7. DOS PÉS À CABEÇA. DO CENTRO PARA AS EXTREMIDADES: NOTAS SOBRE UM CORPO CÊNICO EM ETERNA CONSTRUÇÃO

7. FROM THE FEET TO THE HEAD. FROM THE CENTER TO THE EXTREMITIES: NOTES ON A SCENIC BODY IN PERPETUAL CONSTRUCTION

Márcia Strazzacappa

Resumo              

O presente artigo apresenta algumas notas reflexivas acerca do trabalho realizado na disciplina “Elementos Técnicos do Corpo”, da qual sou responsável há mais de dez anos.  Trata-se de uma disciplina obrigatória do curso de formação de atores do departamento de Artes Cênicas da Unicamp, oferecida ao longo do primeiro ano da graduação, e que tem como fundamento os estudos da educação somática aplicados ao trabalho do ator.

Palavras-chave | Educação somática | corpo | técnica corporal

Abstract

This article presents some reflective notes about work done in the discipline "Technical Elements of the Body," a course for which I have been responsible for over ten years. A mandatory yearlong freshman subject in the Theatre Arts Department at Unicamp, it offers training for actors based on the study of somatic education as applied to the work of the actor.

Keywords | Somatics | body | body technique

Márcia Strazzacappa é doutora em Arte - estudos teatrais e coreográficos pela Universidade de Paris, França. Mestre em metodologia do ensino pela Unicamp. Professora da Faculdade de Educação da Unicamp. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq.

Márcia Strazzacappa holds a Doctorate in Art, Theatrical and Choreographic studies from the University of Paris (FR), a Masters in Teaching Methodology from Unicamp.  She is an Adjunct Professor at the Faculty of Education at Unicamp and holds a Productivity Research scholarship from the CNPq.


DOS PÉS À CABEÇA. DO CENTRO PARA AS EXTREMIDADES: NOTAS SOBRE UM CORPO CÊNICO EM ETERNA CONSTRUÇÃO

Márcia Strazzacappa

O texto aqui organizado1 almeja construir uma pequena memória da tarde especial de que participei no I Seminário Internacional Corpo Cênico: linguagens e pedagogias e, ao mesmo tempo, visa aprofundar algumas ideais básicas sobre o corpo cênico. Para isso, mesclei as palavras fixadas na comunicação original com as palavras que foram ditas de improviso, alimentadas pelo momento. Espero conseguir dar conta da empreitada.

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Nas disciplinas obrigatórias que ministro no curso de formação de atores do departamento de artes cênicas do Instituto de Artes da Unicamp, intituladas “Elementos Técnicos do Corpo I e II”, ao longo do primeiro ano letivo, abordo, no primeiro semestre, a estrutura óssea partindo do estudo dos pés, nossa base, subindo até a cabeça, passando pelas articulações da perna, coluna, braços. No segundo semestre, discorro sobre a estrutura muscular, estudando a musculatura abdominal no centro do corpo, indo para as extremidades e somando o estudo de processos de criação cênica por meio da exploração do movimento corporal e das sensações resultantes de estímulos corporais. Como se pode constatar, o título do presente texto “Dos pés à cabeça e do centro para as extremidades” indica a trajetória seguida pelos estudos do corpo, começando pelos ossos dos pés e terminando na extremidade da pele, vendo e manipulando coisas que, como dizia Etienne Decroux “chegaram à ponta dos dedos e modificaram [minh]as impressões digitais” (Decroux apud Strazzacappa, 2000: p. 236).

O detalhamento quanto à gênese dessas disciplinas, com seus princípios e objetivos, estará no capítulo “Por uma anatomia lúdica na construção de um corpo cênico”, a ser lançado brevemente. Destaco pontualmente certas adaptações que as disciplinas foram sofrendo com o passar dos anos, após algumas constatações que resumo aqui: A primeira, quanto à juventude dos ingressantes (a maioria com 17 ou 18 anos recém-completos) e a diversidade de origens do corpo estudantil em função da realização do vestibular nacional; a segunda diz respeito à ausência de práticas corporais na rotina desses jovens durante o Ensino Médio, resultante de horas sentados em salas de cursinho e/ou diante da tela do computador; e a terceira, quanto à diversidade de atividades corporais que hoje são exigidas dos artistas cênicos.

