5. TERCEIRO CORPO

5. THIRD BODY

Jean Paul Bucchieri

Resumo              

O Terceiro Corpo é uma proposta de intervenção pedagógica acerca do abatimento de fronteiras nas linguagens contemporâneas e que acaba por dar origem a uma renovada ideia de escrita cênica, verificada a partir do teatro e da dança. O Terceiro Corpo assume-se como território de um pensamento prático enquanto lugar de convergências, lugar de investigação para o intérprete contemporâneo e torna-se o bloco central das ações onde a escrita cênica contemporânea se constrói.

Palavras-chave | Decisão | Disponibilidade | Escrita cênica | Terceiro Corpo | Intérprete

Abstract

The Third Body is an educational intervention proposal on the deduction of boundaries that takes place in contemporary languages​​, and which ultimately lead to a renewed idea of writing scenic. As a result of this convergence, seen from the theater and dance, there are problems of the teaching of subjects does not belong to the most stable categories, require reflection necessary for the establishment of new pedagogical assumptions. The Third Body is assumed as a territory of practical thinking as a place of convergence of epistemological confusion that have been causing dissonance between the scenic contemporary writing and pedagogy. It is a place for research where scenic contemporary writing is built, becoming the main hub of your organization.

Keywords | Scenic body | Étienne Decroux | composition

Jean Paul Bucchieri Doutor na Faculdade de Motricidade Humana com uma bolsa de estudo da FCT. Faz parte do Corpo Docente da Escola Superior de Teatro e Cinema. Colaborou com Bob Wilson como assistente e intérprete. Desenvolve uma intensa investigação pedagógica sobre o trabalho do intérprete e a sua relação com a escrita cênica contemporânea.

Jean Paul Bucchieri is a PhD student at Faculdade de Motricidade Humana with a scholarship from FCT. Part of the school's faculty of the Escola Superior de Teatro e Cinema. He collaborated with Bob Wilson as assistant and interpreter. Develops an intense educational research on the work of the interpreter and its relation to contemporary writing scenic.

 


TERCEIRO CORPO

Jean Paul Bucchieri

As importantes mudanças que foram acontecendo na criação contemporânea e as suas consequências na arte e na pedagogia actual, exigem uma reflexão.

No domínio da pedagogia, tornou-se imprescindível construir um diálogo diferente perante as metodologias criativas do intérprete, num contexto onde o que se entendia por categorias “estáveis e certas”, como, por exemplo, o caso da dança e do teatro, é hoje em dia questionado pela maior parte dos operadores das artes. Torna-se difícil assumi-las como tal, porque sujeitas a uma multiplicidade de contaminações e convergências de linguagens, dentro das quais, o abatimento das fronteiras entre géneros e uma nova percepção do tempo e do espaço, modificam a identidade dos objetos e, como consequência, a construção das relações com as metodologias:

Se é um fato que vivemos num mundo onde os lugares se caracterizam por fronteiras instáveis e culturas transformáveis que não possuem um fluxo regular de tempo nem conjuntos de relações permanentes, o assunto não é ‘a perda de uma qualquer idade de ouro de estabilidade e permanência’. O assunto é antes a tentativa, na medida em que enfrentamos os muitos reais processos de compreensão do espaço e do tempo, para assegurar alguma continuidade dentro do tempo, para possibilitar alguma extensão do espaço vivido dentro do qual nos podemos mover e respirar (Traquino, 2010, p. 22)1.

Assumo esta problemática, fazendo transitar o trabalho do ator e do bailarino no campo da escrita cênica contemporânea. Defino por escrita cênica contemporânea aquela atividade onde convergem múltiplas linguagens ligadas às atividades artísticas que, neste sentido, criam uma convenção e assumem a “confusão epistemológica” como parte integrante da criação:

Um dos modos de expressão mais aliciante da grande parte do miolo da cena contemporânea [...] é o ressurgimento de formas antimiméticas – como o teatro documental ou verbatim, espetáculos com não atores ou peças criadas a partir de fatos ou evento reais –, resultando na criação de uma confusão epistemológica entre o real e o ficcionado, o autêntico e o construído (Coelho, 2010, p. 9).

