6. POR UMA PEDAGOGIA MUSICAL NO FAZER TEATRAL

6. TOWARDS A MUSICAL PEDAGOGY FOR THEATRE

Jacyan Castilho

Resumo              

Propõe-se neste ensaio a adoção de uma abordagem pedagógica musical nos estudos do movimento para atores e bailarinos. A musicalidade não é entendida aqui como um processo de aquisição de habilidades, mas de sensibilização, em nível proprioceptivo, da capacidade de escuta do movimento.

Palavras-chave | Musicalidade | Fraseado Expressivo | Propriocepção

Abstract

In this essay, I propose the adoption of a musical pedagogical approach in movement studies for actors and dancers. It is important to observe that a sense of musicality is not considered here as a skills acquisition process, but rather as awareness on the proprioceptive level, as the ability to hear motion.

Keywords | Musicality | Phrasing | Proprioception

Jacyan Castilho é Doutora em Artes Cênicas pelo PPGAC da UNIRIO e professora Adjunta II da Universidade Federal da Bahia (PPGAC, UFBA).

Jacyan Castilho holds a Doctorate in Scenic Arts from the Graduate Program in Scenic Arts,  UNIRIO.   She is Adjunct Professor II in the Graduate Program in Scenic Arts of the Federal University of Bahia (PPGAC/UFBA).

 

POR UMA PEDAGOGIA MUSICAL NO FAZER TEATRAL

Jacyan Castilho

Apresentação1

A junção dos interesses centrados nos procedimentos de Interpretação e nas técnicas de Educação Somática e Dança Contemporânea me conduziu a caminhos de intermediação entre esses campos disciplinares. Na pesquisa de Mestrado, debrucei-me sobre a contribuição de elementos do Sistema Laban de Análise do Movimento (LMA) para o estudo de textos dramáticos. A verticalização daquela pesquisa levou-me ao objeto da Tese de Doutorado: um estudo sobre os conceitos musicais de ritmo e dinâmica sob a ótica das artes do espetáculo teatral. Esse último trabalho possibilitou-me abordar o fenômeno cênico com um olhar que partia de conceitos da teoria musical; e que espraiava esse olhar na direção dos vários componentes da urdidura cênica, a saber, a organização textual, a partitura do encenador e a dramaturgia de ator. A partir da delimitação dos conceitos de ritmo e dinâmica, pude analisar com exemplos dramatúrgicos e de encenadores/pedagogos a simbólica metaforização do espetáculo teatral como uma orquestração bem definida, que, à maneira da composição musical, estabelece e segue leis próprias de harmonia, polifonia e contraponto.

Partindo do pressuposto de que um espetáculo corresponde a uma sinfonia – postulado feito não por mim, mas por Meyerhold, em fragmentos diversos de seus escritos –, encontrei e cunhei analogias entre diferentes modos de composição textual e cênica e procedimentos musicais. Em um dos capítulos da tese, dediquei-me especificamente ao trabalho do ator, e à importância de uma formação para os atores que inclua a sensibilização musical e rítmica, como um dos vetores axiais de seu aprendizado.

Infelizmente, é preciso reiterar isto, o aprendizado musical, pensado não como um processo de aquisição de habilidades (cantar ou tocar instrumento), mas como um processo de apuro perceptivo, de acuidade de habilidades cognitivas (matemáticas, sensório-motoras, de linguagem, de memória, entre tantas outras), tem sido desprivilegiado tanto no ensino profissionalizante de teatro quanto na etapa mais importante da formação do indivíduo, o ensino fundamental.

