9. DECUPAGEM E DECOMPOSIÇÃO NA CRIAÇÃO DE UM CORPO CÊNICO INSÓLITO: ALGUNS ASPECTOS DA PESQUISA PRÁTICA DE ÉTIENNE DECROUX

9. DECOUPAGE AND DECOMPOSITION IN THE CREATION OF AN UNUSUAL SCENIC BODY: SOME ASPECTS OF THE RESEARCH PRACTICE OF ÉTIENNE DECROUX

Bya Braga

Resumo              

O texto apresenta alguns aspectos da pesquisa prática de Étienne Decroux enfatizando a questão da decupagem do movimento cênico no caminho de sua investigação em busca de um corpo cênico. Esta decupagem integra o trabalho pedagógico e de criação do artista e pode sinalizar um caminho diferenciado para o processo criativo contemporâneo.

Palavras-chave | Corpo cênico | Étienne Decroux | Composição

Abstract

This essay presents some aspects of the research practice of Étienne Decroux emphasizing the question of decoupage body movement as a way to create the scenic body. This decoupage integrates the pedagogical work and the creative work of the artist and may signal a different path for contemporary creative processes.

Keywords | Scenic body | Étienne Decroux | Composition

Bya Braga é artista cênica, Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO, professora e pesquisadora de Teatro (Atuação/Improvisação) no Curso de Teatro e Programa de Pós-Graduação em Artes, Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.

Bya Braga is a scenic artist with a Ph.D. in Scenic Artes (UNIRIO), Professor and Researcher in Theatre (Acting/Improvisation) in the Graduate Program in Theatre Arts,  Escola de Belas Artes of the Federal University of Minas Gerais (UFMG).


DECUPAGEM E DECOMPOSIÇÃO NA CRIAÇÃO DE UM CORPO CÊNICO INSÓLITO: ALGUNS ASPECTOS DA PESQUISA PRÁTICA DE ÉTIENNE DECROUX

Bya Braga

Étienne Decroux, que neste ano de 2011 é também lembrado pelos 20 anos de seu falecimento, nasceu em 1898 e percorreu quase todo o século XX com a postura de um artista pesquisador prático obstinado, sempre disposto a rever o que fazia no campo das artes cênicas. Falar dele é destacar o trabalho do pesquisador-artista, que denomino, em seu caso, da atividade do “pesquisador-artesão”. Sua ação no campo do teatro revelou a busca da superação da própria arte cênica, em modos de experimentação distinta, fazendo isso por meio do ofício de ator que possuía, da investigação artística realizada em si mesmo, por meio de sua experiência corporal, balizando o que tem sido denominado nas últimas três décadas de “Teatro Físico” (Physical Theatre) (Keefe; Murray: 2007), expressão utilizada para categorizar a ênfase de trabalhos teatrais na performatividade do movimento e da ação de ator como eixo no processo criativo.

O Decroux pesquisador-artesão nos transmite, antes de tudo, a noção de compromisso e atenção que um artista cênico deve ter para consigo mesmo. Seu trabalho sinaliza uma orientação para o ator nos riscos que podem existir na coincidência entre o material humano e a arte que é proposta por meio dele, que se relaciona com ele como material e sustentação do processo criador. Sendo assim, Decroux chama nossa atenção para a necessidade de experimentarmos algo diferenciado do que habitualmente fazemos como seres viventes, algo distinto de como agimos no cotidiano e, assim, podermos vivenciar um caminho artístico diferenciado desta expressividade cotidiana, em modo corporal bastante sistematizado. Esta organização artística proposta por ele é revelada na sua Mímica Corporal Dramática, ação cênica fruto de árdua pesquisa que abarca o modo de preparação técnica de ator, seu processo criativo e, também, sua relação com o mundo sob uma visão que congrega matrizes do socialismo, do anarquismo e, até mesmo, de mística bastante particular. A Mímica Corporal Dramática é, portanto, um percurso distinto de trabalho corporal de ator dentro do campo do Teatro que convoca o artista como um “militante do movimento em um mundo que está sentado” (Soum: 2002).

