7. DOS PÉS À CABEÇA. DO CENTRO
PARA AS EXTREMIDADES: NOTAS SOBRE UM CORPO CÊNICO EM ETERNA CONSTRUÇÃO
7. FROM THE FEET TO THE HEAD. FROM THE CENTER TO THE
EXTREMITIES: NOTES ON A SCENIC BODY IN PERPETUAL CONSTRUCTION
Márcia
Strazzacappa
Resumo
O presente artigo apresenta
algumas notas reflexivas acerca do trabalho realizado na disciplina “Elementos
Técnicos do Corpo”, da qual sou responsável há mais de dez anos. Trata-se
de uma disciplina obrigatória do curso de formação de atores do departamento de
Artes Cênicas da Unicamp, oferecida ao longo do primeiro ano da graduação, e
que tem como fundamento os estudos da educação somática aplicados ao trabalho
do ator.
Palavras-chave | Educação somática | corpo | técnica corporal
Abstract
This
article presents some reflective notes about work done in the discipline
"Technical Elements of the Body," a course for which I have been responsible
for over ten years. A mandatory yearlong freshman subject in the Theatre Arts
Department at Unicamp, it offers training for actors
based on the study of somatic education as applied to the work of the actor.
Keywords | Somatics | body | body technique
Márcia Strazzacappa é doutora em Arte - estudos teatrais e coreográficos pela
Universidade de Paris, França. Mestre em metodologia do ensino pela Unicamp.
Professora da Faculdade de Educação da Unicamp. Bolsista de produtividade em
pesquisa do CNPq.
Márcia Strazzacappa holds a Doctorate in Art, Theatrical and Choreographic
studies from the University of Paris (FR), a Masters in Teaching Methodology from
Unicamp. She is an Adjunct Professor at
the Faculty of Education at Unicamp and holds a Productivity Research scholarship
from the CNPq.
DOS PÉS À CABEÇA. DO CENTRO PARA AS
EXTREMIDADES: NOTAS SOBRE UM CORPO CÊNICO EM ETERNA CONSTRUÇÃO
Márcia Strazzacappa
O texto aqui organizado1
almeja construir uma pequena memória da tarde especial de que participei no I
Seminário Internacional Corpo Cênico: linguagens e pedagogias e, ao mesmo
tempo, visa aprofundar algumas ideais básicas sobre o corpo cênico. Para isso,
mesclei as palavras fixadas na comunicação original com as palavras que foram
ditas de improviso, alimentadas pelo momento. Espero conseguir dar conta da
empreitada.
*
Nas disciplinas obrigatórias
que ministro no curso de formação de atores do departamento de artes cênicas do
Instituto de Artes da Unicamp, intituladas “Elementos Técnicos do Corpo I e
II”, ao longo do primeiro ano letivo, abordo, no primeiro semestre, a estrutura
óssea partindo do estudo dos pés, nossa base, subindo até a cabeça, passando
pelas articulações da perna, coluna, braços. No segundo semestre, discorro
sobre a estrutura muscular, estudando a musculatura abdominal no centro do
corpo, indo para as extremidades e somando o estudo de processos de criação cênica
por meio da exploração do movimento corporal e das sensações resultantes de
estímulos corporais. Como se pode constatar, o título do presente texto “Dos
pés à cabeça e do centro para as extremidades” indica a trajetória seguida
pelos estudos do corpo, começando pelos ossos dos pés e terminando na
extremidade da pele, vendo e manipulando coisas que, como dizia Etienne Decroux “chegaram à ponta dos dedos e modificaram [minh]as impressões digitais” (Decroux apud Strazzacappa, 2000: p. 236).
O detalhamento quanto à
gênese dessas disciplinas, com seus princípios e objetivos, estará no capítulo
“Por uma anatomia lúdica na construção de um corpo cênico”, a ser
lançado brevemente. Destaco pontualmente certas adaptações que as disciplinas
foram sofrendo com o passar dos anos, após algumas constatações que resumo
aqui: A primeira, quanto à juventude dos ingressantes (a maioria com 17 ou 18
anos recém-completos) e a diversidade de origens do corpo estudantil em função
da realização do vestibular nacional; a segunda diz respeito à ausência de
práticas corporais na rotina desses jovens durante o Ensino Médio, resultante
de horas sentados em salas de cursinho e/ou diante da tela do computador; e a
terceira, quanto à diversidade de atividades corporais que hoje são exigidas
dos artistas cênicos.