Ainda que esse não seja o espaço mais adequado para o desenvolvimento de uma polêmica sobre aspectos do ensino fundamental, não posso deixar de concordar com Daniel Barenboim, maestro e músico argentino mundialmente consagrado, que entende que a música estabelece relações de convivência entre os sons, e entre as diferentes “vozes” (instrumentos, cantos) que podem nos ensinar bastante no convívio entre pares. Pensando assim, vemos que através do ritmo pode-se ensinar ordem e disciplina às crianças. Os jovens que experimentam o sentimento da paixão pela primeira vez e perdem todo o senso de disciplina podem observar, por intermédio da música, como paixão e disciplina podem coexistir – mesmo a mais apaixonada frase musical tem de ter, subjacente, um sentido de ordem. Afinal, o que talvez seja a lição mais difícil para o ser humano – aprender a viver com disciplina ainda que com paixão, e viver com liberdade ainda que com ordem – transparece claramente em cada frase musical (Barenboim, 2009: p. 25).

Tomo a afirmativa de Barenboim porque entendo que uma pedagogia “musical”, isto é, centrada em valores musicais, pode oferecer ao jovem ator, notadamente no estudo de seu corpo, exatamente essa noção de disciplina aliada à paixão de que fala o músico. É sobre esse tema que pretendo discorrer neste momento.

Delicadeza e disciplina

Italo Calvino abre uma de suas famosas conferências literárias, que foram compiladas sob o título de Seis propostas para o próximo milênio, com uma informação poética que ele, por sua vez, retirara de uma antiga conferência do escritor Giorgio de Santillana, que muito o impressionara. Calvino começa a definição de “Precisão”, um dos valores por ele propostos como paradigma literário (e filosófico, diríamos) para o milênio que então se iniciava:

A precisão para os antigos egípcios era simbolizada por uma pluma que servia de peso num dos pratos da balança em que se pesavam as almas. Essa pluma levíssima tinha o nome de Maat, deusa da balança. O hieróglifo de Maat indicava igualmente a unidade de comprimento – os 33 cm do tijolo unitário – e também o tom fundamental da flauta (Calvino, 1990: p.71).

Esta imagem muito me agrada, porque alia a força da precisão à delicadeza da pluma. A imagem concatena, na mesma formulação, o parâmetro matemático da medida do tijolo à abstrata e sensorial percepção musical. Alia, portanto, a noção de um rigor fundamental – medida arbitrária, ordenamento consensual de alguma coletividade – à maleabilidade do processo perceptivo, que é totalmente subjetivo. Peço licença para meu devaneio: para mim, esta definição alia a disciplina e paixão de que falava o músico.

Encontrei a disciplina, no sentido de estabelecimento de uma segunda natureza (natureza artificial porque artística), em muitos dos pedagogos e encenadores que estudei, nesse viés de pesquisa. A começar pelo músico e professor suíço Émile Jacques-Dalcroze, um dos precursores do estudo do movimento na educação. Dalcroze criou a Ginástica Rítmica a partir da observação do processo de aprendizado musical de sua época, que levava os alunos a repetirem mecanicamente os exercícios, sem um efetivo desenvolvimento de sua sensibilidade e imaginação auditivas. O músico percebeu que, para facilitar os exercícios de solfejo, os alunos podiam lançar mão de acompanhá-los com movimentos do corpo, meneios de cabeça ou batidas de pés no chão, seguindo a dinâmica musical, pontuando os acentos: dessa observação nasceu a ideia de uma ginástica corporal vinculada à música. Os exercícios envolviam progressivamente o corpo dos alunos: passavam a incluir deslocamentos, flexibilização de partes do corpo, gestos, equilíbrio e canto, associado a movimentos complementares ou contraditórios com a respiração. Sempre com o objetivo de desenvolver o que mais tarde ele chamaria de “ouvido interior”: uma conexão estreita, cada vez mais imediata, entre sons e pensamento; conexão intermediada pelo corpo, que se tornaria assim o instrumento a serviço dos sentimentos.

Mais tarde, Dalcroze criaria a disciplina “Movimento Plástico”, para alunos que já tivessem desenvolvido a prontidão do corpo e a reação imediata através da ginástica rítmica. Nesse último, esperava-se uma relação de não sincronismo entre os movimentos corporais e a música, podendo haver efeitos de contraponto na representação rítmica ou sonora ou ainda omissão de elementos musicais expressos fisicamente. No movimento plástico seria possível também desenvolver a expressão corporal sem o auxílio da música. Ambas as disciplinas foram concebidas como duas etapas de um mesmo trabalho denominado Euritimia2, do inglês Eurythmics (Dias, 2000).

