4. VIAGEM (EXTREMAMENTE PESSOAL) EM BUSCA DE UM TEATRO DO CORPO

4. AN (EXTREMELY PERSONAL) VOYAGE IN SEARCH OF A CORPORAL THEATRE

Luís Artur Nunes

Resumo              

Neste texto o autor retoma sua relação com as experiências de dança e outras formas de treinamento corporal, comentando algumas cenas de espetáculos que resultaram dessa formação.

Palavras-chave | Investigação artística | hibridização de linguagens | consciência corporal | dramaturgia do corpo | partitura cênica

Abstract

In this text, the author recounts his experiences with dance and other forms of corporal training, commenting on several scenes from some of his productions that have been a result of these formative experiences. 

Keywords | Artistic research | Linguistic hybridization | Corporal consciousness | Corporal dramaturgy | Scenic score

Luís Artur Nunes é Doutor em Artes Cênicas pela NYU (1988), encenador e professor aposentado da Escola de teatro da UNIRIO, onde iniciou e desenvolveu pesquisa sobre teatro rapsódico, que resultou em espetáculos a partir da obra de Nelson Rodrigues (A vida como ela é), de contos de Machado de Assis, João do Rio, Orígenes Lessa, Ignácio de Loyola Brandão e Rubem Fonseca (Tragédias cariocas para rir). Fundou o Núcleo Carioca de Teatro,  à frente do qual encenou  também O homem e a mancha, de Caio Fernando Abreu; Seria trágico se não fosse cômico, de Dürrenmatt; além de muitos outros.

Luís Artur Nunes holds a Ph.D in Scenic Arts from NYU (1988), and is a director and retired Professor in Theatre, UNIRIO, where he initiated and conducted research on rhapsodic theatre. Along with the group Núcleo Carioca de Teatro, which he founded, this research has resulted in productions of plays by Nelson Rodrigues (Life as It Is) and theatrical adaptions of short stories by Machado de Assis and Rubem Fonseca (Carioca Tragedies to Laugh).   Among many other productions, he has directed Caio Fernando Abreu's O homem e a mancha (Man and His Mark) and  Seria trágico se não fosse cômico (It Would Be Tragic, If It Weren't Comic) by Dürrenmatt.


VIAGEM (EXTREMAMENTE PESSOAL) EM BUSCA DE UM TEATRO DO CORPO

                                                                               Luís Artur Nunes

Na trajetória de um pesquisador das artes cênicas que transita simultaneamente pelos campos da investigação artística e da reflexão acadêmica, há todo uma primeira fase em que buscamos nossas matérias de estudo  fora de nós: nas contribuições  de outros artistas ou nas questões da poética  da nossa arte. Temas, é óbvio, que nos interessam por se relacionarem com nossa própria prática artística, que a inspiram e alimentam. Até que, num dado momento, havendo acumulado uma bagagem de realizações, deslizamos naturalmente para o exame dessa prática. Vencemos o constrangimento do “falar de si próprio”, ao perceber que aquilo que nos impele à auto-referência não é o narcisismo, mas  a confiança  de que nosso fazer e nosso pensar possam dialogar proveitosamente com outros fazeres e pensares correntes e relevantes da cena contemporâneo.

Já faz algum tempo, pois, que me permito discorrer sobre meu trabalho como encenador, pois assim me defino no universo da nossa arte. No entanto, ultimamente venho sido instado a falar sobre algumas questões que não são propriamente da minha especialidade: saberes e habilidades que tomei de empréstimo em outras searas. Confesso que foi com surpresa que, por exemplo, me vi convidado recentemente a escrever sobre o diálogo do meu teatro com as formas animadas, e agora aqui, com as artes do movimento. E o embaraço retorna: quem sou eu para tratar de assuntos fora da minha estrita competência?

Mas o fato é que meu trabalho sempre se caracterizou por um certo ecletismo – hibridismo talvez fosse a melhor palavra. Tomei de empréstimo recursos de outras linguagens para enriquecer o vocabulário e a sintaxe do discurso cênico e consequentemente redimensionar sua poética. Talvez porque uma intensa curiosidade fez com que me debruçasse sobre diversas formas e gêneros. Mergulhei na literatura, estudei canto e toquei instrumentos musicais, fiz oficinas de teatro de bonecos e, principalmente, dediquei-me extensiva e intensivamente ao trabalho de expressão corporal, da consciência do movimento e da dança.

