10. JAQUES CORSEUIL E A CRÍTICA DE DANÇA NO BRASIL

10. JAQUES CORSEUIL AND DANCE CRITICISM IN BRAZIL

Beatriz Cerbino

Resumo              

O crítico e jornalista de dança Jaques Corseuil escreveu, por quase trinta anos, para diversos periódicos, entre revistas e jornais, contribuindo para a construção de um ideal de dança cênica nacional, assim como para a formação de um público específico para a área. Seus escritos – entre críticas, matérias e perfis de bailarinos – formam um importante acervo da memória da dança no Rio de Janeiro e no Brasil.

Palavras-chave | Jaques Corseuil | Crítica de dança | História da dança | Memória | Balé nacional

Abstract

For almost 40 years, the dance critic and journalist Jacques Corseuil wrote for various venues, including magazines and newspapers, contributing to the construction of a national ideal of dance as well as to the formation of a specific audience for the area. His writings – including reviews, texts and profiles of dancers – form an important patrimony of dance memory of Rio de Janeiro and Brazil. 

Keywords | Jaques Corseuil | Dance review | Dance history | Memory | National ballet

Beatriz Cerbino é Doutora em História pela UFF, com estagio de doutoramento (visiting scholar) na Universidade de Nova York, no Programa de Estudos da Performance.  Ela é professora da Universidade Federal Fluminense/UFF, no curso de Produção Cultural e no Programa de Pós-graduação em Ciência da Arte/PPGCA.

Beatriz Cerbino holds a doctorate in History from Universidade Federal Fluminense/UFF, and held a doctoral research/visiting scholar fellowship in the Department of Performance Studies of the Tisch School the Arts, New York University. She is a professor at the Federal University Fluminense (UFF) in the undergraduate program of Cultural Production and in the Graduate Program in Science of Art/PPGCA.

Este texto vincula-se à pesquisa do CNPq Anatomia de um pensamento: os escritos de Jaques Corseuil, e contou com o apoio do bolsista PIBIC/UFF, Igor Nunes Campos, aluno de graduação do curso de Produção Cultural. Uma primeira versão desse texto foi apresentada no VIII Encontro Nacional de História da Mídia, em abril de 2011.

This essay is part of a CNPq (National Counsel of Technological and Scientific Development) research project, with research assistance from Igor Nunes Campos (PIBIC/UFF grant), an undergraduate student in the Cultural Production Program.   A first version of this essay was presented at the VIII National Meeting of the History of the Media, in April of 2011.

 

 


JAQUES CORSEUIL E A CRÍTICA DE DANÇA NO BRASIL

Beatriz Cerbino

Uma breve apresentação

A crítica de dança no Brasil passou por diferentes momentos em sua constituição como campo, desde a descrição do que era apresentado em cena, como os textos publicados na primeira década do século XX, até o entendimento mais amplo e democrático do que pode ser entendido como um espetáculo de dança.

O papel desempenhado por Jaques Corseuil nesse processo é essencial, pois seus escritos formam um importante e valioso painel de como a dança era percebida nas décadas de 1940 e 1950, não só na cidade do Rio de Janeiro, onde escreveu nos mais representativos periódicos locais, mas também no Brasil, já que se tornou uma referência do conhecedor de dança, especialmente de balé, no país.

As ideias que apresenta e defende em seus textos são fundamentais para se entender o contexto sócio-cultural da dança da época, e como os ideais por ele defendidos podem ser percebidos nos corpos em movimento. Uma escrita corporal que Corseuil defendeu enfaticamente: para além de um bailado nacional, era preciso criar um corpo nacional.

O jornalista e crítico Jaques Corseuil

Corseuil (1913-2000) publicou sua primeira matéria na revista Cinearte, em 15 de janeiro de 1938, ainda assinando como CF, uma abreviação para Inácio Corseuil Filho, seu nome de batismo. No ano seguinte, passaria a assinar seus textos apenas como Jaques, e, a partir de 1940, como Jaques Corseuil, nome que se tornaria uma referencia no meio da dança nacional. Identidade construída ao longo dos anos e firmada tanto pelo profundo conhecimento que tinha da dança, especialmente balé, quanto pela amizade que estabeleceu com os profissionais da área.