Estabeleço uma ponte entre as
constatações acima listadas (sobretudo no que tange a ausência de práticas
corporais na juventude dos estudantes) e a comunicação de Angel Vianna (na qual
apresentou trechos de espetáculos de dança em que a cena era compartilhada
entre artistas profissionais e pessoas com deficiência). Ela concluiu sua
apresentação chamando a atenção para que nos reportássemos aos deficientes como
artistas, não como artistas deficientes.
Erico Montobbio
em sua obra “O que eu seria se eu pudesse ser” (2007), na qual discorre sobre a
vida de pessoas com síndrome de Down na Itália, afirma que “se um homem normal
faz ginástica, um deficiente que faz a mesma coisa faz ‘terapia psicomotora’;
se uma pessoa se distrai fazendo bricolagem, tem um hobby, mas se é alguém com
deficiência, faz ‘terapia ocupacional’ ou ‘ergoterapia’” (Montobbio,
2007: p. 35). Como Angel Vianna, Montobbio defende
que ao se trabalhar com pessoas com deficiência, o professor e/ou instrutor
deve se dirigir ao indivíduo, isto é, à sua pessoa, não à sua deficiência.
Mas, o que definiria o ser
(d)eficiente? Não seríamos todos nós, em certa medida, eficientes e
deficientes? De fato, ninguém é totalmente perfeito. Ser deficiente é ser
normal. Todos somos eficientes em algumas coisas e deficientes em outras. Se
analisarmos os jovens que ingressam nos cursos superiores de hoje que
apresentam, em sua grande maioria, problemas posturais, alguns mais sérios que
outros, oriundos, majoritariamente, de maus hábitos e pouquíssima atividade
física e ainda por cima, pensarmos na pluralidade de técnicas, estilos, escolas
cada vez mais virtuosas no campo das artes cênicas, sempre haverá um corpo mais
adaptado para uma determinada atividade que para outra, evidenciando sua eficiência
em um campo e sua ineficiência e/ou deficiência em outro. Como afirmava o
educador brasileiro Paulo Freire, “somos seres inacabados. Nós somos, porque
estamos sendo” (Freire, 1997: p. 21). O que diferencia o ser humano dos demais
animais é a consciência de sua incompletude.
Durante minha pesquisa de
doutorado, mantive contato com vários profissionais de educação somática da
Europa e da América do Norte, dentre eles, Madame Godelieve
Struyf-Dennys, responsável pela criação das Cadeias
Musculares. À época ela havia comentado sobre uma de suas estudantes,
deficiente física e advogada que, durante um programa de televisão ao vivo em
Bruxelas foi interrogada sobre como conseguira chegar ao topo da carreira
apesar de sua deficiência. A resposta da mulher foi categórica: “Eu não cheguei
aqui apesar de minha deficiência. Eu cheguei aqui com minha
deficiência”. E completou: “A única diferença que existe entre eu e você é que
a minha deficiência é mais visível que a sua”.
Nos vídeos mostrados, vimos
corpos em movimento com uma presença cênica contagiante. Por vezes, não
conseguimos esse nível de intensidade e presença com nossos estudantes ditos
“normais”. Isso indica que alcançar uma presença cênica não é prerrogativa de
um indivíduo sadio nem de um corpo sem deficiências. Essa questão abrange
aquilo que só a arte consegue dar conta de explicar porque está justamente no
campo do inexplicável.
Sobre isso, Bonnie Bainbrigde-Cohen, outra
educadora somática que estudei em meu doutoramento, fundadora do BMC - Body Mind Centering
nos Estados Unidos, após ter trabalhado em sua juventude dando aulas de dança
para deficientes e conseguindo resultados surpreendentes, afirmou que por ter
nascido e crescido no circo via o diferente como normal e o impossível como
possível, pois sua “concepção de realidade era ver a vida sensorialmente e
acreditar em milagres” (apud Strazzaccappa, 2000: p.
227). Talvez seja esse o outro olhar que necessitamos ter diante da vida e,
quem sabe, nosso maior desafio.
*
Ao me deparar no curso de artes
cênicas com estudantes jovens sedentários e já portadores de desvios (por vezes
sérios) na coluna, dou conta da dimensão do trabalho a ser realizado em sala.