O movimento corporal sempre me fascinou. Lembro-me de uma crítica teatral em um jornal de Porto Alegre, destacando em uma de minhas primeiras direções, a Mirandolina de Goldoni (1969, Teatro Leopoldina), “o requinte da marcação cênica”. De fato, marcar sempre me foi fácil e prazeroso. Muito antes de dominar outras habilidades diretoriais, era espontânea em mim a invenção de composições gestuais, posturas  e deslocamentos em cena.

Tento agora discernir o que me provocava esse fascínio pelo movimento e essa facilidade para desenvolvê-lo sobre o palco. Não praticava esportes, não fazia qualquer tipo de ginástica ou trabalho corporal afora as aulas da escola de teatro. Nunca pensei, nesses verdes anos, em aulas de dança. Sequer como espectador, neste primeiro momento, não me interessava muito pela arte da dança. A dança social divertiu-me um pouco na adolescência, mas de modo geral me achava desajeitado, canhestro, desconhecia meu corpo e suas potencialidades e, portanto, minha autoimagem física era bastante falha, para não dizer negativa.

Nos primeiros anos de minha carreira, vivi essa incongruência: realizava espetáculos que se caracterizavam por uma exploração intensa e sofisticada do movimento, da espacialização, da gestualidade, mas não tinha nenhum preparo, nenhum treinamento maior no trabalho corporal. Observo a tempo que usei equivocadamente a palavra sofisticada. Sem formação – logo, sem olho treinado nem juízo crítico – como posso afirmar um domínio da fisicalidade cênica?  Na verdade, trabalhava muito com improvisação para criar as dinâmicas do palco, e me ocorre que esse também era um dom que sempre tivera: o de estimular meus atores a se expressarem de todas as formas – inclusive e muito – fisicamente. De posse desse material improvisado, uma outra habilidade inata me socorria: a de organizar, estruturar e fixar com precisão os desenhos que se formavam.

Nessa primeira fase encenei espetáculos todos eles marcados pela exploração criativa da performance corporal. E durante esse período, como disse, não fazia muito mais do que as aulas de Expressão Corporal do CAD (Curso de Arte Dramática) da UFRGS que, por sinal, eram excelentes. Houve uma tentativa frustrada de freqüentar aulas de balé clássico. Desencorajado pelas dificuldades técnicas para um corpo já adulto e mal formado, logo desisti da empreitada. A única experiência importante fora da escola deu-se quando formamos um grupo para ir a Buenos Aires fazer um workshop de Expresión Corporal no Studio Patrícia Stokoe. O trabalho de Patrícia, sim, marcou-nos profundamente. Além de nos familiarizar com as noções fundamentais da linguagem corporal, proporcionou-nos uma grande descoberta: a do prazer do movimento, da sensibilização e da liberação do corpo. O método Stokoe foi nossa bíblia maior durante um bom tempo, e nós, que nos criamos na escola do teatro improvisacional, acrescentamos à improvisação dramática, a corporal.

Julgo encontrar outra explicação para essa minha adesão de primeira hora a um cena cinética: a  visão de teatro que impregnou fortemente a nossa geração. Ela se caracterizava pela recusa radical do ilusionismo, da psicologia realista, do comportamento quotidiano em cena.  Chamávamos pejorativamente de teatrão essa herança recebida no momento em que ensaiávamos nossos primeiros passos no palco, cujos emblemas maiores eram o estilo TBC de encenação e o approach psicologizante do método.  Já tinham surgido então o Teatro de Arena e o Grupo Oficina: Brecht e Artaud, limpando o palco da tacanhez naturalista e desfraldando a bandeira da teatralidade assumida. Inaugurava-se a era do teatro do corpo, em oposição ao teatro do texto. Só bem mais tarde nos demos conta do que havia de preconceituoso e igualmente tacanho nesse julgamento, pois o teatro mais realista pode vir também, e muito, impregnado de poesia e significado.  É certo que havia uma boa dose de corrupção no palco de então, um palco muitas vezes pedestre, burocrático. Por outro lado, continuava existindo uma cena realista de altíssima qualidade em muitas  das montagens do próprio TBC e das grandes companhias surgidas nos anos 50, e que seguiu acontecendo  nos palcos contemporâneos, principalmente nos Estados Unidos e na Inglaterra.  Essa percepção, que veio com a maturidade, acabou felizmente com as intolerâncias juvenis.

