5. TERCEIRO CORPO
5. THIRD BODY
Jean
Paul Bucchieri
Resumo
O Terceiro Corpo
é uma proposta de intervenção pedagógica acerca do abatimento de fronteiras nas
linguagens contemporâneas e que acaba por dar origem a uma renovada ideia de
escrita cênica, verificada a partir do teatro e da dança. O Terceiro Corpo assume-se como território de um pensamento prático
enquanto lugar de convergências, lugar de investigação para o intérprete contemporâneo e
torna-se o bloco central das ações onde a escrita cênica contemporânea se
constrói.
Palavras-chave
|
Decisão |
Disponibilidade |
Escrita cênica | Terceiro Corpo | Intérprete
Abstract
The Third Body is
an educational intervention
proposal on the deduction of
boundaries that takes place in contemporary languages, and which
ultimately lead to a renewed idea of writing
scenic. As a result of this convergence, seen from the theater and dance, there are problems of the
teaching of subjects does not belong
to the most stable
categories, require reflection necessary for the establishment of new pedagogical assumptions. The Third Body is assumed as a territory
of practical thinking as a place
of convergence of epistemological
confusion that have been causing dissonance between the scenic contemporary
writing and pedagogy. It is a place for research
where scenic contemporary writing is built, becoming the main hub of your organization.
Keywords | Scenic body | Étienne
Decroux | composition
Jean Paul Bucchieri Doutor na Faculdade de Motricidade Humana
com uma bolsa de estudo da FCT. Faz
parte do Corpo Docente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Colaborou com Bob
Wilson como assistente e intérprete. Desenvolve uma intensa investigação pedagógica sobre o trabalho do intérprete e a sua relação
com a escrita cênica contemporânea.
Jean Paul Bucchieri is a PhD student at Faculdade de Motricidade Humana with a scholarship from FCT. Part of the school's faculty of the Escola Superior de Teatro e Cinema. He collaborated with Bob
Wilson as assistant and interpreter. Develops an
intense educational research on the work of the interpreter and its relation to contemporary writing scenic.
TERCEIRO CORPO
Jean Paul Bucchieri
As importantes
mudanças que foram acontecendo na criação contemporânea e as suas consequências
na arte e na pedagogia actual, exigem uma reflexão.
No domínio da
pedagogia, tornou-se imprescindível construir um diálogo diferente perante as
metodologias criativas do intérprete, num contexto onde o que se entendia por
categorias “estáveis e certas”, como, por exemplo, o caso da dança e do teatro,
é hoje em dia questionado pela maior parte dos operadores das artes. Torna-se
difícil assumi-las como tal, porque sujeitas a uma multiplicidade de
contaminações e convergências de linguagens, dentro das quais, o abatimento das
fronteiras entre géneros e uma nova percepção do tempo e do espaço, modificam a
identidade dos objetos e, como consequência, a construção das relações com as
metodologias:
Se é um fato que vivemos num mundo onde os lugares se
caracterizam por fronteiras instáveis e culturas transformáveis que não possuem
um fluxo regular de tempo nem conjuntos de relações permanentes, o assunto não
é ‘a perda de uma qualquer idade de ouro de estabilidade e permanência’. O
assunto é antes a tentativa, na medida em que enfrentamos os muitos reais
processos de compreensão do espaço e do tempo, para assegurar alguma
continuidade dentro do tempo, para possibilitar alguma extensão do espaço
vivido dentro do qual nos podemos mover e respirar (Traquino, 2010, p. 22)1.
Assumo esta problemática,
fazendo transitar o trabalho do ator e do bailarino no campo da escrita cênica contemporânea. Defino por
escrita cênica contemporânea aquela atividade onde convergem múltiplas linguagens
ligadas às atividades artísticas que, neste sentido, criam uma convenção e
assumem a “confusão epistemológica” como parte integrante da criação:
Um dos modos de expressão mais aliciante da grande parte do
miolo da cena contemporânea [...] é o ressurgimento de formas antimiméticas –
como o teatro documental ou verbatim,
espetáculos com não atores ou peças criadas a partir de fatos ou evento reais –,
resultando na criação de uma confusão epistemológica entre o real e o
ficcionado, o autêntico e o construído (Coelho, 2010, p. 9).