Outro fator complicador desse cenário diz respeito à sede por informação fast-food. Explico. Esta primeira década do século
XXI foi marcada pela difusão e democratização das informações que nos chegam
por diferentes vias de comunicação, além dos (agora tradicionais) jornais,
televisão e rádio, por meio da Internet, do Twitter, do celular, no
instante mesmo dos acontecimentos. Nunca antes na história da humanidade o ser
humano teve tanto acesso à informação quanto na atualidade. Qualquer palavra ou
tema pode permitir a abertura de um mundo a ser descoberto, investigado,
desbravado, navegado, lido, assistido, visto. Porém, ter acesso à informação
não implica, necessariamente, conhecimento, pois para se construir
conhecimento, faz-se necessário tempo, escuta e estudo. Isto se complica ainda
mais no que tange o trabalho corporal, pois esta geração fast-food
tem dificuldade em compreender que a aquisição de técnicas corporais é um
processo artesanal, construído à base de disciplina, dedicação, repetição,
insistência, perseverança, palavras cada vez mais ausentes do vocabulário. Não
há como se apertar uma tecla, fazer download, nem “copiar/colar”. O
conhecimento corporal passa pela vivência e pela experiência.
Assim, diante de todos esses desafios de lidar
com jovens sedentários em uma era de muita informação e pouco conhecimento, ao
assumir a disciplina “Elementos técnicos do corpo”, fui impulsionada a
desenvolver estratégias para que os jovens ingressantes no curso de Artes
Cênicas da Unicamp, sob minha responsabilidade, pudessem obter informações e
construir conhecimentos mínimos sobre seus corpos em movimento que lhes
servissem não apenas para sua prática corporal nas demais disciplinas técnicas
do curso e em suas vidas como atores e atrizes profissionais, mas para suas
vidas como cidadãos comuns.
Pautada em conhecimentos
sobre a Educação Somática (Fortin, 1999) e sobretudo
nos estudos de uma das técnicas brasileiras desta área de conhecimento com a
qual me formei – a “Reeducação Postural Dinâmica” (Lima, 2010) (as demais
técnicas genuinamente brasileiras de educação somática foram elaboradas pelos
Vianna), elaborei uma metodologia que tem surtido efeito nas diferentes turmas
que cursaram ao longo desses mais de dez anos as disciplinas “Elementos
Técnicos do Corpo I e II”. Buscarei aqui, por meio de explicações teóricas e
uso de imagens e vídeos2, explicitar os procedimentos utilizados em aula.
Como anunciado acima, no
primeiro semestre, é apresentado um estudo da estrutura óssea e sobre o
funcionamento das articulações partindo do estudo de nossa estrutura de base,
no caso de atores, os pés. No segundo semestre, estudamos os músculos, suas
formas e suas funções, partindo do tronco para os membros, isto é, da
musculatura abdominal ao centro para as extremidades. Costumo dizer aos
estudantes que o nome fantasia da disciplina deveria ser “anatomia e fisiologia
lúdicas” pois lanço mão de estratégias lúdicas para que possam assimilar
conceitos e informações. Afinal, para atores, mais do que saber exatamente o
nome dos ossos, as funções e os locais de inserção dos músculos, caber-lhes-ia
compreender a estrutura funcional de seus corpos com seus limites e suas
possibilidades. Compreender os mecanismos de um corpo vivo e em movimento que
seja capaz de promover uma presença cênica e que seja capaz de realizar
criações com o corpo e pelo corpo, sem causar lesões passageiras nem
irreversíveis.
Dos pés à cabeça
A disciplina “Elementos
Técnicos do Corpo” parte do estudo da base da estrutura corporal na posição em
pé, como bípedes que se deslocam sobre eles, sobretudo porque alunos em
formação de atores têm uma sobrecarga de trabalhos corporais no primeiro ano do
curso, com atividades realizadas majoritariamente em pé e em deslocamento.
Dos pés, vamos subindo e, a
cada aula, apresento uma articulação distinta, passando pelo estudo do
tornozelo, do joelho e da articulação coxo-femural,
no que toca a perna; em seguida, estudamos a cintura pélvica, composta pelos
ísquios, ilíaco, púbis e sacro por meio do qual introduzimos o estudo da
coluna. O osso sacro compõe a cintura pélvica embora faça parte da estrutura da
coluna. Logo abaixo do sacro, encontramos, sentimos e analisamos o cóccix, como
resquício de uma cauda ancestral. Continuamos nossa subida passando pelas
demais e respectivas regiões da coluna, (lombar, torácica e cervical) até
chegar ao crânio. Ao investigarmos a coluna torácica, introduzimos o estudo da
caixa torácica e da cintura escapular, por meio da compreensão dos movimentos
das costelas durante a respiração e o movimento das escápulas sobre as
costelas; a função do esterno e a fragilidade das clavículas, até o estudo da
articulação do ombro. Desta articulação, partimos para o estudo dos ossos do
braço, estudando mais profundamente a articulação do cotovelo, dos punhos e das
mãos. Como última região estudada, temos a cabeça.