Mas naqueles anos de iniciação, quem falava aos nossos corações e mentes era principalmente Antonin Artaud. Minha primeira realização diretorial: Homem: Variações sobre o Tema1, criado a partir de improvisações sobre um roteiro de minha autoria focando a trajetória humana da autodescoberta, trazia no seu programa as seguintes palavras, que poderiam perfeitamente ter sido decalcadas do Teatro e seu Duplo: “Tentamos assim devolver à linguagem teatral, em tudo o que esta possui de sensível e imediato no gesto, movimento, som, contração, atitude, vibração, cor etc., a sua capacidade de encantação, de magia, de despedaçamento e de explosão”.

Minha antropofagia de Artaud foi o resultado de um ano de estudos na França – o incrível ano de 1968 – onde assistira à dança de Maurice Béjart, ao Living Theatre e às primeiras criações de Ariane Mnouchkine, e de onde voltara com a mala recheada das obras completas do poeta incendiário. Foi preciso a saída para um mestrado nos Estados Unidos,  em meados da década de 70, para uma nova virada nas minhas idéias e aspirações: o momento em que me convenci da necessidade inadiável de uma formação sólida, mesmo que tardia,  de trabalho corporal.

Em Nova York fui arrebatado pela efervescência da vanguarda teatral, cujos experimentos colocavam uma forte ênfase na corporalidade atoral.  O Performance Group, de Richard Schechner,  o Mabou Mines, de Lee Breuer, o Ontological-Histerical Theatre, de Richard Foreman e a Ridiculous Theatrical Company, de Charles Ludlam,   foram os que mais me influenciaram.  Igualmente descobri a Post-modern Dance, movimento de renovação da dança moderna, que se hibridizava frequentemente com o teatro. Assisti criações inesquecíveis de Trisha Brown, Twyla Tharp, Douglas Dunn, Steve Paxton, Meredith Monk e outros. Participei de workshops que me abriram horizontes insuspeitados. Acima de tudo, comecei a investir seriamente no treinamento corporal, dedicando-me com afinco às aulas de dança e às práticas de consciência corporal e antiginástica. Ao retornar ao Brasil, intensifiquei ainda mais esse investimento. Quando não estava lecionando ou ensaiando minhas peças, estava num estúdio de dança, suando diariamente na barra do balé clássico e experimentando as linguagens do jazz e as várias linhas do moderno e do contemporâneo que encontrava ao meu dispor: Martha Graham, Alwin Nikolais, Merce Cunningham, entre outros. Ou então vivenciando os exercícios de reeducação corporal de Thérèse Berthérat, Moshe Feldenkrais ou  Gerda Alexander. Na prática da dança, por ter começado tão tardiamente, sabia que jamais chegaria à excelência profissional que havia alcançado no  teatro. Isso não me impedia, entretanto, de progredir, de sentir as modificações na forma e na percepção do meu corpo e, acima de tudo, de entregar-me ao extraordinário e arduamente conquistado prazer de dançar.

No Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde era professor, troquei as aulas de Direção Teatral em que me especializara desde que ingressei na docência universitária, pelas de Expressão Corporal. Trabalhar o corpo virou uma obsessão. Pensava em movimento 24 horas por dia.

O que realmente importa extrair desse relato, porém, é o impacto que tudo isso teve no meu trabalho teatral. Era esse o objetivo último. Jamais pensei em me profissionalizar como bailarino ou coreógrafo. Era tarde demais para essa opção. Numa outra encarnação talvez. Mas se antes, quase sem nenhuma formação, já me descobrira com uma habilidade para orquestrar movimentos em cima de um palco, agora com o treinamento adquirido, instrumentalizava-me para ir mais fundo na investigação. O resultado foi uma série de espetáculos construídos – não só, mas de forma acentuada – pela via do corpo.