Na matéria de 1938, foram apresentados os bailarinos Vera Grabinska (?-1986) e Pierre Michailowsky (1888-1970), casal que colaborava com pequenos ensaios coreográficos para a História do Cinema Educativo, projeto desenvolvido pelo Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE), criado em 1937, que utilizava o cinema como meio de educação. O foco do texto, contudo, não era o cinema, mas a dança, a carreira desses bailarinos, desde sua formação na Rússia até a chegada ao Brasil, e seus esforços para a “educação rítmica da mocidade brasileira, desenvolvendo vocações” (Corseuil, 1938).

Aos vinte e cinco anos, Corseuil já assumia uma postura que, longe de ser neutra, defendia a dança como um meio para educar o gosto popular para o que considerava belo e para apreciar a arte brasileira, e que se tornaria mais incisiva ao longo do tempo. A partir de então escreveu regularmente, durante vinte e três anos, ora em períodos alternados ora simultâneos, para revistas como Brasil Musical, A Cena Muda, Cinearte, Ilustração Brasileira, Rio, etc., além dos jornais Correio da Manhã, Diário Carioca, Folha Carioca e O Globo.

Havia na imprensa carioca, nesse período, críticos que, além de escrever sobre artes plásticas, música e teatro, suas principais funções, também produziam textos sobre dança: Antonio Bento (1902-1988), do Diário Carioca, Mário Nunes (1886-1968), do Jornal do Brasil, JIC, como assinava João Itiberê da Cunha, e Eurico Nogueira França, do Correio da Manhã, Mário Domingues, do Correio da Noite, D’Or, pseudônimo de Ondina Ribeiro Dantas, do Diario de Noticias, Grock, da revista O Cruzeiro, e Ruben Navarra, do jornal A Manhã, entre outros. É nesse contexto que a atuação de Jaques Corseuil, um dos primeiros críticos especializados no assunto, deve ser compreendida.

Formado em direito e funcionário de carreira do Banco do Brasil foi um ávido consumidor de cinema e espetáculos de teatro e de dança, uma formação que o habilitou a ocupar o posto de jornalista e crítico de dança dos jornais e revistas com os quais colaborou. Profundo conhecedor dessa arte, Corseuil também estabeleceu uma rede de sociabilidade com um grande número de bailarinos, o que o permitiu ter acesso a informações sobre temporadas e repertórios a que poucos tinham acesso, compartilhando-as depois com seus leitores.

Sua vasta e ampla atuação pode ser acompanhada nas entrevistas e nos perfis de bailarinos por ele publicados, além da cobertura e críticas das companhias que se apresentavam na cidade do Rio de Janeiro. O espaço conquistado por Corseuil na imprensa é um importante indício do crescente interesse pelo tema, de uma preocupação com a formação de um público para a dança no país e também com a construção de uma memória da dança que aqui se fazia e era apresentada, processos nos quais a sua participação foi fundamental.

A circulação desses ideais nos periódicos para os quais escrevia chama atenção para o público atingido, as classes média e alta da sociedade carioca, e que tinha nessas publicações a representação social e simbólica de seu comportamento: lugares e eventos a serem frequentados, assim como o consumo de objetos e de bens culturais (Mauad, 2000), entre esses os espetáculos de dança.

A produção crítica

A produção de Corseuil pode ser elencada em três tipos distintos: críticas, matérias e perfis. É importante observar como, para ele, a dança era o ponto de partida e de chegada de sua observação e produção textual. O desempenho dos bailarinos e a coreografia não estavam a serviço da partitura musical ou da cenografia, como de hábito acontecia nos textos dos demais críticos; mas, ao contrário, para ele, era a dança que determinava sua perspectiva crítica. Essa visão diferenciada capacitou-o como um dos mais importantes pensadores da dança do Brasil, nas décadas de 1940 e 1950.

Um interessante percurso para se pensar os escritos de Jaques Corseuil é partir dos estudos sobre memória, percebendo como o passado é experimentado no presente e, com isso, como seus textos são importantes registros e fontes para o entendimento da dança que se fazia, e que se faz, no Rio de Janeiro. Ao explicitar suas escolhas – afinal era ele que decidia o que e quem deveria ocupar o espaço de suas colunas –, Corseuil estabeleceu o que deveria ser lembrado, reafirmando com isso seu projeto de dança a ser desenvolvido no Brasil.

