravilha!).

Beijos.

Carta 4 – Títulos para Kattrin

Meus queridos parceiros,

Passamos a semana discutindo as cenas e fazendo experimentos com o objetivo de desenhar cenicamente os títulos. Os resultados foram bastante interessantes. Não sei até que ponto vão ser usados na montagem, já que criamos personagens que sequer estão na peça. Essa experiência me animou para seguir com o “Pequeníssimo e modesto organon para Mãe Coragem, do ponto de vista de Kattrin”, que tenho enviado para vocês!

Sigo com a colocação, em sequência, dos acontecimentos que envolvem Kattrin, o que resulta numa estruturação da peça sob o ponto de vista da personagem, elaborada em títulos – alguns estão um pouco longos, parecendo efetivamente um resumo dos eventos. Acredito que sua análise oferece fundamento produtivo para uma compreensão dialética da personagem dentro da fábula, que inclui a compreensão da linguagem do autor, para então elaborar uma gestualidade que é, por sua vez, perpassada pelos entendimentos da atriz.

Cena 1: Kattrin, filha muda de Mãe Coragem, fica sem um dos seus irmãos. A morte de Kattrin é prevista no jogo adivinhatório de Mãe Coragem. Kattrin substitui o irmão puxando a carroça.

Cena 3: Kattrin ajuda sua mãe nos negócios. Não pode ser mulher como Yvette Pottier, de quem deseja as botas e o chapéu colorido. Tenta, sem sucesso, avisar seu irmão Queijinho que ele está sendo seguido. Queijinho é morto, enquanto Kattrin e o Capelão lavam louça e talheres. Kattrin vê o corpo do irmão morto, e não pode manifestar seus sentimentos.

Cena 5: Kattrin ajuda, contra a vontade de Mãe Coragem, a salvar camponeses feridos. Embala, no colo, uma criança ferida.

Cena 6: Kattrin ouve o elogio da guerra. Ajuda nos negócios e ganha uma cicatriz no rosto. Como compensação, ganha de Mãe Coragem os sapatos de Yvette.

Cena 7: Kattrin ouve Mãe Coragem cantar que os que fogem da guerra são os primeiros a morrer.

Cena 8: Devido à cicatriz, Kattrin não quer ser vista por ninguém. Perde o irmão, mas, assim como Mãe Coragem, não fica sabendo de sua morte.

Cena 9: Kattrin, Mãe Coragem e o Cozinheiro estão mendigando para comer. Ouve quando o Cozinheiro propõe a sua mãe a ida vantajosa para Utrecht, sem a sua companhia. Decide fugir, mas é impedida pela mãe. Volta a puxar a carroça.

Cena 10: Kattrin ouve, com Mãe Coragem, a canção que fala da vida em paz.

Cena 11: Kattrin toca o tambor para salvar a cidade de Halle e é morta a tiros pelos Soldados.

Cena 12: Mãe Coragem paga aos Camponeses para que enterrem Kattrin.

Concluo: a personagem de Kattrin é grudada à de Mãe Coragem, como um avesso dela, constituindo-se em material para o autor apontar várias contradições do comportamento humano quando tem sua individualidade contraposta a um fundo social que deixa de ser panorama para se tornar verdadeira personagem, a guerra.

Há três momentos marcantes na peça, que apontam esta interferência da mãe: é ela quem tira a sorte de Kattrin (chega a ser a causadora de sua morte? O Camponês diz, na cena 11, que se ela não tivesse ido à cidade tratar de negócios talvez nada tivesse acontecido); Mãe Coragem a interrompe no pequeno momento em que se coloca como mulher, usando as roupas e imitando os trejeitos de Yvette Pottier; suja seu rosto com cinzas, protegendo-a dos soldados. Mãe Coragem a impede de ser mulher, usando de um discurso moral incompatível com a situação que vivem, promete-lhe a felicidade na paz, ao mesmo tempo em que prefere que a guerra continue. Kattrin só pode ser feliz quando finge: ao embalar uma criança que não é sua, e ao imitar Yvette Pottier.

Para a atriz, trata-se de construir uma gestualidade que desenhe a contradição e também a identidade matriz, sem a qual a contraposição se torna apenas em recusa, em negação. Em comparação aos demais, cujo objetivo ou visão do mundo parece se encerrar ali, Kattrin é a personagem que se modifica durante a peça, que tem sonhos adiante, é quem vê além da guerra, quem parece ser capaz de imaginar, de vislumbrar a vida num mundo em paz. É em Kattrin que Brecht permite que apareça um lado mais humano – não é à toa que são dela as cenas que considero emocionais. A modificação que se opera na personagem é também física, ela ganha uma cicatriz, envelhece. Por iniciar a peça com alguma juventude, o envelhecimento de Kattrin pode ser mais nítido que o da Mãe. E, como a Mãe, vai se tornando esfarrapada. Esta decadência, que certamente o cenário, o figurino e os adereços apontam, desenhando uma guerra que só pode ser desfavorável para todos, é parte da construção da corporeidade da personagem.