A escrita cênica contemporânea pretende observar a criação artística sem delinear os gêneros de forma estanque, assumindo uma linguagem que se assume intrínseca e sem especificações de categorias: é um conjunto de manipulações dos códigos e de combinação de signos, que se recusa a dividir os gêneros e exalta completamente a sua contaminação. Aqui o ser humano é posto no meio, na sua totalidade, como centro de uma experiência direta.

Não se trata aqui de discutir performance: trata-se de uma não-categoria que quebra barreiras entre diferentes disciplinas e gêneros artísticos (teatro, dança, artes plásticas, música, ópera, audiovisuais, etc.) que, ao contrário da performance, não encontrou, e não pretende ainda encontrar uma definição clara, como gênero específico. A escrita cênica contemporânea identifica-se através da procura de uma não-definição que acarreta uma interminável série de problemáticas acerca da sua natureza, dos seus pressupostos e das suas possíveis descrições:

A tradição performativa foi fundamental para abrir fronteiras entre as artes visuais, a dança e o teatro. Não podia, pois, deixar de me influenciar, na medida em que utilizo o espaço, o tempo e a presença física. As distinções entre estas disciplinas ainda estão em aberto, mas a minha formação no que respeita ao ‘trabalho de palco’ está ligada à dança, à ideia de corpo receptáculo de experiências e emoções, de corpo palavra. E isso implica renunciar a qualquer tentativa de dar respostas únicas e definitivas – o que importa é proporcionar uma reflexão junto do público (Tagliarini; Pães, 2010: p. 25).

Observo uma necessidade cada vez maior, por parte dos “práticos”, em procurar fundamentar os seus processos, através de uma analise teórica que possa sistematizar e solidificar as suas metodologias, fator este indispensável tanto para os criadores (justamente, para fundamentarem os seus objetos), como para os pedagogos (para definirem um percurso de ensino que seja capaz de observar os processos criativos que estão a acontecer na nossa contemporaneidade). Estamos a discutir o ato de pensar no fazer, que resulta sempre de uma confrontação que se solidifica, cada vez mais, na fusão assumida entre a prática e a teoria. Todos os processos pedagógicos de uma formação artística necessitam promover uma ligação forte e sólida entre o fazer e o pensar, entre a “prática artística” e o “saber académico”. Artur C. Danto diz que “o papel das teorias artísticas, hoje como sempre, é tornar possível o mundo da arte e a arte” (2007: p. 95): será portanto interessante encontrar e fundamentar novos caminhos para reorganizar o sistema de ensino das artes, num momento em que o empirismo dos múltiplos sistemas criativos encontra dificuldades em estabelecer uma correspondência adequada nas metodologias desenvolvidas nos lugares de ensino. Promovo este discurso e defendo a teoria como o lugar onde é possível identificar os objetos artísticos e a prática como única possibilidade de sustentar a argumentação do discurso teórico. Como afirma Gilles Deleuze, comentando a relação entre teoria e prática:

Num determinado momento, a prática era considerada uma aplicação da teoria, uma consequência: noutros momentos, teve um sentido oposto uma vez que se acreditava que ela inspirava a teoria, que ela era indispensável para futuras formas teoréticas[...] as relações entre teoria e prática são muito mais parciais e fragmentárias [...] a prática é um conjunto de alternâncias de uma instância teorética para outra, e a teoria é a alternância de uma prática para outra. Nenhuma teoria se pode desenvolver sem eventualmente encontrar um muro, e a prática é necessária para perfurar o muro (Deleuze apud Nicholson, 2005, p. 14).

Assumo o conceito de Deleuze como algo que presencio cotidianamente no trabalho e que, justamente por isso, tornou-se automaticamente parte integrante da investigação que desenvolvo.

A confusão epistemológica, com a qual a escrita cênica contemporânea se define, cria sérias dificuldades no estabelecimento das pedagogias. Por esta razão estabeleço uma proposta de intervenção a partir de um conceito que defino como Terceiro Corpo, um lugar de estudo para o intérprete contemporâneo.

Ao admitir que todos os territórios do conhecimento atravessam o corpo, assumo o Terceiro Corpo como território de um pensamento prático. Neste corpo contemporâneo, o intérprete é também criador e não existe uma verdadeira hierarquização específica entre os diversos intervenientes na criação. O Terceiro Corpo pretende potenciar a descoberta do possível como lugar de metamorfose, assim como ambiciona transformar constantemente o presente num lugar onde seja possível, tal como afirma Bob Wilson, “estar sempre pronto sem saber o que irá acontecer”.

