12. NÃO SOBRE O
AMOR: PRODUÇÃO DE PRESENÇA E NOVAS MÍDIAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA
12. NOT ABOUT LOVE: PRODUCTION OF
PRESENCE AND NEW MEDIA IN CONTEMPORARY ART
Manoel
Silvestre Friques
Resumo
O artigo apresenta um estudo sobre a relação
entre produção de presença e utilização de tecnologias contemporâneas de
comunicação por parte de artistas e criadores, observada não só em produções
pertencentes aos campos das artes cênicas (caso do espetáculo Não sobre o amor, de Felipe Hirsch) e
das artes visuais (a vídeo-performance de Vito Acconci, Theme Song), mas também dando margem a discussões conceituais, em
especial, aquelas desenvolvidas por Hans Ulrich Gumbrecht.
Palavras-chave | Presença | Novas mídias | Arte contemporânea
Abstract
This article presents a study
on the relationship between the production of presence and the use of
contemporary technologies of communication on the part of artists and creators.
To this end, it analyses works belonging to the fields of performing arts (Não sobre o amor, by Felipe Hirsch) and the visual arts (Vito Acconci’s Theme Song),
as well as related conceptual discussions, in particular those developed by
Hans Ulrich Gumbrecht.
Keywords
| Presence | New media | Contemporary art
Manoel Silvestre Friques é Mestre em Artes cênicas
e bacharel em Teoria do teatro (UNIRIO), engenheiro de produção (UFRJ), e
professor da Faculdade de Artes do Senai CETIQT.
Manoel
Silvestre Friques holds an
M.A. in Scenic Arts and a B.A. in Theatre Theory (UNIRIO). He is a production
engineer (UFRJ/Federal University of Rio de Janeiro), and teaches in the
Faculty of the Arts, Senai CETIQT.
NÃO SOBRE O AMOR: PRODUÇÃO DE
PRESENÇA E NOVAS MÍDIAS NA ARTE CONTEMPORÂNEA
Manoel Silvestre Friques
Just a perfect day
you made me forget myself
I thought I was someone else
someone good
Lou Reed
A tua presença
Desintegra e atualiza
a minha presença
Caetano Veloso
O
desejo de pensar a relação entre a presença e os aparatos tecnológicos surgiu
por ocasião do lançamento1 no
Brasil do livro Produção de Presença – o
que o sentido não consegue transmitir, escrito com o compromisso de “lutar
contra a tendência da cultura contemporânea de abandonar, e até esquecer, a
possibilidade de uma relação com o mundo fundada na presença” (Gumbrecht: 2010,
p. 15). O argumento propõe uma superação do paradigma sujeito/objeto,
estabelecendo uma oscilação entre “efeitos de sentido” e “efeitos de presença”,
oscilação essa característica aos objetos da experiência estética. Em outras
palavras, Gumbrecht parece reavaliar o papel da interpretação – entendida como
a identificação e a atribuição de sentido nas Humanidades – ao afirmar que o
contato humano com as coisas do mundo apresenta tanto um componente de sentido,
por meio do qual é possível apreender a complexidade semântica de um
determinado objeto estético, quanto um componente de presença, no qual é
recuperada a dimensão corpórea e espacial de nossa existência.
Desse modo, não apenas a experiência estética detém a exclusividade da dimensão
presencial, apesar de sua exemplaridade ser o ponto de partida para o
esclarecimento conceitual do autor. Gumbrecht parte da experiência estética, na
qual se produz uma epifania, para
falar de “momentos de intensidade” nos quais a presença – entendida como uma
“sensação de ser a corporificação de algo” (p. 167) – é instituída. Mas o autor
recorre também a exemplos de experiências não exclusivamente artísticas, dentre
as quais destacam-se a primeira mordida de uma refeição maravilhosa ou a
alegria decorrente de uma jogada de futebol americano. Em suma, as situações
únicas propostas pelos objetos estéticos podem ser encontradas em outros
contextos que não aqueles especificamente artísticos2. Devido
a isso, o autor busca descrever seu perfect
day, a fim de “encontrar o lugar certo para o corpo, com que nos brinda e
nos acolhe um edifício projetado com perfeição” (p. 127).
