8. UM CORPO MUSICAL
8. A MUSICAL BODY
Enamar Ramos
Resumo
O artigo é o relato de como o interesse pelo processo de preparação corporal e vocal do ator foi responsável pela
criação de um curso de Pós-graduação Lato Sensu, Especialização em
Teatro Musicado no CLA da UNIRIO, assim transformando as aulas de Dança e
Alongamento do curso de Interpretação, do bacharelado em Artes Cênicas, num
laboratório de pesquisa. As aulas enfatizam uma proposta corporal-vocal
construída com base no conhecimento corporal e na expressividade do corpo na
dança e no canto visando uma integração entre canto/dança/atuação.
Palavras-chave | Teatro
Musical | Dança/Canto | Corpo do ator
Abstract
This article is an
account of how the interest in the process of the actor's corporal and vocal
preparation led to the creation of a Postgraduate course, lato sensu, Specialization in Musical Theatre
at the Center of Letters and Arts /UNIRIO, thus transforming dance and
body-stretching classes of the Performing Arts program into a research laboratory,
wich emphasizes a corporeal-vocal proposal built on
corporeal knowledge, and on the expressivity of the body in dance in
conjunction with vocal expression, aimed at integration
between voice/ dance / acting.
Keywords | Musical Theater | Dance/Voice | Actor's Body
Enamar Ramos é Doutora em Teatro pelo PPGAC da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ), onde atua como docente. Desenvolve pesquisa sobre a
formação de atores para o teatro musical.
Enamar Ramos holds a Ph.D. in Theatre
from the PPGAC at the Federal University of the State of Rio de Janeiro (UERJ),
where he currently teaches. She
researches the formation of actors for musical theatre.
UM CORPO MUSICAL
Enamar Ramos
Estudar o processo de construção corporal e vocal de um
ator sempre foi, para mim, um objetivo a perseguir. Desde meu ingresso como
professora de Dança e Expressão Corporal da Escola de Teatro do Centro de
Letras e Artes da UNIRIO foi o foco principal de minha pesquisa. Inicialmente,
a preocupação era com o aquecimento corporal/vocal necessário para entrar em
cena. O modo usado pelos atores de fazer um aquecimento corporal e depois o
vocal me causava grande estranheza por várias razões, principalmente porque não
podemos deixar a voz de fora do corpo, é dele que ela vem, a musculatura que
ela usa está no corpo. O tempo gasto pelos atores quando esse aquecimento é
feito separadamente me parecia bem maior do que se fizéssemos os dois ao mesmo
tempo. Em cena, não fazemos as coisas
divididas, nosso corpo e voz estão presentes do início até o fim de qualquer
espetáculo. Um aquecimento corporal/vocal que realmente preparasse os atores
para entrar em cena me parecia uma estratégia recomendável para nossos alunos.
Mas como testar essa eficiência?
Iniciei, em 2000, com a professora de Técnica de Expressão
Vocal e Fonoaudióloga especialista em Patologia da voz e professora da Escola
de Teatro, Marly Santoro, um trabalho buscando uma seleção de exercícios de
corpo e voz que proporcionassem aos alunos o aquecimento necessário para a
cena. Faziam parte do grupo alunos da Escola de Teatro que trabalhavam numa
montagem de Otelo com a direção da professora Dra. Heloisa Machado, na época
professora de Interpretação da Escola de Teatro. Nessa montagem, contávamos com
a participação de três alunos do Instituto Villa-Lobos (Escola de Musica da
UNIRIO) uma percussionista, um violonista e uma cantora. Havia cenas em que os
atores cantavam/falavam e dançavam.
Trabalhamos, a Professora Marly e eu, com várias sequências
que reunissem movimentos/exercícios de corpo e voz capazes de preparar os
atores para entrarem em cena e, a cada dia, imediatamente após esse aquecimento
pedíamos aos atores que fizessem improvisações sobre as cenas onde o
cantar/falar e dançar estivessem presentes, para que eles pudessem avaliar os
resultados de cada sequência não só para a cena, como também para aprimoramento
pessoal. Como havia várias sequências com a mesma finalidade, cada um dos
atores poderia escolher a que melhor se adaptasse não só a ele como a cena que
iria fazer.
Com o retorno satisfatório que recebemos, resolvi
prosseguir, mas dessa vez buscando uma aplicação desse trabalho nas minhas
aulas de Dança na Escola de Teatro. Buscava uma metodologia que capacitasse os
alunos a coordenar voz cantada e movimento corporal em qualquer atividade em
que estivessem envolvidos, sem prejuízo do aparelho fonador nem diminuição do
movimento corporal. Esse enfoque
pretendia atender de uma forma mais direcionada a necessidade, buscando uma
metodologia para as aulas de Dança que integrasse, co-articulasse e
complementasse os conteúdos ministrados nas disciplinas de Dança e de Voz.
Nessa busca, iniciei, dentro do Núcleo de Investigação
Corpo e Voz do Departamento de Extensão da UNIRIO, cursos de extensão a que
chamei de Movimento e Voz I, II e III com a participação dos professores Dr.
Domingos Sávio de Oliveira (professor adjunto da Escola de Teatro) e Helder
Parente (professor do Instituto Villa-Lobos) e colaboração de Leonardo Taveira,
Bacharel e Licenciado em Canto e Mestre em Música pela UNIRIO, como professor
convidado. Procurava, através de um trabalho prático integrando canto, fala e dança/movimento,
identificar as habilidades necessárias para que esses três saberes estivessem
reunidos, e como desenvolvê-las nos alunos. As ações propostas foram ligadas
sempre a uma prática do dançar/cantar/atuar, sem perder de vista a exploração
do ambiente visando a ocupação do espaço. Nos encontros com os alunos eu sempre
estava acompanhada por um dos três professores de voz/canto.
