13. DESMISTIFICAÇÃO
NA CENA CONTEMPORÂNEA: EXEMPLOS DOS COLETIVOS PORTUGUESES COLECTIVO 84 E VISÕES
ÚTEIS
13. DEMYSTIFICATION ON THE CONTEMPORARY
STAGE: EXAMPLES FROM PORTUGUESE COLLECTIVES COLECTIVO 84 AND VISÕES ÚTEIS
Marcio
Freitas
Resumo
Ao analisar as
escolhas espaciais, gestuais e sonoras de espetáculos selecionados da obra de
dois coletivos portugueses atuantes na contemporaneidade – Hipólito e Velocidade
máxima, do Colectivo 84, A comissão e Boom & Bang do Visões Úteis – o artigo investiga procedimentos
de criação de imagens cênicas resistentes que instigam a reflexão crítica.
Palavras-chave | Teatro contemporâneo | teatro português | cena crítica
Abstract
This paper analyzes space, gestuality
and voice on selected productions of two collectives working in contemporary Portuguese theatre – Hippolytus and Maximum velocity
(by Colectivo 84), The commission and Boom & Bang (by Visões Úteis) – in order to investigate
creative procedures that bring forth resistant scenic images,
which instigate critical reflection.
Keywords
| Contemporary theatre | Portuguese theatre | self-reflexive images
Marcio
Freitas
é mestrando em Artes Cênicas na Unirio, onde também concluiu a graduação em
Teoria do Teatro. Foi assistente editorial da revista Folhetim do Teatro
do Pequeno Gesto e membro fundador da revista eletrônica Questão de crítica.
É ator, diretor e pesquisador, membro do coletivo Teatro Número Três.
Marcio Freitas is working toward a MA in Theatre Arts at Unirio,
where he has completed his Undergraduate studies in Theatre Theory. He has been editorial assistant for Folhetim, journal of Teatro
do Pequeno Gesto, and founding member of electronic journal Questão
de crítica. He is an actor,
director and researcher, member
of the collective Teatro Número Três.
DESMISTIFICAÇÃO NA CENA
CONTEMPORÂNEA: EXEMPLOS DOS COLETIVOS PORTUGUESES COLECTIVO 84 E VISÕES ÚTEIS
Marcio Freitas
Esta análise parte de exemplos de espetáculos recentes de dois coletivos teatrais portugueses – apontando para uma série de detalhes, observáveis em registros em vídeo –, com o objetivo de refletir acerca de modos contemporâneos de problematizar o discurso no teatro. Almeja-se perceber como, através de recursos de teatralidade (evidentes em suas escolhas espaciais, gestuais e sonoras), certos artistas artificializam o discurso, produzem problemas para a recepção, e jogam com a estranheza. Caminham, julgo, no sentido de uma desmistificação, que se esforça para imbricar teoria e prática, jogo e reflexão.
Mais importante do que desvendar as minúcias das trajetórias dos grupos analisados e entendê-los a partir do contexto da cena portuguesa contemporânea – pesquisa de grande relevância; contudo, aqui, não só dificultada pela restrita familiaridade com o repertório de tais grupos, como também distante de meus objetivos como pesquisador de artes cênicas –, almejo, neste trabalho, investigar a prática dos grupos selecionados através da descrição de procedimentos cênicos. Observo, em alguns de seus espetáculos, apontamentos relevantes para a compreensão dos modos contemporâneos de produzir artifícios que operem na fronteira entre a fruição livre e a reflexão crítica, que instiguem o espectador à problematização, não só de conceitos pré-entendidos como naturais, mas da própria imagem que é produzida frente a ele. Talvez se chegue, ao final, a dois modelos de espectadores, e a duas formas de desmistificação, observado, é claro, o caráter contingente de tais observações, ou seja, a restrição das conclusões aos exemplos analisados.