Decroux defendeu o teatro como arte de ator (Decroux, 1994: p. 40-42) e o ator como artista corporal, ou seja, o teatro como arte do corpo. Em sua proposta de investigação teatral, realizada ao longo de aproximadamente cinquenta décadas de trabalho ininterrupto, Decroux não privilegiou recursos de modificação da expressividade humana por meio do uso de objetos em formas geométricas, não antropomórficas, que mascarasse seu corpo, ou mesmo o uso de outro tipo de recurso externo a este como ponto de partida para a metamorfose artística. O que ele fez e que poderia ser considerado procedimento nesta direção, foi usar somente um tecido para cobrir seu rosto, uma espécie de véu, realizando esta experiência ao longo de vários anos e registrando-a em fotografia profissional, pela primeira vez, em 1947 (Benhaïm, 2003: p. 261. Mas, isso possuía o sentido de ressaltar o trabalho do tronco no seu corpo de ator (Decroux, 1994: p. 206-207; 212-213), atitude coerente com outras ações de investigação que fazia e que revelavam preocupação quanto à pesquisa da expressividade humana em cada parte corporal.

Decroux compreendia que no rosto poderia haver uma “obscenidade” expressiva em virtude de seu excesso de movimento desorganizado (Decroux, 2003: p. 59). Ele dizia: “O rosto não possui condições de trabalho tão severas. [...] O rosto não imita senão uma parte do corpo que é o rosto” (Decroux, 1994: p. 93; 117, minha tradução).

A prática de cobrir o rosto com um véu possui correspondências com o trabalho vivido por Decroux na Escola de Jacques Copeau, o Vieux-Colombier, com a chamada “máscara nobre”, objeto resultante da experiência deste artista também com um tecido usado para cobrir o rosto. O uso da “máscara nobre” pelos estudantes de teatro nesta escola visava sustentar uma pedagogia que compreendia o trabalho com o silêncio e o estudo do movimento cênico, em modos de isolamento das partes corporais, como condições imprescindíveis ao trabalho do atuante, ainda que, posteriormente, eles fossem orientados ali, por Copeau, para a composição teatral com o uso da dramaturgia textual. Esta atividade singular de preparação corporal consistia no estudo de simbolizações da natureza pelo corpo do atuante, ou seja, em exercícios mímicos a partir do contato e observação com a realidade, que pudessem buscar as qualidades do comportamento cênico por meio da mimese corporal. Era visada, também, a aquisição de habilidades de movimento cênico que demonstrassem domínio e desenvoltura física do ator. Entre estas qualidades, havia, portanto, as que valorizavam o jogo da interarticulação física sinalizando experiências corporais cênicas diferenciadas do que se conhecia, inclusive, da arte da Pantomima. 

Os caminhos de pesquisa e artesania de Decroux foram, portanto, fundamentados, entre outras fontes, na sua observação e prática do trabalho na Escola de Jacques Copeau. O artista valorizou princípios de jogo físico por meio da independência das articulações corporais que gerava uma noção de contrafação da atriz e do ator, uma proposta de “desfiguração” corporal para outra re-configuração. Quando Decroux estudou na escola do Vieux-Colombier, ele teve a oportunidade de observar e realizar exercícios de preparação de atores, além daqueles com a “máscara nobre”, que pareceram determinantes na afinação e liberação de seu olhar para a criação de seu sistema artístico. Nessa escola, ele vivenciou exercícios de contração e descontração de uma parte do corpo, bem como a oposição entre elas usando, ao mesmo tempo, a descontração de uma parte com a contração de outra. Decroux estudou, também, a movimentação expressiva em ritmos diferentes, o isolamento das ações, dos movimentos, visando conquistar um corpo cênico de maior amplitude, precisão e de orquestração intercorporal. Parte destes exercícios possivelmente era, também, inspirada no trabalho de Émile-Jacques Dalcroze e sua Eurritmia, experiência pedagógica difundida na época (Benhaïm, 2003: p. 335). Deve-se, assim, ressaltar que mesmo havendo o reconhecimento público de Decroux como inventor de uma sistematização artística considerada singular no Ocidente, ele nunca deixou de reconhecer as fontes de suas pesquisas, preocupando-se em exercê-las, atualizando-as ao seu modo e recriando-as.