Cada aula é dividia em três
momentos: roda inicial; estudo das articulações por meio de massagem
acompanhada de explicações sobre as estruturas; processo criativo.
Iniciamos as aulas sempre em
círculo, sentados no chão. Este é o momento em que me informo sobre como estão
os estudantes naquela hora, perguntando se há alguma dor ou incômodo. É muito
comum em aulas de consciência corporal, estudantes se queixarem de alguns
exageros ocorridos em outras práticas corporais. Por vezes, isso influencia na
postura deles em sala, pois eles acabam vendo o trabalho na disciplina apenas
como um momento de relaxamento ou tratamento paliativo. A professora e
educadora somática canadense Sylvie Fortin já chamou a atenção para esse tipo de equívoco por
parte de estudantes e de profissionais. Ao invés de compreenderem o trabalho
somático como uma tomada de consciência corporal e/ou como um trabalho
preventivo, lançam mão de sessões de educação somática para amenizar dores
causadas após esforço repetitivo em exercícios técnicos de dança, recuperar
lesões e traumas, entre outros (Fortin, 2006).
A segunda parte da aula,
referente ao estudo da estrutura óssea do dia, é realizada ainda em círculo,
por meio de uma massagem individual da região estudada.
À medida em que vão tocando
seu próprio corpo, vou conduzindo o olhar e trazendo informações. É feita a observação dos ossos envolvidos na
articulação por meio do estudo de um esqueleto montado e de suas estruturas
desmontadas (ossos soltos) que os estudantes podem pegar e manipular
livremente, comparando, justapondo com as respectivas partes do seu próprio
corpo. Neste momento, embora sejam apresentados os nomes de cada osso, o
intuito não é que saibam ou decorem essas informações, mas que visualizem e
assim compreendam melhor a estrutura interior de seus corpos.
Por vezes, os estudantes são
convidados a desenhar a estrutura óssea estudada no dia ou, ao final do curso,
individualmente ou e em pequenos grupos, podem desenhar a estrutura óssea de um
corpo inteiro em uma posição definida por eles, como apresentado no vídeo a seguir.
Isso se torna um desafio e, ao mesmo tempo, um outro momento para a fixação do
conteúdo de aula. O trabalho é produzido e corrigido coletivamente.
Imagem 1: estudantes desenhando o
esqueleto humano em grupo. Campinas, junho de 2010. Foto: Marcia Strazzacappa
Quando
estudamos a articulação do joelho, damos uma atenção especial. Além de ser uma
das articulações mais complexas, é notória a quantidade de problemas que vários
alunos apresentam, ano após ano, nessa região. Neste estudo, além do uso de
imagens para ilustrar a estrutura, lanço mão de uma frase de efeito e conto uma
história. A frase de efeito é: “o joelho veio ao mundo para dobrar e esticar”.
A história se intitula Duelo de titãs e narra a batalha travada entre o
maior osso do corpo humano, mais conhecido como fêmur quando ele enfrenta o
osso mais forte, denominado tíbia. Entre estes dois titãs, os meniscos,
estruturas que servem para apartar a briga, amortecer e proteger a articulação
do joelho. Os meniscos, dentro de nosso estudo de anatomia lúdica, são
comparados a rosquinhas Mabel, e os ligamentos do joelho, por sua vez, são
comparados a uma bola de elásticos para dinheiro. Todas estas histórias e
imagens ilustrativas colaboram para a compreensão de que a articulação do
joelho só pode dobrar e esticar, não sendo possível realizar movimentos de
torção, nem rotação.
Mas não são apenas imagens do
cotidiano que servem para ilustrar nossos estudos de anatomia lúdica. Obras de
artistas plásticos e monumentos arquitetônicos também podem ser utilizados,
como é o caso da “Unidade Tripartida” de Max Bill, que apresento para o estudo
do quadril, a obra “Luta de índios kalapalos” de
Victor Brecheret para ilustrar o duelo dos titãs e ainda os arcos do Coliseu
Romano, para explicar a estrutura dos pés.