Dramaturgia do corpo, dança-teatro, hibridização de linguagens, muitos rótulos seriam cabíveis para o trabalho que então passei a realizar. Sabemos que na cena contemporânea as fronteiras se dissolvem e os gêneros, antes rigidamente delimitados, dialogam. De todas as classificações, a que menos me agrada é a  de dança-teatro. Este é um caminho seguido pela arte da dança ao incorporar elementos da cena teatral, mas permanecendo ainda intrinsecamente dança. Pina Bausch, que tanto fascinou a gente de teatro, é um bom exemplo. Eu diria que meu caminho era o exato inverso. Fazia um teatro que incorporava elementos da dança, mas sem deixar de ser essencialmente teatro. Quem sabe teatro-dança não seria uma boa definição? Releio esse parágrafo e percebo como tudo isso é fútil. Na era do pós-moderno e do pós-dramático, definições de gênero, delimitações de linguagens são empobrecedoras: simplesmente não dão conta do recado.

Foram cinco os espetáculos encenados nesta fase, todos em Porto Alegre, com exceção do último, Grafitti Cor-de-rosa, que estreou no Teatro Ipanema, Rio de Janeiro, 1981. São eles: Mo(vi)mentos e (Ins)pirações (Teatro de Arena, 1976), deColagem (Teatro de Câmara, 1977), Eu nada entendo da Questão Social (Teatro do Departamento de Arte Dramática, UFRGS, 1978), Lance/Lince/Lírio/Licorne (estreado no Teatro do Departamento de Arte Dramática, UFRGS, 1980) e. O primeiro foi um trabalho colaborativo com a bailarina Ana Mondini. Éramos criadores e intérpretes. Chamamos para nos dirigir Nara Keiserman, parceira de uma vida inteira de teatro, cuja trajetória de formação e pesquisa corporal sempre foi irmã da minha. Os outros foram assinados por mim como diretor, e na maioria deles Nara atuava. E eu, que há tempos havia desistido da carreira de ator, neles subia novamente ao palco. A insegurança que me tirava o prazer de interpretar um personagem dramático desaparecia quando lidava com partituras corporais caprichosamente desenhadas.

Todos esses trabalhos eram compostos de quadros, ou cenas, ou números – seja lá como quisermos chamá-los – cada um girando em torno de uma idéia, uma proposta. Nunca desenvolvi um espetáculo inteiro com uma única dramaturgia corporal. Queria contar muitas e diferentes histórias com o corpo. Empréstimo do formato costumeiro do espetáculo de dança que reúne várias coreografias? Falta de fôlego para um vôo mais extenso? Provavelmente as duas coisas. E outras também: o fascínio pela estrutura episódica do cabaré e do teatro de variedades, a metáfora do caleidoscópio – o moto perpétuo – sempre espreitando, sei lá... De toda maneira, mesmo na diversidade, fazia-se uma espécie de unidade: os vários quadros reverberavam uns nos outros, conversavam entre si.

Eram variadas as propostas. Por vezes, trabalhávamos com o movimento puro, abstrato, explorando diferentes aspectos da linguagem corporal, como apoios, equilíbrio, contato, qualidades do movimento, trajetórias etc. Um quadro de deColagem (“Ins and Outs”) jogava unicamente com formas de entrar e sair de cena. Em Mo(vi)mentos e (Ins)pirações, aproveitei uma proposta conceitual de Trisha Brown, que acumulava movimentos em sequência, acrescentando um a cada nova repetição. Esses quadros podiam ser realizados em silêncio ou vir acompanhados de música ou ruídos (Acumulações era pautado pelo som de um metrônomo). Neles fugia-se da psicologia e da narrativa:  o corpo inscrevendo-se no espaço sem qualquer referência conteudística. Era quando mais nos aproximávamos da dança propriamente dita. Em outros casos, ainda buscando o movimento descarnado de toda ficção, emprestava-se-lhe, contudo, um quociente de dramaticidade, que podia ser provocado pela música ou também por textos. Não foram poucas às vezes em que trabalhei com poesia, sua sonoridade e sentido gerando a ação física. Todo um espetáculo girou em torno dessa premissa: Eu Nada Entendo da Questão Social. Um ator e uma atriz diziam poemas de Mário Quintana, Drummond, Cecília Meireles, Gregório de Matos, que um grupo de atuadores ilustrava com quadros-vivos e performances gestuais. Houve casos em que a cena se desenvolvia na forma dramática tradicional,  com personagens, diálogo e trama, para no final ser desconstruída por uma composição de movimento. Era o caso de Joãozinho e Mariazinha, um conto de Caio Fernando Abreu (1996), que após ser encenado de forma realista, tinha sua partitura de ações físicas refeita de trás para adiante pelos atores, sem diálogo, apenas com uma canção dos Beatles de fundo.


