11. A NOÇÃO JUDAICO-CRISTÃ DO CORPO E SEUS AFETOS PLÁSTICOS NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

11. THE JUDEO-CHRISTIAN NOTION OF CORPOREAL AFFECTIVITY IN CONTEMPORARY DANCE

Marcia Almeida

Resumo              

Tudo o que envolve o ser humano serve como referência na sua formação. No ocidente, a representação corporal se apresenta sob a égide da noção cristã do corpo segundo o modelo teológico. O corpo é desprezado em detrimento da valorização do espírito. A dança incita um julgamento moral cristão. O sentimento moral se confunde com o estético no momento da contemplação. Isso afeta o resultado da dança contemporânea que se vê no palco. Este texto, em tradução da autora, faz parte da tese intitulada: Les affections plastiques du corps et la danse contemporaine, defendida em 2009 na Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris (FR) financiada pela CAPES.

Palavras-chave | Arte coreográfica | Noção cristã do corpo | Dança contemporânea

Abstract

Everything that revolves around the human being serves as a reference to his or her own formation. In the West, the representation of the body is presented under the influence of the Christian notion of the body, according to the theological model in which the spirit is valued to the detriment of the body. Dance, then, encourages a judgment according to Christian morality.  Upon contemplation, moral feeling, or reaction, is confused with the aesthetic.  This affects one's perception of what is happening on stage. This essay, translated by its author,  is part of her dissertation entitled: Les affections plastiques du corps et la danse contemporaine (Corporeal Affectivity in Contemporary Dance), defended in the University of Paris I Panthéon-Sorbonne, Paris (FR), in 2009 and funded by a grant from CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ Coordinating Foundation for Graduate Programs).

Keywords | Choreographic art | Christian notion of the body | Contemporary dance

Marcia Almeida é Doutora em Estética/Dança pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne. Desde 2010 é professora do curso de Licenciatura em Dança (Instituto Federal de Brasília). Coordena o grupo de pesquisa Arte Coreográfica/Dança Contemporânea IFB/CNPq. Interessa-se pelos afetos plásticos do corpo na dança contemporânea. 

Marcia Almeida holds a Doctorate in Aesthetics/Dance from the University of Paris I Panthéon-Sorbone.   Since 2010, she has taught in the Undergraduate Program in Dance  (Federal Institute of Brasília) and is Coordinator of the research group Choreographic Arts/Contemporary Dance IFB/CNPq.   She is interested in the corporal affectivity of contemporary dance.  


 

A NOÇÃO JUDAICO-CRISTÃ DO CORPO E SEUS AFETOS PLÁSTICOS NA DANÇA CONTEMPORÂNEA

                                                                      Marcia Almeida

Desde a concepção da criança, tudo o que está à sua volta serve como referências complexas na sua formação: motivações, julgamentos, condutas, significado moral, educação. Esse conjunto de elementos fica tatuado na pele, assegurando a integração histórica da pessoa, em uma determinada cultura, mesmo que se apresente de forma sutil, num primeiro olhar. Lévi-Strauss (1983) considera que nas sociedades ocidentais se encontram fatores, inconscientes e conscientes, que determinam as trocas genéticas. Elas se fundam no espaço geográfico onde habitam os futuros casais e estão marcadas pela religião, origem étnica, nível de educação.

A noção do corpo no mundo ocidental é concebida pelo cristianismo. O modelo cristão propõe um princípio dualista, pois ele representa, de um lado, a aproximação do divino e, por outro, a aproximação da matéria do pecado. A carne é pesada e o espírito, leve.

Nas representações picturais do Cristo, ele aparece sempre com um corpo idealizado como imagem do homem criado por Deus. O Cristo é semelhante ao seu Pai quando ele acede ao status do Divino, logo que ele se desvencilha de seu corpo na Ressurreição. Por conseguinte, as imagens são pensadas segundo um ideal de aparência que não é nada mais do que o reflexo do humano. De fato, o olho que enxerga concebe o corpo segundo o modelo da interioridade espiritual.

Nessas sequências paradoxais do pensamento regido pelo cristianismo, Deus é invisível ao olhar humano, mas este deve procurar assemelhar à imagem que não vê. Explico isso pela pena de Jean-Marie Schaeffer:

Para que a imagem possa proporcionar acesso ao modelo, a relação de similaridade deve ser baseada em uma relação de cópia. Somente esta última pode garantir que o que é dado a ver é uma manifestação do Modelo, e não uma vã aparência improcedente. No caso da imagem – o Cristo –, a relação da cópia é garantida porque o Cristo é a imagem consubstancial do Pai. [...] Originalmente, o mundo é pensado como uma transcendência absoluta, situado além de toda representação e, portanto, inacessível aos humanos1 (Schaeffer: 2006, p. 70; 65, minha tradução).

O ser humano tenta representar através da pintura o que é concebido em sua memória, a lembrança das imagens do Paraíso, ou melhor, o ideal do Paraíso. O corpo deve se aproximar do que representa o corpo ideal. Existe uma ligação entre o pensamento do corpo e o culto das imagens do corpo. Dessa maneira, o homem cultua e representa a imagem de um corpo ideal segundo o que ele mesmo considera como perfeição. Cultua-se a imagem de um corpo idealizado cuja referência é algo inacessível ao olhar. Assim, Deus é a representação de um ideal representado pelo homem, segundo o que ele mesmo considera como perfeição. Compreendido que ele não pode representar a imagem de Deus, pois ela é inacessível ao olhar humano, a imagem do corpo tem como modelo uma imagem já existente, que vem a ser a imagem do próprio ser humano. No entanto, quanto mais o homem se aproxima do seu corpo, de sua carne, mais ele se distancia do Divino. Ele deve sempre apagar a diferença para se aproximar da perfeição de seu criador. Ou seja: ele deve negar a carne.