O
trabalho desenvolvido em Movimento e Voz I foi baseado no conhecimento corporal
e na expressividade do corpo na dança, a partir de uma proposta corporal/vocal.
Iniciamos com um trabalho com a duração de 1h30, em dois encontros semanais, aumentados
para 3h por considerarmos menos que isso como insuficiente. Nos primeiros 45
minutos da aula, era feito um aquecimento corporal e vocal de acordo com o tema
a ser trabalhado no dia. O restante da aula visava a adequação do movimento
corporal ao trabalho vocal proposto. O texto e o canto não eram determinados, pretendendo
uma descoberta por parte dos alunos dos momentos mais adequados para
determinada emissão da voz e como emitir sons em posições desfavoráveis; quais sons
seriam mais adequados a determinados movimentos. No terceiro mês, paralelamente
ao trabalho que estava sendo feito, introduzimos uma coreografia. Prosseguimos nessa
dinâmica durante algum tempo para depois pedirmos que os alunos criassem tendo
por base a coreografia aprendida. Dessa nova dinâmica resultou um trabalho com
base nas improvisações, levando os alunos a um resultado final em que
relacionavam de modo adequado movimento/dança e voz.
O trabalho teve
prosseguimento em Movimento e Voz II, uma vez que as alunas atrizes Carmen Zanata
Kawahara (UNIRIO) e Aline Possas Macedo e Silva
(UNICAMP) participaram dos dois cursos. Mantivemos a proposta de movimentos
motivados tanto pelo jogo corporal como pela música. As sequências de
movimentos, resultantes do estimulo musical, apareciam independentes e eram
ligados ao ritmo interno das atrizes que o criaram. Nessa fase, não havia a
preocupação de um entrosamento entre elas. As atrizes criavam individualmente e
depois era trabalhada a ligação e a sequência. Inicialmente, as vozes eram
emitidas em resposta ao movimento corporal sem nenhuma preocupação com o
sentido, usando sonoridades diferentes das habituais. Definida
a opção das atrizes por trabalhar com o cotidiano iniciaram a exploração do
ambiente ocupando o espaço de acordo com a proposta cênica – despertar/o
desenrolar do dia/o anoitecer. Cenas da vida diária foram traduzidas em gestos
expressivos, de ritmo lento e moderado. Um maior entrosamento entre as atrizes
ia acontecendo na medida em que o jogo corporal se enriquecia e amadurecia. Nos
três quadros em que se dividia o trabalho - manhã, tarde e noite – utilizaram gestos
reinventados, ligados à linguagem cotidiana e à teatral. Fizeram a escolha da
trilha sonora estabelecendo esse elo entre o imaginário e o real. As mudanças
de cena eram ditadas pelas necessidades das atrizes e acompanhadas pela musica
e a encenação decorrente de uma pesquisa corporal/vocal construída passo a
passo. O trabalho final do curso foi apresentado no IV Congresso Nacional da
ABRACE, em maio de 2006, realizado no Rio de Janeiro, na UNIRIO.
Em Movimento e Voz III tivemos dezessete inscritos, entre
alunos e profissionais de teatro. O foco foi um trabalho de aquecimento inicial
corporal e vocal seguido de um trabalho de dança mais apurado. Uma aula de
dança trabalhando ritmo, flexibilidade, clareza de movimentos e aumento da
capacidade respiratória era seguida de um trabalho de canto com músicas do
Teatro de Revista. Usamos o tango Gréve e o Soldado,
de B. A. Lorena (Revista Sem tirar
nem pôr, data é desconhecida); Tango do Reco-Reco, de João José da
Costa Junior e Cardoso de Menezes (Revista Dengo-Dengo 1913); tango Yayá, fructa de conde,
de Freire Junior e Oduvaldo Vianna (Revista Ai, Seu Mello! 1922); Ataca Filippe (Lundu do
Recreio da Cidade Nova), de João Pedro Gomes Cardim e Arthur Azevedo (Revista-de-Ano
O Bilontra 1884); Valsa da Revista-de-Ano, de Nicolino
Milano e Arthur Azevedo (Revista-de-Ano Gavroche
1899); Maxixe, de João José da
Costa Junior e Cardoso de Menezes(Revista Dengo-Dengo 1913); Efeitos do Maxixe, cançoneta teatral de Ernesto de Souza (c. 1912); Os beijos de frade, lundu de Henrique
Alves de Mesquita e E. D. Villas Boas (sec. XIX). Para o trabalho final, fiz coreografias adequadas
ao grupo e às musicas trabalhadas. A opção por canções do teatro de revista foi
determinada principalmente para evitar um terceiro complicador que seria o
idioma. Além disso, neste curso, contamos com a participação constante do
professor Leonardo Taveira, que teve seu mestrado direcionado para canto em
português e com repertório de Teatro de Revista brasileiro.