Eu teria que ser realmente um imbecil para gastar tantos anos, tantas décadas, e não fazer nada mais do que aquilo [os exercícios aprendidos no Vieux-Colombier]. O que eu fiz exatamente? Um dia um aluno meu me disse: “o dia que você disse ‘cabeça sem pescoço’ você descobriu o seu sistema completo”. Eu não teria pensado nesta definição, mas eu acho que é isso: a cabeça sem o pescoço, o pescoço sem o peito, o peito sem a cintura, a cintura sem a pélvis, a pélvis sem as pernas. Eu não posso te dar um curso chato aqui, e seria necessariamente chato se eu entrasse numa descrição geométrica. Já é difícil acompanhar uma descrição geométrica numa narrativa de mistério. Ao invés disso, deixe-me achar uma imagem. O que eu tenho feito é considerar o corpo humano como um conjunto de teclas, as teclas de um piano. É claro que isso é somente uma analogia. Nós sabemos que o corpo humano não pode ser exatamente como um conjunto de teclas. Num conjunto de teclas nós sempre podemos isolar uma tecla da outra, mas nós não podemos isolar o peito da cabeça. Se o peito se move, a cabeça automaticamente faz alguma coisa. Mas nem sempre o pensamento está lá. Assim como nós consideramos a música uma obra prima, que nós não podemos imitar completamente, como sendo algo que nós sofreríamos para imitar sabendo bem que não poderíamos fazer completamente, nós vamos em direção a isso. Para a música já foi descoberto quase tudo. Então nós consideramos o conjunto de teclas como algo que deveria nos inspirar. Nada deveria acontecer no corpo exceto o que é desejado e calculado. O ator deve carregar/usar/relacionar a relação com seu corpo assim como o pianista faz com o conjunto de teclas. E para ele alguém diz ‘isso não é um pouco seco, onde está a fantasia, o temperamento, o gênio?’ Eu respondo com humor ’você acha que a música não tem fantasia? você acha que a música não tem gênio?’ Ela também tem um conjunto de teclas e junto a isso tem o solfejo, coisas que são escritas, na nota fá e na nota sol. O músico não faz o que surge na sua cabeça. Ele pode te dar uma lista detalhada de tudo o que ele faz. O músico é um compositor. E ainda assim, com o espírito geométrico, com essa mente de compositor, o que aconteceu? Toda a história da música [...]. Ninguém nunca disse que a música será seca. Isso seria uma brincadeira! Muitas pessoas consideram a música a forma mais excitante de arte, a maior de todas as artes. E ainda assim é a arte mais técnica. Um músico não faz nada gratuitamente, tudo é calculado. O corpo humano deve seguir o exemplo de um instrumentista. Ele deve dizer ‘o meu corpo será como o conjunto de teclas e o que eu planejo fazer será como um solfejo, como as notas’ (Decroux, 2003: p. 66, grifos meus).

Diante dessa fala de Decroux, pode-se perceber sua preocupação com a criação de um corpo cênico mediado por um modo de organização corporal rigoroso que possui no procedimento da decupagem um dos caminhos importantes de sua sistematização. Isso também irá colaborar para a sinalização que ele fará, ao longo de todo seu percurso de pesquisa, sobre a distinção que existe na expressividade do Mimo-ator, proposta por ele, das perspectivas de atuação realistas-naturalistas presentes na arte teatral, bem como da diferença de recepção de sua proposta para a da atuação pantomímica.