A fim de entender tais questões e como se articulam com a percepção de memória aqui pretendida é fundamental entender que o passado não se esgota, mas encontra formas de permanência em diferentes significações e elaborações. Trata-se, portanto, de uma renegociação que possibilita a emergência de uma nova configuração de tempo e espaço. Longe de fixa e imutável, a memória está em constante estado de mudança, aberta a usos e manipulações que a transformam ao longo do tempo, formulando novas perspectivas do passado. Ao atuar no presente, como uma construção atual, a memória opera em escalas variadas, tanto no individual quanto no coletivo, articulando projetos e construindo identidades.

Pierre Nora (1993), ao elaborar seu conceito sobre lugares de memória, apresenta possibilidades de se pensar a dança e, consequentemente, os escritos de Jaques Corseuil, a partir dessa perspectiva. Lugares de construção de uma identidade que se faz por meio de vestígios, de traços deixados por algo que já não é mais. No seu entender, a necessidade de criar espaços e símbolos, fabricar monumentos e coisas, instituir comemorações e datas se deu porque a capacidade de lembrar passou a ocorrer fora da experiência vivida, o que provocou a ritualização da memória (Cerbino, 2009).

Segundo Nora, os lugares de memória são de três tipos: materiais, nos quais a memória social se ancora, podendo ser apreendida pelos sentidos; funcionais, quando possuem a função de alicerçar memórias coletivas; e simbólicos, em que essa memória coletiva é revelada. Esses tipos não são excludentes, mas coexistem no tempo, mantendo ativos laços de pertencimento e, com isso, vínculos de identidade.

Nesse sentido, é possível entender os textos produzidos por Corseuil como lugares de memória, a partir dos quais a própria ideia de uma dança brasileira, daquele momento – 1940 e 1950 –, que ele tanto buscou e contribuiu para a formatação, pode ser percebida.

Entre os vários periódicos para os quais escreveu destacam-se as revistas Ilustração brasileira e A cena muda, e os jornais Correio da manhã e O Globo, não apenas pelo volume e tempo de colaboração, mas também pelas ideias ali apresentadas. Para cada um desses veículos, publicou diferentes colunas e tipos de texto. É preciso ressaltar que um não excluía o outro, isto é, Corseuil escreveu simultaneamente para veículos distintos, o que permitiu que alcançasse uma gama mais ampla do público. Igual perspectiva pode se ter dos textos que publicou de maneira avulsa, ou seja, sem ser um colaborador constante, em revistas como Sombra, Vida e Brasil Musical, espaços em que também destacou a necessidade de se investir em um bailado nacional, além de se pensar os rumos desse balé e a formação de um público específico.

Uma estratégia que se mostrou bastante proveitosa, pois assim pode atuar em diversas frentes, não apenas apresentando os bailarinos e chamando atenção para aquilo que iria ser mostrado em cena, mas também defendendo suas ideias sobre temas polêmicos como uma política pública para o setor, o fato do Corpo de baile do Theatro Municipal pouco se apresentar, e a formatação de um “bailado nacional”, entre outros.

Corseuil começou a escrever nos jornais O Globo e Correio da Manhã em dezembro de 1941. No primeiro colaborou por seis anos, até 1947, e no segundo manteve uma parceria de vinte anos, tornando-se uma referencia no jornalismo de dança desse veículo.

Nos seis anos em que escreveu no Globo, manteve uma coluna no suplemento O Globo feminino na qual apresentava bailarinos aos leitores, coluna que a partir de 1943 passou a se chamar “Figuras do ballet”, divulgando nomes nacionais e internacionais. Com esse título assumia claramente seu foco de interesse, isto é, escrever sobre os principais artistas em temporada na cidade, atuando assim como um mediador entre o público e as personalidades retratadas em sua coluna. Composta inicialmente de uma apresentação, em que fazia uma breve descrição da trajetória profissional de seu entrevistado, o texto de Corseuil interessava exatamente por expor de maneira direta não apenas opiniões e percepções sobre a dança, e a vida artística de um modo geral, dos artistas ali mostrados, mas também por usar aquele espaço para fazer críticas à situação da dança cênica no Brasil. Oferecia tanto um perfil para o leitor, que assim tinha acesso aos principais fatos da carreira dos seus artistas preferidos, quanto também atuava como um importante espaço de exposição para as companhias em turnê pela cidade, das quais seus entrevistados participavam.