Com os resultados positivos apresentados nessas duas
experiências – preparação vocal para um grupo de atores e Cursos Movimento e
Voz – fiquei motivada a prosseguir nesta linha de trabalho. Procurando colocar em prática os resultados obtidos no que diz respeito a
coordenar o falar/cantar/ movimentar e visando ampliar ainda mais a pesquisa coordenei
a criação um Curso de Pós-graduação Lato
Sensu Especialização em Teatro Musicado, em 2008. Para isso intensifiquei e
diversifiquei a pesquisa com entrevistas com atores e diretores que atuam em
musicais, procurando saber o que era esperado desse ator. Busquei também
professores de canto, técnicas corporais e vocais que pudessem explicitar as
reais necessidades exigidas para esse corpo novo. Sei que as necessidades da
dança diferem das necessidades do canto, principalmente no que diz respeito ao
controle do tronco/respiração. Era preciso uma harmonização entre essas
necessidades. Procurei também identificar na literatura existente referências a
algum tipo de trabalho que articulasse movimento-voz falada e cantada, dentro
ou fora de uma montagem teatral. Entrei em
contato com a professora Mirna Rubim, professora adjunta do Instituto Villa-Lobos
e responsável pelas disciplinas de Canto na UNIRIO, a fim de convidá-la para
ser a responsável pela parte de Voz.
Esse curso, iniciado em abril
de 2009, com o objetivo desenvolver um trabalho
conjunto reunindo professores de corpo, voz e interpretação tinha como público
alvo profissionais de Artes Cênicas, de Dança e Canto e reunia o
Departamento de Interpretação da Escola de Teatro e o Departamento de Canto e Instrumentos
de Sopro do Instituto Villa-Lobos, ambos do Centro de Letras e Artes da UNIRIO. O objetivo principal era além
daquele da pesquisa - integrar, co-articular e complementar os conteúdos trabalhados
nos três Cursos de Graduação – Teatro, Canto e Dança (profissionais alvos da
Especialização). Tratava-se de proporcionar uma formação de profissional
especialista capaz de cantar, dançar e interpretar, habilidades exigidas pelas
diferentes formas do teatro musicado; ampliar os conhecimentos históricos e
conceituais sobre as diferentes modalidades do gênero; formar um profissional
capaz de atuar em musicais ou em qualquer outro tipo de encenação, como no
teatro físico, por exemplo, onde essas habilidades são desejadas. Nosso
objetivo era formar pessoas conscientes de seu corpo, respaldadas em técnicas
comprovadas de trabalho de corpo, voz e respiração, capazes de identificar
entre todas essas técnicas quais as que mais se adequam a sua pessoa/corpo e ao
seu momento.
É importante lembrar que o
trabalho corporal no teatro que vem se firmando como importante para o ator nos
últimos quarenta anos começou com um musical.
A ópera dos três vinténs, de
Bertolt Brecht, dirigida por José Renato em 1967, com o trabalho corporal realizado por Klauss Vianna e Angel Vianna, deu
início a uma série de experimentos que resultaram numa linha pedagógica
empregada na formação de atores e bailarinos.
Adicionar a este aprimoramento corporal o aprimoramento vocal, aliado
aos conteúdos das aulas de Interpretação Teatral, acredito ser um complemento
para todos os que de interessam por essa modalidade de teatro.
Para ingresso no curso há uma
exigência de graduação não é necessariamente em uma das três áreas trabalhadas.
É exigido uma experiência profissional comprovada em uma delas. A opção por uma
abordagem interdisciplinar dos conteúdos foi escolhida, apesar da necessidade
de aulas aparentemente separadas de canto, dança e atuação. Precisávamos
trabalhar essas técnicas uma vez que os alunos tinham formações diferentes. Era
feito um trabalho em separado para depois fazer a união na disciplina Técnicas
Integradas. Nas aulas, entretanto, os professores se reportavam às outras, buscando
mostrar como fazer essa correlação, que pontos eram comuns às técnicas que
estavam sendo estudadas buscando uma formação de excelência para os
profissionais.
Com uma estrutura curricular
composta por 15 disciplinas que enfatizam aspectos práticos e teóricos básicos
de cada área específica, a proposta era dar uma visão crítica do assunto. O
curso foi organizado em três períodos de 4 meses cada um, perfazendo um total
de 12 meses com as seguintes disciplinas: Alongamento&Flexibilidade&Respiração,
Dança I e II, Canto I, II e III, Atuação I – Teatro de Revista; Atuação II –
Musical Americano; Atuação III – Tradição e renovação do teatro musicado
(Teatro contemporâneo); Anatomia e Fisiologia do corpo e da voz; Técnicas integradas
I e II; Repertório; Leitura musical dinâmica; Cuidados pessoais. Nos vinte e cinco alunos aprovados para a
primeira turma encontramos diversas formações, como graduações em Publicidade e
Propaganda, Artes Cênicas, Bacharelado em Canto e Música, Licenciatura em Teatro
e Música, Comunicação Social, Produção Cultural, Desenho Industrial e
Fisioterapia. Todos, entretanto, estavam ligados ao Teatro, de um modo geral,
ou especificamente ao Teatro Musical. Essa ligação foi não só mantida como ampliada
durante e após o curso. Cinco atrizes/cantoras que se conheceram no Curso –
Aline Carrocino Nogueira, Ana Luisa Ulsig Leite, Aurora Martins Dias Santa Rosa, Marcela Dias e
Tatiana Sobral criaram, ainda durante o Curso, um grupo - As sadomusicistas - que vem se
apresentando no circuito comercial e nos festivais de teatro com sucesso.