O procedimento da decupagem corporal foi uma objetivação artística encontrada por Decroux que colaborou na materialização de seu pensamento cênico. Ele pode ser percebido como um esquema gerador da sua invenção, como ele mesmo comenta na citação feita acima. Diante do conhecimento de outras experiências do artista, fica evidenciado para nós que este caminho possibilitou um exercício de atuação que fazia emergir, por meio da mimese, um real mais aprofundado. Ou seja, a Mímica Corporal produzia (e produz), na recepção, o surgimento de algo “compreendido não compreendido”, criando uma percepção paradoxal da mimese apresentada. A realidade estava ali presente na ação do ator Decroux, diante do público, mas tratava-se de materialidade que problematizava o realismo. Illusio.

A mímica corporal não representa simplesmente o que se pode ver a olho nu [...]. O pensamento e as suas consequências estilizadas, assim como o aspecto material de uma ação, são incluídos no ato teatral do ator de mímica corporal. Ele deve poder passar com elegância o que pode ser identificável e reconhecido, a uma proposta de movimentos e de ações que é o retrato do que se passa em seu espírito. Decroux falava do “concebível impossível”, ou ainda quando descrevia a representação teatral ideal através do prisma da mímica corporal, gostava de dizer: ‘é necessário que o movimento seja reconhecido e desconhecido ao mesmo tempo’” (Soum, 2009: p. 19).

A decupagem decrouxiana está integrada à proposta do artista de contrafação do corpo do ator, embasada na noção da arte como artifício. Mas, esta “deformação” não visa tirar o ator de sua humanidade, mesmo porque, para Decroux, “ser humano” não era somente forma, mas um sistema complexo de vida. Decroux demonstrava valorizar esta complexidade na medida em que não dissociava o trabalho do ator da sua vivência na própria realidade que o envolvia.

Os procedimentos técnicos defendidos e adotados pelo artista solicitavam ao ator, e ainda solicitam para quem se dedica a experimentar as ressonâncias de sua experiência, uma dedicação aprofundada na consciência de si por meio, inicialmente, da sua anatomia. Contrafazer o corpo, portanto, seguindo a orientação de Decroux, é buscar a sua desfiguração em decupagens de movimento que valorizem a expressividade do tronco em detrimento do trabalho de braços e rosto, é se utilizar da imitação como recurso (mimético) deformante fazendo, assim, uma transposição do imitado, do real. O Mimo-ator pode decupar o movimento na medida em que imita, mas, ao mesmo tempo, ele não imita ainda que a mímica possa ser uma imitação.

Há no pensamento decrouxiano uma noção de consciência e manejo do movimento humano, em busca de sua expressividade cênica, próxima do ato de desenhar. Para Decroux o ator é um artista do desenho (Decroux, 1994: p. 22) e ele deve se envolver no estudo da realidade, da sua apropriação, da repetição em partes conjugadas à recriação. Num primeiro momento, neste treinamento artesão para o ator, Decroux ensina que se deve buscar o domínio da experiência do fazer na relação com a realidade. A repetição do real gera alterações expressivas da realidade que são configurações marcadas pelas singularidades de cada um.

Para que seja arte, segundo Decroux, é preciso que a ideia da coisa seja representada por outra coisa, um paradoxo, pois para ele a arte somente seria “completa” se ela fosse “parcial” (Decroux, 1994: p. 48). A contrafação na arte de Decroux contribui para que surja uma mimese insólita na medida em que cada ator artesão que a vive configura suas marcas na imagem criada, fruto de sua observação e recriação do real. Para Decroux, contrafazer é criar um equivalente do real a partir da observação de suas partes, de seus ritmos específicos, é viver a dilatação do corpo. Esse re-fazer o corpo relaciona-se com a realização de movimentos por meio de uma segmentação corporal, com a independência das partes do corpo.

Decroux diz que em seu trabalho foi preciso saber “separar os corpos e os unir à sua maneira” (Decroux, 2003: p. 67), ou seja, um procedimento que pode ser compreendido como “descolamento” e “deslocamento” de materiais dentro de um contexto em que ele mesmo denominava de “geometria móvel” da atuação.