Através de um corpo de intervenção e autobiográfico – um Terceiro Corpo entendido como sujeito e objeto de uma investigação muitas vezes extrema –, a escrita cênica contemporânea procura ser um lugar de reafirmação do eu. Podemos afirmar que se exige do Terceiro Corpo encontrar-se perfeitamente enquadrado num discurso de potencialização do pensamento através do corpo: pretende tornar-se visível um corpo, entendido como lugar de convergência de hipóteses, um corpo hipótese, onde a teoria possa ser lugar de comunicação efectiva e da praxis. Aceita-se no Terceiro Corpo uma hierarquização das faculdades comunicativas e não se estabelece que esse mesmo corpo desenvolva os seus enunciados a priori: em cada construção ele disponibiliza-se para o mundo todo sem conceitos a priori. A escrita cênica contemporânea desenvolve-se a partir do pensamento dos seus atos e necessita de um “corpo enquanto pensamento”.

O Terceiro Corpo pretende tornar-se um espaço onde o corpo possa eventualmente vir a “não precisar mais dos seus órgãos”, tal como referia Artaud, recusando tratar as suas especificidades através de cisões na sua anatomia. Trata-se de um corpo teórico que, no entanto, institui uma presença visível e lúcida, determinando matérias que são consequência das suas decisões conscientes. É, sem dúvida nenhuma, um corpo que “está sempre pronto sem saber o que vai acontecer”. Neste caso, afirmo que “está sempre pronto sem estar a espera de algo”. Este precludir qualquer tipo de expectativa significa eliminar qualquer juízo acerca dos materiais que o intérprete procura constantemente, facilitando uma ocupação permanente das suas ações sem julgamentos prévios. Este processo de não-julgamento faculta ao intérprete um aproveitamento maior dos processos de criação dos materiais da escrita cênica, uma vez que é constantemente convocado a procurar algo que reconhece como algo que é o que é, tal como o corpo de Artaud (2003), onde “o corpo é o corpo”:

O corpo é o corpo / está só / não precisa de órgãos / o corpo não é um organismo / os organismos são inimigos do corpo / as coisas que se fazem produzem-se simplesmente, sem o concurso de nenhum órgão / cada órgão é um parasita / reveste uma função parasitária / destinada a fazer viver um ser que não deveria lá estar. / Os órgãos não são feitos senão para dar de comer aos seres, enquanto que estes já foram condenados no seu princípio e não têm razão nenhuma de existir. A realidade não está constituída ainda porque os verdadeiros órgãos do corpo humano ainda não foram combinados e organizados. O teatro da crueldade foi criado para levar a cabo esta obra / e para começar com uma nova dança do corpo do homem, uma viragem completa deste mundo de micróbios que nada mais é do que um nada coagulado. O teatro da crueldade quer fazer dançar as pálpebras dois a dois, com cotovelos, rótulas, fémures, polegares e que tudo seja visível  (Artaud, 2003: p. 78-79).

Procuro construir uma proposta de intervenção através da qual os intérpretes que estudam o Terceiro Corpo possam desenvolver a capacidade de estar conscientemente presentes no momento presente, formando uma identidade que os faça entender, aceitar e dialogar com as regras do imediato, compreendendo o lado mais intangível da velocidade e da compressão dos sentidos e do tempo: “Hoje existe uma dificuldade em pensar o tempo (a sua percepção e uso) devido à superabundância de acontecimentos” (Traquino, 2010: p. 16). Este Terceiro Corpo pretende ser um testemunho da nossa contemporaneidade, desenvolvendo as suas qualidades na capacidade de mover conscientemente a sua atenção evitando tornar-se um receptor passivo das informações às quais é constantemente submetido e agindo através da construção de uma consciência cênica que lhe permita estabelecer uma organização das suas possibilidades. A atenção é um instrumento que reforça as qualidades do intérprete, facilitando a construção da escrita cênica:

A atenção é um instrumento potente. Pode ser utilizado e abusado, consciente e inconscientemente. A qualidade e profundidade da nossa atenção é, em última análise o que mais conta em cada situação. Atenção é, afinal, um dos poucos aspectos da vida do que se pode controlar. O único presente que podemos dar a uma situação é a força da nossa atenção. Podemos controlar a atenção e a qualidade da nossa atenção (Bogart, 2007: p. 52).