Do
ponto de vista teatral, a palavra presença
é recorrente em críticas e avaliações de performances atoriais. Veja-se,
por exemplo, o comentário de Patrice Pavis: “‘ter presença’ é, no jargão
teatral, saber cativar a atenção do público e impor-se [...]. Segundo a opinião
corrente entre a gente de teatro, a presença seria o bem supremo a ser possuído
pelo ator e sentido pelo espectador” (2003, p. 305). Antes de ser reconhecida
como uma característica física inerente a um ator ou ainda ser identificada por
meio de um objeto cênico que lhe configure, a presença no âmbito teatral diz
respeito, em um primeiro momento, a algo que se manifesta no corpo do ator. Sua
existência, porém, se dá, nas palavras de J. P. Ryngaert citadas por Pavis:
“sob a forma de uma energia irradiante, cujos efeitos sentimos antes mesmo que
o ator tenha agido ou tomado a palavra, no vigor de seu estar ali” (Ryngaert apud Pavis: 2003, p. 305). Sob essa
perspectiva, percebe-se que a relação entre atuação e presença não é exclusiva,
isto é, em muitas apresentações, o espectador não irá sentir obrigatoriamente a
presença do ator/performer, por mais
que ambos compartilhem a efemeridade do acontecimento cênico. Desse modo, ter,
ou não ter vigor de estar é algo que
diferencia uma atuação das demais, singularizando-a. Por ser algo percebido e
não obrigatoriamente apreendido semiologicamente, a presença é difícil de ser
designada de maneira objetiva. Ela adquire, com isso, uma carga misteriosa,
quase mítica.
Este
vigor de estar possui alguns elos de
contato com os momentos de intensidade propostos por Gumbrecht. Isto porque,
tal como a presença do ator, que é
imprevisível, temporária e quase impossível de ser designada, a presença de que fala Gumbrecht
compartilha da mesma efemeridade e inconstância:
na
verdade, antes de ouvir minha ária favorita de Mozart, não posso ter certeza de
que sua doçura tomará de novo conta do meu corpo. Pode ocorrer – mas sei e já
antecipo a reação de lamento acerca dessa experiência – que será só por um
instante (se, de todo, acontecer) (2010, p. 127).
Dito
isso, e considerando a abrangência proposta pela expressão “momentos de
intensidade”, tudo leva a crer que a presença do ator configure-se como uma das
muitas possíveis produções de presença de que fala o autor. Mais do que isso,
tal presença, por não estar obrigatoriamente vinculada a uma atuação (pois o
comediante pode desempenhar seu papel sem que, no entanto, nenhum membro da
plateia sinta a sua presença), mas à corporificação de algo no receptor (aquilo
que toma conta de seu corpo), impõe a seguinte questão: “essa presença nos é
dada ou [...] nós, os espectadores, que primeiramente a produzimos” (Lehmann:
2007, p. 237)? Ao que parece, a origem e o campo de atuação da presença se
localizam no espaço relacional criado entre obra e seu interlocutor. Voltaremos
a este ponto.
Em
uma perspectiva complementar à anterior, a presença se refere, no âmbito das
artes cênicas, ao encontro, em um tempo-espaço determinados, do acontecimento
teatral com a ficção proposta. Há, com isso, uma espécie de colisão espacial e
temporal, na medida em que a cena apresenta jogos com o real, questionando sua
viabilidade e múltiplas manifestações. É preciso esclarecer que o intuito,
aqui, não é de fundar uma dicotomia entre realidade e ficção. Entende-se, com
essa presença da cena, a instituição
de uma dinâmica instável de perguntas e questionamentos, afirmações e
apagamentos daquilo que se chama e se entende por real. A ficção, seja uma adaptação moderna de um drama ortodoxo,
seja uma performance fundada no
acaso, apresenta um jogo de realidades e contextos3. Ela não
é, portanto, apenas um espetáculo teatral resultante de uma encenação fiel a um
texto dramático, mas também um espaço no qual se instituem, se diluem e
sobrepõem dimensões variadas do real.
Neste sentido, a presença da cena aposta
em um cruzamento e uma articulação de temporalidades e espacialidades
distintas, operação que se atualiza no interior do acontecimento
cênico-performático.