Retomando o que foi exposto mais acima, quando foi citada a analogia do corpo com o teclado de um piano, dita por Decroux, é importante trazer a continuidade da fala do artista sobre o tema:

Bem, isso é como nós deveríamos proceder: estudar o corpo humano considerando-o como um teclado. Nós separamos os pedaços, nós os agrupamos para que eles nos sirvam da maneira como a gente quer, como na música e em seguida nós estudamos a geometria móvel. Nós seguimos linhas no espaço que nós chamamos, nós, de desenhos e aqui de novo elas possuem um significado. Caminhos percorridos também possuem um significado, mas não a respiração que nós talvez associemos a estes movimentos. E assim nós podemos ver que a velocidade muda o sentido (Decroux, 2003: p.67-68).

Com a citação do “corpo-teclado”, Decroux apresenta uma proposição de “artificialização” do corpo do ator, um modo de contrafação, que diz respeito ao trabalho da segmentação corporal com a independência de suas partes revelando, além de sua curiosidade anatômica do movimento, também uma relação de grande afeto e curiosidade com a música. Assim, ao ouvi-lo dizer sobre um teclado como metáfora para a poética do fragmento proposta, deve-se compreender o contexto histórico em que ela se insere. A música o influenciou em seu trabalho para pesquisar o efeito de multiplicação artística composicional na Mímica Corporal. Para Decroux, o “corpo-teclado” é, portanto, um modo de exemplificar seu objetivo de multiplicação expressiva corporal, um efeito plástico e rítmico, que é via de acesso à vida interior e exterior de uma ação de ator, seja por meio da combinação de suas “notas”, seja pela sensação das forças artísticas que existem nelas, produzidas e expressadas.

Decroux faz a analogia do corpo com o teclado salientando que é importante fazê-la para ressaltar que o ator, como outros artistas, deve ser “dono do seu nariz”, ou seja, pode fazer as conexões sensíveis que quiser e puder. O ator, para Decroux, deve possuir um nível alto de consciência corporal para realizar uma composição artística, como ele via nos bailarinos que possuíam uma técnica específica, sejam os do Camboja, que ele havia assistido em Paris, nos anos 30 (Chamberlain; Leabhart, 2008: p. 20), sejam os bailarinos clássicos. As composições criadas, por meio de sua arte, pedem sensações distintas.

No entanto, a referida metáfora utilizada por Decroux soa, ainda hoje, estranha na medida em que se busca contemporaneamente dissociar a ideia do corpo como um instrumento. Para que o estranhamento diminua, ou se esvaia, é preciso, assim, evitar compreendê-lo no campo do pensamento de fonte filosófica “mecanicista”, que não deve ser retomado pelo seu caráter redutor, seja na visão do corpo humano na arte e na ciência contemporânea, seja sobre o processo de composição de uma ação artística. É importante, então, pensar na proposta de Decroux relacionada à necessidade da consciência do ator, de seu rigor e compromisso no trabalho, pois neste caso o corpo é a vida da criação.

Na biologia de Decroux, há uma anatomia do movimento que se destaca e parece oriunda do discurso científico médico. Neste caso, é, portanto, uma prática que exige, de quem a estuda, desde sua criação como disciplina no século 16, a audácia filosófica, a virtuosidade manual, o equilíbrio emocional e, também, a curiosidade. A anatomia pode ser compreendida como uma arte do toque e da descrição. Portanto, ao modo de um anatomista, Decroux une arte e ciência e elogia o toque que também toca o mistério da vida por meio do refazer o corpo na arte entre descolamentos e colagens. “O corpo é uma luva cujo dedo seria o pensamento. Pensamento, impulso, polegar e pinça são quase homônimos, são quase sinônimos” (Decroux, 1994: p. 30).

