6. POR UMA PEDAGOGIA MUSICAL NO
FAZER TEATRAL
6. TOWARDS A MUSICAL PEDAGOGY FOR THEATRE
Jacyan Castilho
Resumo
Propõe-se
neste ensaio a adoção de uma abordagem pedagógica musical nos estudos do
movimento para atores e bailarinos. A musicalidade não é entendida aqui como um
processo de aquisição de habilidades, mas de sensibilização, em nível
proprioceptivo, da capacidade de escuta do movimento.
Palavras-chave | Musicalidade |
Fraseado Expressivo | Propriocepção
Abstract
In this essay, I propose the adoption of a
musical pedagogical approach in movement studies for actors and dancers. It is
important to observe that a sense of musicality is not considered here as a
skills acquisition process, but rather as awareness on the proprioceptive
level, as the ability to hear motion.
Keywords | Musicality | Phrasing | Proprioception
Jacyan
Castilho é Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC da UNIRIO e professora Adjunta
II da Universidade Federal da Bahia (PPGAC, UFBA).
Jacyan Castilho holds a Doctorate in Scenic Arts from the Graduate
Program in Scenic Arts,
UNIRIO. She is Adjunct
Professor II in the Graduate Program in Scenic Arts of the Federal University
of Bahia (PPGAC/UFBA).
POR UMA PEDAGOGIA
MUSICAL NO FAZER TEATRAL
Jacyan Castilho
Apresentação1
A
junção dos interesses centrados nos procedimentos de Interpretação e nas
técnicas de Educação Somática e Dança Contemporânea me conduziu a caminhos de
intermediação entre esses campos disciplinares. Na pesquisa de Mestrado,
debrucei-me sobre a contribuição de elementos do Sistema Laban de Análise do
Movimento (LMA) para o estudo de textos dramáticos. A verticalização daquela
pesquisa levou-me ao objeto da Tese de Doutorado: um estudo sobre os conceitos
musicais de ritmo e dinâmica sob a ótica das artes do espetáculo teatral. Esse último trabalho
possibilitou-me abordar o fenômeno cênico com um olhar que partia de conceitos
da teoria musical; e que espraiava esse olhar na direção dos vários componentes
da urdidura cênica, a saber, a organização textual, a partitura do encenador e
a dramaturgia de ator. A partir da delimitação dos conceitos de ritmo e
dinâmica, pude analisar com exemplos dramatúrgicos e de encenadores/pedagogos a
simbólica metaforização do espetáculo teatral como uma orquestração bem
definida, que, à maneira da composição musical, estabelece e segue leis
próprias de harmonia, polifonia e contraponto.
Partindo
do pressuposto de que um espetáculo corresponde a uma sinfonia – postulado
feito não por mim, mas por Meyerhold, em fragmentos diversos de seus escritos –,
encontrei e cunhei analogias entre diferentes modos de composição textual e
cênica e procedimentos musicais. Em um dos capítulos da tese, dediquei-me
especificamente ao trabalho do ator, e à importância de uma formação para os
atores que inclua a sensibilização musical e rítmica, como um dos vetores
axiais de seu aprendizado.
Infelizmente,
é preciso reiterar isto, o aprendizado musical, pensado não como um processo de
aquisição de habilidades (cantar ou tocar instrumento), mas como um processo de
apuro perceptivo, de acuidade de habilidades cognitivas (matemáticas,
sensório-motoras, de linguagem, de memória, entre tantas outras), tem sido
desprivilegiado tanto no ensino profissionalizante de teatro quanto na etapa
mais importante da formação do indivíduo, o ensino fundamental.