Segundo o Gênese, Deus era visível aos olhos de Adão e Eva até o momento em que o modelo feminino sucumbiu ao pecado da carne. É importante remarcar que, nas sociedades patriarcais, regidas ou não pelo cristianismo, a mulher é sempre aquela que aporta o pecado e semeia a doença no grupo ao qual ela pertence.

Essa passagem no Gênese chama a atenção sobre o prazer procurado através do ato sexual, da aproximação da carne, da sensualidade. De uma maneira indireta, ela é indulgente em relação à fraqueza masculina à mercê da sedução da mulher. O Gênese não mostra o modelo masculino como um sujeito vulnerável. Negligencia o poder da mulher através da fala, caso em que o discurso é considerado próximo ao intelecto, ao espírito, enquanto que o ato sexual é coisa da carne. Então o Gênese acentua o pecado como cometido pela mulher, remarca, sobretudo, a fraqueza através da falta, condena o corpo, a matéria. Sublinha que ela procura o conhecimento delineado pelo sexo. Esse discurso é muito importante no comportamento tangível ao mundo ocidental. No entanto, é a dois que se realizam, normalmente, as relações íntimas. Todavia o Antigo Testamento culpa o modelo feminino, ao designá-lo como este que está na origem da sexualidade, no lugar de atribuir esse papel ao casal. Eva quer buscar o conhecimento e convence Adão a segui-la. E o Gênese infatiza que foi a mulher que instigou o modelo masculino à transgressão e não que o modelo masculino tenha sido vulnerável.

Imagem 1: A Tentação de Adão e Eva, Michelangelo Buonarotti (1508-1512). Detalhe da Capela Sistina, afresco, Vaticano, Roma, Itália
(http://www.galerie-arts.com/boutique/index.html?lang=fr&target=d17.html).

 

  No Ocidente, a arte sempre foi marcada pela representação do corpo. Nas representações picturais, os corpos nus são mostrados como sinal de inocência, como neste afresco de Michelangelo representando o momento da tentação. O modelo feminino quer conhecer o mundo por si mesmo. Assim, Eva se volta em busca do conhecimento e convence Adão a segui-la. Este, sem nenhuma objeção, parte com o modelo feminino em busca de novas sensações; eles querem novas experiências e autonomia de ação.

O pecado da carne marca a diferença. O homem, não sendo mais do que uma imagem que perdeu sua dignidade, seu corpo passa a ser representado com uma folha que cobre seu sexo, sinal do pecado; como mostra o quadro, de Albrecht Dürer: Adão e Eva, pintado em 1507.

Imagem 2: Adão e Eva, 1507, Albrecht Dürer (Alemanha, 1471–1528). Óleo sobre tecido (209 x 82 cm por quadro), Museo National do Prado, Madrid
(http://forum.doctissimo.fr/psychologie/dieu-religions/peinture-chretienne-sujet_654_3.htm).

 

Adão e Eva aparecem neste quadro depois que perderam a pureza, e, mesmo assim, seus corpos são imagens de corpos infantilizados. O que marca a diferença entre os corpos de adultos mostrados nestes quadros e os que estão reproduzidos no quadro anterior é a folha de parreira que esconde o sexo, sinal da vergonha. Depois de serem expulsos do Paraíso por Deus, num ato de rancor, o homem será, a partir de então, sempre concebido em duas partes: uma que não é representável, à similaridade de seu Criador, e outra segundo o modelo que é a cópia. Isso é contraditório, pelo fato de que o Criador não é representável em imagens, pois é apenas a parte imaterial. Deus se mostra através da encarnação no Cristo, que é concebido à imagem daquele que seu Pai criou. 

Assim, após o evento em que Eva busca o conhecimento, o casal perde sua reputação e se torna cego em relação à imagem de seu Criador. Tudo o que o casal carrega consigo é a memória do paraíso e de seu Criador. Segundo o Gênese, é a partir de Adão e Eva que a Terra foi povoada e que os humanos foram destinados a não mais aceder ao paraíso, pois eles são hereditários do pecado. E assim começa uma eterna busca de se livrar da carne, fonte do pecado, para se ter direito a se aproximar do Divino. Doravante, o humano é condenado a ver seu Criador através da imagem-memória, pois Deus não se mostra nunca mais aos olhos humanos. Resta apenas a promessa de um novo encontro depois da morte, para os que seguem suas Leis. Dessa maneira, a única representação pictural possível é esta do Cristo, Seu filho, que foi concebido à semelhança do Pai.

Segundo Hannah Arendt (2005), o modelo do cristianismo é emprestado ao Império Romano, de acordo com o modelo proposto por Platão. O que muda de um modelo a outro é o nome “espírito” ou “inteligência” para a palavra “Deus”.

A partir da Renascença, o corpo humano profano é de acordo com o modelo ao qual ele se refere. Assim, a pintura propõe mostrar a harmonia interior através da beleza corporal. No quadro, a representação sensual de Eva, mulher pecadora, é exibida através de um corpo infantilizado. Ele não tem seio de adulto, nem curvas acentuadas, muito menos pelos.

Imagem 3: Eva Prima Pandora (em torno de 1550), Jean Cousin le Père. Pintura francesa, Museu do Louvre, Paris, óleo sobre tecido (0,97 m altura x 1,50 m largura)
(http://www.louvre.fr/llv/oeuvres/detail_notice.jsp?CONTENT%3C%3Ecnt_id=10134198673225176&CURRENT_LLV_NOTICE%3C%3Ecnt_id=10134198673225176&FOLDER%3C%3Efolder_id=9852723696500815&baseIndex=65&bmLocale=fr_FR).