Amanhã os ensaios passam a ser exclusivamente de palco, propostos como experimentos, que não dispensam discussões e problematizações de conteúdos. A diferença em relação ao que já fizemos é que agora temos o texto decorado e, a princípio, devemos nos ater ao texto de Brecht.

Carta 5 Os ensaios de palco

Amigos!

Direto ao assunto, que ferve dentro e fora de mim! Fui para os ensaios de palco instrumentalizada com essas ideias básicas para a corporização de Kattrin:

- interessa um olhar distante, apontando para o desejo do futuro, MAS Kattrin é a que vê;

- por não falar, seus gestos são fluentes, fáceis, MAS ela não gosta do que faz, em do que tem para dizer;

- ajuda a Mãe nos negócios, MAS os reprova;

- tem a marca da passividade, MAS corre para ajudar os outros;

- interessa uma identidade com Mãe Coragem, MAS principalmente para contrapor-se a ela.

Percebi o quanto o trabalho em cima de contraposições, de elementos que se contradigam, é de grande ajuda para o ator. Assim, é possível manter um pensamento ativo na personagem, obriga a decidir um modo de agir, não permitindo que o ator se deixe levar por uma lógica da ação, mesmo porque ela não está sempre lá. O lance é: não construir pela lógica, mas pelo estranhamento. Isto eu pude perceber já nas leituras, é claro, mas na cena é o recurso que, sem dúvida, destrava a ação, comparável ao “se fosse” de Stanislavski.

Há uma fase inicial do trabalho em que a empatia, o ato psicológico da identificação nos termos mesmo de Stanislavski, chega a ser estimulado, como um primeiro passo para a necessária compreensão da personagem. Se não identificação, propriamente, a atitude de reconhecimento – que prefiro.

Importantíssimo para dissipar algumas dúvidas ingênuas: não é preciso, ou melhor, não é para se ter medo das emoções. A personagem está em situação em que se comove, ou sofre, ou enraivece, e tal. Acontece com Kattrin em momentos muito definidos, cujos títulos ajudam a clarificar. Nos primeiros ensaios, fui encorajada a fazer as cenas verdadeiramente envolvida, acreditando – pelo uso da boa e velha “fé cênica” que aprendemos com Stanislavski nos sentimentos despertados. Sempre atenta para o proveito desta experiência: conhecer para ter uma opinião; ter a vivência para poder narrar melhor; fazer para depois poder reproduzir. Não se pretende, evidentemente, erradicar as emoções, os sentimentos, as sensações a favor de uma inteligência/pensamento desumanizado.

A questão é: os sentimentos do ator não devem, necessariamente, coincidir com os da personagem, deixando o espectador liberado de um tipo de pressão identificatória. Assim como o ator, o espectador não precisa, ou não deve, sentir ou pensar como a personagem, de modo que possa, ele mesmo, ter o prazer do pensamento produtivo. O que vejo é que há aí, uma espécie sim de identificação de papéis, ou funções, entre ator e espectador, que é a do exercício do distanciamento crítico em relação à fábula e seus personagens.

Nos ensaios, antes de serem definidas as marcas, que por sinal podem ser modificadas mesmo depois da estreia – sempre em função da sua eficácia junto ao espectador, nosso novo parceiro – e depois da fase empática, improvisamos sobre as propostas que vocês todos conhecem bem. Estão descritas em Uma nova técnica de representação, lembram? Vai da página 160 até a 177, no Teatro dialético, que lemos, relemos e discutimos animadamente não sei quantas vezes! Posso garantir que são recursos prá lá de eficientes, para se conseguir a duplicidade esperada na atitude narrativa do ator do teatro épico – que alguns aqui preferem chamar de teatro dialético, a denominação que Brecht adotou pouco antes de morrer.

Executamos os exercícios de:

- introduzir um comentário antes, durante e no final das falas – para instrumentalizar o ator no sentido de exercer a duplicidade daquele que se mostra enquanto mostra a personagem;

- passar o texto para o passado – para acentuar o caráter narrativo;

- utilizar o pronome “ele” – garantindo a não-identificação;

- verbalizar outras alternativas possíveis de ação e texto, para que cada ação (verbal ou de movimento) apareça como uma decisão recurso eficaz para a historicização dos acontecimentos, de modo a evitar que o espectador pense que só poderia ter acontecido assim, como se fosse parte da essência eterna do ser humano;

- ver o seu papel feito por outros atores – para o exercício da observação daquilo que vai ser reproduzido;

Minhas experiências mais produtivas nestas improvisações foram:

Na cena 3, a situação é: Queijinho quer se livrar do Cofre do Regimento que está em seu poder e representa um grande perigo para todos se for encontrado. Kattrin e Queijinho “conversam”, ela oferece um copo de bebida, ele aceita, ela vai buscar. Ao voltar, encontra-se com os homens que estão atrás dele. Para que minha atitude (da atriz) fosse narrativa, de quem conhece a história, o que fiz foi antes de sair de trás da carroça, que representava uma entrada em cena, eu disse: “agora ela vai levar o copo com bebida para o irmão, vai encontrar com os seus perseguidores e se assusta, entornando a bebida”. Desta forma, ao executar estas ações, elas tinham sido antecipadas mentalmente, o que é quase – a mesma coisa que se tivessem sido efetivamente realizadas. Eu estava reproduzindo um acontecimento já testemunhado, minha surpresa não era pretensamente espontânea, como se não houvesse sido ensaiada, a atriz sabe que na história isto vai acontecer, mas age com clareza para que o público compreenda que Kattrin foi pega de surpresa e, por isso, a bebida cai do copo. É este gesto, mais do que qualquer expressão facial, que ilustra o acontecimento. Meu modo de olhar o copo, quando a bebida cai, procura um significado estético que é o da atriz que observa o seu gesto – atitude inspirada no efeito de distanciamento do teatro chinês (Brecht, 1967: p. 104-114) e não da Kattrin, esta sim perturbada com o que fez.

Para esta mesma cena, quando Kattrin está lavando pratos e talheres, enquanto a vida de Queijinho está em perigo, a proposta foi, em determinado momento da ação, que se verbalizasse um o que estou realmente pensando, sendo este “eu” o do ator e não da personagem. Meu texto: “o que estou realmente pensando é o quanto se pode negociar a vida humana, o quanto o valor da vida é circunscrito à circunstância histórica”. Em outro momento da mesma cena: “o que estou realmente pensando é o quanto a passividade de Kattrin, soterrada por um cotidiano determinado pela guerra, faz dela cúmplice na morte do irmão”. Estes pensamentos aparecem nos gestos, tornando-os históricos, imbricados numa situação social – interessa mostrar que poderiam ser diferentes numa outra situação. A personagem de Kattrin faria esta mesma ação, tão simples e cotidiana – é o mesmo caso de pendurar roupas no canhão – de maneira totalmente diferente num outra circunstância, então: ela lava a louça e não convence Mãe Coragem a mudar de ideia.

Voltando regularmente às anotações que fiz sobre as primeiras impressões do texto, é para isto que elas servem, observei que algumas questões levantadas não tinham ainda obtido resposta em cena. Difícil para mim descrever com clareza como estas questões foram se transformando em ações cênicas marcadas pela linguagem épica de conteúdo político, apontando para uma compreensão dialética da história. Na próxima carta, vou tentar uma descrição razoável.

Beijos.

Carta 6 Soluções práticas para questões teóricas

Parceiros!

Precisei de mais alguns ensaios para chegar a tal descrição razoável. Aí vão as respostas que consegui para questões que foram me ocupando e mobilizando durante os ensaios.

1) Como e quando o espectador se dá conta da mudez de Kattrin?

Já mencionei o tal olhar distante. Experimentei, e me senti impossibilitada de ver ou de ouvir, e não de falar ou com “ar” sonhador. Este olhar serviu-me, sim, para momentos em que este aspecto da personagem ganha um significado que interessa à fábula ou a um comentário meu, da atriz. Foi útil, por exemplo, quando na cena 10 Kattrin e Mãe Coragem seguem determinadas em direção à guerra, e a “tapada” da Kattrin ainda pensa que pode andar em direção à paz. A mudez de Kattrin não é de nascença - Mãe Coragem relata para o Capelão que foi um soldado que teria enfiado alguma coisa na boca de Kattrin, que a deixou assim. Então: qual é o gesto desta mudez? Pensando em termos de contraponto em relação à Mãe Coragem, para quem a fala é o seu próprio negócio, seu lucro, então, como poderia Kattrin falar? Mãe Coragem não vê quando Eilif é levado pelo Recrutador, na cena 1, mas Kattrin vê e é Kattrin quem encontra os homens que vão matar Queijinho. Mãe Coragem só vê o filho já morto. Mas continua o meu problema: qual é a gestualidade – gosto muito da palavra géstica, que aprendemos com nosso professor (Bornhein, 1992) – desta mudez, que aponta para um embate entre o falar e o ver, entre estes dois personagens contrapostos, mãe e filha, em que uma sonha com a paz e a outra lucra com a guerra?