A escrita cênica contemporânea pretende
observar a criação artística sem delinear os gêneros de forma estanque,
assumindo uma linguagem que se assume intrínseca e sem especificações de
categorias: é um conjunto de
manipulações dos códigos e de combinação de signos, que se recusa a dividir os gêneros e exalta completamente a sua
contaminação. Aqui o ser humano é posto no meio, na sua totalidade, como centro
de uma experiência direta.
Não se trata aqui
de discutir performance: trata-se de
uma não-categoria que quebra
barreiras entre diferentes disciplinas e gêneros artísticos (teatro, dança,
artes plásticas, música, ópera, audiovisuais, etc.) que, ao contrário da performance, não encontrou, e não
pretende ainda encontrar uma definição clara, como gênero específico. A escrita cênica contemporânea
identifica-se através da procura de uma não-definição
que acarreta uma interminável série de problemáticas acerca da sua natureza,
dos seus pressupostos e das suas possíveis descrições:
A tradição performativa foi fundamental para abrir
fronteiras entre as artes visuais, a dança e o teatro. Não podia, pois, deixar
de me influenciar, na medida em que utilizo o espaço, o tempo e a presença
física. As distinções entre estas disciplinas ainda estão em aberto, mas a minha
formação no que respeita ao ‘trabalho de palco’ está ligada à dança, à ideia de
corpo receptáculo de experiências e emoções, de corpo palavra. E isso implica
renunciar a qualquer tentativa de dar respostas únicas e definitivas – o que
importa é proporcionar uma reflexão junto do público (Tagliarini; Pães, 2010:
p. 25).
Observo uma necessidade cada vez maior, por parte
dos “práticos”, em procurar fundamentar os seus processos, através de uma
analise teórica que possa sistematizar e solidificar as suas metodologias, fator este indispensável tanto para
os criadores (justamente, para fundamentarem os seus objetos), como para os
pedagogos (para definirem um percurso de ensino que seja capaz de observar os
processos criativos que estão a acontecer na nossa contemporaneidade). Estamos
a discutir o ato de pensar no fazer, que resulta sempre de uma confrontação que
se solidifica, cada vez mais, na fusão assumida entre a prática e a teoria.
Todos os processos pedagógicos de uma formação artística necessitam promover
uma ligação forte e sólida entre o fazer
e o pensar, entre a “prática
artística” e o “saber académico”. Artur C. Danto diz que “o papel das teorias
artísticas, hoje como sempre, é tornar possível o mundo da arte e a arte” (2007:
p. 95): será portanto interessante encontrar e fundamentar novos caminhos para
reorganizar o sistema de ensino das artes, num momento em que o empirismo dos
múltiplos sistemas criativos encontra dificuldades em estabelecer uma
correspondência adequada nas metodologias desenvolvidas nos lugares de ensino. Promovo
este discurso e defendo a teoria como o lugar onde é possível identificar os
objetos artísticos e a prática como única possibilidade de sustentar a
argumentação do discurso teórico. Como afirma Gilles Deleuze, comentando a
relação entre teoria e prática:
Num determinado momento, a prática era considerada uma
aplicação da teoria, uma consequência: noutros momentos, teve um sentido oposto
uma vez que se acreditava que ela inspirava a teoria, que ela era indispensável
para futuras formas teoréticas[...] as relações entre teoria e prática são
muito mais parciais e fragmentárias [...] a prática é um conjunto de
alternâncias de uma instância teorética para outra, e a teoria é a alternância
de uma prática para outra. Nenhuma teoria se pode desenvolver sem eventualmente
encontrar um muro, e a prática é necessária para perfurar o muro (Deleuze apud Nicholson, 2005, p.
14).
Assumo o conceito
de Deleuze como algo que presencio cotidianamente no trabalho e que, justamente
por isso, tornou-se automaticamente parte integrante da investigação que
desenvolvo.
A confusão
epistemológica, com a qual a escrita cênica
contemporânea se define, cria sérias dificuldades no estabelecimento das
pedagogias. Por esta razão estabeleço uma proposta de intervenção a partir de
um conceito que defino como Terceiro
Corpo, um lugar de estudo para o
intérprete contemporâneo.
Ao admitir que
todos os territórios do conhecimento atravessam o corpo, assumo o Terceiro Corpo como território de um pensamento prático. Neste corpo
contemporâneo, o intérprete é também criador e não existe uma verdadeira
hierarquização específica entre os diversos intervenientes na criação. O Terceiro Corpo pretende potenciar a
descoberta do possível como lugar de metamorfose, assim como ambiciona
transformar constantemente o presente num lugar onde seja possível, tal como
afirma Bob Wilson, “estar sempre pronto sem saber o que irá acontecer”.