Os exercícios eram fomentados para formar o ouvido e a sensibilidade do intérprete: eram trabalhadas, dentre outras, as noções de fraseado musical, anacruse, crescendo e decrescendo. Muito mais do que uma execução musical precisa, o que movia o pedagogo era a sensibilização e a disponibilidade do físico e do “espírito” do intérprete. Um corpo formado em sua Euritmia chegaria a uma harmonia não somente muscular, mas em todo seu aparelho expressivo, incluindo o sistema nervoso e a imaginação.

Para Dalcroze, trabalhar contra ou a favor do ritmo era condição necessária para essa harmonização corpo/pensamento/sentimento, a que chamava espírito. Compreende-se, portanto, que ele foi um dos primeiros a perceber e formular o que seria um “sentido muscular” – que hoje poderíamos chamar de cinestesia, um dos pilares do processo de percepção do movimento. Deste sentido decorre a possibilidade de perceber as variedades de intensidade do tônus muscular, a posição espacial de membros e partes do corpo, a variação de peso e modificações da massa – o que foi reunido, em 1906, pelo inglês Sharles Scott Sherrington, um dos pais fundadores da neurofisiologia, sob o termo de “propriocepção” (Suquet, 2008: p. 515). Seria este sentido de movimento o componente de “paixão” contido na disciplina dalcroziana?

Esforço como paixão

Outro pioneiro que, como Dalcroze, iria pavimentar os futuros caminhos da dança e da expressão do corpo em todo ocidente, foi o coreógrafo Rudolf Laban, pesquisador inserido na linhagem que popularizou a ideia de união intrínseca entre o movimento e os impulsos internos que lhes são propulsores. Quando estabelece relações entre os fatores constitutivos do movimento – Peso, Tempo, Fluência e Espaço – e os inter-relaciona, chamando de Esforço (Efforts) a pulsão interior que dá origem ao movimento (Laban, 1974), Laban conclui a associação entre impulsos psíquicos e fatores de realização no tempo e no espaço que Stanislavski, por exemplo, intuíra, em seus estudos sobre tempo-ritmo na fala e no movimento (Dias, 2000).

Sabemos que, no caso específico sobre o que ele chamou de ritmo-tempo (Laban, 1978), é levada em consideração a atitude do ser que se move frente ao tempo, atitude que pode ser caracterizada, por um lado, como uma luta contra ele, nos movimentos curtos e/ou súbitos; ou, por outro lado, numa espécie de condescendência, também chamada indulgência, em relação a ele, através de movimentos lentos e sustentados. Isto significa que, da mesma maneira que nos outros fatores – Espaço, Peso e Fluência – pode-se lutar contra o Tempo ou indulgenciá-lo. Tanto faz se os ritmos produzidos pelos movimentos corporais sejam ou não marcados por durações de tempos determinados, isto é, obedeçam ou não a uma métrica. As partes em que um fluxo contínuo de movimento é dividido podem ter comprimentos iguais ou desiguais, terem pulsação contínua ou irregular – elas sempre serão, quando relacionadas umas com as outras, consideradas indulgentes com ou resistentes ao tempo. Em outras palavras, serão mais aceleradas ou desaceleradas no tempo, sempre que comparadas umas em relação às outras. Essa aceleração ou desaceleração será decorrente, em todo caso, de uma pulsão interior. Lembra-nos a autora Jean Newlove (1993): podemos calcular a trajetória, no tempo e no espaço, de objetos inanimados, contanto que submetidos à repetição nas mesmas condições. Entretanto, o movimento humano é forçosamente irregular, guiado pelo senso cinestésico, e impulsionado por motivações, que tanto lhe podem servir de forças propulsoras, como elementos desaceleradores.