Imagem
2: Luta de índios Kalapalos de Victor
Brecheret (1951) MAC/SP
Como o trabalho desenvolvido
em aula não tem por objetivo aprofundar nenhuma técnica de educação somática
específica, nem realizar um treinamento preciso dentro de nenhuma técnica corporal
consagrada, realizamos exercícios e atividades presentes no dia a dia do
cidadão, estudando a relação postural do corpo em situações corriqueiras como
na posição sentada, deitado, de cócoras e estudamos a trajetória que o corpo
realiza ao passar de uma postura a outra.
No terceiro momento da aula,
ao se propor um singelo processo de criação a partir da estrutura estudada
(pés, joelho, coluna, entre outros) ou de um tema específico oriundo de algum
estímulo externo, como veremos logo abaixo, é que podemos verificar se as
informações corporais básicas referentes à postura foram captadas e o
conhecimento construído. Quando os estudantes entram em processo de criação,
pensam na cena a ser criada e não na organização entre as articulações. Ao
apresentarem suas pequenas cenas uns para os outros, é que essas questões
surgem e se transformam em objeto de discussão e comentários.
Neste momento, explico aos
estudantes que uma boa técnica corporal é aquela que é esquecida, isto é, uma
vez incorporada (no sentido literal da palavra), não há mais a necessidade de
se pensar sobre ela. Desta forma, noções como a de vetores e direções ósseas,
linhas de movimentos, tônus muscular adequado, eliminação de tensões
desnecessárias em regiões específicas, entre outras, já encontram resposta
automática por parte dos executantes, logo, já é conhecimento dado. Quando isso
não ocorre durante a execução da cena é sinal de que esta informação ainda não
foi fixada, demandando mais atenção por parte do estudante.
No segundo semestre do ano,
quando se introduz o estudo das qualidades de movimento segundo Laban (1991),
usamos objetos que possam estimular reações corporais diversas ao entrar em
contato com a pele/corpo do indivíduo. Inspirei-me para esta dinâmica no
trabalho de duas pesquisadoras de dança, Patrícia Leal (2009) e Ana Terra
(2010). A primeira, Patrícia Leal, trabalha as qualidades de movimento de
Laban, a partir da exploração dos sentidos, sobretudo do olfato e do paladar.
Ana Terra, por sua vez, desenvolve um trabalho fundamentado na exploração de
objetos como estímulos sensório-motores pautada nos estudos da artista plástica
Lygia Clark. Em ambas pesquisas fica evidente a conexão do artista com o que há
de mais íntimo em seu corpo, suas sensações.
Após anos trabalhando com os
estudantes de artes cênicas buscando essa conexão entre o corpo sentido e o
corpo em cena, optei por experimentar essa dinâmica com objetos para que
percebessem que as qualidades de movimento não é algo de fora para dentro, mas
ao contrário, de dentro para fora.
Em sala, divido os estudantes
em pequenos grupos (trios ou quartetos), e um estudante deita-se ao chão de
olhos fechados e os demais se colocam ao redor com os objetos estimuladores. O
intuito é explorar as respostas corporais do estudante por meio de pequenos
toques do objeto em diferentes superfícies do corpo. À medida em que o
estudante, ainda de olhos fechados, vai reagindo, ele vai se deslocando no
espaço até ficar na posição em pé. Neste processo de dentro para fora, busca-se
analisar como o corpo reage instintivamente ao estímulo feito.
Imagem
3: exercício de estímulos sensoriais com objetos diversos - bexiga com ar.
Campinas, setembro de 2011. Foto: Marcia Strazzacappa
O gesto surgido do estímulo é
memorizado e fixado pelo indivíduo receptor sem o objeto provocador/estimulador
para, em seguida, ser mostrado ao grande grupo. Cada gesto é analisado
identificando-se a textura, a intensidade, a cor, isto é, identificando o tempo
empregado (rápido ou lento), o desenho que traçou no espaço (expandiu ou
retraiu, com linhas retas ou curvas), a quantidade de força (muito forte e
denso ou leve), entre outros fatores.
Aqui, novamente, embora o
objetivo da observação fosse analisar as qualidades de movimento presentes no
gesto, os estudantes não perdem de vista as noções básicas de postura, lançando
mão das imagens sempre lembradas e relembradas em aula.
Nestes anos todos ministrando
esta disciplina, identifico algumas imagens que permanecem até hoje, pois
funcionam, surtem efeito, ficam marcadas nos estudantes, como uma tatuagem.