Através de um
corpo de intervenção e autobiográfico – um Terceiro
Corpo entendido como sujeito e objeto de uma investigação muitas vezes extrema
–, a escrita cênica contemporânea procura
ser um lugar de reafirmação do eu. Podemos
afirmar que se exige do Terceiro Corpo
encontrar-se perfeitamente enquadrado num discurso de potencialização do
pensamento através do corpo: pretende tornar-se visível um corpo, entendido
como lugar de convergência de hipóteses, um corpo
hipótese, onde a teoria possa ser lugar de comunicação efectiva e da
praxis. Aceita-se no Terceiro Corpo
uma hierarquização das faculdades comunicativas e não se estabelece que esse mesmo
corpo desenvolva os seus enunciados a
priori: em cada construção ele disponibiliza-se para o mundo todo sem
conceitos a priori. A escrita cênica contemporânea
desenvolve-se a partir do pensamento dos seus atos e necessita de um “corpo
enquanto pensamento”.
O Terceiro Corpo pretende tornar-se um
espaço onde o corpo possa eventualmente vir a “não precisar mais dos seus
órgãos”, tal como referia Artaud, recusando tratar as suas especificidades
através de cisões na sua anatomia. Trata-se de um corpo teórico que, no entanto, institui uma presença visível e
lúcida, determinando matérias que são consequência das suas decisões
conscientes. É, sem dúvida nenhuma, um corpo que “está sempre pronto sem saber
o que vai acontecer”. Neste caso, afirmo que “está sempre pronto sem estar a
espera de algo”. Este precludir qualquer tipo de expectativa significa eliminar
qualquer juízo acerca dos materiais que o intérprete procura constantemente,
facilitando uma ocupação permanente das suas ações sem julgamentos prévios. Este
processo de não-julgamento faculta ao
intérprete um aproveitamento maior dos processos de criação dos materiais da
escrita cênica, uma vez que é constantemente convocado a procurar algo que
reconhece como algo que é o que é, tal como o corpo de Artaud (2003), onde “o
corpo é o corpo”:
O corpo é o corpo / está só / não precisa de órgãos / o
corpo não é um organismo / os organismos são inimigos do corpo / as coisas que
se fazem produzem-se simplesmente, sem o concurso de nenhum órgão / cada órgão
é um parasita / reveste uma função parasitária / destinada a fazer viver um ser
que não deveria lá estar. / Os órgãos não são feitos senão para dar de comer
aos seres, enquanto que estes já foram condenados no seu princípio e não têm
razão nenhuma de existir. A realidade não está constituída ainda porque os
verdadeiros órgãos do corpo humano ainda não foram combinados e organizados. O
teatro da crueldade foi criado para levar a cabo esta obra / e para começar com
uma nova dança do corpo do homem, uma viragem completa deste mundo de micróbios
que nada mais é do que um nada coagulado. O teatro da crueldade quer fazer
dançar as pálpebras dois a dois, com cotovelos, rótulas, fémures, polegares e
que tudo seja visível (Artaud,
2003: p. 78-79).
Procuro construir
uma proposta de intervenção através da qual os intérpretes que estudam o Terceiro Corpo possam desenvolver a
capacidade de estar conscientemente
presentes no momento presente, formando uma identidade que os faça
entender, aceitar e dialogar com as regras do imediato, compreendendo o lado
mais intangível da velocidade e da compressão dos sentidos e do tempo: “Hoje
existe uma dificuldade em pensar o tempo (a sua percepção e uso) devido à
superabundância de acontecimentos” (Traquino, 2010: p. 16). Este Terceiro Corpo pretende ser um
testemunho da nossa contemporaneidade, desenvolvendo as suas qualidades na
capacidade de mover conscientemente a sua atenção
evitando tornar-se um receptor passivo
das informações às quais é constantemente submetido e agindo através da construção
de uma consciência cênica que lhe
permita estabelecer uma organização das suas possibilidades. A atenção é um
instrumento que reforça as qualidades do intérprete, facilitando a construção
da escrita cênica:
A atenção é um instrumento potente. Pode ser utilizado e
abusado, consciente e inconscientemente. A
qualidade e profundidade da nossa atenção é, em última análise o que mais conta
em cada situação. Atenção é, afinal, um dos poucos aspectos da vida do que se
pode controlar. O único presente que podemos dar a uma situação é a força da nossa atenção. Podemos controlar a atenção e a qualidade da nossa atenção (Bogart,
2007: p. 52).