Em sua coluna de outubro de 1943, a primeira a ser denominada “Figuras do ‘ballet’’, Corseuil apresenta Leda Iuqui (1928), então elevada ao posto de primeira-bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro mas que, apesar de ser um dos principais nomes, não recebia papéis à altura de seu talento. Ao ir além da apresentação do profissional em questão, fica claro como o crítico usava esse espaço para fazer uma análise da situação da dança na cidade, nesse caso a situação do corpo de baile da principal companhia de balé do país. O descontentamento de Corseuil com a direção do Municipal, por não valorizar devidamente Leda Iuqui, é claramente percebido em seu texto quando afirma ser Iuqui “uma primeira-bailarina quase sem papéis” (Corseuil, 1943).

Ao longo dos anos em que colaborou com O Globo, Jaques Corseuil não deixou de fazer de sua coluna um espaço de defesa do bailado nacional, mesmo que o bailarino apresentado fosse estrangeiro, com pedidos de melhores políticas culturais para a área, e a solicitação de melhores, e maiores, temporadas para os bailarinos do Municipal carioca. Além disso, havia em sua escrita um permanente cuidado com a formação do bailarino brasileiro que, segundo ele, deveria se espelhar no exemplo do profissional estrangeiro a fim de adquirir técnica e qualidade artística.

No jornal Correio da Manhã, onde escreveu por vinte anos, de 1941 a 1961, Corseuil manteve, em diferentes períodos, dois tipos bem distintos de coluna: um dedicado a notícias variadas do mundo da dança e do balé, e um outro em que, como no Globo, apresentava as personalidades desse universo. Pode-se dizer, em certo sentido, que se tratou de uma continuação do trabalho que fazia no Globo, só que dez anos depois, já que no Correio da Manhã sua coluna “‘Personalidades do ballet” circulou de 1956 a 1957. Nessa série, Corseuil teve a preocupação de narrar com detalhes as carreiras dos bailarinos apresentados, sem deixar de lado, contudo, sua veia crítica ao fazer pequenos comentários sobre a situação do balé no Rio de Janeiro e no Brasil. Nomes como Bertha Rosanova (1930-2008), Leda Iuqui (1922), Maryla Gremo (1911-1985), Nina Verchinina (1910-1995), Tamara Toumanova  (1919-1996) e Vaslav Veltchek (1896-1967), entre muitos outros, foram alguns dos entrevistados por Corseuil e que tiveram grande importância para a dança no Brasil.

Ao apresentar o perfil e a carreira desses profissionais, Corseuil estabeleceu um importante espaço de afirmação da própria dança, criando ao mesmo tempo um lugar de memória, entendendo-o aqui como um lugar do não esquecimento. Essa postura de Corseuil importa por tornar acessíveis ao público informações sobre esses profissionais, construindo assim um espaço de articulação do universo do balé com seu público, não só pela apresentação dos bailarinos, como também das obras por eles interpretadas.

É interessante notar, sobre sua coluna de notícias variadas, que a partir de setembro de 1958 ela deixou de se chamar apenas “Ballet”, como ocorria desde 1954, agregando “Dança” ao título, passando a ser “Dança e Ballet”. Fato que é um importante indicativo de como Corseuil percebia o universo ao qual se dedicava a estudar e a escrever desde 1938: por um lado, a dança não se restringia apenas à técnica do balé, por isso a ampliação do título, por outro, porém, pode indicar que para ele, Corsueil, o balé era mais importante, merecendo uma distinção do assunto geral, a dança.