Para Laban, o que realmente importa é a sensação do movimento. Não é o efeito que resulta em rápido, súbito ou desacelerado, mas a sensação interna de urgência, de relaxamento, de indulgenciar o tempo (permitir que ele escoe) ou de lutar contra ele. Ainda que a música, a coreografia, ou a marcação da cena imponham uma métrica rítmica, o movimento soa harmônico quando as pulsões internas são condizentes com o desenho formal. Afinal, a métrica rítmica pode ser regular, mas a duração do tempo é subjetiva, variável. Tal fenômeno também se dá com o intérprete musical: temperamento e musicalidade inatos influenciam seu “tempo” interior. Não seria verdade a antiga máxima de que intérpretes e regentes mais velhos conduzem a obra musical mais demoradamente, não por lentidão nos reflexos, mas por conseguirem fruir sua execução sem a ansiedade natural dos jovens?

Trabalhar sob a ótica do Sistema Laban de Análise, portanto, implica em lidar com o temperamento e a musicalidade implícitos no corpo que se expressa. Significa reconhecer o tempo como parceiro e saber moldá-lo, modelá-lo. Laban (e seus discípulos, seguidores e estudiosos) ofertaram aos estudos do corpo um vocabulário que pode ser comparado ao vocabulário musical, quando tenta dar conta da materialidade do corpo (em expressões como tempo, duração, acelerando, desacelerando, súbito, sustentado), porém enfocando exatamente sua porção intangível, imaterial: os impulsos motivadores, a sinergia tempo/espaço.

O fraseado expressivo

Particularmente, considero do maior interesse para os jovens atores em formação o reconhecimento do conceito de fraseado expressivo (Phrasing), com todas as suas implicações. Uma frase de movimentos é o desenvolvimento de uma açãotulo Quinto)cit.)ases de preparaççaoizaçntuitivo da personalidade, atua na decisa resptea, terna, apaixonada, entusiasmada e so que responde a uma estrutura de organização intrínseca a ela; portanto, uma sequência de movimentos que tem uma lógica interna. Ações corporais simples, como sentar-se em uma cadeira, pegar uma caneta ou beber um copo d’água constituem frases de movimentos. Trechos de coreografia que combinam ações de sustentar, cair, recolher e expandir, articuladas em complexos movimentos corporais e rítmicos também o são.  A diferença imposta por sua sistematização é a atribuição de qualidades expressivas a essas frases, de acordo com a distribuição de acentos.

Irmgard Bartenieff apresenta-nos o pressuposto de que, em Laban, o ritmo que molda a frase de movimentos constrói o fraseado expressivo. Todo movimento conta, em princípio, com uma polaridade bifásica, como a pulsação binária em música, e, no caso do movimento físico, de esforço/recuperação – como as polaridades dormir/despertar, trabalho/descanso, condensação/dissipação da tensão, luta/indulgência (Bartenieff, 1993). Os gregos deram a esses momentos de alternância entre impulso e repouso os nomes de arsis e tesis. Para isso, basearam-se na observação de um comportamento corporal: a batida ordenada dos pés no chão, no amasso dos grãos e das frutas. O tempo correspondente à preparação do movimento, o momento de impulso, quando o pé é erguido, foi chamado de arsis, e está associado ao esforço. O tempo marcado pela descida do pé no chão foi chamado de tesis, e está associado ao repouso. As células rítmicas gregas, sempre formadas por dois ou três elementos, consistiam basicamente nessas alternâncias de esforço/relaxamento, o que conferia a cada uma delas um ethos particular, objeto, aliás, de interesse de Laban, mas que não discutiremos aqui3.

A partir do estabelecimento dessa célula inicial, as ações vão se tornando mais complexas, até chegarem a formar um padrão de comportamento – no caso da dança e do teatro, comportamentos codificados. A riqueza expressiva desse comportamento reside no fato, como em música, de que essa pulsação básica é enriquecida, quebrada, retomada e variada por seus desdobramentos rítmicos e pela distribuição de acentos. Afinal, não é difícil concordar que toda pulsação contínua, sem mudanças rítmicas, produz um fluxo regular que leva à monotonia.