O Terceiro Corpo torna-se o bloco central das ações cênicas onde a escrita cênica contemporânea se
constrói, tornando-se o eixo principal da sua organização: aqui todas as
linguagens convergem, quase como um contentor de múltiplas informações.
Procura-se consumir os limites e romper as barreiras do possível: “A prática
moderna é um exercício de transgressão de fronteiras e transcendência dos
limites” (Bauman, 2010: p. 9). Pretende-se que todos os conceitos estabelecidos
possam transformar-se num ato concreto: neste corpo atento e sensível procura-se construir todas as
geografias dramatúrgicas contemporâneas, através de um ato de presença que
testemunhe uma experiência artística capaz de continuar a acompanhar o mundo
através de um desfasamento, através de um olhar contemporâneo. É um corpo que
se identifica com a definição de emancipação de Gabriel Rockhill: “O processo
de emancipação consiste na verificação polêmica da igualdade” (Rockhill apud
Rancière, 2010: p. 91). É um corpo permeável às diferenças e que, a partir
delas, pretende investigar, desenvolver-se e encontrar percursos:
A capacidade de viver com as diferenças, de desfrutar de
um tal viver e beneficiar dele, não chega facilmente e certamente não pelo seu
próprio ímpeto. Esta habilidade é uma arte que, como todas, requer estudo e
exercício. A incapacidade de lidar com a pluralidade vexatória dos seres
humanos, e a ambivalência de todas as decisões de classificação/catalogação,
são, pelo contrário, auto-perpetuadoras e auto-reforçadoras: quanto mais efetivos
o caminho para a homogeneidade e os esforços para eliminar a diferença, mais
difícil é sentirmo-nos confortáveis perante estranhos, mais ameaçadora nos
surge a diferença e mais profunda e intensa é a ansiedade que ela cria (Bauman,
2000: p. 106).
Nasce assim o Terceiro Corpo que rejeita a ideia cartesiana “Je pense,
donc je suis” (Cogito ergo sum) que “condenou o corpo a
uma vida de subserviência, a ser uma central eléctrica para as lâmpadas do
cérebro” (Lehrer, 2007: p. 19), onde o ser estava dividido em duas substâncias
distintas “uma alma divina e uma carcaça mortal” (Lehrer, 2007, p.19). Deleuze
comenta o Cogito ergo sum de
Descartes definindo-o (como) “necessariamente um não-senso, na medida em que
essa proposição pretende dizer ela própria e o seu sentido” (Deleuze, 2000: p.
438), e também um contra-senso; o filósofo francês apresenta a questão com
extrema clareza:
A determinação Eu
penso pretende incidir imediatamente sobre a existência indeterminada existo, sem assinalar a forma sob a qual
o indeterminado é determinável. O sujeito do cogito cartesiano não pensa: ele tem apenas a possibilidade de
pensar e mantém-se estúpido no seio dessa possibilidade. Falta-lhe a forma do
determinável; não uma especificidade, não uma forma específica informando uma
matéria, não uma memória informando um presente, mas a forma pura e vazia do
tempo. É a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a Diferença no
pensamento, a partir do qual ele pensa, como diferença do indeterminado e da
determinação.
O Terceiro Corpo pretende encontrar esta forma do determinável que Deleuze refere – a forma pura e vazia do tempo–, e assume o pensamento de
Merleau-Ponty (2004), que aqui comenta as teorias de Descartes: “O homem não é
um espírito e um corpo, mas um espírito com um corpo, que só alcança a verdade
das coisas porque seu corpo está como que cravado nelas” (Merleau-Ponty, 2004: p.
17).
O pensamento
científico-filosófico de António Damásio (2004) também sustenta e defende a
ideia de Terceiro Corpo: “A
capacidade de ação requer um corpo que actua no tempo e no espaço e não faz
sentido sem ele” (Damásio, 2004: p. 175). E ainda, relativamente aos nossos
tempos:
Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só
mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo
e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos.
Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o
pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser (2000, p.
254).