Concluí que o mais interessante seria, durante toda a Cena 1, manter uma atitude de aparente “normalidade”, de forma a despertar no espectador reações de estranheza nos momentos em que: Kattrin e Queijinho divertem-se com a maneira como a Mãe Coragem explica ao Sargento o fato de seus três filhos terem nomes diferentes o som de seu riso não é agradável, como seria de se esperar; Mãe Coragem diz que o tenente é seu noivo, e Kattrin, então, volta-se bruscamente para o irmão, dando as costas para a sua mãe, ostensivamente, movendo os lábios com irritação, de forma que o espectador possa estranhar por que motivo ela, nitidamente contrariada, nada diz; finalmente, quando Kattrin vê Eilif sendo levado pelo Recrutador, salta da carroça e com “uns gritinhos roucos” e movimentos nervosos e desconexos quer avisar Mãe Coragem – este gesto revelando, enfim, sua mudez.

2) Como marcar em dimensões diferenciadas as várias interferências diretas de Mãe Coragem na vida de Kattrin: quando ela própria tira a sorte da filha; quando a obriga a devolver os petrechos de Yvette Pottier; quando tenta impedir que Kattrin socorra os camponeses feridos; quando põe cinzas no seu rosto?

No episódio de tirar a sorte com papeizinhos, na Cena 1, experimentei nos ensaios duas atitudes opostas: uma em que Kattrin, já sabendo que a mãe agirá por ela, sequer esboça um gesto na direção do elmo em que estão os papéis, e outra em que Kattrin não só faz o gesto como luta com a mãe para que esta a deixe tirar sua própria sorte. Esta cena foi improvisada e seus resultados discutidos inúmeras vezes, por conter gestus clarificadores dos dois personagens. Cheguei a: Kattrin leva o braço e hesita, retoma o gesto em direção ao elmo, luta com a mãe para tirar o papel, e perde a luta. De seu lado, Mãe Coragem ignora completamente os gestos da filha, vai decidida, Kattrin luta sozinha. A sequência significa para Kattrin: quer decidir sua vida, mas não sabe como, vai tentar, mas sua luta é em vão, ela é sozinha contra a guerra. A atitude de Mãe Coragem, para Kattrin quer dizer: sua luta não existe, ninguém a vê.

Coragem, ocupada em desmontar o acampamento, demora a perceber que Kattrin, que a ajuda na tarefa, está “vestida de Yvette”, na Cena 3.  A própria rubrica indica alguma vitória de Kattrin na sua guerra pessoal contra a mãe: ela fica com os sapatos escondidos sob a saia. A revolta da personagem finalmente explode, o suficiente para enfrentar fisicamente a mãe, quando Coragem tenta impedi-la de socorrer os camponeses feridos, na Cena 5. Em termos de gestualidade, minha construção foi, no primeiro caso, a construção de gestos e sons curtos, nervosos, retorcidos, envolvendo o corpo inteiro, já que os movimentos da mãe se dirigem para a cabeça, quer o chapéu, e para os pés, quer arrancar os sapatos. Na nomenclatura de Laban (1971: p. 114), este esforço se define como a ação de chicotear, ou talhar (forte, indireta e repentina) e no segundo, a firmeza de intenções de Kattrin tornaram seu esforço na ação de bater, modificando a qualidade indireta em direta, objetiva.

O momento em que Mãe Coragem esfrega cinzas no rosto de Kattrin é logo após a luta pelo “ser ou não ser” Yvette, na Cena 3. Kattrin está exausta, age corporalmente como sonâmbula, quase num grau zero de tensão, de adesão ao chão, de abandono à gravidade. Mas seu olhar vivo, atento, acompanha Queijinho que está às voltas com o cofre que será a causa de sua morte. Esse olhar é o da atriz, que conhece a peça, apontando para o que vai acontecer adiante.

3) Qual a gestualidade que designa Kattrin como cúmplice de sua mãe nos negócios da guerra - ela também tira proveito, já que é sustentada por eles?

São três os momentos em que Kattrin está diretamente envolvida na ação dos negócios da Mãe:

Na Cena 3, Coragem negocia a compra de balas com o Artilheiro e manda Kattrin pegar o dinheiro para a compra das balas. A Cena 6 inicia com as duas personagens fazendo um balanço de suas mercadorias e logo adiante, nesta mesma cena, Coragem manda Kattrin à cidade com o Escrevente buscar mais mercadorias, já que a guerra vai continuar, segundo a opinião do Capelão. Minha composição gestual ficou aqui por conta de uma tonicidade contrastante dentro de um mesmo gesto, sempre com o foco em tornar físicos todos os eventos. Exemplo: na locomoção até o fundo da carroça, os pés apontam para uma direção diferente do peito e o olhar, com ressonância no pescoço, aponta para o chão. Aqui, mais uma vez me vali de Laban, em sua ideia sobre partes olhantes e apontantes do corpo (Laban, 1971: p. 93-97). Ao contar as mercadorias, o olhar é atento, o corpo todo se inclina sobre os objetos, mas a pouca energia colocada nas mãos e nos braços é desarmonizada com a postura do corpo todo.