Estabeleço uma ponte entre as constatações acima listadas (sobretudo no que tange a ausência de práticas corporais na juventude dos estudantes) e a comunicação de Angel Vianna (na qual apresentou trechos de espetáculos de dança em que a cena era compartilhada entre artistas profissionais e pessoas com deficiência). Ela concluiu sua apresentação chamando a atenção para que nos reportássemos aos deficientes como artistas, não como artistas deficientes.

Erico Montobbio em sua obra “O que eu seria se eu pudesse ser” (2007), na qual discorre sobre a vida de pessoas com síndrome de Down na Itália, afirma que “se um homem normal faz ginástica, um deficiente que faz a mesma coisa faz ‘terapia psicomotora’; se uma pessoa se distrai fazendo bricolagem, tem um hobby, mas se é alguém com deficiência, faz ‘terapia ocupacional’ ou ‘ergoterapia’” (Montobbio, 2007: p. 35). Como Angel Vianna, Montobbio defende que ao se trabalhar com pessoas com deficiência, o professor e/ou instrutor deve se dirigir ao indivíduo, isto é, à sua pessoa, não à sua deficiência.

Mas, o que definiria o ser (d)eficiente? Não seríamos todos nós, em certa medida, eficientes e deficientes? De fato, ninguém é totalmente perfeito. Ser deficiente é ser normal. Todos somos eficientes em algumas coisas e deficientes em outras. Se analisarmos os jovens que ingressam nos cursos superiores de hoje que apresentam, em sua grande maioria, problemas posturais, alguns mais sérios que outros, oriundos, majoritariamente, de maus hábitos e pouquíssima atividade física e ainda por cima, pensarmos na pluralidade de técnicas, estilos, escolas cada vez mais virtuosas no campo das artes cênicas, sempre haverá um corpo mais adaptado para uma determinada atividade que para outra, evidenciando sua eficiência em um campo e sua ineficiência e/ou deficiência em outro. Como afirmava o educador brasileiro Paulo Freire, “somos seres inacabados. Nós somos, porque estamos sendo” (Freire, 1997: p. 21). O que diferencia o ser humano dos demais animais é a consciência de sua incompletude.

Durante minha pesquisa de doutorado, mantive contato com vários profissionais de educação somática da Europa e da América do Norte, dentre eles, Madame Godelieve Struyf-Dennys, responsável pela criação das Cadeias Musculares. À época ela havia comentado sobre uma de suas estudantes, deficiente física e advogada que, durante um programa de televisão ao vivo em Bruxelas foi interrogada sobre como conseguira chegar ao topo da carreira apesar de sua deficiência. A resposta da mulher foi categórica: “Eu não cheguei aqui apesar de minha deficiência. Eu cheguei aqui com minha deficiência”. E completou: “A única diferença que existe entre eu e você é que a minha deficiência é mais visível que a sua”.

Nos vídeos mostrados, vimos corpos em movimento com uma presença cênica contagiante. Por vezes, não conseguimos esse nível de intensidade e presença com nossos estudantes ditos “normais”. Isso indica que alcançar uma presença cênica não é prerrogativa de um indivíduo sadio nem de um corpo sem deficiências. Essa questão abrange aquilo que só a arte consegue dar conta de explicar porque está justamente no campo do inexplicável.

Sobre isso, Bonnie Bainbrigde-Cohen, outra educadora somática que estudei em meu doutoramento, fundadora do BMC - Body Mind Centering nos Estados Unidos, após ter trabalhado em sua juventude dando aulas de dança para deficientes e conseguindo resultados surpreendentes, afirmou que por ter nascido e crescido no circo via o diferente como normal e o impossível como possível, pois sua “concepção de realidade era ver a vida sensorialmente e acreditar em milagres” (apud Strazzaccappa, 2000: p. 227). Talvez seja esse o outro olhar que necessitamos ter diante da vida e, quem sabe, nosso maior desafio.