Parto, inicialmente, de artigo da pesquisadora Maria João Brilhante, no qual ela observa, no panorama teatral português, configurações menos usuais para a relação entre criação e reflexão crítica. Para além de uma dicotomia entre prática e teoria, ela indaga-se quanto à possibilidade de se “reconhecer na teoria uma dimensão prática”, por um lado, e, por outro, de se “considerar a práxis como um pensamento em ação” (Brilhante, 2009: p. 122). Citando nominalmente alguns coletivos portugueses, Brilhante lança luz sobre uma certa “geração perdida nas malhas de uma sociedade neo-liberal que desconfia de excessos, depois daquilo que considera terem sido os exageros libertários do pós-revolução” (p. 129).
Ela aponta para a distância entre os ideários de alguns grupos de longa trajetória, filhos diretos da abertura promovida pela Revolução dos Cravos, em 1974, e os trabalhos criativos dos coletivos contemporâneos. Maria Helena Serôdio lembra que tais grupos independentes “que se formaram no início dos anos 70 (sobretudo A Cornucópia e A Comuna) tiveram, naquele momento, um papel considerável na renovação temática e artística” (Serôdio, 2002).1
A prática dos coletivos formados mais recentemente deve ser entendida tendo também em mente a subsequente abertura de Portugal, em 1986, ao tornar-se parte da Comunidade Europeia. Cabe considerar que, aos poucos, a conquistada liberdade de expressão, aliada à relativa permeabilidade das fronteiras, tenha gerado uma contaminação de tendências artísticas advindas de outros centros culturais europeus. Quando a pesquisadora Ana Pais propõe uma dicotomia entre “comunidade-fortaleza” e “comunidade de fronteira”, advertindo sobre o perigo do isolamento e defasagem portuguesa em relação aos discursos artísticos internacionais (Pais, 2003), ela fala de um panorama no qual a miscigenação com o circuito europeu é menos uma condição futura ou uma impossibilidade, mas está instaurada e demanda legitimação. Seus apontamentos partem de um conjunto de obras portuguesas que já existe, obras que se aproximam da performance, problematizando pressupostos mais essencialistas do teatro.
Voltando ao artigo de Maria João Brilhante, ela identifica uma prática comum aos citados coletivos que operam na contemporaneidade:
É
também diferente a sua relação com o discurso crítico e teórico, já que são
cada vez mais fluidas as fronteiras entre os que fazem e os que pensam, e
também porque eles próprios alimentam um circuito de reflexão, mesmo se
marginal, que funciona não raras vezes como meio de legitimação da sua criação
(Brilhante, 2009: p. 129).
É pertinente observar que a autolegitimação desses grupos associa-se a uma indissociação entre criação e pensamento, tornando permeáveis tais fronteiras (ainda que não irrelevantes), e, consequentemente, tornando problemáticos os discursos que citem teoria e prática como especificidades isoladas. Retomo minha proposição introdutória, sugerindo que essa instância prático-reflexiva é consonante com a ideia de uma cena problemática, que lida com uma manipulação evidente da matéria teatral e exige do espectador um envolvimento crítico. A demanda por uma recepção mais trabalhosa não isola tais espetáculos em “fortalezas” de incompreensão, resultantes de uma busca autocentrada de linguagem, mas, ao contrário, facilita a existência de uma rede de compartilhamento artístico, inclusive porque, segundo Brilhante, os coletivos “estão conscientes de que o seu trabalho criativo tem de se escudar num pensamento contemporâneo para o qual contribuem”.