A saída com o escrevente traz algumas considerações. Os atores sabem que esta ida à cidade trará como consequência para Kattrin uma cicatriz no rosto. Será que deve ser feita de forma que os espectadores percebam que “alguma coisa de ruim vai acontecer com Kattrin”? É esquisito, porque este é um dos truques do cinema americano, nos dramas sempre se sabe que algo está por acontecer. Dá para antecipar qual a personagem que vai morrer na cena seguinte. O que nos interessa aqui, ao contrário do cinema americano, é que os espectadores, ao invés de ficarem comovidos, penalizados ou inquietos pelo que pode acontecer com Kattrin, possam refletir sobre as causas do acontecimento, sobre o processo que a levou a tal situação e suas consequências e implicâncias, e se posicionem em relação a isto.

Optei por fazer a saída de cena “em direção à desgraça”, utilizando um andamento rápido e um peso leve, com um impulso nítido no primeiro passo da locomoção, qualidades contrastantes com o já estabelecido para Kattrin. Na volta, acelerei o tempo, modificando as outras qualidades. 

4) Como chora, ou melhor, não chora na presença do corpo de Queijinho quando ele é trazido morto?

Com a parte alta do tronco na direção do morto (ela o ama), os pés voltados para dentro (recusando a situação), no momento em que o rosto de Queijinho é revelado, sem coragem de olhar, sem poder manifestar seu sentimento, seu olhar se volta para a mãe, numa mistura de quem acusa e ao mesmo tempo pede ajuda. Foi o que pensei e experimentei em alguns ensaios, mas não estava convicta da sua propriedade, faltava uma espécie de autenticidade, uma das qualidades almejadas para a reprodução dos acontecimentos da fábula. Compreendi que o que faltava era um pensamento acompanhado do pré-movimento que antecede o ato de assumir a atitude, manifestado em: vejam como Kattrin se coloca nesta situação e então, formar a atitude – e aí funcionou. Vocês sabem, tenho pensado a atitude de acordo com o que diz Ingrid Koudela: “Não apenas o sentimento, também o pensamento é, segundo Brecht, influenciado pelas atitudes corporais” (Koudela, 1991: p. 21).

5) Há dois momentos em que a personagem age de maneira impetuosa: quando corre para a carroça ao prever a morte de Queijinho e quando joga um cesto de garrafas no chão, na fala do Capelão que prevê a continuação da guerra. Como construir estes momentos?

Compreendi o primeiro gesto como sendo uma antecipação do acontecimento, como um anúncio, para o espectador, da morte de Queijinho, diminuindo o seu impacto do ponto de vista emocional. Ao levantar, meu pensamento era: Mãe Coragem perdeu muito tempo negociando, medindo em dinheiro a vida do seu filho (evitei pensar em termos de meu irmão, como garantia para o distanciamento) e agora Queijinho já está morto, numa atitude que denuncia a passividade, a falta de ação eficiente sobre os acontecimentos históricos nos quais se pode intervir. A levantada e a saída de Kattrin, feita num tempo rápido, com movimentos fortes e determinados, correspondem àquilo que ela gostaria que Mãe Coragem tivesse feito para impedir a morte de Queijinho.

Na Cena 6, a saída brusca de Kattrin tem o significado relativo à fala do Capelão. Ao elogio da guerra, Kattrin responde com uma atitude de revolta infantil, infrutífera: não quer ouvir falar nisto. É como a criança que quando não quer ser vista fecha os olhos com força. Serve, mais uma vez, como contraste com Mãe Coragem. A mesma fala que tira Kattrin de cena, da ação, impulsiona Mãe Coragem a novos negócios, nos quais vai envolver Kattrin e graças a que ela fica ainda mais distante da possível realização do seu sonho: ganha a cicatriz que, como a própria Mãe Coragem diz adiante, na Cena 9, vai impedir que encontre um marido. Seu gesto de largar no chão o cesto de garrafas e sair de cena pode ser executado de tal forma que contenha todos estes dados. Há uma ideia de antecipar, na gestualidade, elementos que mais tarde o texto vai revelar. Este é um dos exemplos. Fiz o que me pareceu ser uma reprodução autêntica – esta foi uma das minhas cenas que vi executada por um ator, que realizou uma espécie de exibição do que seria o padrão do “chilique” feminino. Para que o Capelão e Mãe percebessem a dimensão do protesto de Kattrin, o que fiz foi olhar firmemente para um e para o outro, com o corpo inteiro tensionado, abri ostensivamente a mão que segurava o cesto e sem olhar para as garrafas caídas no chão, quase tropeçando nelas, executei o movimento de correr em direções incertas, com a intenção de plasmar aí a infantilidade, o medo, a desorientação.

6) E a corrida para fora de cena, que ocorre logo depois?