Ainda
que esse não seja o espaço mais adequado para o desenvolvimento de uma polêmica
sobre aspectos do ensino fundamental, não posso deixar de concordar com Daniel
Barenboim, maestro e músico argentino mundialmente consagrado, que entende que
a música estabelece relações de convivência entre os sons, e entre as
diferentes “vozes” (instrumentos, cantos) que podem nos ensinar bastante no
convívio entre pares. Pensando assim, vemos que através do ritmo pode-se
ensinar ordem e disciplina às crianças. Os jovens que experimentam o sentimento
da paixão pela primeira vez e perdem todo o senso de disciplina podem observar,
por intermédio da música, como paixão e disciplina podem coexistir – mesmo a
mais apaixonada frase musical tem de ter, subjacente, um sentido de ordem.
Afinal, o que talvez seja a lição mais difícil para o ser humano – aprender a
viver com disciplina ainda que com paixão, e viver com liberdade ainda que com
ordem – transparece claramente em cada frase musical (Barenboim, 2009: p. 25).
Tomo
a afirmativa de Barenboim porque entendo que uma pedagogia “musical”, isto é,
centrada em valores musicais, pode oferecer ao jovem ator, notadamente no
estudo de seu corpo, exatamente essa noção de disciplina aliada à paixão de que
fala o músico. É sobre esse tema que pretendo discorrer neste momento.
Delicadeza
e disciplina
Italo
Calvino abre uma de suas famosas conferências literárias, que foram compiladas
sob o título de Seis propostas para o
próximo milênio, com uma informação poética que ele, por sua vez, retirara
de uma antiga conferência do escritor Giorgio de Santillana, que muito o
impressionara. Calvino começa a definição de “Precisão”, um dos valores por ele
propostos como paradigma literário (e filosófico, diríamos) para o milênio que
então se iniciava:
A
precisão para os antigos egípcios era simbolizada por uma pluma que servia de
peso num dos pratos da balança em que se pesavam as almas. Essa pluma levíssima
tinha o nome de Maat, deusa da balança. O hieróglifo de Maat indicava
igualmente a unidade de comprimento – os 33 cm do tijolo unitário – e também o
tom fundamental da flauta (Calvino, 1990: p.71).
Esta
imagem muito me agrada, porque alia a força da precisão à delicadeza da pluma.
A imagem concatena, na mesma formulação, o parâmetro matemático da medida do
tijolo à abstrata e sensorial percepção musical. Alia, portanto, a noção de um
rigor fundamental – medida arbitrária, ordenamento consensual de alguma
coletividade – à maleabilidade do processo perceptivo, que é totalmente
subjetivo. Peço licença para meu devaneio: para mim, esta definição alia a
disciplina e paixão de que falava o músico.
Encontrei
a disciplina, no sentido de estabelecimento de uma segunda natureza (natureza
artificial porque artística), em muitos dos pedagogos e encenadores que
estudei, nesse viés de pesquisa. A começar pelo músico e professor suíço Émile
Jacques-Dalcroze, um dos precursores do estudo do movimento na educação.
Dalcroze criou a Ginástica Rítmica a partir da observação do processo de aprendizado
musical de sua época, que levava os alunos a repetirem mecanicamente os
exercícios, sem um efetivo desenvolvimento de sua sensibilidade e imaginação
auditivas. O músico percebeu que, para facilitar os exercícios de solfejo, os
alunos podiam lançar mão de acompanhá-los com movimentos do corpo, meneios de
cabeça ou batidas de pés no chão, seguindo a dinâmica musical, pontuando os
acentos: dessa observação nasceu a ideia de uma ginástica corporal vinculada à
música. Os exercícios envolviam progressivamente o corpo dos alunos: passavam a
incluir deslocamentos, flexibilização de partes do corpo, gestos, equilíbrio e
canto, associado a movimentos complementares ou contraditórios com a
respiração. Sempre com o objetivo de desenvolver o que mais tarde ele chamaria
de “ouvido interior”: uma conexão estreita, cada vez mais imediata, entre sons
e pensamento; conexão intermediada pelo corpo, que se tornaria assim o
instrumento a serviço dos sentimentos.