Nara Keiserman e José de Abreu em Joãozinho e Mariazinha, de Caio Fernando Abreu. (deColagem. Foto de Sandra La Porta).

 

Não caberiam neste espaço  descrições e  comentários de cada uma dessas experimentações.. Vou apenas selecionar dois momentos, um de deColagem e outro de Mo(vi)mentos e (Ins)pirações,  para serem analisados como exemplos que julgo interessantes,  de propostas  de dramaturgia corporal por mim investigadas.

 Reproduzo aqui um trecho do texto que escrevi para o programa de deColagem,  que defendia:

(...) um teatro cada vez mais abstrato, conotativo e poético. (...) Assim, em muitos momentos de deColagem, não existem a estória, a narrativa com suas conexões lógicas e seus personagens definidos, a imitação da vida, a mensagem concreta, o recado. Em vez disso, propõe-se um universo imaginário, povoado de imagens aparentemente desconexas, pois a lógica a que obedecem é semelhante à do sonho ou do subconsciente. É um teatro ao qual o espectador é convidado a olhar e escutar sem compreender, adivinhar ou traduzir. Um teatro feito de signos ambivalentes, abertos, desprendendo um espectro de significados ambíguos, endereçados não à mente racionalizante, mas à sensibilidade poética. Como dizia Gordon Craig (há cinqüenta anos!):

“...um teatro de visões, [...] uma arte que diz menos mas mostra mais; uma arte simples de entender com a sensibilidade; uma arte que surge do movimento, movimento que é o próprio símbolo da vida.”

“Uma arte que surge do movimento”... Foi por isso, talvez, que me aproximei da dança, pois as infinitas possibilidades expressivas do movimento são um dos caminhos que podem conduzir a essa almejada poesia cênica. Sei que muita gente associa esse tipo de expressão a um clichê de “teatro sensorial”, (...) esteticista, alienado e alienante. Isso revela um fechamento a um determinado tipo de experiência estética, como a proporcionada pela música, pela pintura abstrata, pela dança ou pela poesia lírica, as quais se dirigem menos ao intelecto do que à sensibilidade poética. O tipo de experiência que essas artes suscitam, contudo, embora exigindo pouca atividade reflexiva, conduz o espírito a operações tão complexas e em níveis tão profundos quanto os atingidos pela mais intrincada peça de idéias (grifo meu).

O primeiro ato de deColagem era composto de uma peça única, intitulada “Pequeno Mistério da Vida, Paixão e Morte de uma Bailarina Clássica”.  Iniciava com a cortina abrindo-se no escuro ao som de um adagio romântico ao piano. Muito lentamente um foco de luz vai subindo em resistência sobre uma bandeja na boca de cena com uma garrafa de champanhe, uma taça, uma maçã e um revólver. Logo um segundo foco igualmente lento revela uma  imagem central ao fundo. É um altar, onde um ator representa a imagem icônica de São Sebastião martirizado, o corpo seminu crivado de flechas, a cabeça inclinada, o olhar de êxtase na dor. Um terceiro foco acende-se num outro ponto sobre  uma mulher numa cadeira de balanço: expressão dura e fixa, vestido longo, severo,  escuro, cabelo preso num coque, um falcão empalhado pousado em seu braço. O programa esclarece que a personagem chama-se Asta Perez. Mesmo jogo com uma terceira figura, Angel Face, com a caracterização típica dos Hells Angels: cabelos longos e barba hirsuta, jeans sujos e rasgados, botas, blusão de couro, correntes. Agachado, tem uma caveira na mão. Novo foco, e desta vez é o Doutor Young: elegante num fraque fin-de-siècle, magro, semicalvo, cavanhaque, segura um guarda-chuva aberto numa mão e um livro na outra. O último foco revela, numa barra de ballet, Belinda, bailarina clássica com figurino e pose típicos das pinturas de Degas. Revelados todos os personagens, por enquanto perfeitamente estáticos, a música vai cedendo lugar a uma voz gravada:

Atenção: vai ter início o espetáculo teatral intitulado deColagem.(...) Este espetáculo se desenrolará ante vossos olhos, distinta platéia, como um continuum de eventos, um fluxo ininterrupto de imagens, onde se passarão mudanças, repetições, permutações ao sabor de uma lei que nós próprios, que fizemos esse trabalho, conhecemos pouco e mal, mas estamos cumprindo à risca até o fim.

Recomeça o adagio pianístico. Os personagens adquirem vida. São Sebastião desce do altar e começa a pintar as unhas dos pés de roxo. Asta Perez balança-se compulsivamente na cadeira. Dr. Young lê em voz alta seu livro (são excertos de tratados de psiquiatria do século XIX). Angel Face come com a mão algo catado do oco de sua caveira, e Belinda executa na barra uma coreografia. Novamente a música diminui de volume e a voz do psiquiatra vem ao primeiro plano. Os personagens vão parando suas atividades e prestando atenção ao texto lido. Gradualmente, começam a repeti-lo em  uníssono, enquanto se encaminham para a bandeja na boca de cena. Manipulação com os objetos da bandeja: servir e beber o champanhe, morder a maçã, movimentos docemente ameaçadores com o revólver.

Dali vão para o centro do palco. Param o texto. Ouve-se uma peça jazzística. Deixando de lado toda a gravidade, eles dançam em conjunto  uma coreografia de jazz-dance com muito swing e malícia. Terminada a dança, retomam a postura séria, e inicia-se a subcena do Diálogo, de Caio Fernando Abreu2, em que dois personagens, A e B, vivem um intenso conflito de atração e repulsão,  até que as duas últimas réplicas repetem as primeiras, mas com os papéis trocados. O texto recomeça, desta forma, invertido. Quatro vezes refaz-se o mesmo jogo circular. As falas são curtas, e a cada uma delas corresponde um movimento absolutamente preciso. Utilizam-se diversos tipos de gestual: realista,  abstrato, expressivo, passos de dança etc. Os atores vão se alternando nos papéis de A e B.  A cada nova repetição,  cada um se incumbe de falas diferentes, sempre com seu movimento correspondente. Por vezes uma fala com seu gestual são executadas por dois ou mais personagens. Em certos momentos, alguns atores só enunciam as frases sem se mover, enquanto os movimentos  são executados pelos outros. Uma das leituras omite totalmente o texto e só vemos os movimentos numa coreografia muda. O número se conclui com uma série de repetições das últimas réplicas acelerando-se como num moto perpétuo.


Nara Keiserman e Luis Artur Nunes, como Asta Perez e São Sebastião em Diálogo, de Caio Fernando Abreu. (deColagem. Foto de Sandra La Porta).

 

Após o Diálogo, os personagens se encaminham para um novo jogo com os objetos da bandeja, enquanto se ouve novamente a voz gravada, reiterando o caráter aberto da encenação: “(...) cabe a vós, distinto público, organizar essas imagens aqui apresentadas, ou deixá-las assim, fragmentos desconexos sem qualquer sentido”.

Black-out. Ouve-se um tiro. Ao voltar a luz, ao som do piano, vê-se a bailarina Belinda, morta, os olhos abertos, o corpo profundamente arqueado caído sobre a barra,  enquanto os demais personagens, de volta aos seus respectivos nichos,  retomam serenamente as suas atividades: Asta Perez balançando-se, São Sebastião no seu êxtase, Dr. Young lendo seu tratado, Angel Face comendo da sua caveira. A luz vai morrendo lentamente sobre a cena enquanto a música cresce.