Há, certamente, atitudes diferenciadas em Kattrin quando ouve a conversa entre sua mãe e o Cozinheiro sobre a ida para Utrecht, da qual ela estaria excluída pelo Cozinheiro; quando a mãe a impede de fugir, com a fúria de uma leoa que protege sua cria; quando cede e atrela-se à carroça ao lado da mãe. O que vejo aí é uma luta intensa que Kattrin trava consigo mesma e contra a situação em que vive, e é, na peça toda, a cena em que se pode, através de Kattrin, ver com mais clareza a idéia de que as coisas não precisam ser necessariamente assim. Kattrin poderia ter ignorado o que ouviu, mas, pelo que ouve, toma uma decisão fundamental para sua vida: decidida a fugir, poderia tê-lo feito, mas não o faz; poderia lutar contra a vontade da sua mãe, mas atrela-se, com ela, à carroça. Toda a gestualidade aí exercida precisa aparecer assim, como decisões, que apontam uma alternativa possível, deixando antevista outra possibilidade. Fiz assim: Kattrin ouve de cabeça baixa. Quando decide que vai arrumar suas coisas e ir embora, seu rosto se revela, modificado pela nova atitude de quem vai tomar conta de sua própria vida. À chegada de Mãe Coragem, Kattrin não solta a trouxa imediatamente, mas travam uma espécie de luta de confronto desenhada no espaço por posturas e locomoções que remetam a dois animais que medem suas forças. Kattrin tem os passos curtos, o que pede leveza nas pernas, o tronco levemente avançado, tenso. Os braços armados longe do corpo, elevados lateralmente, punhos firmas, dedos das mãos afastados, seu olhar mudando constantemente de direção, sempre diferentes do ponto para onde aponta o nariz. É espantosamente contraditório o texto de Mãe Coragem. Luta para ter a filha ao mesmo tempo em que diz para Kattrin não pensar que teria mandado o Cozinheiro embora por sua causa. É tal o estranhamento, até para Kattrin que, espantada, começa a ceder, seu corpo gestos e desenho no espaço diminui em tensão, em enfrentamento, em dimensão: vai parando de se locomover, os braços, soltos, ficam ao longo do corpo, colados nele, mãos inertes. Quando Mãe Coragem sobe à carroça e joga de lá as roupas do Cozinheiro, Kattrin está vencida e sua postura e expressão voltaram a ser a mesma que predomina nas cenas anteriores, passiva e infantilizada: gestos longe do corpo, largos, assim como os passos, numa dinâmica em que o uso do tempo-ritmo se altera continuamente, o peso do corpo projetado à frente, pescoço avançado.

7) A questão da voz de Kattrin: algumas rubricas referem à gritinhos, outra indica que Kattrin balbucia uma cantiga de ninar, ela ri na Cena 11. Como resolver? Que tipo de som é este, qual a sonoridade produzida?

Muito tentada a uma construção de base psicológica e até naturalista – cheguei a pesquisar em escolas de surdos-mudos, encorajada pela ênfase dada à observação o que criei a partir disto resultou numa atuação canhestra, travada. Achava interessante e esclarecedor a sugestão, para o espectador, de que Kattrin não falava porque Mãe Coragem o fazia. Observei, seguindo as rubricas, que o som da voz de Kattrin aparece nos momentos de maior tensão. Então, compus sempre na contraposição entre som e movimento: na trivialidade dos gestos fluentes, como na execução das tarefas, na lide com os objetos, o som é apertado, estreito. Ao contrário, quando o corpo se crispa, o som é claro, luminoso. Deveria parecer estranho que aquela moça pudesse às vezes parecer normal, como quando embala e nina a criança ferida, na Cena 5.

Há uma indicação, no texto de Brecht Notas para Mãe Coragem e seus filhos (Brecht, 1970: v. 3, p. 22), que a atriz colocou uma risada na Cena 9, quando observa o efeito das calças do Cozinheiro colocadas junto à saia de sua mãe. Esta risada é que se transforma em gargalhada na Cena 11, no momento máximo de medo e de tensão.

Preciso esclarecer que há, sim, um modelo sobre o qual se trabalha. Este modelo serve como ponto de partida, e nunca – mesmo! – de chegada. Não se ensaia para que o ator chegue a uma reprodução convincente do que o outro ator fazia, por exemplo. As particularidades de atuação e, principalmente, as novas ideias não são apenas bem vindas, como estimuladas. O modelo funciona como o dever de casa de qualquer diretor, que chega ao ensaio com uma sugestão ou indicações sobre a cena a ser ensaiada naquele dia. Aqui, isto acontece principalmente no âmbito da espacialização (é dada uma grande importância aos desenhos no espaço, aos agrupamentos de cena), dos cenários, incluindo a localização dos músicos, dos figurinos e dos adereços. Brecht diz que “os modelos não foram elaborados para economizar o pensamento, mas para estimulá-lo; não para suprimir a criação artística, mas para provocá-la” (Brecht, 1970: v. 3, p. 17). Sem dúvida, senti-me o tempo todo intensamente provocada. Não há como ensaiar mecanicamente, não há como não buscar, por si mesmo, as soluções gésticas (corpo e voz) necessárias.