Com este corpo MerlauPontiano/Damasiano pilar
estrutural do Terceiro Corpo,
pretendo fundamentar uma proposta de intervenção capaz de invocar um discurso
que situa a corpo no espaço da negociação espacial e temporal, como sugere Paulo
Cunha e Silva (2001):
O corpo interior moderno deixou de poder ser entendido
como um território impenetrável e autossuficiente. O corpo-hoje é um lugar de
experimentação mais radical. A sua natureza biológica transforma-se num suporte
comunicacional: a carne que era carnal, digitaliza-se. [...] o terceiro espaço.
É o mais inteligente dos espaços biológicos. É estranho, abstrato, concreto. É
o espaço da negociação celular, do contrato biológico. Da biossemiótica. É um
espaço que fica na dobra dos outros espaços (Cunha e Silva, 2001: p. 3).
Um
terceiro espaço necessita de um Terceiro
Corpo.
No entanto,
parece-me possível dizer que este Terceiro
Corpo se afirma como uma espécie de regresso a um primeiro corpo Aristotélico, no sentido em que é um só corpo, mas com uma diferença fundamental: vivencia um mundo
muito mais desorganizado e desorientado, muito mais rápido e caótico e
seguramente com mais possibilidades de se multiplicar e de se perder. Este
Terceiro Corpo, no entanto, ultrapassa e deixa definitivamente o segundo corpo Descartiano e revela-se,
justamente, como Terceiro Corpo, a
partir do momento em que se assume como lugar consciente de possibilidades,
hipóteses, alterações, angústias, sem definir hierarquizações:
Estou a começar agora. Oiçam-me. Venho do nada. Do nada
provenho. Nada atrás de mim. Ninguém atrás de mim. Eu sou. Sou eu. Eu e mais
ninguém. Eu e nada mais. Olhem. Oiçam. Nenhuma história. Nenhuma personagem. [...]
Sou corpo. Apenas corpo. O corpo é o mais. Não pode ser mais. Nada é mais do
que o corpo. Basta ser corpo. Que o corpo seja corpo. Basta isto. Corpo e não
visão do corpo e não interpretação e não confrontação e não avaliação e não
hierarquização e não graduação (Dimitriádis, 2007: p. 157).
Definitivamente,
este Terceiro Corpo procura ser presença consciente, “admitindo chegar
ao corpo através do homem” (Cunha e Silva, 1999: p. 187), e não procurando a
sua identidade que, mais facilmente, podia encontrar no ciberespaço: “No
ciberespaço o sujeito liberta-se das amarras da identidade ao metamorfosear-se,
provisória ou permanentemente, no que quer que seja sem temer o desmentido do
real” (Le Breton, 2001: p. 204).
O Terceiro Corpo é um corpo fractal, face
às mudanças de paradigmas dos espaços: “O novo lugar do sujeito é, assim, um
lugar fractal, um lugar que, simultaneamente, dissolve e precipita outros
lugares, um lugar com uma dimensão não topológica, em suma, um ‘não-lugar’”
(Cunha e Silva, 1999: p. 186). Se Derrida já afirmava que “a imagem não é uma
identidade fechada, mas um fluxo de signos em circulação infinita” (Derrida apud
Cunha e Silva, 1999: p. 75), hoje em dia, perante uma avalanche infinita de
signos e códigos que criaram verdadeiros “anarquismos epistemológicos” (Cunha e
Silva, 1999: p. 73), tornou-se ainda mais complexo construir e preservar uma
identidade artístico-criativa. É uma nova forma de estar que está a nascer,
perante a qual estamos a tentar articular-nos uns com os outros, sem ainda ter
percebido com clareza o que nos pertence e o que já nos ultrapassou. É
sintomática a declaração do pianista norueguês Leif Ove Andsnes quando afirma
que o verdadeiro desafio de um músico é “captar a atenção do público por mais
do que um instante”.
Este Terceiro Corpo não fica prisioneiro das
suas certezas mas estabelece espaços de possibilidade e diálogos que se
transformam em territórios dramatúrgicos através da consciência das suas
decisões. A decisão pode ser um ato de egoísmo (necessário para o intérprete),
mas revelar-se-á decisiva para o ato de comunicar conscientemente, de criar sem
julgamento e experimentar-se como lugar de eliminação de possibilidades.