Mais
tarde, Dalcroze criaria a disciplina “Movimento Plástico”, para alunos que já
tivessem desenvolvido a prontidão do corpo e a reação imediata através da ginástica
rítmica. Nesse último, esperava-se uma relação de não sincronismo entre os
movimentos corporais e a música, podendo haver efeitos de contraponto na representação
rítmica ou sonora ou ainda omissão de elementos musicais expressos fisicamente.
No movimento plástico seria possível também desenvolver a expressão corporal
sem o auxílio da música. Ambas as disciplinas foram concebidas como duas etapas
de um mesmo trabalho denominado Euritimia2,
do inglês Eurythmics (Dias, 2000).
Os
exercícios eram fomentados para formar o ouvido e a sensibilidade do
intérprete: eram trabalhadas, dentre outras, as noções de fraseado musical,
anacruse, crescendo e decrescendo. Muito mais do que uma
execução musical precisa, o que movia o pedagogo era a sensibilização e a
disponibilidade do físico e do “espírito” do intérprete. Um corpo formado em
sua Euritmia chegaria a uma harmonia não somente muscular, mas em todo seu
aparelho expressivo, incluindo o sistema nervoso e a imaginação.
Para
Dalcroze, trabalhar contra ou a favor do ritmo era condição necessária para
essa harmonização corpo/pensamento/sentimento, a que chamava espírito. Compreende-se, portanto, que
ele foi um dos primeiros a perceber e formular o que seria um “sentido
muscular” – que hoje poderíamos chamar de cinestesia, um dos pilares do
processo de percepção do movimento. Deste sentido decorre a possibilidade de
perceber as variedades de intensidade do tônus muscular, a posição espacial de
membros e partes do corpo, a variação de peso e modificações da massa – o que
foi reunido, em 1906, pelo inglês Sharles Scott Sherrington, um dos pais
fundadores da neurofisiologia, sob o termo de “propriocepção” (Suquet, 2008: p.
515). Seria este sentido de movimento o componente de “paixão” contido na
disciplina dalcroziana?
Esforço
como paixão
Outro
pioneiro que, como Dalcroze, iria pavimentar os futuros caminhos da dança e da
expressão do corpo em todo ocidente, foi o coreógrafo Rudolf Laban, pesquisador
inserido na linhagem que popularizou a ideia de união intrínseca entre o
movimento e os impulsos internos que lhes são propulsores. Quando estabelece
relações entre os fatores constitutivos do movimento – Peso, Tempo, Fluência e
Espaço – e os inter-relaciona, chamando de Esforço
(Efforts) a pulsão interior que
dá origem ao movimento (Laban, 1974), Laban conclui a associação entre impulsos
psíquicos e fatores de realização no tempo e no espaço que Stanislavski, por
exemplo, intuíra, em seus estudos sobre tempo-ritmo na fala e no movimento
(Dias, 2000).
Sabemos
que, no caso específico sobre o que ele chamou de ritmo-tempo (Laban, 1978), é levada em consideração a atitude do
ser que se move frente ao tempo, atitude que pode ser caracterizada, por um
lado, como uma luta contra ele, nos movimentos curtos e/ou súbitos; ou, por
outro lado, numa espécie de condescendência, também chamada indulgência, em
relação a ele, através de movimentos lentos e sustentados. Isto significa que,
da mesma maneira que nos outros fatores – Espaço, Peso e Fluência – pode-se lutar contra o Tempo ou indulgenciá-lo. Tanto faz se os ritmos
produzidos pelos movimentos corporais sejam ou não marcados por durações de
tempos determinados, isto é, obedeçam ou não a uma métrica. As partes em que um
fluxo contínuo de movimento é dividido podem ter comprimentos iguais ou
desiguais, terem pulsação contínua ou irregular – elas sempre serão, quando
relacionadas umas com as outras, consideradas indulgentes com ou resistentes ao
tempo. Em outras palavras, serão mais aceleradas ou desaceleradas no tempo,
sempre que comparadas umas em relação às outras. Essa aceleração ou
desaceleração será decorrente, em todo caso, de uma pulsão interior. Lembra-nos
a autora Jean Newlove (1993): podemos calcular a trajetória, no tempo e no
espaço, de objetos inanimados, contanto que submetidos à repetição nas mesmas
condições. Entretanto, o movimento humano é forçosamente irregular, guiado pelo
senso cinestésico, e impulsionado por motivações, que tanto lhe podem servir de
forças propulsoras, como elementos desaceleradores.