Isoladamente, dão aulas em cursos livres na CAL – Casa das Artes de
Laranjeiras, no Rio de Janeiro (Mergulho
no Musical), em outras escolas e atuam em musicais. Participam também como atrizes (Aline Carrocino,
Ana Luisa Leite, Aurora Santa Rosa) e
preparadoras vocais (Aurora Santa Rosa) em outras produções. Outro aluno, Edio Nunes, que já era ligado ao Teatro Musical,
intensificou sua atuação passando a dar cursos e criando o Ciclo de Leituras
dos Musicais Brasileiros no SESC-Casa da Gávea, Rio de Janeiro, dirigindo
espetáculos, além de atuar como ator e coreógrafo. Maira Lana, atualmente aluna
regularmente matriculada no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da
UNIRIO, e Therezinha Dias participam como cantoras em espetáculos no Rio de
Janeiro.
Levei, para esse curso de Pós-graduação, minha pesquisa
sobre a preparação do ator que canta, dança e
atua, iniciada 2000, com a seleção de exercícios de corpo e voz conjugados para
aquecimento corporal /vocal. Acrescentei
os resultados dos cursos de extensão Movimento
e Voz, onde foi desenvolvido um trabalho de adequação da respiração com o
movimento - duração, ritmo e qualidade da respiração, de acordo com o movimento
realizado. Dentro do Curso, a pesquisa se fez presente em duas disciplinas: Alongamento&Flexibilidade&Respiração e Técnicas Integradas I e II.
A disciplina Alongamento, alocada
no primeiro período, tem como objetivo preparar os alunos para o trabalho que
será feito nas Técnicas Integradas – cantar e dançar/movimentar. Os alunos
entraram em contato com os trabalhos de
conscientização corporal, técnicas de respiração e como coordenar
movimento/respiração. Foram também desenvolvidos exercícios de fortalecimento
dos músculos abdominais, enfatizando os transversos e oblíquos do abdômen que
parecem ser os responsáveis mais diretos pelo que queremos desenvolver, uma
flexibilidade de corpo e voz e uso da respiração coordenada ao movimento. Na
disciplina Técnicas Integradas, onde dois professores – um de dança e um de
canto – estavam lado a lado a cada dia, o trabalho de integração dessas
habilidades era testado.
Em Técnicas
integradas I foi iniciado o trabalho unindo o cantar e o dançar/movimentar-se.
Nas primeiras aulas, a Profa. Mirna e eu fazíamos um trabalho conjunto, em que
o movimento era associado à voz, mas não necessariamente a canto. Trabalhávamos
com sons, palavras, frases e movimento para só depois colocarmos alguma
melodia. No segundo mês de trabalho, a turma foi dividida em três grupos e cada
grupo escolheu para trabalhar uma canção de um musical conhecido. Deveriam
fazer uma coreografia para aquela música. Como a parte do canto veio pronta,
não tinham como mexer, os alunos precisavam descobrir uma movimentação que lhes
permitisse cantar enquanto dançavam. Nessa etapa, cada um pode detectar suas
próprias facilidades e dificuldades, procurando fazer uso do que foi trabalhado
nas aulas de Dança e de Canto, que os auxiliasse na tarefa apresentada. Os
grupos apresentaram diferentes propostas. Uns optaram
por ver o musical e adaptar a coreografia usando sugestões dos integrantes do
grupo, foi o caso do grupo que escolheu trabalhar sobre uma das partes do
musical Chicago, de John Kander, Fred Ebb e Bob Fosse. Outros fizeram a escolha por uma
coreografia totalmente original (Wild Party, de Andrew Lippa) e
outros por uma movimentação cênica não dançada (My fair lady, de Fedrick Loewe). Durante o processo, várias seqüências coreográficas
foram sendo propostas e selecionadas até encontrarem a forma final. Feita a
coreografia, veio a necessidade de sobrepor o canto. Esse trabalho foi dando a
cada grupo em geral e a cada participante em particular uma visão das
dificuldades na composição da coreografia não só no que diz respeito a unir canto,
dança e interpretação como também da disponibilidade corporal de cada um, o que
ainda deveria ser trabalhado e como adequar as seqüências dançadas ao material
cantado. Esta descoberta precisava ser feita ainda durante o curso para que
pudesse ser trabalhada adiante.
Com o desenvolvimento do curso, foi percebida a necessidade se dar um
enfoque maior ao trabalho de canto em conjunto.
O professor Josimar Carneiro deu aos alunos um
pout-pourri
de músicas de carnaval que foi inicialmente trabalhado na aula de Canto III,
com a professora Marina Considera (distribuição das vozes) e depois levada para
a aula de Técnicas integradas II. Paralelamente, a professora Sueli Guerra já
trabalhava uma coreografia para o pout-pourri, nesta
disciplina. Quando foram considerados aptos, pelos
professores, foi feita a união dos dois fazeres, cantar e dançar, na disciplina
Técnicas Integradas II. O processo criativo de cada um conduziu à descoberta de
um modo de fazer essa integração dos conteúdos sem perder a qualidade em nenhum
dos dois. Em Técnica Integrada I, como a coreografia era feita pelos próprios
alunos, muita coisa era eliminada pela dificuldade encontrada. Já em Técnicas
Integradas II, coreografia e música estavam prontas e cada um tinha que
descobrir como resolver os problemas que aparecessem, com seus próprios
recursos corporais.
Para encerramento o curso foi
proposta a montagem de O grande Circo
Místico de Chico Buarque e Edu Lobo, inspirado num poema de Jorge de Lima.