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Ao me deparar no curso de artes cênicas com estudantes jovens sedentários e já portadores de desvios (por vezes sérios) na coluna, dou conta da dimensão do trabalho a ser realizado em sala. Outro fator complicador desse cenário diz respeito à sede por informação fast-food. Explico. Esta primeira década do século XXI foi marcada pela difusão e democratização das informações que nos chegam por diferentes vias de comunicação, além dos (agora tradicionais) jornais, televisão e rádio, por meio da Internet, do Twitter, do celular, no instante mesmo dos acontecimentos. Nunca antes na história da humanidade o ser humano teve tanto acesso à informação quanto na atualidade. Qualquer palavra ou tema pode permitir a abertura de um mundo a ser descoberto, investigado, desbravado, navegado, lido, assistido, visto. Porém, ter acesso à informação não implica, necessariamente, conhecimento, pois para se construir conhecimento, faz-se necessário tempo, escuta e estudo. Isto se complica ainda mais no que tange o trabalho corporal, pois esta geração fast-food tem dificuldade em compreender que a aquisição de técnicas corporais é um processo artesanal, construído à base de disciplina, dedicação, repetição, insistência, perseverança, palavras cada vez mais ausentes do vocabulário. Não há como se apertar uma tecla, fazer download, nem “copiar/colar”. O conhecimento corporal passa pela vivência e pela experiência.

 Assim, diante de todos esses desafios de lidar com jovens sedentários em uma era de muita informação e pouco conhecimento, ao assumir a disciplina “Elementos técnicos do corpo”, fui impulsionada a desenvolver estratégias para que os jovens ingressantes no curso de Artes Cênicas da Unicamp, sob minha responsabilidade, pudessem obter informações e construir conhecimentos mínimos sobre seus corpos em movimento que lhes servissem não apenas para sua prática corporal nas demais disciplinas técnicas do curso e em suas vidas como atores e atrizes profissionais, mas para suas vidas como cidadãos comuns.

Pautada em conhecimentos sobre a Educação Somática (Fortin, 1999) e sobretudo nos estudos de uma das técnicas brasileiras desta área de conhecimento com a qual me formei – a “Reeducação Postural Dinâmica” (Lima, 2010) (as demais técnicas genuinamente brasileiras de educação somática foram elaboradas pelos Vianna), elaborei uma metodologia que tem surtido efeito nas diferentes turmas que cursaram ao longo desses mais de dez anos as disciplinas “Elementos Técnicos do Corpo I e II”. Buscarei aqui, por meio de explicações teóricas e uso de imagens e vídeos2, explicitar os procedimentos utilizados em aula.

Como anunciado acima, no primeiro semestre, é apresentado um estudo da estrutura óssea e sobre o funcionamento das articulações partindo do estudo de nossa estrutura de base, no caso de atores, os pés. No segundo semestre, estudamos os músculos, suas formas e suas funções, partindo do tronco para os membros, isto é, da musculatura abdominal ao centro para as extremidades. Costumo dizer aos estudantes que o nome fantasia da disciplina deveria ser “anatomia e fisiologia lúdicas” pois lanço mão de estratégias lúdicas para que possam assimilar conceitos e informações. Afinal, para atores, mais do que saber exatamente o nome dos ossos, as funções e os locais de inserção dos músculos, caber-lhes-ia compreender a estrutura funcional de seus corpos com seus limites e suas possibilidades. Compreender os mecanismos de um corpo vivo e em movimento que seja capaz de promover uma presença cênica e que seja capaz de realizar criações com o corpo e pelo corpo, sem causar lesões passageiras nem irreversíveis.

Dos pés à cabeça

A disciplina “Elementos Técnicos do Corpo” parte do estudo da base da estrutura corporal na posição em pé, como bípedes que se deslocam sobre eles, sobretudo porque alunos em formação de atores têm uma sobrecarga de trabalhos corporais no primeiro ano do curso, com atividades realizadas majoritariamente em pé e em deslocamento.

Dos pés, vamos subindo e, a cada aula, apresento uma articulação distinta, passando pelo estudo do tornozelo, do joelho e da articulação coxo-femural, no que toca a perna; em seguida, estudamos a cintura pélvica, composta pelos ísquios, ilíaco, púbis e sacro por meio do qual introduzimos o estudo da coluna. O osso sacro compõe a cintura pélvica embora faça parte da estrutura da coluna. Logo abaixo do sacro, encontramos, sentimos e analisamos o cóccix, como resquício de uma cauda ancestral. Continuamos nossa subida passando pelas demais e respectivas regiões da coluna, (lombar, torácica e cervical) até chegar ao crânio. Ao investigarmos a coluna torácica, introduzimos o estudo da caixa torácica e da cintura escapular, por meio da compreensão dos movimentos das costelas durante a respiração e o movimento das escápulas sobre as costelas; a função do esterno e a fragilidade das clavículas, até o estudo da articulação do ombro. Desta articulação, partimos para o estudo dos ossos do braço, estudando mais profundamente a articulação do cotovelo, dos punhos e das mãos. Como última região estudada, temos a cabeça.