Para
Laban, o que realmente importa é a sensação do movimento. Não é o efeito que
resulta em rápido, súbito ou desacelerado, mas a sensação interna de urgência,
de relaxamento, de indulgenciar o tempo (permitir que ele escoe) ou de lutar
contra ele. Ainda que a música, a coreografia, ou a marcação da cena imponham
uma métrica rítmica, o movimento soa harmônico quando as pulsões internas são
condizentes com o desenho formal. Afinal, a métrica rítmica pode ser regular,
mas a duração do tempo é subjetiva, variável. Tal fenômeno também se dá com o
intérprete musical: temperamento e musicalidade inatos influenciam seu “tempo”
interior. Não seria verdade a antiga máxima de que intérpretes e regentes mais
velhos conduzem a obra musical mais demoradamente, não por lentidão nos
reflexos, mas por conseguirem fruir sua execução sem a ansiedade natural dos
jovens?
Trabalhar
sob a ótica do Sistema Laban de Análise, portanto, implica em lidar com o
temperamento e a musicalidade implícitos no corpo que se expressa. Significa
reconhecer o tempo como parceiro e saber moldá-lo, modelá-lo. Laban (e seus
discípulos, seguidores e estudiosos) ofertaram aos estudos do corpo um
vocabulário que pode ser comparado ao vocabulário musical, quando tenta dar
conta da materialidade do corpo (em expressões como tempo, duração, acelerando,
desacelerando, súbito, sustentado), porém enfocando exatamente sua porção
intangível, imaterial: os impulsos motivadores, a sinergia tempo/espaço.
O
fraseado expressivo
Particularmente,
considero do maior interesse para os jovens atores em formação o reconhecimento
do conceito de fraseado expressivo (Phrasing), com todas as suas implicações. Uma frase de movimentos é o desenvolvimento de uma ação que responde a uma estrutura de
organização intrínseca a ela; portanto, uma sequência de movimentos que tem uma
lógica interna. Ações corporais simples, como sentar-se em uma cadeira, pegar
uma caneta ou beber um copo d’água constituem frases de movimentos. Trechos de
coreografia que combinam ações de sustentar, cair, recolher e expandir,
articuladas em complexos movimentos corporais e rítmicos também o são. A diferença imposta por sua sistematização é
a atribuição de qualidades expressivas a essas frases, de acordo com a
distribuição de acentos.
Irmgard
Bartenieff apresenta-nos o pressuposto de que, em Laban, o ritmo que molda a
frase de movimentos constrói o fraseado
expressivo. Todo movimento conta, em princípio, com uma polaridade
bifásica, como a pulsação binária em música, e, no caso do movimento físico, de
esforço/recuperação – como as polaridades dormir/despertar, trabalho/descanso,
condensação/dissipação da tensão, luta/indulgência (Bartenieff, 1993). Os
gregos deram a esses momentos de alternância entre impulso e repouso os nomes
de arsis e tesis. Para isso, basearam-se na observação de um
comportamento corporal: a batida ordenada dos pés no chão, no amasso dos grãos
e das frutas. O tempo correspondente à preparação do movimento, o momento de
impulso, quando o pé é erguido, foi chamado de arsis, e está associado ao esforço. O
tempo marcado pela descida do pé no chão foi chamado de tesis, e está
associado ao repouso. As
células rítmicas gregas, sempre formadas por dois ou três elementos, consistiam
basicamente nessas alternâncias de esforço/relaxamento, o que conferia a cada
uma delas um ethos particular, objeto, aliás, de interesse de Laban, mas
que não discutiremos aqui3.