A professora de Atuação II, Claudia Ventura, criou um roteiro inicial que foi
levado aos alunos para ser finalizado. Nesta etapa do processo, pela grande
participação de cada um dos alunos, criou-se uma grande conexão entre todos. Um trânsito entre ajudar e ser ajudado durante
a montagem promoveu uma conectividade para a
criação da cena fazendo com que descobrissem jeitos de se relacionar não só com
o canto e a dança, mas com o outro. Surgiram os lideres eventuais, que já
haviam se manifestado nos trabalhos de Técnicas Integradas, mas todas as
decisões eram tomadas em conjunto. Além de surgirem movimentos novos,
apareceram também cenas não planejadas. A criação fez com que todos estivessem
num estado de prontidão/atenção/alerta corporal onde escuta e disposição para a
ação e para o outro eram fundamentais. Isso criou um espaço para a produção do
conhecimento esperado.
O Curso foi escolhido como
laboratório de pesquisa para colocar em prática esse trabalho corporal/vocal
que já vinha sendo trabalhado nas aulas de Dança da Escola de Teatro de um modo
mais objetivo – aquele grupo realmente tinha como proposta de vida cantar,
dançar e atuar.
Vários estudiosos embasaram
essa pesquisa. Além dos diretamente ligados ao teatro, como, Dellsarte, Meierhold, Brecht, Grotóvski, Peter Brook, Barba, acrescentamos os ligados à
educação somática Moshe Feldenkrais,
Gerda Alexander, Godelieve Denys-Struyf,
Philippe Campignion, Joseph Pilates
e ainda autores que se dedicaram às técnicas de canto e de respiração como
Glorinha Beuttenmüller, Stephen Chun-Tao-Cheng o que possibilitou fazer uma
ponte entre as formas ou técnicas de respiração utilizadas para as três ações
cantar/movimentar/falar e, no teatro, para a atuação. Eles deram subsídios para
elaborar o trabalho que estou desenvolvendo no momento. Cada um com sua
contribuição me fez relacionar, interligar, refletir, experimentar e aplicar os
conteúdos percebidos nas diversas situações pedagógicas
em que me encontrava e eleger, para cada problema/situação aquele que melhor se
adapte. Vale
destacar:
1 - Feldenkrais,
um físico apaixonado pelos movimentos do corpo, que nos apresenta um trabalho
para melhorar a postura, a visão, a imaginação, a auto-percepção procurando fazer
com que cada um entenda o que está fazendo no momento em que o movimento é
feito. Mostra-nos como a má organização dos movimentos pode afetar todo o
trabalho corporal e, consequentemente, toda a atitude em cena. A importância da
autoimagem, da imagem muscular e da respiração em tudo que fazemos e a
necessidade da sua correção sistemática para nossa vida. Deixa claro que fazer
não significa conhecer, muitas das nossas ações são atos automatizados e, se
nos for pedido para descrever o que fazemos não conseguimos. Essa consciência não é essencial para a vida,
mas é um estágio da evolução que só acontece no homem. Ao se referir à
respiração aponta para a dependência entre respiração e postura, uma boa
respiração dependendo de uma boa postura.
2- Laban, no livro Dominio do movimento (1978) nos mostra que movimentar
é uma necessidade do homem e que há muitos valores intangíveis que inspiram
movimentos e que os movimentos do corpo, inclusive os das pregas vocais, são
indispensáveis à ação no palco. Atenta para a correlação que existe entre
motivação interna para o movimento e as funções do corpo. Alerta para a
necessidade de uma economia de esforço, característica da habilidade, e para os
fatores do movimento – peso, espaço, tempo e fluência. Exemplifica esse
controle do esforço com a mímica. “A verdadeira essência da mímica consiste na
habilidade da pessoa alterar a qualidade do esforço” (Laban, 1978:35). Duas
medidas são importantes para a economia do esforço humano – a seleção e a
instrução. A seleção constitui colocar o homem certo no trabalho certo e a
instrução envolve ensinar as pessoas como usar sua engrenagem corporal no
caminho certo. Sem o conhecimento da natureza do desdobrar do esforço humano,
oportunidades são frequentemente deixadas de lado, desprezadas, para se
empregar outras que trazem desvantagens.
3- Gerda
Alexander é criadora da Eutonia, que visa estabelecer
uma tensão harmoniosa e equilibrada do corpo. Para corrigir um movimento ou
atitude, faz com que a pessoa perceba o que está acontecendo com seu corpo, o conheça
e desse modo seja capaz de se adaptar aos atos da vida de um modo econômico e
prazeroso. Preconiza o uso da sensação pelo contato, para esse conhecimento.
Não dá nenhum exercício nem um modelo ideal ao qual devemos nos adequar e sim o
conhecimento das possibilidades corporais para que possa usá-las bem – aceitar
que se vive uma experiência corporal. Atenta para a importância do tônus que,
segundo ela, existe em todo organismo vivo e aumenta ou diminui de acordo com a
atividade física e é influenciado pelo estado emocional, pelo esgotamento
físico e psíquico e pela conduta das outras pessoas. Uma pessoa tranqüila, diz Gerda Alexander, pode influenciar de forma positiva todo um
grupo, enquanto uma pessoa tensa passará essa tensão para todos. Daí a
necessidade de cada um permanecer “dono de seu tonus”,
para que possa resistir às influencias desarmônicas ao próprio equilíbrio. Propõe
uma interação físico-psiquica, e considera o tônus a
matriz geradora desse equilíbrio. A flexibilidade do tônus é o tema essencial
da Eutonia.
4- Mathias Alexander é o
criador da Técnica de Alexander, usada hoje em dia por muitos cantores e
atores. A Técnica procura criar uma relação
dinâmica e equilibrada entre cabeça, pescoço e costas e, como resultado, o
corpo como um todo.