Ambos os coletivos selecionados para este estudo, o Colectivo 84 – sediado em Lisboa, formado pelos artistas John Romão e Mickael de Oliveira – e o Visões Úteis – constituído em 1994 e sediado no Porto, sendo Ana Vitorino e Carlos Costa seus atuais diretores artísticos – disponibilizam textos e vídeos de seus trabalhos em suas páginas na Internet. Para este estudo foram selecionadas as peças Hipólito e Velocidade máxima, do Colectivo 84, ambas de 2009, e, do Visões Úteis, A comissão e Boom & Bang, ambas de 2010.2
Escolhi segmentar a observação dos registros em três eixos de análise. Tais eixos são tomados de modo relativamente livre, sem uma delimitação precisa de suas fronteiras, apenas como balizamentos para guiar a observação e auxiliar a perceber diferenças e recorrências. Os eixos são: espaço cênico; gestualidade atorial; oralização de discurso. Descreverei elementos dos registros em vídeo, recorrendo, por vezes, ao texto-base. Atento novamente para a contingência deste estudo: sua relevância não está na completude da descrição dos eixos de significação de cada obra. É relevante, contudo, a identificação de operações particulares que remetam à questão central deste trabalho (sem pretensão de esgotá-la) e aos modos desses dois coletivos lidarem com tal questão: na produção de uma cena problemático-reflexiva, como a artificialização do discurso pode apontar para uma desmistificação?
Hipólito, de 2009, texto original de Mickael de Oliveira, parte do mito de Fedra para tecer um discurso sobre a pedofilia. O texto dramático do espetáculo é precedido de uma sinopse, na qual se lê:
A
cena, habitada por um homem e uma criança, cria tensões físicas e um conflito
visual, oscilando entre um sentido trágico e perverso e um sentido lúdico, que
se confundem facilmente. No monólogo fala-se da infância, entre testemunhos da
brutalidade de que foi vítima, do amor infantil para com a sua madrasta e da
confissão de um filho de pai ausente. O falso monólogo surge como uma
manifestação e uma provocação no modo como o mito (de Fedra e Hipólito) é
reescrito, e é também uma homenagem ou uma recordação aos casos de pedofilia e
de incestos que temos vindo a assistir nestes últimos anos, alimentando-se de
um trabalho de patchwork de alguns depoimentos verídicos de vítimas.
O primeiro elemento
a notar é que não se trata de uma rubrica, mas de uma sinopse completa, que
descreve o espetáculo de forma breve, porém densa. Esse trecho não parece
destinado ao leitor tradicional de um texto dramático: ele não é didascália –
instrução para a encenação do texto – ou prefácio – introdução à leitura silenciosa
independente. Ele compõe a documentação do espetáculo, provendo uma série de
chaves de leitura, eficientes para a compreensão do todo. Aponto aqui para a
citada necessidade de autolegitimação, convivendo com o impulso de criar
imagens cênicas que resistam à decifração imediata.
O
espaço cênico de Hipólito, visível a
partir dos registros audiovisuais, é evidentemente um palco de teatro. No
primeiro registro, as características específicas da sala de apresentação ficam
evidentes para o espectador. Não há panos pra tampar as paredes brancas, podem
ser avistados portas, janelas e mesmo fios elétricos pendurados. No segundo
registro, o palco está neutralizado, com fundo e piso pretos, sem pernas. Há
alguns elementos cenográficos, mas são simples e pueris, e em sua maioria
remetem ao universo infantil: há fotos de crianças em tamanho real (modelos de
papelão), uma pequena casa de madeira, algumas árvores, um desenho pendurado do
sol com nuvens em volta.
É possível
identificar, nas ações executadas em cena pelos dois atores, algo próximo do
que a sinopse indica como “tensões físicas” e “conflito visual”. A dubiedade
está presente nas relações gestuais entre o adulto e a criança: o adulto despe
a criança frente a uma câmera (simulando uma situação voyeurística e de
violação, mas também o simples cuidado com um filho prestes a dormir); o corpo
dos dois permanece semidespido, com a camisa desabotoada ou sem camisa
(indicando uma espécie de intimidade inocente, despreocupada, de quem está em
casa, mas, também, dando sensualidade aos corpos); o adulto agarra a criança
pelos braços no meio de uma brincadeira, rodando-a no ar, e a criança começa a
gritar (aquilo que começa claramente como um jogo vira uma agressão violenta
sem uma separação clara entre os dois momentos, quase como se pudessem
acontecer simultaneamente); ambos brincam de correr pelo palco, e subitamente a
luz pisca acompanhada de um som de explosão (uma imagem de brincadeira é sobreposta
a uma imagem de guerra, como se pudessem também estar correndo em um campo de
batalha); o adulto ataca com uma espada o desenho pendurado do sol, até destruí-lo
(a atitude agressiva, de destruir o símbolo infantil, lembra também um jogo de
pinhata, no qual crianças atacam com bastões um objeto repleto de doces).