Quando ocorre essa distribuição de qualidades expressivas na frase de movimento, Laban passa a chamá-la de um fraseado expressivo (Fernandes, 2002). É em função da colocação do acento que Laban faz a classificação do fraseado expressivo. Esse acento pode ser uma intensificação de qualquer um dos fatores do movimento – uma intensificação do Peso, uma aceleração do Tempo, uma mudança na direção espacial, um súbito controle da fluência livre, ou uma reversão no fluxo do movimento (outras quedas após uma queda, quando se esperava uma recuperação), uma pausa, uma mudança súbita de tônus. Isso é: à semelhança dos acentos musicais, os acentos do movimento podem ser rítmicos, plásticos, dinâmicos; e, nesse caso, espaciais. Sua distribuição na frase resulta nas seguintes possibilidades:

1) Quando o acento recai sobre o início da frase, ou o movimento inicia com uma qualidade expressiva intensa que diminui gradualmente, temos a sensação de que um impulso inicial foi tomado. Por isso o fraseado, nesse caso, é Impulsivo (figura 1).

Figura 1: O arco corresponde a uma ação completa, o sinal gráfico simboliza o acento.

Exemplos de fraseado impulsivo são o lançamento de um pião que gira até parar; um grito que vai esmorecendo ao final; o início da Sinfonia 25 em Sol menor, de Mozart, que ataca com todos os instrumentos em dinâmica forte para decrescendo.

2) Quando o acento recai sobre o fim da frase, o movimento inicia “morno”, vai gradualmente se intensificando, até atingir um clímax no final. A sensação é a de um impacto ao final, como num soco, um golpe, o disparo de um arco. Metaforicamente falando, é o suspense revelado no fim do filme, a descoberta do “assassino”. Desse fraseado se diz que é Impactante (figura 2).

 Figura 2

3) Na frase com Balanço há um aumento gradual da intensidade expressiva, que depois arrefece, como um clímax seguido de um anticlímax. Ou seja, o acento está “em meio” à frase. Tal como um movimento pendular (embora não seja necessariamente simétrico), ele estabelece certo equilíbrio na distribuição das expectativas do movimento (figura 3).

Figura 3

A maior parte dos textos dramáticos, mormente os realistas e naturalistas, comporta esse tipo de curva. Movimentos que se distinguem por igual importância nas fases de preparação, realização e recuperação também: lançar uma bola com qualquer parte do corpo; executar uma pirouette (pirueta) no balé clássico; iniciar, acelerar e desacelerar uma corrida.

4) Vários acentos de igual importância, distribuídos ao longo da frase, tornam este fraseado do tipo Acentuado (figura 4). Ele comporta uma série de ênfases.

Figura 4

Esse tipo de acentuação produz uma sensação de regularidade, sem ser tediosa.

5) Quando a Frase não altera seu grau de expressividade do início até o fim, o fraseado é Constante, seja ele em pausa ou movimento (figura 5). Tenhamos em mente o quanto são necessários estes momentos numa cena ou coreografia. (A acentuação infinitamente variada produz o mesmo efeito de acomodação da atenção que a não-variação contínua).

Figura 5

6) Finalmente, uma frase com movimentos quase imperceptivelmente acentuados, de forma constante, produz um estado Vibratório (figura 6). São os movimentos vibrados4.

Figura 6

Considero que o estudo do fraseado, por parte do ator-bailarino, é não só um dos maiores instrumentos de precisão e autonomia na composição de suas partituras psicofísicas, mas também um estimulante generoso para seu processo criativo em si. Num exercício de abstração, este conceito tão eminentemente plástico, físico, pode ser ampliado para as estratégias de análise de texto, para a composição dos jogos de cena, para a criação de estados corporais e emocionais específicos. Pensadas dessa forma, analisar uma cena sob a ótica de seus acentos, tentando decifrar um caráter impulsivo ou impactante, pode abrir surpreendentes caminhos para o intérprete e o encenador. A ambos seria dada a opção de, ao invés de percorrer intrincados meandros psicológicos na análise de personagem, buscar fazê-lo através do ritmo e da respiração do texto, reconstituindo aos poucos um sentimento integrado na maneira de dizer esse texto. Da mesma forma, organizar uma cena levando em conta seus acentos principais e secundários, constantes ou irregulares, faz tangível, palpável, aquele aspecto imponderável do teatro que permanece ainda quase sempre sob o domínio da intuição: como prender a atenção do espectador?