5- Angel Vianna – cujo
trabalho de Conscientização do Movimento e Jogos Corporais é considerado um
trabalho de excelência para o ator nos dá indicações de como se pode conquistar
um corpo presente, fazendo dele um real laboratório de pesquisa, onde toda a
observação se faz nele e através dele. Tendo como pilares seus princípios básicos
de respeito à individualidade do ser humano, consciência de que somos um todo,
a importância do que Angel considera de o “toque ótimo”, onde podemos ter a
experiência do sentir através da pele e dos dedos, nem muito leve que não leve
a percepção nem muito pesado que
bloqueie a zona pesquisada, a tridimensionalidade do corpo e a necessidade de
um conhecimento do corpo através dos sentidos, foi e continua sendo minha
mestra maior durante todo o processo da pesquisa.
6- Godelieve
Denys-Struyf com seu estudo de cadeias musculares, o Método
GDS e mais especificamente sobre respiração de Philippe Campignion,
muito nos ajuda na busca de um trabalho
muscular que capaz de sustentar o abdômen e ao mesmo tempo dar condições para uma
respiração considerada apropriada para o canto. Essas leituras nos mostraram
que a ligações das bainhas de contenção
que envolve as inserções terminais do músculo do diafragma, (aponrevroses - formada por um tipo de tecido conjuntivo
denso com feixes entrelaçados), principal músculo responsável pela respiração,
está em perfeita continuidade com a aponevrose dos
transverso do abdômen, do quadrado lombar até a crista ilíaca e dos psoas.Isso
nos dá a estrutura muscular envolvida no ato de respirar fazendo com que
possamos pensar no uso dessa musculatura para sustentação do quadril para a
dança/movimento e para a voz. Além disso, o diafragma é uma estrutura central
que se liga com as estruturas vizinhas. Divide as duas cavidades – abdominal e
torácica – e todos os órgãos situados abaixo dele estão suspensos nele, depende
da estática corporal e age sobre ela. O transverso do abdômen tem contração
combinada a do diafragma e, quando acionado, comprime a cavidade abdominal e
faz repartir a pressão por ela. Tem o efeito de empurrar a coluna para trás e é
compensado pelos psoas, que também é ligado ao transverso do abdômen. Uma boa respiração vai depender de toda essa
estrutura, de um bom equilíbrio corporal. Campignion
ainda nos mostra que essa respiração está sempre submetida à tensão das cadeias musculares
anteriores e posteriores (cadeias descritas por Godeleive
e denominadas como PA e AP). A cadeia PA (postero-anterior)
age essencialmente na parte superior da coluna cervical e dorsal reduzindo,
durante a inspiração, a lordose cervical, levantando a alavanca proclive superior (parte da coluna imediatamente abaixo de
C7) enrijecendo essa retificação da coluna. Enquanto isso, os músculos da
cadeia AP (Antero- posterior) corrigem essa rigidez, ocasionada pela
retificação. A alternância entre PA e AP faz com que a coluna apresente curvas
corretamente ritmadas, mas pouco acentuadas. Esse posicionamento do pescoço
oferece pontos de sustentação altos (pontos em que a musculatura é fixada)
ideal para as apronevroses profundas e para a fixação
dos músculos escalenos que ligam as duas primeiras costelas ao pescoço. Esse
posicionamento diminui a lordose cervical, direciona o topo da cabeça para o
zênite (o prumo, um ponto perpendicular em relação ao observador) fazendo a
coluna crescer. A ação dos longos do pescoço e pré-vertebrais recuam a coluna
cervical, antefletem ligeiramente a cabeça. Isso vai
tencionar os elementos musculares situados atrás da coluna.
7- Stephen Chun-Tao- Cheng – em O tao da voz (1999) fomos apresentadas a um trabalho que
reúne técnicas vocais ocidentais e princípios da antiga
filosofia chinesa, além de práticas de respiração. Inclui exercícios corporais,
de respiração e de voz aplicando movimentos circulares contínuos. Tem como
objetivo principal ajudar a aperfeiçoar a voz e aprimorar a arte de cantar e
falar através de um método de treinamento, a partir dessas duas técnicas. Usa o
princípio da filosofia taoista de que os opostos existem em tudo e em todos os
lugares. Para ele, o diafragma sintetiza dois conceitos taoistas muito importantes
– movimento circular constante e a interação das forças opostas. Localiza o
centro do espírito (um ponto atrás das sobrancelhas) e o centro da energia
vital localizado no abdômen inferior (região onde se localizam os músculos
transverso e oblíquo do abdômen). Esses são os pontos por onde deve passar a
respiração circular. Com base nisso sugere vários exercícios de corpo e voz.
8 - Glorinha Beuttenmüller - presente desde o primeiro trabalho, uma vez
que foi professora da Marly Santoro e do Domingos Sávio de Oliveira. Com seu
Método Espaço Direcional - Beuttenmüller nos mostra
uma nova relação com o espaço cênico - voz tem direção e deve envolver o
espectador – para uma boa compreensão é preciso respeitar o vocábulo de acordo
com sua forma e da percepção de que cada um tem de si.
9 - Joseph Pilates
– cujo conhecimento de biomecânica e sua natureza criativa permitiu que ele
criasse ferramentas que ajudassem a fortalecer doentes durante a primeira
guerra mundial. No centro da técnica está o enfoque na disciplina e na prática.
Enfatiza a mobilidade da coluna, a força no que chama de powerhouse (pela localização, é o
lugar onde se encontram os músculos transversos e oblíquos do abdômen).
Estimula a consciência corporal e possibilita um controle maior sobre o corpo.