Tais
ações, retiradas do contexto da peça, parecem ilustrar a convivência de dois
registros – o registro pueril da infância e a perversidade de um olhar maduro.
A particularidade dessa proposição imagética é que um dos registros não anula o
outro, há uma tentativa de gerar um acúmulo, de fazer conviver os opostos, sem
dar solução para o conflito: a imagem é conflituosa em si, ela não provê uma
chave definitiva de decifração.
O
uso da voz aponta para acúmulo análogo. O ator oraliza o texto dramático de diversos
modos. Algumas vezes, ele dirige o texto ao garoto (que não o ouve, por estar
usando fones de ouvido), noutras ele fala às figuras de papelão. Essas falas
são pronunciadas em volume baixo, simulando um tom de confissão. Há um erotismo
instaurado pela proximidade dos corpos, que ilustra a perversidade do adulto
que dirige o olhar para a criança, enquanto a mesma desvia o olhar (a criança
real e a figura de papelão, no vídeo, olham para baixo). Essa imagem, de
inequívoca conotação pedófila, convive com o incômodo de uma falsificação, e a
matéria específica do fazer teatral clama por atenção: é impossível, diante desse
quadro, não se perguntar se a criança real pode ouvir aquele texto violento, se
o fone de ouvido é eficaz, não pensar na ética do espetáculo em si; quanto à
figura de papelão, a tentativa de contracena com ela é um recurso tão falso que
beira o patético. Assim, tais imagens parecem apontar para além de si,
estimular que o espectador se distancie, que se choque com elas e também as
critique.
O
espetáculo Velocidade máxima, também
de 2009, reitera a intencionalidade do coletivo de criar imagens cênicas
complexas, que promovem resistência, no palco, à fruição daquilo que é dito,
que apontam para a manipulação, para sua própria materialidade. Neste
espetáculo, os artistas colaboraram com três garotos de programa brasileiros
que residem em Portugal. O texto foi construído no processo de ensaios, a
partir de seus depoimentos. O espetáculo inicia com um longo prólogo, no qual o
encenador John Romão se dirige ao público em discurso direto. Segundo a nota
introdutória do texto dramático,
o
prólogo é bem mais extenso que as outras partes, porque quem o diz é um
actor/encenador, habituado a interpretar e a decorar textos. Daí a complexidade
das tonalidades, que vagueiam entre a ironia e o sarcasmo adultos e alguma
simplicidade infantile (populistas para alguns).
Essa complexidade anunciada pela nota aparece, no prólogo cênico, na forma de uma ironia sutil. A sinceridade (trabalhada) do discurso direto esconde (ou, melhor, não explicita) certo grau de ficcionalização. No prólogo, Romão fala de si, da gênese do espetáculo atual, da dificuldade financeira do coletivo, faz críticas aos curadores de teatro, tudo como se estivesse proferindo um discurso de conotação reivindicatória. Há, contudo, certa vulgaridade em sua exposição das quantias em dinheiro, nas suas críticas bem calculadas – sua sinceridade tem algo de teatral (“quem diz é um actor/encenador”, lembra a nota citada acima), os tempos de sua fala e de seus gestos são os de quem já ensaiou aquela performance. A inverossimilhança da situação discursiva não se denuncia em signos que indiquem, inequivocamente, a ironia – é preciso que o espectador julgue a situação como implausível para perceber seu caráter de representação teatral, para então fazer a ligação da vulgaridade na auto-exposição (na associação simplificada de arte com comércio) com a temática geral da peça: a prostituição. Não afirmo, com isso, que suas palavras sejam pura ficção, pois a questão não é entre verdade e falsificação: com esse prólogo, o encenador introduz uma imagem cênica na qual o conteúdo real vivido (relatado no discurso) não está livre para escuta e assimilação. Ele deve ser criticado, deve ser percebido como construção, cênica, e não como via de acesso à vivência real. A construção de imagens resistentes, que barram o acesso ao real, marca também os depoimentos cênicos dos garotos de programa, não-atores, como se verá mais adiante.