Uma pedagogia musical

Fiz este breve mapeamento, elegendo dois exemplos pioneiros de uma pedagogia musical para o ator-bailarino, para explicar onde se encontra, no momento, o cerne de meu interesse. Deixei de fora, neste breve relato, encenadores clássicos, músicos de formação, que notoriamente estruturaram obras teatrais a partir de um pensamento musical: Meyerhold e Stanislavski são apenas os mais famosos dentre estes. Mas elegi Dalcroze e Laban pela referência explícita a um sentido motor, proprioceptivo, que os dois intuíram (ou observaram) na sistematização do movimento, ao qual deram diferentes nomes. Esse sentido motor pode, eu acredito, ser destilado pela abordagem musical do movimento.

Esclareço, portanto, que, quando advogo por exercícios de sensibilização musical na formação do corpo expressivo do ator, não me refiro a aulas de musicalização como instrumento de aquisição de habilidades, pois não se trata de saber ler partituras, trata-se de aprender a lidar com as durações com a sensibilidade de um músico; trata-se de reconhecer o relacionamento entre vozes e tonalidades em diálogo ou monólogos paralelos, como entende o integrante de uma orquestra. Trata-se de exercer a liberdade de, uma vez de posse de um vocabulário definido, construir frases expressivas, distribuir acentos, criando uma gramática própria, baseada no rigor da forma, mas acionada pelo impulso da paixão.

Exercícios lúdicos, com esta finalidade, encontram-se à disposição em cursos de percepção musical: o trabalho que o Prof. Ernani Maletta, da UFMG, desenvolve no curso de Artes Cênicas daquela Universidade é modelar, nesse sentido. Aliando elementos visuais, sonoros e exercícios corporais, Maletta incute aos poucos, no aluno, as noções de andamento, pulso, compasso e acentos. O que ele incrementa, na verdade, é a acuidade de percepção não só auditiva, mas essencialmente plástica, espacial e temporal, contribuindo na formação não de um ator multivirtuoso, mas na formação de um artista multidisciplinar e sensível (Maletta, 2010).

Hoje, o horizonte que vislumbro neste assunto é ainda mais vasto, porque mais interno. Percebo, cada vez mais, que o grande valor de um processo de sensibilização musical é o ganho que se obtém na escuta, como procedimento. Essa escuta que é, em última instância, o motivo essencial das pesquisas da Euritmia de Dalcroze, da Corêutica e da Eucinética de Laban; conceito que permeia tantas (se não todas) as técnicas de Educação Somática; e que é o propósito axial no enfoque trazido pelos Viewpoints. O que é a dança de contato (contact-improvisation) senão uma arte de escuta, uma improvisação contínua e ponderal?

Abordada sob esse viés, a musicalidade a que me refiro não é obtida pela justaposição de um treinamento rítmico, ainda que esse seja de grande utilidade (e, particularmente, dedico-me a ele com meus alunos); a musicalidade é pesquisada intrinsecamente ao movimento, aliada à pesquisa espacial e sensorial propriamente dita, adentrando os recônditos mais sutis da motivação para a expressividade. Seja lá por qual terminologia ela seja abordada, pela exploração de qual vocabulário, ela seria a base de uma educação para o ator-bailarino, aliás a base de uma educação para o movimento, para a sensibilidade, para o ser.