A decisão
torna-se, a meu ver, cada vez mais indispensável para o intérprete
contemporâneo nestes múltiplos acontecimentos em que vivemos. Acredito que a ação
de ajudar o intérprete a investigar sobre a construção consciente da decisão, isto é, a capacidade de conseguir decidir em relação aos caminhos
nos quais os materiais cênicos podem transformar-se, seja uma possibilidade de
construção das gramáticas pluridisciplinares contemporâneas, acerca das
qualidades dos intérpretes: “Ao atribuir ao corpo poderes hermenêuticos, a
modernidade desistiu de ser um pensamento da carne e passou a inscrevê-la na
multidimensionalidade dos suportes” (Cunha e Silva, 2001, p. 76).
Para que o
processo de aprendizagem possa começar, o intérprete necessita de investir num
processo aparentemente contrário ao tradicional: torna-se indispensável começar
por aprender a desaprender. Mais
especificamente, o intérprete deve procurar um espaço de possibilidades que não
seja exclusivamente dependente da sua biografia e sobretudo de estereótipos
comportamentais pré-estabelecidos: “Substituam a anamnese pelo esquecimento, a
interpretação pela experimentação” (Deleuze; Guattari, 2007: p. 200). Ele
precisa, de alguma maneira, “esquecer”:
‘O esquecimento’, insistira Nietzsche, ‘é uma propriedade
de toda a ação’, e prosseguira citando a frase de Goethe segundo a qual o homem
de ação não tem consciência. Por isso, Nietzsche podia acrescentar, o homem de ação,
o verdadeiro poeta, ‘também não tem conhecimento: esquece a maior parte das
coisas para poder fazer uma coisa, é injusto para aquilo que o antecedeu, e
reconhece apenas uma lei – a lei do que vai acontecer’ (Bloom, 1991, p. 68-69).
Apesar de referir-se ao trabalho do corpo do
bailarino pós-moderno, a afirmação da investigadora Ana Mira, acerca da
possibilidade de criar “novas reinscrições”, parece poder aplicar-se ao
trabalho do intérprete contemporâneo:
Estes processos contém a possibilidade de intervir na
transformação e mudança de formações
incorporadas. No entanto trata-se de uma prática continuada, ou seja, a
desconstrução nunca é totalmente alcançada, mas o bailarino trabalha no sentido
de um corpo disponível a ser reinscrito de “outras” formas (Gardner in
Dempster, 1996, p. 50). A noção de corpo pós-moderno,
implícita na experiência da dança que sustenta a presente pesquisa, abre a
possibilidade de desinvestir o corpo das suas inscrições destruturando-se, e de
incorporar, criando ‘novas formações’, um outro conhecimento, com o qual se
encontra comprometido (a longo prazo), manifestando-se dentro e fora do espaço
da performance (Mira, 2008: p. 21).
Este
processo, de “desinvestir o corpo das suas inscrições”, remete à articulação
entre o conceito de “esquecimento” e de “des-aprendizagem”.
Se por um lado é utópico pensar que o corpo possa esquecer, por outro o corpo
transforma-se. Ao fazê-lo e ao reconhecer esta transformação o intérprete
desinveste-se das suas inscrições (entre as quais encontramos a biografia e os
estereótipos comportamentais), ele não esquece: “Aprende a desaprender”, ou
seja, reorganiza e recicla sentidos. Efetivamente, o intérprete procura não
quando sabe, mas quando se dispõe a encontrar aquilo que não sabe. Este
processo deve acontecer todos os dias, permitindo ao intérprete distanciar-se
do problema dos materiais cênicos estarem sempre sujeitos a interpretação. No
entanto é necessário admitir que os materiais podem não ter nenhuma
interpretação e ser apenas o que são.
Na minha prática
pedagógica, observo que o intérprete vive mal quando não consegue dar uma
interpretação/sentido àquilo que faz; existe um desconforto com a ausência de
interpretação. Em todo o percurso formativo é facilmente observável que existem
sérias dificuldades em enfrentar o material cênico, sem lhe atribuir uma
qualquer interpretação/significação possível. Deste modo, seria ideal conseguir
que o intérprete aprendesse a não restringir cada ação a um significado
específico (eliminando possivelmente a interpretação), compreendendo que
qualquer ação que faz é antes de mais uma ação e qualquer coisa que pode ser
outra coisa para além dela. Mas antes disso é uma ação, mais nada.
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