O artista que faz esta pesquisa do corpo cênico “disseca” o corpo nu do ator, de si mesmo, para examinar as partes. Ele “corta”, “talha”, “separa partes”, “manipula”. Da frágil fibra que aparece no ator desnudo ele busca, ainda, fazer brotar nele alguma “linfa”. O “anatomista” Decroux, como outros anatomistas, parece também mudar a hierarquia da erudição: sua sabedoria está em ver com os próprios olhos, ou seja, em autopsiar, em tocar, e não em ler. Diz o teórico Jean Marie Pradier: “O anatomista, nos diz Leonardo da Vinci, deve possuir duas qualidades: superar o medo da morte e ser bom desenhista” (Pradier, 1997: p. 139, tradução minha). O ator deve, assim, não ter medo do risco, de qualquer risco: o do desenho e o do desejo. O artista não deve temer o risco do corte, um trabalho duro.

 “Porque trabalhar duro?”, pergunta Decroux. Porque, para ele, com as mudanças sociais no mundo e as perdas da capacidade sensorial do ser humano, na medida em que sua postura permanece mais sentada que em movimento, o ator necessita de uma ação árdua para poder fazer arte com seu corpo, tanto quanto um bailarino o faz. No duro e árduo compromisso com a atuação, o artista reafirma que é necessário lutar por um mundo onde as pessoas fiquem de pé. “Ficar de pé” não é somente um elogio à verticalidade do movimento, presente na referência técnica clássica de movimento que ele também possui, mas uma atitude de poder ver mais longe pois: “Ver é prever” (Decroux, 2003: p. 111-112).

Para Decroux, a Mímica Corporal deve ser uma invasão, não uma evasão (Decroux, 1994: p.74). A invasão aqui entendida passa pela noção de decupagem do corpo, pelo estudo vivencial da fragmentação da anatomia corporal que leva ao movimento expressivo cênico, associada a outros elementos técnicos. Nos estudos da interarticulação do corpo estão presentes noções rítmicas dinâmicas que demonstram a relação do esforço do ator com a velocidade do movimento e seu peso corpóreo, materializadas em pausas, resistências, hesitações e surpresas de movimento. Tais elementos são qualificados por Decroux como a base do que pode ser nomeado como “dramático” em sua Mímica Corporal, pois para Decroux alguns procedimentos em especial valorizam a “luta” do artista consigo mesmo em modo distinto de preparação artística e atuação. O dramático de sua Mímica Corporal é maneira de incorporação do esforço do trabalho físico do ator com aquilo que, segundo o artista, “exprime o mais intensamente a paixão”, ou seja, a relação de contração e do relaxamento das partes do ser em “dínamo-ritmos” distintos (Decroux, 2003: p. 129).

Para Decroux, quem pensa se debate e “bate” em si mesmo. Portanto, realiza um trabalho concreto, físico explícito, evidenciando tanto os entrecortes do movimento como a relação com o peso corporal na luta com a força da gravidade. Há, portanto, desconforto e desequilíbrio, há uma ação diferenciada da ação habitual humana, do equilíbrio cotidiano.

Evidencia-se aqui uma relação do artista com a força bruta aliada à plasticidade do movimento. Pouco se fala disso no trabalho de preparação de ator, mas na tradição dos estudos do movimento cênico, seja da escola russa, com V. Meyerhold, seja com o próprio Decroux, esta força existe e sua vivência precisa ser compreendida hoje associada ao trabalho da consciência do movimento. Na tradição cênica, esta força pode ser vista relacionada, também, ao encantamento que estes homens de teatro possuíam com as lutas marciais, com a acrobacia circense e com o boxe. Decroux possuía forte admiração pelo esporte e em especial pelo campeão mundial de boxe de 1920, Georges Carpentier, um dos maiores esportistas do boxe moderno.