Não visa a exaustão porque, para ele, leva ao sacrifício da forma e do
alinhamento. Visa um corpo equilibrado, flexível, ágil e saudável.
A cada autor lido fomos
agregando conhecimento, relacionando, completando, acrescentando saberes. Uma
coisa é comum a todos eles – enfatizam que é preciso amar o corpo e a melhor
maneira de tratá-lo é com atenção, delicadeza e cuidado, aprendendo a amar
também o que está dentro dele – nós mesmos.
Além das aulas de Alongamento&Flexibilidade&Respiração do Curso de Pós-graduação
em Teatro Musicado trabalhávamos, paralelamente na Graduação com as turmas de
Dança I e II e Alongamento (disciplina optativa), nosso público alvo inicial na
pesquisa. Nessas turmas, de comum acordo com os alunos, colocávamos em prática o que estava sendo trabalhado na Especialização. Fizemos
uso de vários tipos de movimentação (ginástica comum, movimentos improvisados,
quedas e rolamentos e ainda exercícios de balé clássico) sempre coordenados com
movimentos respiratórios, tendo por base técnicas usadas para o ensino de canto
e respaldadas pelas técnicas de conhecimento corporal. Verificamos que, independentemente do tipo de
movimentação que estiver sendo executada, o mais importante é criar as
condições para que as adaptações pessoais das técnicas de voz e movimento
possam acontecer.
Alguns pontos, entretanto,
precisavam não ser esquecidos no momento da
escolha do trabalho que iríamos fazer. Para dançar, o ator/bailarino precisa de
um abdômen firme (contração geralmente obtida por contração total do abdômen) e
o ator/cantor precisa de ar e ressonância na caixa torácica o que com a
contração total exigida na dança não acontece (as costelas não dilatam para o
ar entrar devido à contração a que estão submetidas). Além disso, essa
contração total do abdômen faz com que a respiração se coloque na região do esterno,
podendo causar tensão que prejudica a
emissão de som. Fomos experimentando, em nosso próprio corpo, a contração
isolada dos músculos do abdômen e como conseguir essa sustentação sem prejuízo
da respiração. Chegamos a uma hipótese, ainda não comprovada, por não dispormos
de uma literatura suficiente sobre o assunto, mas que parece funcionar na prática.
Com o trabalho de contração dos músculos transverso, obliquo e reto abdominal a
partir do umbigo em direção ao púbis podemos controlar a estabilidade do
quadril sem prejudicar a respiração intercostal e assim manter o apoio
respiratório necessário à voz cantada. No momento, estamos buscando comprovação
para essa hipótese e desenvolvendo um trabalho específico de fortalecimento
desses músculos.
Agregamos conhecimentos mais
específicos sobre anatomia e fisiologia do aparelho fonador e técnicas ligadas
ao canto lírico e ao uso da voz falada no canto, muito usada hoje por vários
atores/cantores. Somando conhecimentos fomos agregando as técnicas corporais,
vocais e exercícios de respiração e relaxamento nas aulas de Dança e
Alongamento sempre objetivando essa coordenação – voz cantada e movimento
corporal, sem prejuízo do aparelho fonador nem diminuição do movimento
corporal.
As linguagens da dança e do
teatro cada vez mais se aproximam, provocando uma transformação no que cada uma
delas conhece. Nessa aproximação, a assimilação de técnicas de outras áreas é
inevitável, além da necessidade de novas construções e de um corpo preparado
para qualquer exigência. Se considerarmos, por exemplo, a dança-teatro e o
teatro físico, duas modalidades facilmente confundidas, veremos que ambas
divergem no tipo de ator ideal, mas concordam na necessidade de um corpo preparado,
com uma prontidão para ação, de um corpo portador de uma mensagem. O que nos
parece atual e necessário é um corpo liberto, aberto para todas as
possibilidades, um corpo cênico pronto para qualquer exigência. Um corpo aberto,
mas consciente, com conhecimento tanto de si como das técnicas disponíveis para
ter capacidade de escolha, para saber que caminho seguir em cada situação que
se apresente, não um corpo repetitivo, sem escolhas.
Esse corpo não nasce pronto e
nem se forma apenas com os treinamentos isolados das diferentes áreas. A
integração desses treinamentos necessita ser trabalhada. Apenas poucos
indivíduos conseguem fazer essa integração sem ajuda de um treinamento prévio e
o teatro não é feito de exceções. Precisamos que todos os atores estejam
preparados para as novas exigências do teatro contemporâneo. É seguindo essa
linha de pensamento que direcionamos o trabalho. A dança, como Lehmann aponta, é onde “as novas imagens corporais podem
ser consideradas de modo mais claro. A dança é radicalmente caracterizada por
aquilo que se aplica ao teatro pós-dramático em geral: ela não formula sentido,
mas articula energia; não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo nela é
gesto” (2007:339). Sendo assim, uma abordagem para o corpo do ator via a disciplina
Dança nos parece apropriada.