O Terceiro Corpo torna-se o bloco central das ações cênicas onde a escrita cênica contemporânea se constrói, tornando-se o eixo principal da sua organização: aqui todas as linguagens convergem, quase como um contentor de múltiplas informações. Procura-se consumir os limites e romper as barreiras do possível: “A prática moderna é um exercício de transgressão de fronteiras e transcendência dos limites” (Bauman, 2010: p. 9). Pretende-se que todos os conceitos estabelecidos possam transformar-se num ato concreto: neste corpo atento e sensível procura-se construir todas as geografias dramatúrgicas contemporâneas, através de um ato de presença que testemunhe uma experiência artística capaz de continuar a acompanhar o mundo através de um desfasamento, através de um olhar contemporâneo. É um corpo que se identifica com a definição de emancipação de Gabriel Rockhill: “O processo de emancipação consiste na verificação polêmica da igualdade” (Rockhill apud Rancière, 2010: p. 91). É um corpo permeável às diferenças e que, a partir delas, pretende investigar, desenvolver-se e encontrar percursos:

A capacidade de viver com as diferenças, de desfrutar de um tal viver e beneficiar dele, não chega facilmente e certamente não pelo seu próprio ímpeto. Esta habilidade é uma arte que, como todas, requer estudo e exercício. A incapacidade de lidar com a pluralidade vexatória dos seres humanos, e a ambivalência de todas as decisões de classificação/catalogação, são, pelo contrário, auto-perpetuadoras e auto-reforçadoras: quanto mais efetivos o caminho para a homogeneidade e os esforços para eliminar a diferença, mais difícil é sentirmo-nos confortáveis perante estranhos, mais ameaçadora nos surge a diferença e mais profunda e intensa é a ansiedade que ela cria (Bauman, 2000: p. 106).

Nasce assim o Terceiro Corpo que rejeita a ideia cartesiana “Je pense, donc je suis” (Cogito ergo sum) que “condenou o corpo a uma vida de subserviência, a ser uma central eléctrica para as lâmpadas do cérebro” (Lehrer, 2007: p. 19), onde o ser estava dividido em duas substâncias distintas “uma alma divina e uma carcaça mortal” (Lehrer, 2007, p.19). Deleuze comenta o Cogito ergo sum de Descartes definindo-o (como) “necessariamente um não-senso, na medida em que essa proposição pretende dizer ela própria e o seu sentido” (Deleuze, 2000: p. 438), e também um contra-senso; o filósofo francês apresenta a questão com extrema clareza:

A determinação Eu penso pretende incidir imediatamente sobre a existência indeterminada existo, sem assinalar a forma sob a qual o indeterminado é determinável. O sujeito do cogito cartesiano não pensa: ele tem apenas a possibilidade de pensar e mantém-se estúpido no seio dessa possibilidade. Falta-lhe a forma do determinável; não uma especificidade, não uma forma específica informando uma matéria, não uma memória informando um presente, mas a forma pura e vazia do tempo. É a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a Diferença no pensamento, a partir do qual ele pensa, como diferença do indeterminado e da determinação.

O Terceiro Corpo pretende encontrar esta forma do determinável que Deleuze refere – a forma pura e vazia do tempo–, e assume o pensamento de Merleau-Ponty (2004), que aqui comenta as teorias de Descartes: “O homem não é um espírito e um corpo, mas um espírito com um corpo, que só alcança a verdade das coisas porque seu corpo está como que cravado nelas” (Merleau-Ponty, 2004: p. 17).

O pensamento científico-filosófico de António Damásio (2004) também sustenta e defende a ideia de Terceiro Corpo: “A capacidade de ação requer um corpo que actua no tempo e no espaço e não faz sentido sem ele” (Damásio, 2004: p. 175). E ainda, relativamente aos nossos tempos:

Para nós, portanto, no princípio foi a existência e só mais tarde chegou o pensamento. E para nós, no presente, quando vimos ao mundo e nos desenvolvemos, começamos ainda por existir e só mais tarde pensamos. Existimos e depois pensamos e só pensamos na medida em que existimos, visto o pensamento ser, na verdade, causado por estruturas e operações do ser (2000, p. 254).