 

O corpo, de beleza ideal, passa pelo corpo orgânico para se submeter à lei da forma. Ele é apresentado como paisagem da alma. Assim, a imagem do corpo foi pintada, sobretudo, conforme corpos infantis ou similares à inocência dos anjos. Os corpos são mais uma espécie de decoração do quadro do que uma representação de corpos, eles mesmos. O nu não é equivalente à carne do corpo sexuado, ele desvela a beleza da alma. Como se pode constatar neste quadro, o corpo aqui está próximo ao modelo do Divino, é o corpo dos anjos, puro sem pecados. Então, o corpo espiritual é figurado através de corpos que remetem à inocência e, assim, ele não é desejável. Dessa maneira, a representação do corpo é mais próxima de Deus, modelo que os olhos humanos não são capazes de ver por eles mesmos. Esse corpo se distancia da carne de Maria Madalena, que é o símbolo do corpo prostituído, aquele que vive da sua carne. Explico melhor: a imagem do corpo é mostrada neste quadro como a representação do espírito, corpo este que remete à pureza dos anjos e não ao corpo passível do pecado. Ele figura um corpo “desencarnado”, como o corpo das crianças em que a nudez da carne não as faz desejáveis.

Imagem 4: Amour endormi (1768), Louis Jean François Lagrenée (1724 - 1805). Pintura francesa, Museu do Louvre, Paris (1,21 m x 1,21 m).

 

Em 1768, Amour endormi, pintura feita por Louis Jean François Lagrenée, chocou os ideais da época. Mas, como podemos ver, os corpos ali representados estão longe de remeter à imagem real de um corpo adulto. Neste quadro aparecem corpos infantis, puros, quase assexuados, longe do corpo que sugere o pecado da carne. Dessa maneira, logo que o corpo é mostrado como sexuado, carnal e desejado, ele cessa de ter o lugar do olhar, que se dirige para a interioridade espiritual.

Ainda em nossos dias, o quadro L’origine du monde, pintado em 1866 por Gustave Coubert, representa a transgressão da imagem do corpo. Este quadro mostra o corpo do delito.

Imagem 5: L’origine du monde, Gustave Courbet.

 

Na época em que o quadro foi pintado, não havia mulheres independentes. Os modelos que posavam para os artistas eram considerados como “pouco frequentáveis” na sociedade marcada por uma moral severa, como sublinha Savatier, quando escreve sobre a reputação das mulheres:

Viver à margem das normas sociais – e o simples status de modelo e amante de um pintor era suficiente para ser julgada como marginal – permitia às pessoas “respeitáveis” marcá-las ao ferro da infâmia. [...] Somente a mulher casada (ou viúva), fina, fecunda, submissa, protetora de um lar de onde ela raramente se distanciava, tinha direito a considerações; as outras pertenciam à categoria das mulheres de vida duvidosa, termo genérico pelo qual se pressentia a filha de Eva tentadora, guiada por um prazer fortemente lúbrico. A sociedade puritana do Século XIX funcionava assim (Savatier: 2006, p. 54-55, minha tradução).2

E, por isso, a obra de Coubert foi confinada a um estado clandestino. De um lado, porque ele desvela explicitamente o sexo feminino, de outro porque ela excitava a curiosidade das pessoas em relação às modelos que poderiam ter posado para o artista. Essa obra foi considerada, então, uma representação escandalosa. Obra que provoca a fascinação e a rejeição. Jaques Lacan foi seu último proprietário, antes da obra ser adquirida pelo Museu d’Orsay, em 1995 (p. 199). Lacan apresentava esse quadro, que ficava escondido por um véu, somente a alguns convidados escolhidos por ele, que o visitavam. Ele propunha desvelar pouco a pouco esta parte da carne que sempre está escondida. Por certo, o véu que Lacan colocou sobre o quadro de Coubert teria como objetivo remeter ao jogo de palavras e designificações escondido nos sonhos, como propõe Lacan no trabalho terapêutico.

Segundo Lacan, a criança desvela a imagem fragmentada e parcial que começa a apreender de seu próprio corpo, até que ela se complete. Ele propõe desvelar as imagens, acordando a memória por palavras-chave. Assim, os fantasmas e as cenas do passado, que determinaram o destino de cada um, são resgatados progressivamente pela consciência, sanando o problema do paciente.

O quadro L’origine du monde representa a primeira imagem do corpo que a criança vê de sua mãe, no ato do nascimento: parte da carne sempre escondida por uma folha de parreira sobre os corpos infantilizados representados nos quadros da Idade Média. Coubert assume uma atitude ousada, tão ousada que ainda hoje sua obra evoca a transgressão. L’origine du monde está longe de representar a imagem da mãe virgem, imagem ideal da mulher, concebida pelo mundo judaico-cristão.

Na doutrina dualista o corpo está a serviço da alma; a beleza do corpo não é plástica, ela deve se aproximar da beleza não representável. Na sua nudez, a carne se distancia da inocência do paraíso, pois o corpo foi criado por Deus, à sua imagem e similitude. Lacan joga com esta representação da alteridade em relação ao seu Criador e a imagem explícita do sexo feminino, por onde o sexo masculino penetra para que o esperma possa ir ao encontro do óvulo. Aliás, esse ato é negado pelo cristianismo. Na mitologia cristã, Jesus é concebido no útero de uma mulher virgem. Com essa obra, Coubert transgride as convenções e inaugura uma nova geografia corporal. 

Depois do Século XX, houve outros meios (a fotografia, o cinema, a televisão e as imagens veiculadas na Internet) que difundiram a imagem do corpo nu, aliás, mais real do que a representação pictural.