A
partir do estabelecimento dessa célula inicial, as ações vão se tornando mais
complexas, até chegarem a formar um padrão de comportamento – no caso da dança
e do teatro, comportamentos codificados. A riqueza expressiva desse
comportamento reside no fato, como em música, de que essa pulsação básica é
enriquecida, quebrada, retomada e variada por seus desdobramentos rítmicos e
pela distribuição de acentos. Afinal, não é difícil concordar que toda pulsação
contínua, sem mudanças rítmicas, produz um fluxo regular que leva à monotonia.
Quando
ocorre essa distribuição de qualidades expressivas na frase de movimento, Laban
passa a chamá-la de um fraseado
expressivo (Fernandes, 2002). É em função da colocação do acento que Laban
faz a classificação do fraseado expressivo. Esse acento pode ser uma
intensificação de qualquer um dos fatores do movimento – uma intensificação do Peso,
uma aceleração do Tempo, uma mudança na direção espacial, um súbito controle da
fluência livre, ou uma reversão no fluxo do movimento (outras quedas após uma
queda, quando se esperava uma recuperação), uma pausa, uma mudança súbita de
tônus. Isso é: à semelhança dos acentos musicais, os acentos do movimento podem
ser rítmicos, plásticos, dinâmicos; e, nesse caso, espaciais. Sua distribuição
na frase resulta nas seguintes possibilidades:
1)
Quando o acento recai sobre o início da frase, ou o movimento inicia com uma
qualidade expressiva intensa que diminui gradualmente, temos a sensação de que
um impulso inicial foi tomado. Por isso o fraseado, nesse caso, é Impulsivo (figura 1).
Figura
1: O arco corresponde a uma ação completa, o sinal gráfico simboliza o acento.
Exemplos
de fraseado impulsivo são o
lançamento de um pião que gira até parar; um grito que vai esmorecendo ao
final; o início da Sinfonia 25 em Sol
menor, de Mozart, que ataca com todos os instrumentos em dinâmica forte para decrescendo.
2)
Quando o acento recai sobre o fim da frase, o movimento inicia “morno”, vai
gradualmente se intensificando, até atingir um clímax no final. A sensação é a
de um impacto ao final, como num soco, um golpe, o disparo de um arco.
Metaforicamente falando, é o suspense revelado no fim do filme, a descoberta do
“assassino”. Desse fraseado se diz
que é
Impactante (figura 2).
Figura 2
3)
Na frase com Balanço há um aumento gradual da intensidade
expressiva, que depois arrefece, como um clímax seguido de um anticlímax. Ou
seja, o acento está “em meio” à frase. Tal como um movimento pendular (embora
não seja necessariamente simétrico), ele estabelece certo equilíbrio na
distribuição das expectativas do movimento (figura 3).
Figura
3
A
maior parte dos textos dramáticos, mormente os realistas e naturalistas,
comporta esse tipo de curva. Movimentos que se distinguem por igual importância
nas fases de preparação, realização e recuperação também: lançar uma bola com
qualquer parte do corpo; executar uma pirouette
(pirueta) no balé clássico; iniciar, acelerar e desacelerar uma corrida.
4)
Vários acentos de igual importância, distribuídos ao longo da frase, tornam
este fraseado do tipo Acentuado (figura 4). Ele comporta uma
série de ênfases.
Figura
4
Esse
tipo de acentuação produz uma sensação de regularidade, sem ser tediosa.
5)
Quando a Frase não altera seu grau de expressividade do início até o fim, o fraseado é Constante, seja ele em pausa ou movimento (figura 5). Tenhamos em
mente o quanto são necessários estes momentos numa cena ou coreografia. (A
acentuação infinitamente variada produz o mesmo efeito de acomodação da atenção
que a não-variação contínua).
Figura
5
6)
Finalmente, uma frase com movimentos quase imperceptivelmente acentuados, de
forma constante, produz um estado Vibratório
(figura 6). São os movimentos vibrados4.