Com este corpo MerlauPontiano/Damasiano pilar estrutural do Terceiro Corpo, pretendo fundamentar uma proposta de intervenção capaz de invocar um discurso que situa a corpo no espaço da negociação espacial e temporal, como sugere Paulo Cunha e Silva (2001):

O corpo interior moderno deixou de poder ser entendido como um território impenetrável e autossuficiente. O corpo-hoje é um lugar de experimentação mais radical. A sua natureza biológica transforma-se num suporte comunicacional: a carne que era carnal, digitaliza-se. [...] o terceiro espaço. É o mais inteligente dos espaços biológicos. É estranho, abstrato, concreto. É o espaço da negociação celular, do contrato biológico. Da biossemiótica. É um espaço que fica na dobra dos outros espaços (Cunha e Silva, 2001: p. 3).

Um terceiro espaço necessita de um Terceiro Corpo.

No entanto, parece-me possível dizer que este Terceiro Corpo se afirma como uma espécie de regresso a um primeiro corpo Aristotélico, no sentido em que é um só corpo, mas com uma diferença fundamental: vivencia um mundo muito mais desorganizado e desorientado, muito mais rápido e caótico e seguramente com mais possibilidades de se multiplicar e de se perder. Este Terceiro Corpo, no entanto, ultrapassa e deixa definitivamente o segundo corpo Descartiano e revela-se, justamente, como Terceiro Corpo, a partir do momento em que se assume como lugar consciente de possibilidades, hipóteses, alterações, angústias, sem definir hierarquizações:

Estou a começar agora. Oiçam-me. Venho do nada. Do nada provenho. Nada atrás de mim. Ninguém atrás de mim. Eu sou. Sou eu. Eu e mais ninguém. Eu e nada mais. Olhem. Oiçam. Nenhuma história. Nenhuma personagem. [...] Sou corpo. Apenas corpo. O corpo é o mais. Não pode ser mais. Nada é mais do que o corpo. Basta ser corpo. Que o corpo seja corpo. Basta isto. Corpo e não visão do corpo e não interpretação e não confrontação e não avaliação e não hierarquização e não graduação (Dimitriádis, 2007: p. 157).

Definitivamente, este Terceiro Corpo procura ser presença consciente, “admitindo chegar ao corpo através do homem” (Cunha e Silva, 1999: p. 187), e não procurando a sua identidade que, mais facilmente, podia encontrar no ciberespaço: “No ciberespaço o sujeito liberta-se das amarras da identidade ao metamorfosear-se, provisória ou permanentemente, no que quer que seja sem temer o desmentido do real” (Le Breton, 2001: p. 204).

O Terceiro Corpo é um corpo fractal, face às mudanças de paradigmas dos espaços: “O novo lugar do sujeito é, assim, um lugar fractal, um lugar que, simultaneamente, dissolve e precipita outros lugares, um lugar com uma dimensão não topológica, em suma, um ‘não-lugar’” (Cunha e Silva, 1999: p. 186). Se Derrida já afirmava que “a imagem não é uma identidade fechada, mas um fluxo de signos em circulação infinita” (Derrida apud Cunha e Silva, 1999: p. 75), hoje em dia, perante uma avalanche infinita de signos e códigos que criaram verdadeiros “anarquismos epistemológicos” (Cunha e Silva, 1999: p. 73), tornou-se ainda mais complexo construir e preservar uma identidade artístico-criativa. É uma nova forma de estar que está a nascer, perante a qual estamos a tentar articular-nos uns com os outros, sem ainda ter percebido com clareza o que nos pertence e o que já nos ultrapassou. É sintomática a declaração do pianista norueguês Leif Ove Andsnes quando afirma que o verdadeiro desafio de um músico é “captar a atenção do público por mais do que um instante”.

Este Terceiro Corpo não fica prisioneiro das suas certezas mas estabelece espaços de possibilidade e diálogos que se transformam em territórios dramatúrgicos através da consciência das suas decisões. A decisão pode ser um ato de egoísmo (necessário para o intérprete), mas revelar-se-á decisiva para o ato de comunicar conscientemente, de criar sem julgamento e experimentar-se como lugar de eliminação de possibilidades.