Ao longo da história, o ocidental demonstra a tendência em explorar principalmente o corpo em sofrimento. Há uma certa inclinação em mostrar a intimidade do sofrimento do corpo, pois, segundo a noção cristã do corpo, é preciso desprezá-lo, para se aproximar do Criador. Assim, a reprodução do sofrimento permite ao espectador se identificar com a chaga de Cristo.

 Uma exposição fotográfica nas grades do Jardim de Luxembourg3, em Paris (2006/2007), demonstrou grande sucesso e a forte atração pelo corpo sofrido. Trata-se de um conjunto de belas fotos tendo como sujeito o cotidiano de nigerianos, malineses, senegaleses, burkinambeses e mauritaneses, mais exatamente da condição miserável desses povos. Eu me pergunto sempre sobre a questão da ética/estética deste tipo de trabalho. Em geral, são belas fotos tomadas por fotógrafos que exploram a miséria do outro. Eles violam a intimidade dos que não têm escolha de decidir se querem ou não ser expostos. Os fotógrafos mostram o que o olhar não vê: a miséria do outro. Fechar os olhos, a fim de guardar em abrigo o órgão que possui o sentido da visão, é um ato reflexo que o homem executa assim que se sente ameaçado por qualquer coisa de sua exterioridade. A miséria, a violência, a morte são coisas que não são muito agradáveis ao olhar, assim como nesta fotografia tomada por Sebastião Salgado.

Imagem 6: Refugee camp at Benako, Tanzania (1994), Sebastião Salgado.
http://www.berkeley.edu/news/media/releases/2002/01/18_salgado.htm
, © Sebastião Salgado.

 

Essas imagens evocam muito mais os objetos que nos ameaçam e nos fazem desviar o olhar. Mas, contrariamente ao que é esperado, corpos maltratados chamam a atenção, ao invés de provocarem o fechamento dos olhos. Aqui não se trata da questão social, mas, muito mais, porque no mundo cristão as pessoas sentem prazer em ver o corpo sofrido. Assim, não é exatamente a pobreza que chama a atenção, mas o corpo em sofrimento.

Dessa maneira os fotógrafos denunciam, de uma maneira artística, o que o mundo resiste em ver como um problema social mundial, no lugar de ver como um problema de um povo em particular. As imagens visualizadas da fome, da miséria, do sofrimento não mostram as consequências. Elas não mostram a qual tratamento penoso esses corpos se submetem, a cada dia. Todavia, eu penso que, no mundo contemporâneo, a arte não tem mais que cumprir o papel de denunciar esses fatos, pois a mídia o faz em tempo real. Basta lembrarmos das imagens da destruição das torres gêmeas nos Estados Unidos, quando o mundo inteiro assistiu o atentado de 11 de setembro. É verdade que esses fotógrafos mostram imagens que não interessam à mídia, caso a televisão precise do retorno econômico e seja mais rentável mostrar imagens que emocionem os países ricos. No entanto, nota-se que não houve imagens de corpos, quando do atentado aos Estados Unidos, pois a política preserva uma relativa intimidade. 

Resta então aos fotógrafos estetizar e expor a intimidade da miséria do outro, ali onde a existência de corpos pobres e sofridos é ignorada do mundo e onde suas vidas não valem nada. Onde não existe uma política de privacidade do sofrimento, como denuncia James Nachtwey, nesta foto que mostra como o ser humano é animalizado, desprezado. Porém não deixa de ser uma evocação ao corpo sofrido, proposto pela noção cristã do corpo.

Imagem 7: Famine victim in a feeding center (Sudan, 1993), Nachtwey.
(http://www.nikohk.com/2008/01/06/james-nachtwey-photographe/)

 

Mas estetizar o sofrimento é também desnudar para sempre as exigências das justificativas e fazê-las valer aos olhos dos diferentes espectadores. Esta estetização deve, então, produzir um efeito público, ao mesmo tempo que um efeito sobre o público. Ela permite igualmente uma nova orientação do ato e uma (re)codificação da relação com o outro sofredor; notavelmente no que concerne à denúncia, à indignação e/ou à compaixão diante desse sofrimento. Todavia, estetizar a miséria, e expor a mesma, não quer dizer que a arte seja capaz de transformar a pobreza dessas pessoas ou mesmo que o artista que a expõe tenha a intenção de mudá-la.

Os diferentes públicos têm percepção do sofrimento do mundo contemporâneo sem, no entanto, fazerem julgamentos avaliativos e definitivos. Em certos casos, por exemplo nos casos dos sofrimentos ligados à exclusão social, existem os que julgam que o artista tem obrigações sociais e deve levar algum retorno aos que foram fotografados, e outros que simplesmente têm a compaixão cristã. Raros são os que olham a obra e são mais tocados por suas qualidades plásticas e estéticas do que pela imagem exposta. Quando é mais difícil imaginar que no planeta exista tanta desigualdade. 

De fato, o objetivo do trabalho do artista não é mudar as coisas, como sublinhou Pedro Costa, quando da apresentação de seu filme En avant la jeunesse4, no dia 19 de fevereiro de 2008, no cine MK2 Beaubourg. Nesse filme, Costa desvela o cotidiano de habitantes de uma favela situada nos arredores de Lisboa. As imagens captadas pelo prisma dos olhos do artista são tão belas, que não é a pobreza de uma família que passa o dia assistindo a televisão que sobressai.