Iniciei minha fala com uma imagem poética, a da pena que, possuidora do mais alto grau de leveza, pode interferir no destino das almas com um rigor milimétrico, segundo a mitologia egípcia. Termino com outra imagem poética, de novo do maestro Barenboim, em mais uma brilhante metaforização da escuta sobre o som e o silêncio:

Uma forma de preparar a entrada do silêncio consiste em criar antes dele uma enorme tensão, para que sua chegada se dê somente depois de atingido o pico absoluto de intensidade e volume. Outro modo de aproximação do silêncio implica uma redução gradual do som, fazendo com que a música fique tão suave, que o próximo passo possível seja apenas a ausência completa de som. O silêncio, em outras palavras, pode ser mais alto que o máximo e mais suave que o mínimo. Também dentro de uma composição existe, naturalmente, a ausência absoluta de som. É a morte temporária, seguida pela capacidade de renascer, de recomeçar a vida. Dessa maneira, a música é mais do que um espelho da vida; enriquecida pela dimensão metafísica do som, ela torna possível transcender as limitações físicas do ser humano. No mundo do som, nem mesmo a morte é necessariamente o fim (Barenboim, 2009: p. 17).

 

Referências bibliográficas

BARENBOIM, Daniel. A música desperta o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

BARTENIEFF, Irmgard. Body movement: coping with the environment. Pennsylvania: Langhorne, 1993.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia das Letras, 1990.

DIAS, Ana. A musicalidade do ator em ação: a experiência do tempo-ritmo Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: CLA/UNIRIO, 2000.

FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: o sistema Laban/Bartenieff na formação e pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.

LABAN, Rudolf; LAWRENCE, F. C. Effort: economy in body movement. Boston: Publishers Players Inc., 1974.

MALETTA, Ernani. Uma proposta metodológica para a apropriação de conceitos do discurso musical na criação cênica. NAVAS, C. et al. (org.). Ensaios em cena. Brasília: CNPQ/ABRACE, 2010.

NEWLOVE, Jean. Laban for actors and dancers: Putting Laban’s movement theory into practice, a step-by-step guide. London: Nick Hern Books, 1993.

OLIVEIRA, Jacyan Castilho. O ritmo musical da cena teatral: a dinâmica do espetáculo de teatro. Tese de Doutorado. Salvador: PPGAC-UFBA, 2008.

SUQUET, Annie. O corpo dançante: um laboratório da percepção. COURTINE, J-J. et al. História do corpo vol. 3: As mutações do olhar, sec XX. São Paulo: Vozes, 2008.

 



1 Reproduzem-se em nota as palavras da autora na apresentação de sua apresentação oral, de modo a preservar o discurso escrito, na passagem da fala para o artigo [N.E.]. Começo me apresentando e também um pouco de minha trajetória, para mapear o ponto em que me encontro, a fim de levantar as questões que me proponho, nesta fala em público. Sou formada em Artes Cênicas – em Teatro, especificamente (formada no sentido de ter formação contínua, tanto acadêmica quanto artística: graduei-me no curso de Interpretação da UNIRIO – sou portanto atriz – e, depois de uma Pós-Graduação lato sensu em Teoria e Prática de Teatro na UFRJ, formei-me em Dança Contemporânea no Curso profissionalizante de nível médio da Escola Angel Vianna. A seguir, cursei o Mestrado em Teatro na UNIRIO e o Doutorado em Artes Cênicas na UFBA. Ao longo desses mais de vinte anos, atuei como intérprete, dirigi e realizei assistência de direção de espetáculos de teatro e dança, participei de coletivos teatrais voltados ou não para a pesquisa de linguagens cênicas, e comecei a enveredar, pelas mãos de minha mestra Angel Vianna, pelos caminhos da preparação corporal de atores. Tornei-me Prof. Adjunta da Escola de Teatro da UFBA, onde leciono Interpretação e Técnicas de Corpo para os aprendizes da arte do ator.

2 Originário do grego eu = bom, harmonioso + rhythmós = ritmo.

3 Abordado em O domínio do movimento (Laban, 1978).

4 Toda a terminologia e os esquemas gráficos usada na descrição do fraseado expressivo foi tomada de Fernandes, 2002.