Figura
6
Considero
que o estudo do fraseado, por parte
do ator-bailarino, é não só um dos maiores instrumentos de precisão e autonomia
na composição de suas partituras psicofísicas, mas também um estimulante
generoso para seu processo criativo em si. Num exercício de abstração, este
conceito tão eminentemente plástico, físico, pode ser ampliado para as estratégias
de análise de texto, para a composição dos jogos de cena, para a criação de
estados corporais e emocionais específicos. Pensadas dessa forma, analisar uma
cena sob a ótica de seus acentos, tentando decifrar um caráter impulsivo ou impactante, pode abrir surpreendentes caminhos para o intérprete e
o encenador. A ambos seria dada a opção de, ao invés de percorrer intrincados
meandros psicológicos na análise de personagem, buscar fazê-lo através do ritmo
e da respiração do texto, reconstituindo aos poucos um sentimento integrado na
maneira de dizer esse texto. Da mesma forma, organizar uma cena levando em
conta seus acentos principais e secundários, constantes ou irregulares, faz
tangível, palpável, aquele aspecto imponderável do teatro que permanece ainda
quase sempre sob o domínio da intuição: como prender a atenção do espectador?
Uma
pedagogia musical
Fiz
este breve mapeamento, elegendo dois exemplos pioneiros de uma pedagogia
musical para o ator-bailarino, para explicar onde se encontra, no momento, o cerne
de meu interesse. Deixei de fora, neste breve relato, encenadores clássicos,
músicos de formação, que notoriamente estruturaram obras teatrais a partir de
um pensamento musical: Meyerhold e Stanislavski são apenas os mais famosos
dentre estes. Mas elegi Dalcroze e Laban pela referência explícita a um sentido
motor, proprioceptivo, que os dois intuíram (ou observaram) na sistematização
do movimento, ao qual deram diferentes nomes. Esse sentido motor pode, eu
acredito, ser destilado pela abordagem musical do movimento.
Esclareço,
portanto, que, quando advogo por exercícios de sensibilização musical na
formação do corpo expressivo do ator, não me refiro a aulas de musicalização
como instrumento de aquisição de habilidades, pois não se trata de saber ler partituras,
trata-se de aprender a lidar com as durações com a sensibilidade de um músico; trata-se
de reconhecer o relacionamento entre vozes e tonalidades em diálogo ou
monólogos paralelos, como entende o integrante de uma orquestra. Trata-se de
exercer a liberdade de, uma vez de posse de um vocabulário definido, construir
frases expressivas, distribuir acentos, criando uma gramática própria, baseada
no rigor da forma, mas acionada pelo impulso da paixão.
Exercícios
lúdicos, com esta finalidade, encontram-se à disposição em cursos de percepção
musical: o trabalho que o Prof. Ernani Maletta, da UFMG, desenvolve no curso de
Artes Cênicas daquela Universidade é modelar, nesse sentido. Aliando elementos
visuais, sonoros e exercícios corporais, Maletta incute aos poucos, no aluno,
as noções de andamento, pulso, compasso e acentos. O que ele incrementa, na
verdade, é a acuidade de percepção não só auditiva, mas essencialmente
plástica, espacial e temporal, contribuindo na formação não de um ator
multivirtuoso, mas na formação de um artista multidisciplinar e sensível (Maletta,
2010).
Hoje,
o horizonte que vislumbro neste assunto é ainda mais vasto, porque mais
interno. Percebo, cada vez mais, que o grande valor de um processo de
sensibilização musical é o ganho que se obtém na escuta, como procedimento.
Essa escuta que é, em última instância, o motivo essencial das pesquisas da
Euritmia de Dalcroze, da Corêutica e da Eucinética de Laban; conceito que
permeia tantas (se não todas) as técnicas de Educação Somática; e que é o
propósito axial no enfoque trazido pelos Viewpoints.
O que é a dança de contato (contact-improvisation)
senão uma arte de escuta, uma improvisação contínua e ponderal?