Em sua coluna de 25 de julho de 1954, ao lado outras notícias ligeiras sobre a dança no mundo, fez uma calorosa defesa da permanência da bailarina e coreógrafa Nina Verchinina no Brasil, não apenas indagando, mas, principalmente, apontando a falta de interesse político em realizar investimentos na área. Fica claro na escrita de Corseuil sua recorrente percepção e consequente defesa do balé como um dos principais meios para levar cultura às pessoas. Havia uma grande preocupação com o estado dessa arte no Brasil que, em sua opinião, enfrentava problemas na qualidade de sua produção pela pouca atenção e escasso apoio financeiro que recebia dos órgãos públicos. Para ele, não havia sentido em perder mais tempo:

Aqui estiveram e tudo fariam para realizar alguma coisa pelo ballet no Brasil, artistas como Igor Schwezoff, Nini Theilade, Yurek Shabelewski, Nina Verchinina e Tamara Grigorieva – e ainda este ano, Roman Jasinski e George Skibine. E ninguém se mexe. Capitais são empregados em tudo, desde futebol e até goiabada. Mas para o ballet, arte que significa civilização e cultura, não há a confiança ou o conhecimento necessário. E o nosso ballet continua a ser um órgão burocrático. Sustentado quase que exclusivamente para divertir os banquetes e festas oficiais (Corseuil, 1954).

As palavras de Corsueil são um interessante, e importante, indício de como o balé sofria com a falta de investimentos contínuos, dificultando seu desenvolvimento no país e a formação de novos profissionais.

Na revista Ilustração Brasileira, Jaques Corsueil escreveu durante quinze anos, de 1942 a 1957, e nesse período publicou tanto críticas de temporadas, de companhias nacionais e estrangeiras, quanto perfis de bailarinos. Esses últimos, porém, diferiam dos apresentados nos jornais, já que na revista tinha um espaço maior, o que possibilitava uma matéria um pouco mais aprofundada com seu entrevistado.

Porém, é com as críticas que seu texto na Ilustração ganha mais peso. Observador atento das mudanças pelas quais a dança cênica passava no mundo, e no Rio de Janeiro, Corseuil não se limitou a reproduzir notícias variadas, mas foi capaz de estabelecer uma relação entre a dança feita no Brasil e pelas companhias estrangeiras, assim como criticar a dança em si – coreografia, desempenho dos artistas, produção de figurinos e cenários.

Na segunda passagem do “Original Ballet Russe” no Rio de Janeiro, em 1944, sua crítica publicada no mês de julho ressalta a natureza “útil” da temporada no sentido de educar o gosto do público para a dança, ao apresentar obras seminais como Les sylphides, criada em 1909, por Michel Fokine (1880-1942).

Mais interessante ainda é a percepção de Corseuil sobre o repertório mostrado pela companhia, tido por alguns como um “museu”, por demais conservador. Para ele, no entanto, esta era uma das maiores qualidades do grupo: “museu de fato, mas museu vivo, do gesto, do movimento, academia ambulante da dança clássica, conservatório do ballet. E sob o ponto de vista de dança esse repertório tem um valor documentário, dando-nos as origens do ballet atual”. É nítido o entendimento do crítico em relação à importância desse tipo de repertório e como este pode ser percebido como um espaço de permanência, de memória, do balé. Memória no e do corpo e, por isso, fundamental na produção artística que aqui se fazia.

Outra importante revista com a qual colaborou foi A cena muda, onde escreveu durante oito anos, de 1944 a 1952. Mais uma vez, intercalou matérias com perfis de bailarinos, sendo esses sua principal produção no veículo.

Com o título de ”Falando de dança com...”, Corseuil entrevistou vários profissionais, nacionais e estrangeiros em turnê pela cidade, e invariavelmente começava com a pergunta “como se fez dançarina(o)?”. Seguia-se então uma série de perguntas sobre a carreira do profissional em questão, como as melhores e piores recordações, os melhores papéis, qual gênero preferido, etc. Essa coluna não continha opiniões do crítico sobre seus entrevistados, como nos periódicos anteriores, funcionava somente como um espaço de perguntas e respostas, de fato um questionário. Trata-se, mais uma vez, da utilização do espaço da mídia para a apresentação desses artistas ao grande público, em uma tentativa de popularizar o balé e seus profissionais, oferecendo informações ao mesmo tempo em que educava o leitor sobre esse universo. Busca que Jaques Corseuil nunca deixou de fazer ao longo de sua carreira como crítico e jornalista de dança.