Outras que se transformaram ou foram substituídas, pois
não encontraram eco em seus interlocutores. É comum
encontrarmos pessoas que trabalharam com determinados criadores que carregam
deles algumas marcas. Essas marcas são datadas, pois se diferenciam no tempo,
em relação ao período da vida ou da pesquisa em que o criador se encontrava.
Foi assim com Dalcroze e com Decroux, presentes nos
trabalhos que me antecederam. Foi assim com Luis Otávio Burnier
do Lume e com Klauss Vianna. Será assim com todos nós.
Independente das datas, das
permanências e das transformações, concluo3 que, como docente e artista, como ser inacabado e ciente deste
inacabamento, acredito que temos que, constantemente, nos alimentar desse fluxo
contínuo entre a sala de aula e o palco, com o intuito de nos fazermos ecoar em
nosso público e em nossos estudantes para que eles, por sua vez, possam fazer
suas escolhas, descobertas e criações, cientes de que o corpo cênico está em
eterna construção.
Referências Bibliográficas
COSTAS,
Ana Maria (Ana Terra). As contribuições das
abordagens somáticas na construção de saberes sensíveis da dança: um
estudo sobre o Projeto “Por que Lygia Clark?”.(Tese
de doutorado) Faculdade de Educação, Unicamp, 2010.
FORTIN,
Sylvie. Educação somática: novo ingrediente da
formação prática em dança, Cadernos do GIPE-CIT, N. 2, Salvador, 1999.
FREIRE,
Paulo. Educação para a autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
LABAN,
Rudolf. Dança Educativa Moderna. São Paulo: Icone,
1991.
LEAL,
Patricia. Amargo Perfume: a
dança pelos sentidos. (Tese de doutorado) Instituto de Artes, Unicamp, 2009.
LIMA,
José Antonio. Educação somática: diálogos entre educação, saúde e arte no
contexto da proposta de Reorganização Postural Dinâmica (Tese de Doutorado),
Faculdade de Educação, Unicamp, 2010.
MONTOBBIO,
Enrico; LEPRI, Carlo. Quem eu seria se eu pudesse ser: a condição adulta
da pessoa com deficiência intelectual. Campinas:
Fundação Síndrome de Down, 2007.
STRAZZACAPPA, Marcia. Fondements et enseignements des
techniques corporelles des artistes de la scéne dans l'état de São Paulo
(Brésil) au XXème Siècle (Tese de Doutorado), Universidade de Paris, 2000.
ROUQUET, Odile. La tête aux pieds: les
pieds à la tête. Paris: Ministère de la culture, 1991.
1 Ao ser convidada para participar do “I Seminário
Internacional Corpo Cênico: linguagens e pedagogias”, organizado pelo Grupo
de Pesquisa Artes do Movimento, da UNIRIO, o convite me impulsionou a escrever
e refletir sobre a metodologia que desenvolvi nestes anos e que continuo a
desenvolver junto aos estudantes. Havia preparado uma comunicação oral pautada
na apresentação e explicação do trabalho técnico realizado nas disciplinas que
ministro na graduação em Artes Cênicas, “Elementos Técnicos do Corpo I e II”,
cuja descrição mais detalhada estará no capítulo do livro organizado pelo Grupo
de Pesquisa Arte do Movimento, ainda no prelo.
No entanto, ao participar da mesa composta pelas professoras Jacyan Castilho(UFBA), Bya
Braga(UFMG), (interrompida para a realização da conferência de Angel Vianna),
atenta às palavras e aos movimentos ocorridos e, sendo a última a falar, e
ainda, após a apresentação (sempre tocante) de Angel Vianna, abandonei o que
preparei. Expliquei que, se meu texto intitulava-se “dos pés à cabeça”, naquele
momento decidira falar “de dentro para fora”, referindo-me a abrir o peito,
expor o coração, falar do humano que há no professor e no artista, por mais
arriscado que isso possa ser no espaço acadêmico universitário.
2 Os registros fotográficos e videográficos aqui presentes foram realizados ao longo das
aulas, na sala ED03, prédio anexo I, da Faculdade de Educação da Unicamp, entre
2007 e 2010. Os registros foram feitos pela autora.
3 Registrei no presente artigo,
após várias tentativas anteriores, algumas das permanências de meu trabalho em
sala de aula com os estudantes de artes cênicas da Unicamp no período de 2000 a
2010. Registrei também algumas das falas que foram pronunciadas no último
encontro do seminário, dia 16 de setembro de 2011.