Cada aula é dividia em três momentos: roda inicial; estudo das articulações por meio de massagem acompanhada de explicações sobre as estruturas; processo criativo.

Iniciamos as aulas sempre em círculo, sentados no chão. Este é o momento em que me informo sobre como estão os estudantes naquela hora, perguntando se há alguma dor ou incômodo. É muito comum em aulas de consciência corporal, estudantes se queixarem de alguns exageros ocorridos em outras práticas corporais. Por vezes, isso influencia na postura deles em sala, pois eles acabam vendo o trabalho na disciplina apenas como um momento de relaxamento ou tratamento paliativo. A professora e educadora somática canadense Sylvie Fortin já chamou a atenção para esse tipo de equívoco por parte de estudantes e de profissionais. Ao invés de compreenderem o trabalho somático como uma tomada de consciência corporal e/ou como um trabalho preventivo, lançam mão de sessões de educação somática para amenizar dores causadas após esforço repetitivo em exercícios técnicos de dança, recuperar lesões e traumas, entre outros  (Fortin, 2006).

A segunda parte da aula, referente ao estudo da estrutura óssea do dia, é realizada ainda em círculo, por meio de uma massagem individual da região estudada.

À medida em que vão tocando seu próprio corpo, vou conduzindo o olhar e trazendo informações.  É feita a observação dos ossos envolvidos na articulação por meio do estudo de um esqueleto montado e de suas estruturas desmontadas (ossos soltos) que os estudantes podem pegar e manipular livremente, comparando, justapondo com as respectivas partes do seu próprio corpo. Neste momento, embora sejam apresentados os nomes de cada osso, o intuito não é que saibam ou decorem essas informações, mas que visualizem e assim compreendam melhor a estrutura interior de seus corpos.

Por vezes, os estudantes são convidados a desenhar a estrutura óssea estudada no dia ou, ao final do curso, individualmente ou e em pequenos grupos, podem desenhar a estrutura óssea de um corpo inteiro em uma posição definida por eles, como apresentado no vídeo a seguir. Isso se torna um desafio e, ao mesmo tempo, um outro momento para a fixação do conteúdo de aula. O trabalho é produzido e corrigido coletivamente.

Imagem 1: estudantes desenhando o esqueleto humano em grupo. Campinas, junho de 2010. Foto: Marcia Strazzacappa

 

 Quando estudamos a articulação do joelho, damos uma atenção especial. Além de ser uma das articulações mais complexas, é notória a quantidade de problemas que vários alunos apresentam, ano após ano, nessa região. Neste estudo, além do uso de imagens para ilustrar a estrutura, lanço mão de uma frase de efeito e conto uma história. A frase de efeito é: “o joelho veio ao mundo para dobrar e esticar”. A história se intitula Duelo de titãs e narra a batalha travada entre o maior osso do corpo humano, mais conhecido como fêmur quando ele enfrenta o osso mais forte, denominado tíbia. Entre estes dois titãs, os meniscos, estruturas que servem para apartar a briga, amortecer e proteger a articulação do joelho. Os meniscos, dentro de nosso estudo de anatomia lúdica, são comparados a rosquinhas Mabel, e os ligamentos do joelho, por sua vez, são comparados a uma bola de elásticos para dinheiro. Todas estas histórias e imagens ilustrativas colaboram para a compreensão de que a articulação do joelho só pode dobrar e esticar, não sendo possível realizar movimentos de torção, nem rotação.

Mas não são apenas imagens do cotidiano que servem para ilustrar nossos estudos de anatomia lúdica. Obras de artistas plásticos e monumentos arquitetônicos também podem ser utilizados, como é o caso da “Unidade Tripartida” de Max Bill, que apresento para o estudo do quadril, a obra “Luta de índios kalapalos” de Victor Brecheret para ilustrar o duelo dos titãs e ainda os arcos do Coliseu Romano, para explicar a estrutura dos pés.