O “Pequeno Mistério da Vida, Paixão e Morte de uma Bailarina Clássica”, como diz o programa e reafirmam as falas gravadas, costura uma sucessão de imagens  oníricas sem nenhuma preocupação narrativa. Pelo menos não de uma narrativa tradicional enfeixando eventos pelo princípio da causalidade. Uma imagem não decorre da outra por necessidade lógica. Seu encadeamento resulta de livre-associações num processo análogo à escritura automática surrealista. Podemos dizer que a construção do quadro se deu a partir de uma seleção de figuras emblemáticas que, na falta de melhor denominação, chamamos de “personagens”, mas que em nada se assemelham às construções psicológicos da ficção naturalista. São mais “figurações”, do que pessoas. Desprendem como carga semântica uma aura de sugestões e reverberações poéticas. E é graças à fricção dessas figuras umas com as outras, com os textos que ouvem e que pronunciam e com os objetos que manipulam, que se articula a tessitura imagética e a escrita cênica. No final de contas não deixa de ser também uma narrativa, uma dramaturgia, mas que em tudo difere da forma tradicional de contar histórias. A partitura corporal é extremamente elaborada, mesclando empréstimos da gestualidade realista, da dança expressiva e do movimento  abstrato puro e simples. Podemos falar aqui de uma dramaturgia do corpo por sua ênfase extrema na fisicalidade atoral, ainda que a peça não se limite a movimentos, concedendo um espaço importante à palavra.   

Já a outra cena a ser aqui descrita desenvolve  uma narrativa um pouco mais assemelhada  à estrutura ficcional tradicional. É “Sonho de uma Donzela”, de Mo(vi)mentos e (Ins)pirações. Paradoxalmente, contudo, há nela uma total ausência de material textual. Somente música: uma passagem da Sinfonia Nº 5 de Gustav Mahler. A história é apresentada por meio de ações físicas como numa pantomima.   No palco nu, um leito e uma mesa de cabeceira. Uma jovem - figura romântica, vestido diáfano, cabelos soltos - prepara-se para dormir. Um espelho na mão, escova o cabelo, beija o retrato de seu bem-amado, assopra uma vela, deita-se e logo adormece. Entra o ator caracterizado como um Romeu ou príncipe de contos de fada. Acende a vela. Ela desperta. Olham-se. Ele corre para ela, beija-lhe a mão. Ela timidamente se afasta. Ele aproveita o afastamento e inesperadamente desaparece de cena. Ela volta-se, não o encontra, procura-o, aflige-se. Desesperada, toma de um punhal. Quando está prestes a apunhalar-se, ele entra novamente, arranca a adaga da sua mão. Ela adormece. Ele deposita-a amorosamente na cama, vai até a mesa de cabeceira, toma de uma pluma, escreve uma carta de adeus e sai novamente. Ela acorda animada, mas ao ler a carta, cai desmaiada. Ele reaparece, tenta reanimá-la. Ela recobra os sentidos, mas foge dele, repele suas tentativas de reaproximação. Ele se desespera, pega o punhal e apunhala-se. Ela arrepende-se e, num novo surto de desespero, prepara uma taça de veneno, bebe e cai morta sobre o corpo dele. Ele acorda, vê-a morta e, tomando da taça, bebe o resto do veneno e morre novamente. Ela desperta e vendo-o morto, apunhala-se. Ele acorda mais uma vez e ao mesmo tempo envenena-se e apunhala-se. Os dois corpos reanimam-se, agora estão felizes, apaixonados. Ela veste véu e grinalda. Cortejo nupcial. Trocam alianças, beijam-se apaixonadamente. Ela adormece nos braços do amado. Ele a deposita carinhosamente no leito, coloca o travesseiro sobre seu rosto e  sufoca-a. Ela  debate-se por uns instantes até desfalecer. Ele a ajeita cuidadosamente na cama como para dormir. Ela suspira e se aconchega nos lençóis, sorrindo no melhor dos sonos. Ele vai até a vela, apaga-a sai. B.O.


Luis Artur Nunes e Ana Mondini em Sonho de uma donzela (Mo(vi)mentos e (Ins)pirações. Foto de Sandra La Porta).