A
dinâmica encontrada na presença da cena pode
ser lida como o “jogo da presença no teatro contemporâneo”, nas palavras do
professor José Da Costa Filho. Para o autor, é possível encontrar duas
vertentes teatrais distintas nas manifestações cênicas atuais: de um lado, há
aquela “fundada na explicitação da presença, como performatização material e
corporal exacerbada” (Da Costa: 2010: p. 128). Exemplos desta vertente são
encontrados nos espetáculos dos diretores José Celso Martinez Correa e de
Antônio Araújo. De outro lado, há um “esmaecimento irônico e cerebral da
presença” (p. 128), observado nas experiências cênicas de Gerald Thomas e de
Enrique Diaz. Estes dois eixos, porém, não são antagônicos. Da Costa esclarece
que ambas as tendências estão presentes nos espetáculos dos quatro encenadores
citados, porém, em cada um deles prevalece de modo mais explícito uma ou outra
vertente. A verificação conjunta de ambas as vertentes institui o jogo cuja
finalidade é justamente propor um questionamento de uma definição de presença,
associada “a certa ideia de linearidade temporal, de causalidade, de unidade e
de totalidade de contextos, i.e., de homogeneidade e de coerência desses
últimos com relação a si mesmos” (p. 123). Desse modo, o teatro contemporâneo
parece colocar em xeque a noção de presença teatral, entendida como verdade de
um corpo vivo e não mediado. Aqui, a utilização de novas tecnologias de
comunicação e informação, com destaque para projeções e amplificações sonoras,
tende a reforçar a problematização da presença como atualidade autêntica do
corpo. Leia-se o comentário de Pavis, a propósito da oposição entre espetáculo
ao vivo, de um lado, e midiático, de outro:
A
presença do ator significa que esse ator seja visível? E se ele está invisível,
situado nos bastidores, ou atuando sistematicamente atrás de um painel servindo
de tela – percebido ao vivo apenas pelo vídeo e projetado numa parte do
cenário; e se ele está ao telefone ou é filmado pela webcam num outro extremo do planeta? Nesse caso, ele faz, então,
ato de presença, uma presença que podemos imaginar à falta de percebê-la
indiretamente. [...] A presença não está mais ligada ao corpo visível. Se estou
ao telefone, estou presente – live – mas,
evidentemente ausente do espaço visível. [...] Não estamos mais em condições de
distinguir presença live e gravação,
carne e componente eletrônico, ser de carne e de sangue e cyborg perfomático (Pavis: 2010, p. 176-177).
Há,
portanto, uma impossibilidade em se definir a presença enquanto materialidade
que se mostra ao vivo e em carne e osso. Em seu lugar, surge uma reflexão que
aposta em atos de presença que, não
fundados em uma dicotomia real-gravado, instauram presenças em camadas ou
níveis diferenciados. A cena contemporânea, desse modo, parece libertar a
presença de sua definição mais habitual – compreendida como representação ou
mimese –, tendência que reforça o caráter evanescente, mítico e inconstante
desta: “o presente não é um ponto do agora coisificado em uma linha do tempo; ele
ultrapassa esse ponto num incessante desvanecer, e ao mesmo tempo é cesura
entre o passado e o porvir. O presente é
necessariamente erosão e escapada da presença” (Lehmann: 2007, p. 239).
A
ênfase na noção de presença pode também ser observada no âmbito das artes
visuais, onde, nas últimas décadas, observa-se um duplo movimento de
intensificação da presença – tanto do artista quanto do espectador – e de
desmaterialização da obra de arte. Na realidade, os termos artista e espectador, ao
serem utilizados neste contexto, se mostram inadequados, pois o artista, muitas
vezes, apresenta-se como obra, e o espectador, por sua vez, transforma-se em participador4,
sendo o responsável pela ativação da mesma. A performance art, desenvolvida a partir dos anos 60 e 70, revela-se
como o campo artístico mais notório, no qual se encontra uma quantidade
considerável de proposições que afirmam a presença de um corpo literal em
contraposição a um corpo idealizado e/ou representado (Matesco: 2009, p. 7).
A
presença do artista (para dialogarmos com o título da performance The Artist is present, realizada por
Marina Abramovic em sua retrospectiva no MoMA em 2010) conduz, com isso, a uma
abordagem de seu próprio corpo como parte constitutiva da obra, embaçando a
distinção entre sujeito e objeto. Além disso, as práticas da performance art foram desenvolvidas em
um contexto de proliferação de gêneros artísticos, tais como a vídeo-arte, a
arte conceitual e o minimalismo, todos eles engajados em um debate a respeito
dos limites e das possibilidades da criação artística. A heterogeneidade que
caracteriza a trajetória dessas manifestações artísticas permite a criação de
novas dimensões de presença, seja na apresentação do corpo como obra de arte,
seja na ênfase no processo em detrimento da obra acabada, seja na
desmaterialização da própria obra por meio de aproximações com a vida (como as
propostas de Yoko Ono na época do Fluxus),
formulação de conceitos (como as obras de Joseph Kosuth) ou ainda através das
propostas audiovisuais no campo da vídeo-arte.