Assim como em Hipólito, as características específicas do espaço de apresentação são evidenciadas. O registro em vídeo mostra uma sala com aparência de espaço demolido, com paredes sem raspagem ou pintura, e sem maquiagem cenográfica (painéis, tapadeiras, etc.). A iluminação cênica evidencia as características do espaço, assim como as projeções de texto são feitas sem suporte específico, dando a ver as imperfeições das paredes. Tal escolha, repetida nos dois espetáculos, aponta para o uso do espaço como suporte discursivo, e não como simulação ficcional de um espaço outro, que não o do teatro. Em Velocidade máxima, a materialidade do espaço é usada também na criação de imagens: em certo momento, os garotos de programa empurram as paredes, individual ou coletivamente, como se tentassem movê-las, sugerindo a ideia de esforço vão. Ao mesmo tempo, Romão cola papéis, similares a cartazes de protesto, que não trazem mensagem organizada, mas apenas palavras soltas equiparadas pela sonoridade e por uma vaga associação de sentido com a cena (põe, lado a lado, as palavras “potência” e “inércia”, “Zeitgeist” e “Schwarzenegger”, “missão” e “sucção”).
Os garotos de programa executam uma série de ações performáticas, uma após a outra, independentes da oralização do texto: empunham uma bandeira da União Europeia; dançam ao som de um funk usando salto-alto; fazem uma coreografia de contração e distensão das nádegas; aplicam purpurina em seus corpos; criam, assim, imagens provocativas e auto-irônicas. Em outro momento, deixam-se manipular como bonecos pelo diretor, John Romão, que simula relações sexuais com seus corpos. A ideia de manipulação é relevante para ler outros aspectos do espetáculo: a presença constante do diretor em cena (geralmente vestido de maneira diversa e executando ações diferenciadas) denota uma desigualdade, uma hierarquia. É relevante observar que, pela duração do espetáculo, os garotos de programa usam máscaras, iguais, que, segundo discurso dos artistas, é uma réplica do rosto do diretor (ainda que a semelhança não seja óbvia). A máscara pode ser lida como um recurso de preservação do anonimato (mesmo porque alguns estão, declaradamente, ilegais em Portugal), mas ela é, acima de tudo, um recurso de desnaturalização do discurso direto (que aponta, como signo, para aquele responsável pela manipulação, o diretor da peça).
Quando discursam em voz alta, os garotos de
programa não simulam um diálogo entre si, mas assumem a frontalidade da fala
para o público, assim como o faz Romão no prólogo. Gesticulam livremente,
dando, a princípio, aspecto de naturalidade (de ausência de formalização) às
palavras emitidas. O discurso de cada um é autobiográfico (nada indica o
contrário), tendo sido coletado e fixado previamente. Contudo, como afirmei anteriormente,
há uma série de indícios de teatralidade que problematizam tal discurso, sem
necessariamente questionar seu caráter autobiográfico: as máscaras, já
mencionadas, instauram uma estranheza, uma neutralização das expressões faciais
e uma equiparação entre os depoentes (todos tem a mesma cara); a nudez,
assumida frontalmente, adiciona um dado visual de incômodo às figuras em cena;
há uma tinta de cor marrom, manipulada pelos depoentes, que respinga no corpo
nu, assemelhando-se visualmente a matéria fecal; há também macarrão cosido
espalhado em profusão sobre um dos corpos, sendo inclusive manipulado e trazido
à boca durante um dos depoimentos. Em relação às posturas corporais, estão ora
em pé ora sentados no chão, mas há também posturas propositalmente incômodas,
como no trecho em que um ator fala de costas, com o tronco dobrado, de cabeça
para baixo, destacando visualmente seu ânus manchado de tinta. Aponto, com
isso, para um processo de manchar a figura falante de signos. As manchas não
invalidam o discurso tornando-o inverossímil, elas não o ironizam: elas
problematizam a recepção, sujam para que não haja transparência, impedem a
absorção simpática.