Para mostrar essas cenas, ele utiliza uma luz fraca, mas incandescente, que invade o espaço e envolve os olhos de quem contempla. Através do seu talento artístico, Pedro Costa nos transporta, sobretudo, para onde a beleza domina e chama a atenção, e não para onde a indigência habita. Ele joga com a sombra, opondo-a à luminosidade estonteante por sua beleza, e que escapa, por ser impossível retê-la prisioneira, da mesma forma como não podemos aprisionar Eros, filho do Caos, encarnação da harmonia e da potência criativa no universo. Ninguém pode aprisionar o amor. Se ele se sente acorrentado, ele foge. É assim que a beleza fugaz da obra de Pedro Costa se apresenta: é preciso contemplar sua beleza plástica, jamais tentar se apropriar da causa social.

Mas o sujeito ocidental tende a se apegar ao lado marginal. Sempre o mundo ocidental gostou de ver imagens que mostram o corpo sofrido, com o julgamento feito sobre a representação do corpo se apresentando sob a égide da noção cristã da corporeidade.

Segundo Foucault (2006), a praça estava cheia de espectadores durante o suplício de Damiens, conhecido por tentar assassinar Louis XV. Da mesma maneira, é narrado na Bíblia que a folia estava imensa no caminho do sacrifício de Cristo. É flagrante o sucesso dos vídeos, difundidos na Internet, que mostram a execução de soldados americanos. De fato, no mundo ocidental, os vídeos conheceram o sucesso ao invés de se tornarem impressões desagradáveis, o que era o objetivo daqueles que os divulgaram. Todavia, a relação do corpo no Ocidente tem um outro sentido. O povo do Oriente Médio tem uma relação diferente com o corpo. No mundo ocidental há uma tendência em priorizar a estetização do sofrimento, hábito residual da noção cristã do corpo.

Segundo essa noção, é preciso sofrer para ser salvo, de forma que a alma seja purificada podendo assim atingir o reino dos céus. Na cultura ocidental utilizam-se diversas maneiras de ver o sofrimento corporal, engendrado pelas diferentes situações de maltrato corporal. Esta noção do corpo sofrido impregna os corpos ocidentais: a vivemos sem pensar, sem questionar. Pois no mundo ocidental o corpo sempre foi pensado como o lugar do sofrimento. As pessoas apreciam a degradação do corpo. Existe um fascínio em face do sofrimento dos outros, pois a apreciação do corpo belo conduz à imagem do corpo carnal, condenado ao pecado pela noção cristã que rege o mundo ocidental.

Isso justifica por que os fotógrafos que expõem os corpos sofridos em detrimento dos belos corpos fazem mais sucesso perante o público. O corpo é sempre pensado como uma coisa que deve sofrer, e sempre essa representação é estetizada. As fotografias dos corpos sofridos são feitas num mundo longe das nossas fronteiras. Os sons, os perfumes escapam à imagem fotográfica. Seus sentidos nos escapam, e o que nós somos capazes de perceber e sentir é a dimensão plástica da imagem, desta forma de expressão visual. De fato, a fascinação pela imagem é a fascinação pela realidade virtual, aonde a pessoa não pode aceder. Essa representação não é real, pois esta virtualização do real passa a ser o assassino da realidade. A fotografia é o testemunho plástico dos acontecimentos e não o acontecimento em si. Através das fotos, o espectador não realiza a essência das imagens históricas, mas as imagens plásticas.

Assim a estetização não procura embelezar as coisas, mas fazer com que sejam admiráveis. No entanto, as coisas não se estetizam por elas mesmas, são as pessoas que as estetizam. Toda imagem é uma imagem formada pela exterioridade. Não existem imagens dentro de um espelho, se alguém não as pode olhar. A fotografia produz a distância entre o público e a representação.

A imagem existe através de uma relação do olhar: imagens ideológicas, lembranças, memórias. O humano é um sujeito imaginativo. A imagem é sempre a imagem de alguma coisa, tem uma intencionalidade e uma dependência. A imagem é sempre a imagem do outro. E é a imagem que nos reenvia o desejo, formado pela imagem imaginada. Este olhar vigilante, segundo Foucault (2006), é o que atribui valores às coisas da nossa historicidade, e que determina o que é bom e o que é mau.

Como o mundo judaico-cristão percebe negativamente a representação do corpo belo, numerosas stars vendem sua imagem com benfeitoras, para se fazerem conhecidas através da mídia e aceder ao grande público sem serem julgadas negativamente. Numerosas são as atrizes que escolhem ser fotografadas ao lado de crianças subnutridas a fim de vender uma boa imagem, como o fez também a princesa Diana. 

Imagem 8: Angelina Jolie
(http://angiesrainbow.com/site/images/unhcr/tchad_2007_6.jpg)

 

Recentemente, numerosas fotografias da atriz Angelina Jolie, rodeada de crianças africanas, foram difundidas na Internet. Fotos que expõem a miséria e as más condições de saúde dessas crianças. Sob cada foto havia comentários elogiando a generosidade da atriz. Um deles dizia que Angelina Jolie “é sensual sem ser vulgar”. É dessa maneira que a imagem da atriz é veiculada ao lado de corpos sofridos, explorando a intimidade de crianças miseráveis. A sensualidade de Jolie é perdoada, uma vez que ela é uma bela mulher que utiliza da sua beleza e fama para se aproximar das crianças pobres e sofridas, para promover sua autoimagem.

Imagem 9: Madonna of the Book, 1480, Sandro Botticelli (Florentine, 1455-1510). Óleo sobre tela (23 1/23 x 16)
(http://www.portrait-art.com/arrowood.htm)

 

Sua imagem se assemelha a essa de Maria, mãe virgem de Cristo, mulher assexuada, como nesse quadro de Botticelli. A imagem de Angelina Jolie evoca, sobretudo, a mulher maternal, modelo valorizado e aceitável, o que a difere da mulher sexuada.