Em
muitos casos, o ato do artista é aquele que funciona como um “ativador de
outros atos (dos participadores),
endereçando de imediato a noção de obra como proposição ou como instrução”
(Melin: 2008, p. 57). Há, com isso, uma reconfiguração do papel do espectador
em uma situação onde a distância entre ele e a obra é suprimida, a fim de se
reforçar a criação de um espaço interativo. Prevalece, assim, uma forma
relacional que aposta na instauração de um interstício social, “espaço de
relações humanas que, mesmo inserido de maneira mais ou menos aberta e
harmoniosa no sistema global, sugere outras possibilidades de troca além das
vigentes nesse sistema” (Bourriad: 2009, p. 23). Tais possibilidades são
reveladas, por exemplo, na proposição por parte de artistas, não de obras
acabadas, mas antes de espaços de convívio e encontros casuais que tomam a arte
como um estado de encontro fortuito. Neste sentido, os parangolés de Hélio
Oiticica podem ser considerados obras icônicas, por solicitarem do espectador a
sua participação tanto sensório-corporal quanto semântica. Recentemente,
destacam-se proposições performáticas, como aquelas propostas pelo brasileiro
Michel Groisman, e também experiências cibernéticas, nas quais o feedback funciona como o principal
recurso de transformação de sistemas eletrônicos.
A ênfase na forma relacional é uma das chaves principais para a noção transcinemas, desenvolvida por Kátia Maciel para definir as instalações audiovisuais que se situam entre o cinema e as artes visuais e criam para o espectador um espaço de envolvimento sensorial. Nestas experiências, a presença do espectador é fundamental para a ativação da obra. Tornado participador, ele é
parte
constitutiva da experiência proposta, isto é, um sujeito interativo que escolhe
e navega o filme em sua composição hipertextual, em suas dimensões
multitemporais, multiespaciais e descentradas, que interconectam fragmentos de
imagens e sons, e multiplicam os sentidos narrativos (Maciel: 2009, p. 18).
A
obra, com isso, não se define nem pelo artista nem pelo sujeito implicado, mas
pela relação entre ambos. Bom exemplo é a instalação The House [A casa] (2002), da finlandesa Eija-Liisa Ahtila, na qual o participador deve
percorrer as três telas que compõem o espaço projetivo, a fim de acompanhar – e
vivenciar, por meio do campo visual divergente que ecoa o estado mental da
protagonista – a história de uma mulher que é acometida por psicose. A
desintegração espaço-temporal decorrente da alteração psíquica não é revelada,
portanto, apenas no contexto ficcional da trama proposta, mas no dispositivo
arquitetônico criado para tal. Assim, por meio do rompimento do fluxo clássico
da lógica cinematográfica, Ahtila propõe ao espectador uma experiência
psicótica que ele deve não apenas compreender racionalmente, mas presenciar
corporalmente.
Tanto
as experiências artísticas híbridas no campo dos transcinemas, quanto os acontecimentos cênicos que lançam mão de
novas tecnologias contemporâneas de informação e comunicação parecem promover o
que Gumbrecht chama de “re-despertar do desejo de presença” (p. 15). Trata-se,
na realidade, de um paradoxo formulado pelo autor, para quem o ambiente
mediático, se, por um lado, serve para alienar-nos das coisas do mundo, por
outro lado, possui o potencial de nos devolver algumas coisas deste mesmo mundo
(p. 173). Aquilo que os aparatos tecnológicos parecem nos devolver é justamente
uma noção de presença que, ao invés de estar fundamentada em um pensamento
dicotômico (real versus virtual,
sujeito versus objeto, obra versus espectador etc.), se mostra como
uma situação de corporificação que escapa a uma apreensão de sentido e, com
isso, a uma definição estanque. De fato, a presença, longe de ser um atributo
específico a uma manifestação artística, deve ser encarada como um momento,
fortuito por assim dizer, no qual é estabelecida uma relação intensa entre o
indivíduo e a obra de arte. Nestes casos, a presença, isto é, a relação
instituída no interior de uma proposição artística, se revela como a própria
obra de arte.