No site oficial do Visões Úteis, segundo coletivo analisado neste trabalho, lê-se que o espetáculo A comissão, de 2010, reflete “de forma divertida acerca dos mecanismos de decisão política e econômica em Portugal e na Europa, como exercício de domínio e poder”.3 Com o objetivo de estimular a crítica a partir da comicidade, o espetáculo instaura uma situação ficcional de relação direta com os espectadores, simulando um evento de tomada de decisão coletiva:
Numa
sala de reuniões de um hotel, uma Comissão reúne para aprovar o Plano de Acção
[...]. Os membros do Comité Executivo (o elenco) recebem os restantes membros
da Comissão (representados pelos espectadores) e têm a delicada missão de
apresentar de modo convincente o Plano de Acção que prepararam de modo a obter
uma maioria de votos positivos. Ao longo da reunião exibem-se gráficos,
esmiúçam-se burocracias e esgrimem-se terminologias.
Como nos espetáculos citados do Colectivo 84, A comissão põe em evidência as características físicas específicas do local de apresentação. Aqui, contudo, o espaço é escolhido e utilizado em função de seu potencial narrativo: há uma citação às funcionalidades cotidianas de um local que habitualmente não abriga atividades de artes cênicas. A sala de convenções de um hotel não é apenas suporte para a teatralidade, mas é palco de um jogo de reconhecimento e estranheza: os espectadores sentam-se à mesa com os personagens, que se portam como numa reunião. Não há uma subversão do espaço, mas uma simulação de usos previamente condicionados.
A gestualidade dos atores é também coerente com a situação ficcional, assim como o são os figurinos. Investe-se na apresentação de figuras reconhecíveis: a mimese é importante para trazer à tona o potencial crítico do espetáculo. Aos poucos, no decorrer da apresentação, surgem elementos de ironia: há uma ênfase na repetição de palavras da língua inglesa; a projeção de PowerPoint exibe, em um desenho esquemático, a forma de um pênis; há siglas e pormenores técnicos em excesso, repetições burocráticas de palavras e frases, que se encaminham para a diluição do sentido. O diálogo entre os atores, sem perder por completo a aparência de intercâmbio lógico, acaba por apontar para uma concepção do mundo dos negócios como absurdo, devido ao exagero progressivo dos elementos de conteúdo.
A crítica Christine Zurbach reconhece,
aqui, uma desmistificação pela catarse:
[...]
três atores talentosos, que manipulam imagens gastas de reuniões formatadas num
modelo banalizado [...] figuras que o espectador não pode deixar de
(re)conhecer, são citadas e tratadas ao longo do espetáculo como se fossem
ações-rituais, passos obrigatórios de uma vida artificial, ficcionada por
seres-marionetes [...], o espectador não pode deixar de se sentir vingado de
certos tigres de papel e do seu poder sem importância. O riso suscitado cumpre
aqui uma função catártica e confirma-se como o instrumento crítico por
excelência [...] uma ficção que é desmistificada no palco.4
Quando os atores falam ao público, e pedem para que votem no “Plano de Acção” (que não faz sentido), o espetáculo aponta, ironicamente, para a impossibilidade desse público tomar decisões e tomar partido. Colocando-o em um papel ficcional, ele denuncia a disfuncionalidade desse mesmo papel. Ressaltando o patético, a peça rebaixa algo que no cotidiano tomar-se-ia por funcional: ela simula os procedimentos de uma reunião, em um espaço tomado de empréstimo do real, e propõe exageros para tornar visível a disfuncionalidade de certos mecanismos. Julgo, porém, que as críticas que faz, de tão pontuais, evidentes, deixam o espectador num papel de relativa passividade – ele só pode concordar. Tal catarse, sugerida pela crítica acima citada, parece pretender a unanimidade – é patético e não faz sentido, não há como negar.