Imagem 2: Luta de índios Kalapalos de Victor Brecheret (1951) MAC/SP

 

Como o trabalho desenvolvido em aula não tem por objetivo aprofundar nenhuma técnica de educação somática específica, nem realizar um treinamento preciso dentro de nenhuma técnica corporal consagrada, realizamos exercícios e atividades presentes no dia a dia do cidadão, estudando a relação postural do corpo em situações corriqueiras como na posição sentada, deitado, de cócoras e estudamos a trajetória que o corpo realiza ao passar de uma postura a outra.

No terceiro momento da aula, ao se propor um singelo processo de criação a partir da estrutura estudada (pés, joelho, coluna, entre outros) ou de um tema específico oriundo de algum estímulo externo, como veremos logo abaixo, é que podemos verificar se as informações corporais básicas referentes à postura foram captadas e o conhecimento construído. Quando os estudantes entram em processo de criação, pensam na cena a ser criada e não na organização entre as articulações. Ao apresentarem suas pequenas cenas uns para os outros, é que essas questões surgem e se transformam em objeto de discussão e comentários.

Neste momento, explico aos estudantes que uma boa técnica corporal é aquela que é esquecida, isto é, uma vez incorporada (no sentido literal da palavra), não há mais a necessidade de se pensar sobre ela. Desta forma, noções como a de vetores e direções ósseas, linhas de movimentos, tônus muscular adequado, eliminação de tensões desnecessárias em regiões específicas, entre outras, já encontram resposta automática por parte dos executantes, logo, já é conhecimento dado. Quando isso não ocorre durante a execução da cena é sinal de que esta informação ainda não foi fixada, demandando mais atenção por parte do estudante.

No segundo semestre do ano, quando se introduz o estudo das qualidades de movimento segundo Laban (1991), usamos objetos que possam estimular reações corporais diversas ao entrar em contato com a pele/corpo do indivíduo. Inspirei-me para esta dinâmica no trabalho de duas pesquisadoras de dança, Patrícia Leal (2009) e Ana Terra (2010). A primeira, Patrícia Leal, trabalha as qualidades de movimento de Laban, a partir da exploração dos sentidos, sobretudo do olfato e do paladar. Ana Terra, por sua vez, desenvolve um trabalho fundamentado na exploração de objetos como estímulos sensório-motores pautada nos estudos da artista plástica Lygia Clark. Em ambas pesquisas fica evidente a conexão do artista com o que há de mais íntimo em seu corpo, suas sensações.

Após anos trabalhando com os estudantes de artes cênicas buscando essa conexão entre o corpo sentido e o corpo em cena, optei por experimentar essa dinâmica com objetos para que percebessem que as qualidades de movimento não é algo de fora para dentro, mas ao contrário, de dentro para fora.

Em sala, divido os estudantes em pequenos grupos (trios ou quartetos), e um estudante deita-se ao chão de olhos fechados e os demais se colocam ao redor com os objetos estimuladores. O intuito é explorar as respostas corporais do estudante por meio de pequenos toques do objeto em diferentes superfícies do corpo. À medida em que o estudante, ainda de olhos fechados, vai reagindo, ele vai se deslocando no espaço até ficar na posição em pé. Neste processo de dentro para fora, busca-se analisar como o corpo reage instintivamente ao estímulo feito.

Imagem 3: exercício de estímulos sensoriais com objetos diversos - bexiga com ar. Campinas, setembro de 2011. Foto: Marcia Strazzacappa

 

O gesto surgido do estímulo é memorizado e fixado pelo indivíduo receptor sem o objeto provocador/estimulador para, em seguida, ser mostrado ao grande grupo. Cada gesto é analisado identificando-se a textura, a intensidade, a cor, isto é, identificando o tempo empregado (rápido ou lento), o desenho que traçou no espaço (expandiu ou retraiu, com linhas retas ou curvas), a quantidade de força (muito forte e denso ou leve), entre outros fatores.

Aqui, novamente, embora o objetivo da observação fosse analisar as qualidades de movimento presentes no gesto, os estudantes não perdem de vista as noções básicas de postura, lançando mão das imagens sempre lembradas e relembradas em aula.