Passemos
agora à análise de duas obras, quais sejam Theme
Song¸ vídeo de Vito Acconci, e Não
sobre o Amor, espetáculo de Felipe Hirsch. É preciso dizer que não se
busca, com tal análise, afirmar que tais obras produzem presença
indeterminadamente. Os dois trabalhos aqui discutidos são úteis na medida em
que apresentam uma discussão em torno desta noção. No vídeo de Acconci,
interessa o modo como o artista problematiza a ideia de presença fundada no
encontro real de corpos vivos. No caso de Hirsch, a encenação da Sutil Cia de
Teatro apresenta, tanto em sua estrutura formal quanto em sua abordagem
temática, camadas de presença a partir de dois eixos centrais e complementares:
o amor não correspondido e o exílio.
Theme Song e a ilusão da presença
Em
Theme Song, de 1973, vê-se Vito
Acconci deitado sobre o chão de uma sala-de-estar, cara a cara com os
espectadores, em close up. A
estrutura do vídeo é simples: durante trinta minutos, Acconci empenha-se em
seduzir o espectador, propondo-lhe a todo momento que vá ao encontro dele.
Trata-se de uma intimidade encenada e protagonizada pelo artista cujo título, Theme song, refere-se a um importante elemento estruturante do vídeo: as
músicas que o artista coloca ao longo do plano-sequência e que servem de
fundamento discursivo para o approach.
Instigante
neste trabalho é o apelo dirigido ao espectador. Evidentemente, este não é um
elemento específico ao vídeo de Acconci – os canais televisivos usam e abusam
deste procedimento a fim de criar necessidades, direcionar desejos e ampliar o market share. Neste caso, porém, o apelo
dirigido ao espectador é tal que o artista tenta, a cada segundo, realizar a
aproximação entre corpos, tentativa essa fundada sobre um impasse. As trilhas
sonoras, por sua vez, tratam de reforçar o approach,
ajudam Acconci em sua solicitação do espectador para se juntar a ele, ao mesmo tempo em que tematizam também
a impossibilidade do cara-a-cara, do corpo-a-corpo. Diz Acconci,
a partir da canção de Jim Morrison:
É claro que não posso ver o
seu rosto. Eu não tenho ideia de como ele se parece. Você pode ser qualquer um
do outro lado, mas certamente está me assistindo. Alguém que deseja ficar bem
perto de mim… Venha, estou sozinho… Serei sincero com você, O.K., Quero dizer,
você terá que acreditar em mim…5
Além
de estruturar o discurso de Acconci, servindo como ponto de partida para a
sedução, as canções trazem para a cena vozes que criam ilusões de presença de
seus intérpretes. Isto porque Acconci não está com uma banda, no centro de uma
orquestra que toca as músicas solicitadas. No espaço privado de uma sala de
estar, o artista lança mão de gravações sonoras que presentificam o desempenho
dos músicos ao mesmo tempo em que o artista apropria-se de letras e sonoridades
com o intuito único de seduzir o espectador, convencendo-o a se juntar a ele.
É
impossível, no entanto, ir ao encontro de Acconci. Por mais que deitemos no
chão, nos aproximemos de sua imagem, respondamos aos seus apelos, este
encontro, apesar de ter o consentimento de ambas as partes, se mostra inviável.
Acconci fala conosco, mas nós somos um interlocutor forjado e construído pelo
artista. Se, de um lado, podemos vê-lo performar diante de nós, nós, para ele,
somos algo imaginado, algo que não está ali e que ele deseja trazer para o seu
chão. Neste encontro a dois, entre cada um de nós e o artista, a intimidade
encenada apresenta uma articulação de espacialidades e de temporalidades
distintas. Vemos a imagem, a voz, o corpo, estamos diante de Acconci e ele está
em nossa frente. Porém, nossa presença difere daquela promovida pelo artista.
Neste trabalho, lida-se com presenças estratificadas: a presença videográfica
de Acconci, a nossa presença imaginada pelo artista, a nossa presença no
momento da recepção, e ainda o momento original de gravação. Aqui, somos
desafiados, a cada instante, a ignorar os diferentes níveis de presença,
desafio este que é, desde o início, fracassado. Porém, no momento presente do
corpo-a-corpo, no ato de exibição de vídeo, o corpo do artista, há quarenta
anos atrás, e o nosso corpo agora parecem se encontrar justamente no abismo que
define a distância entre nós e Acconci. Afinal de contas não podemos ignorar
aqui que há um encontro.