Imagem 10: Madonna
(http://madonna-madonnahistory.blogspot.com/p/madonna-e-os-corsets.html
)

 

Em compensação, Madonna sempre foi condenada como fêmea carnal, sexuada, ela jamais teve o direito de ser sensual sem ser vulgar, como o foi Jolie. Em oposição ao que Jolie propõe em  sua imagem, Madonna se serve da sensualidade para divulgar sua imagem. Ela evoca o desejo carnal.

Aliás, os nomes das duas artistas são provocadores: uma se chama Angelina, o que remete aos anjos, seres que não têm sexo. E Madonna, que é a mãe virgem, sua imagem remete a Maria Madalena, a amante de Cristo. Maria Madalena perdeu seu título de Santa, assim como sua auréola. A mídia nunca associou a imagem da artista Madonna à mulher maternal. Embora ela tenha tido filhos, não circula na mídia a imagem da mãe. Que ela seja uma boa mãe para seus filhos, isso tem pouca importância na mídia. Sua imagem é sempre associada à transgressão da lei divina.

Uma vez que a sociedade pune a dessemelhança a Deus, eu remarco que os dançarinos contemporâneos têm a tendência em explorar nas composições coreográficas  movimentos corporais que dissimulam o corpo sexuado, a fim de subtrair o desejo carnal dos olhos que contemplam a arte. Tenho percebido uma tendência dos dançarinos em exibir, na cena, as matérias rejeitadas pelo corpo, de expor os rejeitos que sempre foram escondidos na intimidade do cotidiano, como a matéria fecal, urina, sangue, suor, saliva, pois eles não remetem ao desejo sexual como a carne. Os dançarinos demonstram uma preferência em conceber a imagem do sofrimento, compreendido que, no mundo ocidental, é preciso sempre se aproximar da imagem do Criador. Ao punir o corpo, a alma se eleva.

Paul Valéry comentou:

Jamais la danseuse humaine, femme échauffée, ivre de mouvement, du poison de ses forces excédées, de la présence ardente de regards chargés de désir, n’exprima l’offrande impérieuse du sexe, l’appel mimique du besoin de prostitution, comme cette grande Méduse, qui par saccades ondulatoires de son flot de jupes festonnées, qu’elle trousse et retrousse avec une étrange et impudique insistance, se transforme en songe d’ Éros; et tout à coup, rejetant tous ses falbalas vibratiles, ses robes de lèvres découpées, se renverse et s’expose, furieusement ouverte5 (2003, p. 33; 35).

Paul Valéry estabelece uma relação dos movimentos da dançarina, da medusa e da prostituta. E por que sempre esta relação da dançarina com a prostituta?

Mesmo que consideremos que as obras de arte são objetos ficcionais, elas estão sempre envolvidas de moral e ética. É preciso notar que as coisas, elas mesmas, não são boas nem más, é o olhar sobre elas que determina o seu valor. A percepção é subjetiva. Então eu questiono: as propriedades morais estão presentes nas obras de arte? Existe uma moral estética?

Durante o período que fiz minha pesquisa (2005 a 2009) no Brasil, Canadá e França, não existiam mais dançarinas e dançarinos. Eles/elas se denominavam intérpretes criadores e/ou performers. Quando eu fiz uma entrevista6 com a dançarina e coreógrafa Chantal Lamirande, perguntei-lhe por quais razões as dançarinas no Québec escolhem se denominar intérpretes-criadoras ou performers, no lugar de dançarinas. Ela me respondeu que as dançarinas de Montreal fizeram essa escolha para se distinguirem das dançarinas de cabaré. Após esse diálogo, decidi alargar essa sondagem. Escolhi fazer a mesma pergunta para as dançarinas brasileiras, canadenses e francesas. Fiz uma enquete por meio da Internet para saber por que as dançarinas não se denominam mais “dançarinas”. Houve muitas participações, dançarinas de todas as categorias de dança me responderam. Quando a pergunta se dirigiu a homens, as respostas se justificam pela formação: dizem que o dançarino é aquele que repete movimentos dados por outra pessoa, e os intérpretes-criadores são os que criam os seus movimentos.

Paradoxalmente, a palavra intérprete se refere àqueles que interpretam uma coisa dada. Não são eles que criam os seus personagens. Por conseguinte, as dançarinas me deram muitas explicações, mas todas, sem exceção, tanto as brasileiras, canadenses como as francesas, responderam que elas escolhem se denominar performers ou intérpretes-criadoras para se diferenciarem das dançarinas prostitutas. Isso quer dizer que existe ainda uma espécie de confusão entre a artista e a prostituta; que o corpo artístico é assimilado ao corpo prostituído.

A dança incita então um julgamento moral cristão para o qual o corpo é atributo do pecado. Mesmo após o movimento de contracultura dos anos de 1960, o sexo é ainda um tabu e o corpo em movimento remete sempre à conotação sexual impura. E basta o corpo mover-se, para que seja classificado como sexy/sensual. Assisti, no Youtube, a um video nomeado Very sexy contortion performance7. Tratava-se de uma artista russa de circo que fazia contorcionismo. De fato, não havia nada sexy em seus movimentos, apenas um corpo flexível. De toda maneira, é expondo o corpo que nós, as dançarinas contemporâneas e as dançarinas de cabaré, ganhamos nossas vidas. Mas não há de fato nenhuma relação entre as duas profissões, pois, tal como não importa em qualquer outro domínio artístico, a arte coreográfica não é concebida para seduzir sexualmente o espectador. Essa aproximação deve-se à noção judaico-cristã do corpo. E, sobretudo, é o olhar reprimido do outro que enxerga a sedução no corpo dançante.