Algo similar pode ser observado em outro espetáculo desse coletivo, Boom & Bang, também de 2010. Nele, o grupo elegeu um evento real, presente na memória coletiva recente, para gerar sobre tal evento distância, propor um outro olhar.
Boom & Bang, adaptação de The power of yes de David Hare, é um
espetáculo “portátil” – fácil de transportar, rápido de montar – em que rimos
(para não chorar) com a crise financeira que em 2008 abalou o mundo e mexeu com
o quotidiano de todos nós. [...] através do trabalho de 3 atores que convocam
uma pluralidade de protagonistas da crise financeira, sem esquecer uma
imprescindível aproximação à realidade portuguesa, no que podemos classificar
de um espetáculo extremamente divertido, apesar de não ter piada nenhuma!5
A descrição aponta, inicialmente, para a portabilidade do espetáculo, ou seja, para a possibilidade de ser apresentado em qualquer lugar. Diferentemente de A comissão, no qual a historicidade do espaço, o uso que se faz dele, é imprescindível, aqui se afirma a indiferença. Contudo, isso não implica que qualquer suporte teatral serve – mas, ao contrário, afirma-se o desejo de ir onde o público estiver, ou seja, de subverter espacialidades cotidianas para chegar até o outro. Um registro audiovisual, disponível no site dos artistas, mostra os atores em local improvisado, certamente não um palco de teatro, no qual estão de frente para o público, tendo apenas um quadro branco como cenário específico, sobre o qual escrevem, apagam, mostram fotos. O quadro branco serve, assim, como suporte de conteúdos transmitidos. Diferentemente dos outros três espetáculos observados, o suporte principal não é o espaço em si, mas o recorte do quadro.
Os figurinos dos atores, semelhantemente pretos, tendem à neutralidade, sugerindo que são porta-vozes de algo mais significativo do que suas individualidades. No registro audiovisual, estão sempre se reportando diretamente aos espectadores, como se lhes mostrassem algo. A gesticulação dos atores segue e corrobora os sentidos da fala, ilustrando o fluxo das palavras, sem provocar choque ou contraste. Quando representam personagens (contextualizados na narração), o fazem em tom evidentemente caricatural e exagerado. Pode-se considerar que, não só o quadro branco, também o corpo é suporte para a amostragem, para a exposição de algo. Os atores são auxiliados por alguns elementos de cena (óculos, papéis, etc.), que servem à construção de imagens a serem reconhecidas e em seguida são descartados.
A voz dos atores se alterna entre: voz projetada expositiva, que, com o auxílio da gesticulação corporal, desdobra um conteúdo diante do publico; voz de personagem, francamente caricata. A alternância entre discurso direto e representação é evidente, há indícios de passagem de um modo a outro, sendo que os modos não se confundem. A interpretação não contamina o corpo do ator, ela é superficial, baseada em clichês. Sua verossimilhança não está em questão: não se busca a mimese precisa de subjetividades ou de tipos complexos, o regime do espetáculo é de ilustração. Ilustra-se em um esforço de compreender, e a caricatura deve servir ao discurso.
Se a dramaturgia consegue, de fato, simular uma explicação plausível para a crise financeira, ou se ela só problematiza a possibilidade de explicar, esta é uma questão sobre a qual não me deterei. De forma geral, esta análise não centrou o olhar sobre os procedimentos narrativo-dramatúrgicos, mas prioritariamente sobre os procedimentos cênicos, identificando nos últimos intencionalidades críticas. Observo ainda que, como em A comissão, há, em Boom & Bang, clareza na seleção do objeto e na crítica apresentada a tal objeto, e há clareza na redução ao caricatural, ainda que tal redução não aponte para uma conclusão final totalizante. Sugiro também que o modo como Boom & Bang alterna discurso direto e ilustração caricata pretende funcionar como uma transparência para um conteúdo, que quer se tornar visível. Há um desejo de se chegar a uma desmistificação do real, há um desejo de se entender algo, coletivamente, tanto que um dos atores abre a peça com a frase: “estamos tentando perceber o que aconteceu”. A ilustração, a caricatura, e mesmo o humor, tanto em A comissão como em Boom & Bang, não são usados apenas em função de seu potencial de comicidade livre, mas têm um intuito reflexivo. Algo é mostrado novamente ao público, de uma forma diferente da que já se conhecia.