Não sobre o
amor e a
presença estrangeira
Não sobre o amor, espetáculo que estreou
no Rio de Janeiro sob a direção de Felipe Hirsch, encena o amor epistolar não
correspondido entre o formalista russo Victor Chklovski (papel de Leonardo
Medeiros) e sua amada Esla Triolet, em um período em que ambos estão exilados
em Berlim, longe de São Petesburgo, a terra natal. Em sua residência, situada
próxima a um zoológico, o escritor passa a escrever cartas, muitas delas
direcionadas à pessoa amada. Só que Alya (o nome de Elsa na peça, interpretada
por Arieta Correa) não é apenas a mulher que não corresponde ao amor do
escritor. Alya, na verdade, é a impossibilidade de se voltar para casa. A
última fala do protagonista interpretado por Medeiros é expressiva: “Eu
inventei o amor e a mulher para escrever sobre desentendimento, sobre uma terra
estrangeira, pessoas estrangeiras. Um estrangeiro é aquele cujo amor está em
outro lugar”. Alya é, portanto, uma figura cuja presença instaura um
deslocamento, um isolamento e uma ausência.
A
condição de deslocamento que surge no personagem Alya é, ao que parece, o
elemento estruturante de todo o dispositivo teatral. Destaca-se, por exemplo, a
cenografia de Daniela Thomas, que institui um quarto onde tudo está fora de
lugar: luminária, cama, mesa, escrivaninha, janela e porta são deslocadas do
chão e espalham-se por todos os lados da caixa teatral. Desse modo, tanto o
protagonista quanto seus objetos não estão onde deveriam estar. A consequência
disso é a criação de um espaço em suspensão, caracterizado pela distância dos
seres e das coisas em relação a eles mesmos. Outro efeito da cenografia é o
traço cinematográfico presente no espetáculo, pois, à frontalidade esperada de
um espetáculo teatral somam-se vistas laterais, superiores e frontais, que
simulam, no espectador, uma flutuação em torno daquele quarto. A cenografia,
com isso, apresenta enquadramentos que extrapolam a lei da gravidade e que, por
isso, permitem que o olhar gravite pelo quarto, seja quando o escritor está
sentado em sua escrivaninha situada na parede à direita, seja quando ele dorme
na cama localizada na parede ao fundo (nos oferecendo a vista superior), ou
ainda quando ele está de cabeça para baixo no chão tornado teto.
O
traço cinematográfico mencionado anteriormente resulta não apenas da construção
cenográfica, mas de sua articulação com a projeção. De fato, este espetáculo
pode ser considerado uma experiência limítrofe entre o cinema e o teatro. Isto
porque os efeitos promovidos pela iluminação e, em especial, pela projeção
tratam de sublinhar o exílio e o deslocamento do protagonista. Aqui, o apuro
visual é de tal ordem que, em determinados momentos, o quarto é duplicado sem
que se possa reconhecer, de fato, os limites entre o cenário real e aquele
projetado. Não se trata apenas de efeito especial. Na realidade, o vídeo se
mostra como um recurso estruturante decisivo da encenação, na medida em que
sublinha a personagem Alya tanto como objeto amado inatingível quanto como
personificação do estrangeirismo do escritor. Na maioria das vezes em que a
projeção surge, ela exibe Alya em diferentes escalas e perspectivas: nos
momentos iniciais, o rosto de Arieta preenche todo o espaço, em outros
instantes, há uma duplicação de sua presença, em outros, há rotações e
translações da cena, que fazem com que o escritor seja tomado pela presença da
amada, sem, no entanto, poder desfrutá-la.
Evidentemente,
o vídeo não é o único elemento responsável por este deslocamento. Na realidade,
a conjugação entre a projeção e a interpretação trata de instituir uma
atmosfera de puro desencontro. A Alya de Arieta surge distanciada, um pouco
apática, uma aparição que perambula por diversos cantos do quarto e a
interlocução entre os dois personagens é outra que não o diálogo dramático
intersubjetivo. A conjugação, portanto, entre vídeo e interpretação, somada à
cenografia e também à recorrência de um motivo musical, permitem que sintamos a
presença da ausência, em uma tensão curiosa que já é revelada no título do
espetáculo: não sobre o amor. O amor
está lá, presente em toda plenitude de sua privação e de sua ausência.