 

A proposta de “Sonho de uma Donzela” é o que chamávamos de coreografia teatral, isto é, uma sequência de ações cênicas pautadas inteiramente pela música: pelo seu ritmo, fraseado, climas etc. Assim como na dança, é a música que inspira e estimula a  performance, oferecendo-lhe total suporte estrutural. Porém, no lugar de movimentos coreografados,  o que temos aqui são ações encenadas. É certo que  tanto a dança-teatro contemporânea quanto a chamada post-modern dance americana se utilizam desses elementos emprestados do teatro. Mas nesse caso a inserção do teatral na tessitura coreográfica é, ao fim e ao cabo, apenas  uma ampliação do vocabulário gestual: a coreografia continua se organizando por critérios outros que os da narrativa dramática. No nosso caso, performatizava-se um episódio ficcional com personagens e intriga. O parenesco – enganador – com a dança provinha do fato de ser a música a controladora absoluta do discurso corporal. Esse procedimento  evoca as pantomimas dos ballets românticos, bem sei, mas não creio ser essa uma analogia  acurada. As pantomimas de uma A Bela Adormecida, ou de um  Dom Quixote, por exemplo, se inscrevem dentro dos códigos do ballet: posturas, passos, posições de braços e pernas, impostação corporal etc. No “Sonho de uma Donzela”, embora houvesse também uma formalização das ações, um extremo rigor no desenho gestual, não nos prendemos a nenhum esquema  estilístico. A forte sentimentalidade  da música de Mahler nos conduziu, é verdade,  a um  universo romântico de figuras idealizadas, sentimentos extremados, gestos apaixonados:  o receituário completo de Romeu e Julieta.  Isso somado à formação dos dois  intérpretes na técnica clássica, gerou uma partitura corporal  que não deixava de evocar  um certo clima balético. Porém era uma estilização que, mesmo fora da chave realista, não deixava de comunicar uma sensação de natural, de verdadeiro do ponto de vista dramático e teatral, diferentemente  da pantomima do ballet romântico, cujo artificialismo salta aos olhos. A pantomima balética soa falso na sua pretensão de simular ações reais, falsidade essa que provoca um distanciamento, principalmente aos olhos contemporâneos. Não podemos negar que o nosso “Sonho de uma Donzela” também provocava distanciamento, mas este derivava não do desenho corporal e  sim da forma lúdica, absurda com que articulávamos os eventos típicos da fábula romântica. Não creio exagerar ao afirmar que,  no interior mesmo da ironia e do nonsense, pulsava uma verdade cênica.

Após essa série de espetáculos realizados no meu período de apaixonamento pela dança, em que ousei experimentar com a idéia de uma dramaturgia corporal no meu teatro, enveredei por outros rumos de pesquisa cênica. Essa viagem, no entanto, pelo teatro do corpo viria a marcar profundamente tudo o que faria a partir de então. Voltando-me para o texto – dramatúrgico ou não – como suporte básico da encenação, continuei impregnando meu palco de uma intensa fisicalidade atoral. Em espetáculos como A Caravana da Ilusão (Teatro Nelson Rodrigues, Rio de Janeiro, 1992), de Alcione Araújo, o transbordante lirismo do texto me levou a criar uma partitura cênica totalmente coreografada. Em Arlequim Servidor de Dois Patrões (Theatro São Pedro, Porto Alegre, 2002), de Goldoni, fui beber na rica corporalidade da commedia dell’arte, e, ao montar A Maldição do Vale Negro (Theatro São Pedro, Porto Alegre, 2004), colaboração minha com Caio Fernando Abreu, explorei o fascinante código gestual do melodrama romântico.  Mas é principalmente a pesquisa que chamo de teatro rapsódico: a teatralização de textos de ficção literária – contos, romances, crônicas – preservando a voz autoral –, que tem me levado mais longe na investigação de uma linguagem corporal que substitui a literalidade ilusionista por um palco que privilegia a alusão, a sugestão e a poesia.

Mas isso já é assunto para um outro ensaio...



1 Montagem do Curso de Arte Dramática da UFRGS, estreada em dezembro de 1968 na Reitoria da Universidade.

2 ABREU, Caio Fernando. Morangos Mofados. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.