Abordada
sob esse viés, a musicalidade a que me refiro não é obtida pela justaposição de
um treinamento rítmico, ainda que esse seja de grande utilidade (e, particularmente,
dedico-me a ele com meus alunos); a musicalidade é pesquisada intrinsecamente
ao movimento, aliada à pesquisa espacial e sensorial propriamente dita,
adentrando os recônditos mais sutis da motivação para a expressividade. Seja lá
por qual terminologia ela seja abordada, pela exploração de qual vocabulário,
ela seria a base de uma educação para o ator-bailarino, aliás a base de uma
educação para o movimento, para a sensibilidade, para o ser.
Iniciei
minha fala com uma imagem poética, a da pena que, possuidora do mais alto grau
de leveza, pode interferir no destino das almas com um rigor milimétrico,
segundo a mitologia egípcia. Termino com outra imagem poética, de novo do
maestro Barenboim, em mais uma brilhante
metaforização da escuta sobre o som e o silêncio:
Uma forma de preparar a entrada do silêncio consiste em criar antes dele
uma enorme tensão, para que sua chegada se dê somente depois de atingido o pico
absoluto de intensidade e volume. Outro modo de aproximação do silêncio implica
uma redução gradual do som, fazendo com que a música fique tão suave, que o
próximo passo possível seja apenas a ausência completa de som. O silêncio, em
outras palavras, pode ser mais alto que o máximo e mais suave que o mínimo.
Também dentro de uma composição existe, naturalmente, a ausência absoluta de
som. É a morte temporária, seguida pela capacidade de renascer, de recomeçar a
vida. Dessa maneira, a música é mais do que um espelho da vida; enriquecida
pela dimensão metafísica do som, ela torna possível transcender as limitações
físicas do ser humano. No mundo do som, nem mesmo a morte é necessariamente o
fim (Barenboim, 2009: p. 17).
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Jacyan Castilho. O ritmo musical da cena
teatral: a dinâmica do espetáculo de teatro. Tese de Doutorado.
Salvador: PPGAC-UFBA, 2008.
SUQUET,
Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. COURTINE, J-J. et al.
História do corpo vol. 3: As mutações do olhar, sec XX. São
Paulo: Vozes, 2008.
1 Reproduzem-se em nota
as palavras da autora na apresentação de sua apresentação oral, de modo a preservar o discurso escrito, na passagem da fala para o artigo [N.E.]. “Começo me apresentando e também um pouco de
minha trajetória, para mapear o ponto em que me encontro, a fim de levantar as
questões que me proponho, nesta fala em público. Sou formada em Artes Cênicas –
em Teatro, especificamente (formada no sentido de ter formação contínua, tanto
acadêmica quanto artística: graduei-me no curso de Interpretação da UNIRIO –
sou portanto atriz – e, depois de uma Pós-Graduação lato sensu em Teoria e Prática de Teatro na UFRJ, formei-me em
Dança Contemporânea no Curso profissionalizante de nível médio da Escola Angel
Vianna. A seguir, cursei o Mestrado em Teatro na UNIRIO e o Doutorado em Artes
Cênicas na UFBA. Ao longo desses mais de vinte anos, atuei como intérprete,
dirigi e realizei assistência de direção de espetáculos de teatro e dança,
participei de coletivos teatrais voltados ou não para a pesquisa de linguagens
cênicas, e comecei a enveredar, pelas mãos de minha mestra Angel Vianna, pelos
caminhos da preparação corporal de atores. Tornei-me Prof. Adjunta da Escola de
Teatro da UFBA, onde leciono Interpretação e Técnicas de Corpo para os
aprendizes da arte do ator”.
2 Originário do grego eu = bom, harmonioso + rhythmós = ritmo.
3 Abordado em O domínio do movimento (Laban, 1978).
4 Toda a terminologia e os esquemas
gráficos usada na descrição do fraseado
expressivo foi tomada de Fernandes, 2002.