No que diz respeito
especificamente a voz/ fala, Sara Lopes (2004.42) assim se pronuncia no ensaio
publicado em O Percevejo – O Teatro de revista no Brasil: “Há uma vocalidade
situada entre a fala e o canto que é uma vocação oral brasileira, estetizando
uma simbiose que se tornaria marca definitiva da canção popular e que é
determinante na expressão vocal do texto revisteiro” (2004:48). Segundo Lopes é
a “fala” do povo, mais que a língua, que caracteriza a maneira de pensar a
condição de expressão. A voz/fala do brasileiro, segundo a autora, ressoa numa
região cômoda fazendo com que o esforço requerido pelos órgãos fonadores e pela
respiração sejam pequenos. A região
central da voz, com seus tons médios, é o meio sonoro mais apropriado para o
exercício da fala brasileira, pois contribui para a inteligibilidade do texto e
deve ser o ponto de partida para a escolha da tonalidade da canção. No que diz
respeito à articulação aponta ser mais dirigida pelo movimento rítmico do que
pelo esforço muscular, trazendo assim as notas cantadas como parte da entonação
e a melodia como sua extensão/expansão. Sobre a importância do corpo e da voz
nesse tipo de espetáculo, Lopes coloca que os dois - voz e corpo - eram os
responsáveis por revelar o que havia sido escrito “estabelecendo um código de
identificação, de reconhecimento, de cumplicidade com o espectador, uma vez que
remetiam, sempre, ao repertório e memória cultural do público” (2004:5). E Joseph
Pilates propõe o trabalho dos músculos abdominais
acionando o transverso e o obliquo do abdômen, que nos parece ser o mais
apropriado para criar o corpo de ator/bailarino solicitado pelo teatro de hoje.
Direcionei
o trabalho buscando melhorar a postura corporal, ao mesmo tempo em que era
trabalhada a musculatura abdominal envolvida no processo - sem esquecer os
conselhos de Glorinha Beuttenmüller – revalorizando
o universo vocal, a cultura vocal e oral e a fala no teatro com o seu “abraço
sonoro”.
Especificamente no trabalho realizado com a turma
de alunos da disciplina de Dança II, procuramos uma harmonização entre técnicas
vocais e corporais estabelecendo algumas práticas capazes de auxiliar nesse
processo de integração/articulação desses saberes. Tivemos nesse processo a
participação de Doriana Mendes, Mestre em Música pela UNIRIO, que fez estágio de
docência na disciplina. O roteiro/plano descrito a seguir foi nossa prática da
disciplina Dança II, que resultou num trabalho final onde os alunos buscaram
essa integração:
1 – exercícios para desenvolver
a capacidade de isolar o movimento em uma parte específica do corpo, seguidos
de movimentos com o comprometimento do corpo como um todo sempre sincronizado
com uma respiração intercostal. Abrir os espaços internos nos alongamentos,
sentindo o ar circular principalmente nas costelas flutuantes. Exercícios de
abaulamento das costas sem báscula do quadril. Combinação desses exercícios com
um trabalho de estimulação da sensibilidade da coluna vertebral estabelecendo
conexões entre o centro do corpo e suas extremidades;
2 – exercícios para abrir a
laringe através da respiração, soltura da articulação ATM (temporo-mandibular)
e de todas as articulações do corpo; trabalho de expiração com diferentes
acentos (fora/dentro) e sincronia entre movimento e respiração (cada respiração
– inspiração ou expiração dura exatamente o mesmo tempo que o movimento
corporal que a gerou);
3 – exercícios para relaxamento
da língua;
4 – explorações das diferentes
intensidades e velocidades com as quais podemos realizar um movimento e a
relação com sua correspondência vocal – igual ou contrária, sem esquecer o
sincronismo com a respiração;
5 – pequenas sequências de
movimentos trabalhando questões relativas ao equilíbrio, articulação e clareza
do movimento sempre acrescentando uma parte vocal falada ou cantada;
6- trabalho de improvisação
enfocando musicalidade do corpo e expressão dessa musicalidade em movimento
relacionando sons, palavras, frases, poemas – o movimento gerando o som/palavra
e o som/palavra gerando o movimento.
Algumas regras foram observadas
para que nosso ponto de partida – gestualidade sensorial, corpo inteligente e
pensar com o corpo – não fossem esquecidas/abandonadas. Necessitávamos nos
preocupar para que houvesse uma conscientização das partes do corpo envolvidas
e da sonorização e movimentação realizada, mas não automação dos movimentos.
Por isso, nunca repetíamos os exercícios muitas vezes seguidas e da mesma
forma. Cada repetição apresentava sempre um caráter inovador. Foi importante
também incluir no trabalho a preocupação com o espaço cênico em que vai
acontecer – a acústica da sala, espaços utilizados – pessoal/parcial/global
sempre procurando adequar o tempo e a necessidade do ar inspirado e expirado a
cada movimento. Usamos caminhos conhecidos pelos alunos ao propor os exercícios
de controle técnico, de ativação do sistema sensorial (para uma maior conexão
corporal e um mapa corporal mais consistente e presente) e de criação no
intuito de conjugar as duas linguagens – música (voz) e movimento (dança).
Nunca deixamos de lado o histórico dos alunos, que tipo de trabalho eles estão
acostumados a fazer e partir daí para realizar essa adequação, por
considerarmos importante algum domínio do movimento corporal e vocal anterior a
essa junção. Sendo assim, por partirmos de algo conhecido para depois
modificá-lo, o resultado nos pareceu ser alcançado mais rápida e
eficientemente.
Os resultados do trabalho de
integração das linguagens explorando as possibilidades de interação da dança e
do som vocal, preparando os alunos para a eventual construção de um personagem
que utilize os dois saberes, vem de um processo individual, cada um vivencia o
seu. Como nos fala Damásio (2000:29) “a consciência é um fenômeno inteiramente
privado, de primeira pessoa, que ocorre como parte do processo privado, de
primeira pessoa que denominamos mente. A consciência e a mente, porém,
vinculam-se estreitamente a comportamentos externos que podem ser observados
por terceiras pessoas”. O resultado desse processo particular é percebido na
performance do ator/bailarino/cantor.
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