Na única matéria que escreveu para Sombra, em dezembro de 1943, com o título de “Rumo para o ballet”, Corseuil, ao tomar como exemplo Estados Unidos e Inglaterra, percebeu um importante fator para a construção do que entendia como bailado nacional: a formação de um público amplo para a dança. Público que só poderia ser alcançado por meio da “criação de escolas, grupos e agremiações”, a fim de facilitar o acesso a essa arte. Sua insatisfação com a falta de incentivo ao Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro era grande, mesmo com a temporada daquele ano tendo sido um sucesso1.

Interessante é sua percepção da necessidade de um envolvimento por parte do espectador com esse fazer específico, isto é, o público não deveria ficar distante, mas apreciar e entender a obra como um todo. Entendimento que só seria possível com o hábito de assistir espetáculos. Para ele o objetivo era claro, não se tratava apenas de formar bailarinos profissionais, “mas despertar o interesse e a simpatia de nossos meios por esta arte tão mal compreendida”.

Em maio do ano seguinte, 1944, na revista Vida, em sua matéria “O ‘ballet’ brasileiro”, retomou as deficiências que percebia no então único corpo estável oficial de balé do Brasil. Ao mesmo tempo em que criticava as poucas apresentações do Corpo de Baile do Theatro Municipal e a falta de um diretor artístico na casa, ressaltava os pontos que considerava positivos, como a própria existência dessa companhia e a qualidade demonstrada por seus bailarinos. Mais do que lamentar a falta de incentivo por parte do poder público, Corseuil aponta caminhos possíveis para a estruturação de um grupo “sólido e estável”, como a formulação de um repertório e a prática de aulas diárias, que dariam ao grupo, segundo seu entendimento, condições de se melhor organizar.

Considerações finais

As matérias publicadas por Corseuil apresentavam um pensamento que buscava, além de compreender a dança como uma elaboração artística e cultural, construir uma memória dos fatos e personagens que aqui atuavam. Além da preocupação em tornar a dança acessível a todos, seu trabalho é marcado pela defesa explícita que fazia acerca da necessidade de constituição de um bailado nacional, isto é, pelo o que na época era entendido como tal: temas nacionais dançados por bailarinos brasileiros, com partitura e cenografia de artistas brasileiros. Interessante observar que a função de coreógrafo era, de um modo geral, exercida por um estrangeiro, o que, no entanto, não era visto como um problema, já que na época eram profissionais vindos de fora do país que exerciam essa atividade. Cabe lembrar que a instalação da primeira escola oficial de bailados no Brasil havia se dado em 1927, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e a oficialização de seu corpo de baile em 1936. Estava-se, portanto, em processo de formação não só de público, mas também de profissionais para a área.

Dois aspectos chamam atenção na produção de Jaques Corseuil nos veículos aqui elencados: a recorrente apresentação dos profissionais da dança, chegando a entrevistar o mesmo bailarino, ou bailarina, nos diferentes periódicos para os quais escreveu, e o uso de sua coluna para defesa de seus ideais em relação ao balé nacional. Cabe ressaltar ainda que todos os perfis publicados eram acompanhados de, no mínimo, uma foto, para associar a imagem ao nome.

Durante os anos em que trabalhou como colunista nesses diferentes periódicos, Corseuil construiu uma extensa rede de sociabilidade, o que possibilitou seu acesso a dados e informações que dividiu com seus leitores. Mais ainda, permitiu conhecer o universo da dança profundamente, o que poucos críticos no Brasil conquistaram na época.

Ao escrever para veículos de grande circulação, alcançando assim um amplo e variado público, Corseuil buscou ao máximo que podia disseminar informações que, naquele período, não circulavam tão facilmente. Dados sobre as obras, repertório das companhias e mesmo detalhes pessoais dos bailarinos eram recorrentes em seus textos. Suas críticas também possuíam um alto grau de informação, a fim de estabelecer com seu leitor um diálogo e assim funcionar como um intermediador entre obra e espectador.

Ao usar seu espaço na mídia, tanto nos jornais quanto nas revistas, Jaques Corseuil buscava não só apresentar os profissionais da dança, mas acima de tudo tornar a dança, em especial o balé, conhecido e apreciado. Um objetivo que resultou na elaboração de um importante acervo para a dança, que pode ser entendida como um lugar de memória.

 

Referências bibliográficas

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1 Para um aprofundamento sobre a temporada de 1943 do Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro ver PEREIRA, Roberto. A formação do balé brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003.