É preciso lembrar, também, que há uma relação de Decroux com um projeto cinético da modernidade que valoriza tanto o esforço no ato corporal, sem que este seja necessariamente revelado pelo artista em sua expressão estética, como seu estudo em “cortes”. Por outro lado, ele percebeu, também, que o sentido da criação de um corpo cênico não, necessariamente, se sustentava na agitação e na força bruta. Sua afirmação sobre o fato da imobilidade poder ser um ato apaixonado nos dá pistas disso. Decroux valorizava o tempo lento no ato de mover-se, a fluidez, o ato de derretimento da ação; e ele não abandonou a decupagem, pois não valorizava uma ação global do corpo como tônica de sua arte.

O “jogo muscular da mímica”, a “comédia muscular” é uma ação realizada como jogo que enfrenta a brutalidade do movimento no que ele pode produzir de entrecortes, espasmos, decisões e precisões em cada fragmentação corporal, com isolamentos das partes do corpo. Uma decupagem intensa, que seja um pouco “raivosa, desesperada” (Decroux, 1994: p. 70), como Decroux diz, é prevista em sua arte, mas esta não se reduz a isso. O “entrecortado” se refere, também, à capacidade do ator mover-se, mantendo-se em um movimento e reagindo a outro, com uma escuta corporal distinta, com interrupções de ação promovidas pelo próprio atuante, por meio, inclusive, de um ato de imobilidade ativa, em postura que pode ser mais “instalada” no espaço.

Para Decroux, “não fazer nada é [também] uma ação” (Decroux, 1994: p. 71). Estaria ele, então, se contradizendo? Não. Todo seu percurso passa por revisões e focos de pesquisa em determinadas questões específicas sobre a re-criação do corpo do ator, de seu corpo cênico.

Quando Decroux fala em “equilíbrio de luxo” como uma das condições fundamentais de sua arte, realizado em pausas, instalações no espaço, ou mesmo em modo rítmico dinâmico, com contrapesos corporais, em uma rica relação com a força gravitacional no movimento vertical, somando isso a movimentos entrecortados das partes do corpo, tudo parece visar uma incerteza cinética necessária para sua própria dialética com a verticalidade proposta.

Tudo o que Decroux propõe em sua arte acaba, assim, por ressoar um elogio ao exercício material da ação, ou seja, o fazer da ação mediado pela experiência corporal. Por consequência, há um elogio seu ao corpo humano e à biologia criadora.

Decroux inventou a Mímica Corporal, ainda que diga que seu mérito tenha sido maior em acreditar nela, e se inventou. Sua “crença” material, corporal, possui uma particularidade de ação, de intervenção, que ressoa na arte cênica contemporânea. Ao longo de sua vida, Decroux foi esculpindo a si mesmo, como uma estatuária móvel e mutante. Decroux inventou, assim, um acontecimento, mas não necessariamente um evento, ou um entretenimento. O acontecimento se processou porque implicou na disponibilidade do ser de acontecer, de ficar nu, de resistir ao “eu” do artista. Mas, o risco da nudez é torná-la um objetivo a ser alcançado, até porque se trata, também, aqui, de uma nudez simbólica.

Quando o título deste texto foi pensado citando as palavras “decupagem” e “decomposição”, como caminhos de criação em busca de um corpo cênico insólito, em diálogo com pesquisa prática artística de Étienne Decroux, paralelamente, nos era difícil deixar, também, de pensar em uma afirmação ouvida do professor Hans Thies-Lehmann, em 2009, em uma palestra que proferiu em São Paulo. Ele disse: “Os atores precisam aprender arte além da artesania, lidar com a arte além disso. É tarde para aprender artesania”.

Em parte, concordamos. Sim, o ator precisa aprender arte além da artesania. Mas, quando o professor diz que é tarde para o artista aprender artesania, compreendemos que não é tão tarde. Mesmo porque, a artesania não é algo que remete somente à funcionalidade da ação, do fazer. Ela ultrapassa isso, especialmente se está no âmbito da pesquisa cênica e dos processos criativos associados a ela. A artesania pode nos levar para um diálogo franco sobre questões do compromisso do artista, indo além do diálogo sobre a configuração formal artística originada de seu corpo. É importante, em tempos da desmaterialização artística, incentivarmos a artesania de ator como um dos caminhos possíveis para a busca de uma consciência cênica ampliada na criação do corpo cênico. É fato, porém, que o referido professor, naquela ocasião, não tenha definido o que compreendia por “artesania de atuação”, pois isso não devia ser objetivo ali. Mas, a provocação serve aqui, especialmente, para que possamos compreender o sentido das propostas decrouxianas hoje nos contextos das artes.