Nestes anos todos ministrando esta disciplina, identifico algumas imagens que permanecem até hoje, pois funcionam, surtem efeito, ficam marcadas nos estudantes, como uma tatuagem. Outras que se transformaram ou foram substituídas, pois não encontraram eco em seus interlocutores. É comum encontrarmos pessoas que trabalharam com determinados criadores que carregam deles algumas marcas. Essas marcas são datadas, pois se diferenciam no tempo, em relação ao período da vida ou da pesquisa em que o criador se encontrava. Foi assim com Dalcroze e com Decroux, presentes nos trabalhos que me antecederam. Foi assim com Luis Otávio Burnier do Lume e com Klauss Vianna. Será assim com todos nós.

Independente das datas, das permanências e das transformações, concluo3 que, como docente e artista, como ser inacabado e ciente deste inacabamento, acredito que temos que, constantemente, nos alimentar desse fluxo contínuo entre a sala de aula e o palco, com o intuito de nos fazermos ecoar em nosso público e em nossos estudantes para que eles, por sua vez, possam fazer suas escolhas, descobertas e criações, cientes de que o corpo cênico está em eterna construção.

 

Referências Bibliográficas

COSTAS, Ana Maria (Ana Terra). As contribuições das abordagens somáticas na construção de saberes sensíveis da dança: um estudo sobre o Projeto “Por que Lygia Clark?”.(Tese de doutorado) Faculdade de Educação, Unicamp, 2010.

FORTIN, Sylvie. Educação somática: novo ingrediente da formação prática em dança, Cadernos do GIPE-CIT, N. 2, Salvador, 1999.

FREIRE, Paulo. Educação para a autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

LABAN, Rudolf. Dança Educativa Moderna. São Paulo: Icone, 1991.

LEAL, Patricia. Amargo Perfume: a dança pelos sentidos. (Tese de doutorado) Instituto de Artes, Unicamp, 2009.

LIMA, José Antonio. Educação somática: diálogos entre educação, saúde e arte no contexto da proposta de Reorganização Postural Dinâmica (Tese de Doutorado), Faculdade de Educação, Unicamp, 2010.

MONTOBBIO, Enrico; LEPRI, Carlo. Quem eu seria se eu pudesse ser: a condição adulta da pessoa com deficiência intelectual. Campinas: Fundação Síndrome de Down, 2007.

STRAZZACAPPA, Marcia. Fondements et enseignements des techniques corporelles des artistes de la scéne dans l'état de São Paulo (Brésil) au XXème Siècle (Tese de Doutorado), Universidade de Paris, 2000.

ROUQUET, Odile. La tête aux pieds: les pieds à la tête. Paris: Ministère de la culture, 1991.



1 Ao ser convidada para participar do “I Seminário Internacional Corpo Cênico: linguagens e pedagogias”, organizado pelo Grupo de Pesquisa Artes do Movimento, da UNIRIO, o convite me impulsionou a escrever e refletir sobre a metodologia que desenvolvi nestes anos e que continuo a desenvolver junto aos estudantes. Havia preparado uma comunicação oral pautada na apresentação e explicação do trabalho técnico realizado nas disciplinas que ministro na graduação em Artes Cênicas, “Elementos Técnicos do Corpo I e II”, cuja descrição mais detalhada estará no capítulo do livro organizado pelo Grupo de Pesquisa Arte do Movimento, ainda no prelo.  No entanto, ao participar da mesa composta pelas professoras Jacyan Castilho(UFBA), Bya Braga(UFMG), (interrompida para a realização da conferência de Angel Vianna), atenta às palavras e aos movimentos ocorridos e, sendo a última a falar, e ainda, após a apresentação (sempre tocante) de Angel Vianna, abandonei o que preparei. Expliquei que, se meu texto intitulava-se “dos pés à cabeça”, naquele momento decidira falar “de dentro para fora”, referindo-me a abrir o peito, expor o coração, falar do humano que há no professor e no artista, por mais arriscado que isso possa ser no espaço acadêmico universitário. 

2 Os registros fotográficos e videográficos aqui presentes foram realizados ao longo das aulas, na sala ED03, prédio anexo I, da Faculdade de Educação da Unicamp, entre 2007 e 2010. Os registros foram feitos pela autora.

3 Registrei no presente artigo, após várias tentativas anteriores, algumas das permanências de meu trabalho em sala de aula com os estudantes de artes cênicas da Unicamp no período de 2000 a 2010. Registrei também algumas das falas que foram pronunciadas no último encontro do seminário, dia 16 de setembro de 2011.