Beijos, muitos, para todos.

Quadro no hall de entrada da casa em que morou o casal Brecht-Weigel. Foto: Nara Keiserman

 

Carta 7 – Uma cena

Meus queridos amigos,

Muita coisa aconteceu desde que mandei a última carta. Temos ensaiado 8 horas por dia, o que é comum por aqui e impensável no nosso Brasil. É muito bom! O que de mais importante temos para fazer, do que estar ali, exercendo nossa arte para falar com o máximo de pessoas possível sobre o que consideramos importante? Não é isso o que verdadeiramente nos move? O trabalho está quase pronto.

Quero descrever uma cena completa, com suas ações, composição géstica – não esquecer que para Benjamin “o teatro épico é gestual” (Benjamin, 1973: p. 39) –, os pensamentos elaborados, os significados para o público.

Como confessei numa das cartas, lá nos primeiros ensaios eu julgava que a Cena 11, a do tambor, era o grande momento de Kattrin. Optei por não ser esta a cena abordada aqui, por duas razões: uma, que esta cena tem uma descrição feita por Brecht (Brecht, 1979: v. 3, p. 22-25), com o hiper esclarecedor título de A pedra começa a falar. Ao usar este modelo para a Cena 11, por nenhum momento senti que a minha capacidade de criação tivesse sido tolhida. Minha própria corporeidade não é afetada, ao contrário, é ela (sou eu!) que se manifesta e imprime particularidades inalienáveis de atuação. As maneiras de o movimento percorrer meu corpo será sempre diversa de um outro, o que me garante a recriação e autoria em todo o ato cênico. O que interessava à cena estava lá, seria ignorância jogar fora apenas porque não tinha sido eu o seu autor – não me fere a liberdade de criação, é isto que quero dizer. A segunda razão é a compreensão que fui adquirindo que esta não é a cena mais importante de Kattrin, mas sim a cena em que é uma atitude sua que desencadeia a ação – são coisas diferentes.

Escolhi a Cena 6, a partir do momento em que a personagem retorna da cidade, para onde sua mãe a havia mandado para buscar mercadorias, incrementado seu negócio, já que a guerra promete continuar, e os negócios só podem prosperar. Num exemplo de uma das atitudes básicas mencionadas, de ajudar a Mãe nos negócios, mas reprovando-os, este momento da cena aponta para uma consequência disto. A atuação géstica está contida em: Kattrin ouve o elogio da guerra; ajuda nos negócios e ganha uma cicatriz no rosto; como compensação ganha de Mãe Coragem os sapatos de Yvette. Interessam-me os dois últimos, que dizem respeito ao momento escolhido para detalhamento e exposição. No texto, não é mais do que uma página, a 233 e, no entanto, é decisivo para a determinação de traços marcantes a que Brecht se refere no seu comentário à Cena 11: Kattrin teria se tornado, “de uma jovem amável e cheia de vida, numa pessoa ferida e não desprovida de maldade. Seu corpo tornou-se amorfo e pesado” (Brecht, 1979: v. 3, p. 22-25). 

O que acontece com Kattrin fora de cena, e que a traz de volta “ofegante, com um ferimento na testa, em cima de um olho, carregando uma porção de coisas: pacotes, objetos de couro, um tambor” (o mesmo que usará na Cena 11), marca o ponto em que ela abandona o sonho. Modifica-se não só o corpo, mas o rosto, não só pela cicatriz, mas o próprio olhar – o modo, a qualidade do olhar. É a partir daqui que Kattrin, que não quer mais ser vista, passa a não olhar.

Nas primeiras leituras, a imagem que eu formava trazia uma Kattrin atônita, agarrada aos objetos, como quem se agarra a uma possibilidade de vida - o corpo rígido, o olhar esgazeado. Partindo desta imagem inicial, como de um modelo, construiu-se a cena. A Mãe a manipula como a um boneco de madeira, ao mesmo tempo inerte e duro, arrancando os objetos de sua mão com dificuldade, Kattrin não consegue desfazer a tensão com que se agarra a eles. Mãe Coragem, por sua vez, tem algum cuidado com os objetos, para não inutilizar nenhum deles. Limpa a ferida, coloca a atadura – Kattrin não reage. Deixa-se cuidar, indicando sua incapacidade de se salvar.  Na Cena 11, essa que não consegue se salvar é quem toma a iniciativa de salvar os outros.