Dessa maneira, certas dançarinas contemporâneas preferem negar sua formação em dança e a condição de dançarinas, pois têm problemas com o julgamento dos outros, compreendido que o julgamento moral é construído por uma sociedade judaico-cristã e que as mesmas vivem também sob a égide da noção judaico-cristã do corpo. Por conseguinte, mesmo que inconscientemente, existe sempre a passagem entre o sentimento moral e estético no momento da contemplação de uma obra. O pré-julgamento retrocede à noção dualista do corpo/espírito. Nos seus escritos, Platão fala do corpo como uma tumba da alma8. Ele considera a carne como vergonhosa e fraca, propõe que o corpo é matéria sem nobreza. No que concerne ao pensamento no mundo ocidental, o corpo instiga o desejo carnal; enquanto que o espirito cultiva suas faculdades intelectuais.

Assim, para não serem identificados com a carne, os dançarinos não se consideram como pessoas, mas como objetos de trabalho, pois eles estimam que, como executores de dança, não usam do intelecto. Todavia, Dewey (2005) considera que o termo “intelecto” significa simplesmente que a experiência tem um sentido; o termo “prática” indica que o organismo participa de experiências trocando com os eventos e objetos no meio em que estão inseridos.

O medo marca o limite entre o íntimo e o social. Ele envolve os músculos, ossos, vísceras, humores. A carne se organiza sob a pele e sob o olhar do outro (Sartre, 1996). Ela se modela segundo as normas sociais (Foucault, 2006).

Os dançarinos se consideram como material sem nobreza, depois que uma longa tradição da dança clássica os colocou a serviço de seu mestre, que os dançarinos teriam que superar para conquistar o lugar numa companhia. Eles tinham uma vida profissional muito curta e eram substituídos como se substitui objetos descartáveis. Posicionar-se como objeto sem nobreza é também uma consequência do pensamento judaico-cristão, pois a carne não vale nada.

Como já mencionei, o corpo sempre foi a figura central das obras de arte no mundo ocidental. A pintura foi o veículo da imagem e do pensamento sobre o corpo. O corpo não tem uma realidade própria, pois ele segue sempre uma imagem, ele deve se aproximar da perfeição invisível do Divino.

David Le Breton (2008) considera que o corpo é confundido no mundo, ele não é suporte ou prova de uma individualidade, caso esta repouse sobre fundamentos que a tornem permeável às evaporações do meio ambiente. O corpo não faz fronteira, mas é elemento indissociável de um conjunto simbólico. Assim, a noção cristã do corpo é pregnante no mundo ocidental e o modelo seguido é o da perfeição do Divino, dentro do qual o corpo é o pecado e só o espírito aproxima do Criador. É necessário, então, ficar muito atento a fim de não se apegar ao julgamento judaico-cristão, porque é o olhar reprimido e repressivo que enxerga sempre a sexualidade nos movimentos corporais.

Os dançarinos, sobretudo as dançarinas, devem se desvencilhar dessa marca profunda que resiste, no mundo ocidental.

Yves Klein renuncia ao controle quando propõe que a imagem do corpo seja traçada pelo corpo, como é mostrado nas imagens aqui apresentadas.

Imagem 11: Anthropométrie, performance de 9/03/1960, Yves Klein, foto Harry Shunk
(http://boomer-cafe.net/version2/index.php/Arts-plastiques-dans-les-annees-50/Les-femmes-pinceaux-d-yves-Klein.html).

 

Imagem 12: Anthropométrie de l’époque bleue (ANT 82), 1960, Yves Klein. Pigmento puro e resina sintética sobre papel (montado em tela 155 x 281 cm). Adquirido em 1984 pelo Centro Pompidou. © Adagp, Paris 2007
(www.centrepompidou.fr/.../ENS-Yves_Klein.htm).

 

Logo que o corpo cessa de ser mostrado como reflexo da alma, ele passa a ser carne animalesca e sexuada, assim a dançarina é carne-obra-de-arte, através da qual transgride a lei divina. Os outros domínios da arte são mais próximos ao espírito.

A dança se distancia da dança em si, para se aproximar da performance, pois os dançarinos supõem que o performer é mais dado à reflexão. Dessa forma, ela é mais próxima do espírito e assim do modelo do Divino, enquanto que a dança é mais próxima do corpo e do pecado. Talvez essa associação da performance com a intelectualidade remonte ao movimento artístico dos anos de 1960, pois,  com o Fluxus, os artistas estavam voltados para um engajamento ideológico. E a dança lembra as prostitutas que seduzem seus clientes com os movimentos corporais.

Segundo essa lógica, o corpo pode ser mostrado somente se ele comportar sinais que o faz se aproximar da imagem do corpo sofrido. Assim que ele aparece como corpo carnal, ele deve ser rejeitado. Isso quer dizer que o homem ocidental aceita a carne se ela for veículo da alma. Quando ocorre o julgamento sobre a representação corporal, isso se dá pela noção cristã do corpo. E relembrando, depois que Adão e Eva foram banidos do Paraíso, o corpo foi destinado ao sofrimento. As sociedades adotaram o suplício como condenação até o Século XVIII. O corpo do condenado era exposto em público, das torturas até a morte. O corpo era o objetivo maior da repressão penal. O suplício era um espetáculo, uma festa punitiva, como a condenação de Cristo. O espetáculo da crucificação foi seguido pela população.

Segundo as palavras de Foucault (2006), a punição deixa de ser pública. O principal objetivo da punição deixa de ser carnal e passa a ser subjetivo, moral, ético. O mesmo autor comenta que as sociedades educam o corpo pela alma. Mas a punição corporal continua sendo estetizada.