A decisão torna-se, a meu ver, cada vez mais indispensável para o intérprete contemporâneo nestes múltiplos acontecimentos em que vivemos. Acredito que a ação de ajudar o intérprete a investigar sobre a construção consciente da decisão, isto é, a capacidade de conseguir decidir em relação aos caminhos nos quais os materiais cênicos podem transformar-se, seja uma possibilidade de construção das gramáticas pluridisciplinares contemporâneas, acerca das qualidades dos intérpretes: “Ao atribuir ao corpo poderes hermenêuticos, a modernidade desistiu de ser um pensamento da carne e passou a inscrevê-la na multidimensionalidade dos suportes” (Cunha e Silva, 2001, p. 76).

Para que o processo de aprendizagem possa começar, o intérprete necessita de investir num processo aparentemente contrário ao tradicional: torna-se indispensável começar por aprender a desaprender. Mais especificamente, o intérprete deve procurar um espaço de possibilidades que não seja exclusivamente dependente da sua biografia e sobretudo de estereótipos comportamentais pré-estabelecidos: “Substituam a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela experimentação” (Deleuze; Guattari, 2007: p. 200). Ele precisa, de alguma maneira, “esquecer”:

‘O esquecimento’, insistira Nietzsche, ‘é uma propriedade de toda a ação’, e prosseguira citando a frase de Goethe segundo a qual o homem de ação não tem consciência. Por isso, Nietzsche podia acrescentar, o homem de ação, o verdadeiro poeta, ‘também não tem conhecimento: esquece a maior parte das coisas para poder fazer uma coisa, é injusto para aquilo que o antecedeu, e reconhece apenas uma lei – a lei do que vai acontecer’ (Bloom, 1991, p. 68-69).

Apesar de referir-se ao trabalho do corpo do bailarino pós-moderno, a afirmação da investigadora Ana Mira, acerca da possibilidade de criar “novas reinscrições”, parece poder aplicar-se ao trabalho do intérprete contemporâneo:

Estes processos contém a possibilidade de intervir na transformação e mudança de formações incorporadas. No entanto trata-se de uma prática continuada, ou seja, a desconstrução nunca é totalmente alcançada, mas o bailarino trabalha no sentido de um corpo disponível a ser reinscrito de “outras” formas (Gardner in Dempster, 1996, p. 50). A noção de corpo pós-moderno, implícita na experiência da dança que sustenta a presente pesquisa, abre a possibilidade de desinvestir o corpo das suas inscrições destruturando-se, e de incorporar, criando ‘novas formações’, um outro conhecimento, com o qual se encontra comprometido (a longo prazo), manifestando-se dentro e fora do espaço da performance (Mira, 2008: p. 21).

Este processo, de “desinvestir o corpo das suas inscrições”, remete à articulação entre o conceito de “esquecimento” e  de “des-aprendizagem”. Se por um lado é utópico pensar que o corpo possa esquecer, por outro o corpo transforma-se. Ao fazê-lo e ao reconhecer esta transformação o intérprete desinveste-se das suas inscrições (entre as quais encontramos a biografia e os estereótipos comportamentais), ele não esquece: “Aprende a desaprender”, ou seja, reorganiza e recicla sentidos. Efetivamente, o intérprete procura não quando sabe, mas quando se dispõe a encontrar aquilo que não sabe. Este processo deve acontecer todos os dias, permitindo ao intérprete distanciar-se do problema dos materiais cênicos estarem sempre sujeitos a interpretação. No entanto é necessário admitir que os materiais podem não ter nenhuma interpretação e ser apenas o que são.

Na minha prática pedagógica, observo que o intérprete vive mal quando não consegue dar uma interpretação/sentido àquilo que faz; existe um desconforto com a ausência de interpretação. Em todo o percurso formativo é facilmente observável que existem sérias dificuldades em enfrentar o material cênico, sem lhe atribuir uma qualquer interpretação/significação possível. Deste modo, seria ideal conseguir que o intérprete aprendesse a não restringir cada ação a um significado específico (eliminando possivelmente a interpretação), compreendendo que qualquer ação que faz é antes de mais uma ação e qualquer coisa que pode ser outra coisa para além dela. Mas antes disso é uma ação, mais nada.

 

Referências bibliográficas

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1 A obra e o autor citados por Traquino são: Huyssen, revista Public Culture, vol. 12, N. 1, 2000, p. 34.