Durante a fala da Mãe, Kattrin permanece assim, em choque, a inércia significando a consciência de uma passividade, de um pensamento tipo na guerra, seremos, os pobres, sempre as vítimas. Olha para o nada, e seu corpo, depois de colocada a atadura, assume uma nova postura: envergonhada, desesperançada, ferida, a ingenuidade perdida. Ombros levemente caídos à frente, arredondando a parte alta das costas, queixo enterrado no peito e os ombros altos, escondendo o rosto, braços e mãos soltos, as palmas das mãos, voltadas para trás, rentes ao corpo. Parece ter um leve despertar quando Mãe Coragem traz os sapatos e os coloca no chão para que ela os calce – é a sua recompensa por ter, mesmo ferida, trazido as mercadorias. Olha os sapatos sem reação, sem entender.

À apologia da Mãe sobre as vantagens de ser feia, o olhar de Kattrin, posto nos sapatos ergue-se e só agora ganham um tom, ao olhar espantada, com um pequeno tremor nos ombros acompanhado de um suspiro, que não sugere, absolutamente, um esgar choroso, significando: você pretende que eu acredite nisto? Em seguida, ignorando assumidamente o Capelão, e isto aparece ao evitá-lo claramente no momento em que ele havia se aproximado à sua entrada em cena, Kattrin, andar apressado e pesado, os passos de tamanhos diferentes, em ritmo descompassado, mete-se na carroça.

Beijos.

Carta 8 – Finalizando

Queridos amigos,

Lembro que logo que começamos a estudar Brecht, tínhamos muitas dúvidas nesta questão da razão x emoção. Chegamos a imaginar que o teatro brechtiano seria esfriado pelo pensamento crítico, que de alguma forma era mais fácil para o ator, por poupá-lo do esforço “viver” a personagem. Equívoco nosso, evidentemente. A experiência tornou concreta a percepção de uma integridade do ator (da pessoa, na verdade), que não admite pensamento sem emoção. Acho que andamos confundindo sentimento com sentimentalismo, isso sim, e atuação verossímil com “carga dramática”. Algumas das improvisações que fizemos aqui tinham mesmo como intenção ganharmos clareza a respeito do pensamento (emocionado, emocional?) não verbalizado no texto. O objetivo era de torná-los parte da composição gestual (gestos e atitudes) para que se possa ganhar a dimensão humana que interessa, a da lucidez social do acontecimento historicizado.

Não posso dizer que acabaram minhas dúvidas. Na verdade, penso que esta é uma das vitórias de Brecht – seu trabalho não acaba em si mesmo e, por isso, ainda podemos nos alimentar dele e seguir adiante com alegria.

Aguardem meu breve retorno, estou tinindo de vontade de trabalhar, o que – vocês sabem – sempre me dá até mesmo quando leio Brecht.

Quadro no Berliner Ensemble, mostrando Bertolt Brecht em várias idades. Foto: Nara Keiserman

 

Essa é minha última carta! Quero encerrar nossa correspondência com um trecho da obra poética de Brecht que no livro Poemas 1913-1956 (Brecht, 2000: p. 266) vem introduzindo os poemas da Coleção de Margarete Steffin:

Isso é tudo e não é muito, bem sei.

É só para lhes dizer que ainda vivo.

Como alguém que um tijolo levasse consigo

Para mostrar como foi sua casa uma vez.

Queridíssimos parceiros, assim me sinto: mostrando um tijolo. Se alguém vir o tijolo, já está bom. Se alguém tomar o tijolo, ainda melhor. Se alguém com o tijolo construir uma casa...

Beijos!

 

 

Conclusão

Considerando a questão colocada inicialmente como impulsionadora para a elaboração deste trabalho, tratando de como um pensamento técnico-teórico pode fazer fermentar a imaginação em direção a uma elaboração de cena ficcional, parece-me que há aí, sim, uma possibilidade concreta de experimentação.

Se é possível considerar a escrita como um ato concreto, físico, corporal, gestual, então a execução prática aqui proposta deixa de ser ficcional e se revela produtiva e eventualmente eficaz.

 

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. O que é o Teatro Épico? Um estudo sobre Brecht. CARY, Luz; MOURA RAMOS, Joaquim José (org.). Teatro e Vanguarda. Lisboa: Presença, 1973.

BORNHEIN, Gerd. A Estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.

BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

____ Escritos sobre Teatro. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970 (3 vols).

____ Estudos sobre o Teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

____ Mãe Coragem e seus filhos. In_______ Teatro Completo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991 (6 vols).

____ Poemas 1913-1956. São Paulo: Ed. 34, 2000.

FRANÇOIS, Jean-Claude. Mère Courage de Bertolt Brecht. In: BABLET, Denis (org.). Les voies de la création théâtrale, v. 2. Paris: CNRS, 1970.

KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.

LABAN, Rudolf. O Domínio do Movimento. São Paulo: Summus, 1971.