Assim, as sociedades remodelam o sistema punitivo e legitimam a “economia política do corpo”, quando elas utilizam métodos dóceis a fim de educar os corpos e os transformarem em úteis, subordinados a gestos e comportamentos. Coerções, interdições e obrigações são impostas. Os corpos são disciplinados, e isso implica obediência ao outro, pois a autonomia individual permite vigiar a conduta de cada um. Foucault (2006, p. 37) trata o “corpo político” como um conjunto de elementos materiais e técnicos que servem como armas, sevem de via de comunicação e de pontos de apoio às relações de poder que investem os corpos humanos e os subordinam, tratando-os como objetos de manipulação. Nos dias atuais as sociedades tratam o corpo dócil através da vigilância, pelo olhar, pelo julgamento do olhar social, que é um eficaz meio de punir imediatamente um mau comportamento na sociedade.

Cada sociedade tem sua maneira de vigiar e punir. A coerção se faz individualmente, é através da expressão corporal que se vigia, pois que o objeto de punição é a carne, o corpo em si mesmo.

Segundo a noção judaico-cristã, o corpo que dança se aproxima do corpo pecador que evoca a sensualidade mais do que a espiritualidade. A sexualidade representa o prazer da carne. Ela concerne um dos sete pecados capitais, a luxúria. Se o corpo se afasta da fonte do seu ser, a alma perde a sensibilidade e se faz dessemelhante do Divino. Para salvar sua pele, o ser humano tem que se aproximar do Divino. Na concepção que o público faz do corpo dança, ele é mais sexual do que obra de arte.

 

Referências bibliográficas:

ARENDT, Hannah. La crise de la culture (1972). Paris: ed. Gallimard, 2005.

DEWEY, John. III L’art comme expérience. Introdução Richard Shusterman; Posface Stewart Buettner. Tradução do inglês (USA, no quadro do GRAPPHIC e do CICADA)  Jean-Pierre Cometti, Christophe Domino, Fabienne Gaspari, Catherine Mari, Nancy Murzilli, Claude Pichevin, Jean Piwnica et Gilles Tiberghien; coordenação Jean-Pierre Cometti. Farrago: Universidade Pau, Farrago, 2005.

FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: Naissance de la prison (1975). Paris: Gallimard, 2006.

LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité (1990). Paris: Quadrige/PUF, 2008.

LEVI-STRAUSS, Claude. Le regard éloigné. Paris: Plon, 1983.

SARTRE, Jean-Paul. L’être et le néant: Essai d’ontologie phénoménologique (1943, edição corrigida com indicação feita por Arlette Elkaïn-Sartre). Paris: Gallimard, 1996 (Col. Tel).

SAVATIER, Thierry. L’Origine du monde: histoire d’un tableau de Gustave Courbet. Paris: Bartillat, 2006.

SCHAEFFER, Jean-Marie. Qu’est-ce q’un corps ? Afrique de l’Ouest/Europe occidentale/Nouvelle-Guinée/Amazonie. Direção Stéphane Breton. Michèle Coquet, Michael Houseman, Jean-Marie Schaeffer, Anne-Christine Taylor, Eduardo Viveiros de Castro (autores). Paris : Museu Quai Branly-Flammarion, 2006.

VALERY, Paul. Degas Danse Dessin. Paris: ed. Gallimard, 1985.

 



1 Pour que l’image puisse donner accès au modèle, la relation de ressemblance doit être fondée sur une relation d’empreinte. Seule cette dernière peut garantir que ce qui se donne à voir est bien une manifestation du Modèle, et non pas une vaine apparence sans fondement d’être. Dans le cas de l’image conforme – le Christ –, la relation d’empreinte est garantie parce que le Christ est l’image consubstantielle du Père. […] À l’origine, le monde est pensé sous la forme d’une transcendance absolue, située au-delà de toute représentation et donc inaccessible à l’homme1 (Schaeffer: 2006, p. 70; 65).

2 Vivre en marge des normes sociales – et le simple statut de modèle et maîtresse d’un peintre suffisait pour être jugée marginale – permettait aux gens “respectables” de vous marquer au fer de l’infamie. […] Seule la femme marié (ou veuve), prude, féconde, soumise, gardienne d’un foyer dont elle s’éloignait rarement, avait droit à la considération; les autres appartenaient à la catégorie des femmes de mauvaise vie, terme générique derrière lequel on pressentait la fille d’Ève tentatrice, guidée par un plaisir forcement lubrique. La société puritaine du XIXème siècle fonctionnait ainsi (Savatier: 2006, p. 54-55).

3 Exposição fotográfica proposta por Roberto Neumiller, Sahel, L’homme face au désert (Homem diante do deserto), nas grades do Jardim do Luxembourg, Paris, de 24 maio até 1º de julho 2007.

4 Filme realizado por Pedro Costa, com Mario Ventura Medina, Vanda Duarte, Beatriz Duarte. Filme de produção francesa/portuguesa/suíça. Duração: 2h35min. Ano de produção: 2006. Título original: Juventude em marcha. Distribuído por Équation.

5 Nunca a mulher dançarina, embriagada pelos movimentos, pelo veneno de suas forças esgotadas, pela presença ardente de olhares carregados de desejos, traduziu a oferta imposta pelo sexo, a chamada mímica da necessidade da prostituição, como a grande Medusa que, por movimentos ondulatórios do fluxo de sua saia bordada, que ela mexe e remexe com uma estranha e impudica insistência, transforma-se em produto de imaginação de Eros; e de repente, rejeitando todos os vibrantes ornamentos, seus vestidos de lábios cortados, se mostra pelo avesso e se expõe, furiosamente aberta.

6 Entrevista concedida em Montréal, Canadá, 7 dez. 2007.

7 http://youtu.be/A67XujOnFJQ

8 Ver sobretudo: Phédon, Timée, Philèbe e La République.