A artesania de ator proposta por Decroux é “maneira” de existência do artista, mesmo porque “maneira”, no léxico decrouxiano, fortalece uma referência ética importante na relação entre o agir e o pensar, revelando uma qualidade desse pensamento forjada em um trabalho árduo, em um “esforço”, na “artificialização” do movimento, mas sem, necessariamente, impor-se uma finalidade e utilidade enquanto ação. Está presente em Decroux, também outra noção de produtividade pela configuração.

Decroux problematizou o textocentrismo teatral, a ideia de personagem e da composição de uma ação física, decupando a presença do ator por meio de seu corpo, “cortando” a ação cênica, valorizando a “ação real” do artista e não a ação realista. Falar aqui de “ação real” é trazer o sentido de uma ação física criada no valor da tridimensionalidade corporal, cuja expressão plástica desta ação possa ser recebida como crível e não, necessariamente, perpassada pelo sentido comunicacional. A ação decrouxiana está preenchida de um estado criativo que parte de um trabalho corporal particular, em diálogo com procedimentos chamados técnicos, buscando revelar, também, o desejo de quem a realiza em cada fragmento expressivo. O calor do movimento está em cada uma das partes, pois cada uma é vida tanto quanto o todo.

Decroux decompôs e ensina a decomposição que é, assim, deslocamento poético que dialoga com o movimento simbolista. Para Decroux, o “estilo é o homem” (Decroux, 1994: p. 147) e é pela “maneira” que ele se torna símbolo. Um símbolo insólito, algo que não é habitual, que é estranho, que é contrário ao uso, às regras, aos hábitos; extraordinário, incrível, inacreditável e inimaginável. 

Perceber a contemporaneidade das proposições de Étienne Decroux passa por tentar visualizar a atitude intempestiva contida em sua arte, dentro do campo teatral, em especial por meio de sua defesa por um movimento cênico insólito, um corpo cênico inimaginável.

Decroux  destoou das diretrizes teatrais ocidentais, problematizando-as por meio de árdua e continuada pesquisa prática cênica que fez, especialmente em si. Ele nos estimula para o trabalho de criação do conhecimento calcado na experiência e não no poder. Ainda que o artista valorizasse uma artesania de ator inserida na noção de arte como artifício, tônica do mundo moderno, ele parece tê-la expandido revelando sua amplitude de pensamento sobre o ofício teatral. Um ator-mimo é um “ator dilatado” (Decroux, 1994: p. 66).

Talvez a grande obra de Decroux tenha sido o convívio com seus aprendizes e assistentes e não, necessariamente, o volume aproximado de suas cinquenta peças que revelavam todo o percurso de uma existência. Talvez possamos hoje, perguntar o sentido da preparação do ator mediada por uma formalização técnica cênica de movimento. Podemos indagar sobre o sentido da arte como elaboração de uma configuração formal. Mas, Decroux, por meio de sua sistematização pedagógica e de criação perpassada pela decupagem e decomposição do corpo cênico, da ação de ator, nos deu pistas para conversarmos de arte em diálogo com a consciência de si no mundo, sinalizando, inclusive, para reduções artísticas sobre a noção da "ação presente" do ator.

Hoje, o Mimo-ator pós decrouxiano pode apontar para a dissolução de um gênero artístico compreendido como necessário na proposta inicial de Decroux, podendo se relacionar a ele por meio dos motores de sua composição, de sua expressividade, sem mesmo o revelar na forma artística.

 

Referências bibliográficas

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