É
significativo que o espetáculo se baseie na obra de um formalista russo que
conceituou, antes mesmo de Bertold Brecht, o efeito de estranhamento ou
“desfamiliarização” na literatura. Para Chklovski as leis que governam a língua
cotidiana são distintas daquelas que prevalecem na língua poética. A diferença
reside no fato de a língua prosaica enfraquecer o objeto, em decorrência de seu
processo de automatização: “o objeto passa ao nosso lado como se tivesse
empacotado, nós sabemos que ele existe a partir do lugar que ele ocupa, mas
vemos apenas sua superfície. Sob influência de tal percepção, o objeto
enfraquece” (Chklovski: 1976, p. 44). A percepção de um objeto se torna, neste
contexto, o seu reconhecimento e não a sua visão. Esta última só é possível por
meio da língua poética que, por sua vez, procura criar uma percepção singular
do objeto: “e eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos,
para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte” (p. 45). Trata-se,
com isso, de uma libertação do objeto de seu automatismo perceptivo,
procedimento denominado singularização,
por Chklovski. O autor complementa: “Segundo Aristóteles, a língua poética deve
ter um caráter estranho, surpreendente; na prática, é frequentemente uma língua
estrangeira” (p. 54).
A
singularização do objeto representa, desse modo, a sua desfamiliarização. É
interessante observar que tal procedimento comum à língua poética procura
oferecer uma visão do objeto que não o seu mero reconhecimento pautado por um
automatismo rotineiro. Nesse sentido, a visão deste objeto aproxima-se da
conceituação proposta por Gumbrecht, uma vez que a singularização é uma espécie
de produção de presença resultante de uma transferência de um objeto de uma
percepção habitual para o terreno de uma nova percepção. Desse modo, a visão do
objeto procura torná-lo estrangeiro a seu reconhecimento habitual. Tal
estrangeirismo permite que a língua poética produza presença. O que se pode
concluir daí é que a produção de presença, antes de estar fundada em um reconhecimento
de algo familiar e próximo, caminha em direção contrária. A presença, com isso,
é algo pautado pelo deslocamento e pela estranheza. A presença, portanto, é
estrangeira.
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1 O lançamento ocorreu
durante o seminário internacional As belas formas da
melancolia –
Historiografia, materialidade e presença na obra de Hans Ulrich Gumbrecht, organizado por Flora
Sussekind, Tânia Dias, Maria Elisa Mader e Valdei Lopes de Araújo, na Fundação
Casa de Rui Barbosa, em 02 de setembro de 2010. Este artigo deriva da
comunicação que apresentei na mesa-redonda denominada Produção de Presença.
2 O fato de a dimensão
estética não ser exclusiva à arte pode ser abordado também pela discussão em torno
da idéia de pós-modernidade. Para autores como Fredric Jameson, a experiência
estética na pós-modernidade está em qualquer lugar, por consequência da total
saturação do espaço cultural pela imagem. “O que caracteriza a pós-modernidade
na área cultural”, diz Jameson, “é a supressão de tudo o que havia de exterior
à cultura comercial, a sua absorção de todas as formas de arte, altas e baixas,
junto com a própria produção de imagens” (JAMESON: 2006, p. 216).
3 A idéia de ficção
subjacente ao argumento defendido aqui é aquela definida por Jacques Rancière.
De acordo com o autor, as ficções, produzidas tanto pela política e a arte
quanto pelos saberes, são “rearranjos materiais dos signos e das imagens, das
relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode
fazer” (RANCIERE: 2005, p. 59).
4 O termo participador foi criado pelo artista
plástico Helio Oiticica para transformar o espectador em parte da obra que, por
sua vez, não existe sem a sua participação. De acordo com Guy Brett, “suas
estruturas precárias [de Helio Oiticica e Lygia Clark], seus objetos feitos de
materiais improvisados e sem valor foram meios de trazer a “vivência” ou o
“conhecimento incorporado” para o centro da atenção. [...] Eles viam suas obras
como “proposições de comportamento” [Helio] ou “ensaios para a vida” [Lygia]”
(BRETT: 2005, p. 139).
5 Trata-se de uma
tradução livre do original:
“You could be anybody out there, but there's gotta be
somebody watching me. Somebody who wants to come in close to me ... Come on,
I'm all alone ... I'll be honest with you, O.K. I mean
you'll have to believe me if I'm really honest...”