A questão, que se revela no emparelhamento de espetáculos proposto por esta análise (emparelhamento sem dúvida problemático, mas que serve a algo que aqui também se tenta perceber), é que a didática dos mecanismos cênicos de apresentação do discurso aos espectadores do Visões Úteis parece colocar menos responsabilidade nas suas capacidades individuais de decifração. Ao final de Hipólito e Velocidade máxima, do Colectivo 84, não se almeja um conhecimento comum sobre pedofilia ou prostituição de estrangeiros, e os procedimentos cênicos refletem isso: há um acúmulo de registros dissonantes, que apresentam, sim, elementos de conteúdo (ambos fazem colagens de depoimentos reais), mas problematizam, na concretização cênica, a compreensão, gerando, assim, percepções diversificadas. Os espetáculos citados do Visões Úteis parecem, em contrapartida, apontar para um desejo de relativa unanimidade. Não se deve, contudo, reduzir seu potencial transformador: criando uma nova visibilidade, talvez o espectador do Visões Úteis possa ver esse e outros objetos, a posteriori, incorporando os procedimentos irônicos e críticos que foram ali utilizados. Mas, pessoalmente, sou partidário da desmistificação que confia na inteligência do espectador para, individualmente, lidar com uma mensagem opaca e exercitar seus próprios mecanismos de decifrá-la, ou mesmo para aprender a perceber as imagens a partir de seus paradoxos.
Referências
bibliográficas
BRILHANTE, Maria João. Laços e desenlaces entre criação e reflexão crítica no teatro português contemporâneo. Sala Preta, Revista do PPG em Artes Cênicas. São Paulo: Eca-USP, 2009, N. 9, p. 121-133.
OLIVEIRA, Mickael de. Monólogos, materiais textuais, sms’s e um diálogo sobre Jan Fabre: textos de Mickael de Oliveira para o espectáculo Velocidade Máxima uma criação de John Romão. Lisboa, 2009. Arquivo digital cedido pelo autor.
OLIVEIRA, Mickael de. Hipólito: monólogo masculino sobre a perplexidade. Lisboa, 2009. Arquivo digital cedido pelo autor.
PAIS, Ana. Teatro em Portugal: o desafio da periferia. Acesso em julho de 2011. Disponível em: www.ces.uc.pt/publicacoes/oficina/ficheiross/232.pdf
SERÔDIO, Maria Helena. Um aperçu
general du théâtre au Portugal:
les 30 dernières années du siècle. DUMA, Dana; SAIZESCU, Geo (eds.). TEATRUL, INCOTRO? Bucareste: Editura Victor, 2002, p.
351-359. Acesso em julho de 2011. Disponível em: http://www.fl.ul.pt/centros_invst/teatro/pagina/centro-estudos-teatro.htm
VISÕES
ÚTEIS. A comissão: guião após estreia. Cidade do Porto, Portugal, 2010. Arquivo digital cedido pelos autores.
Páginas na internet
COLECTIVO 84. Página oficial. Acesso em julho de 2011. Disponível em: http://colectivo84.blogspot.com/
VISÕES ÚTEIS. Página oficial. Acesso em julho de 2011. Disponível em: http://www.visoesuteis.pt/index.php
1 “Les 'groupes indépendants' qui s'étaient formés au début des années 70 (surtout A Cornucópia et A Comuna) ont eu, à ce moment là, un rôle considérable dans le renouvellement thématique et artistique”, tradução minha.
2 Norteou a seleção dos espetáculos estudados a disponibilidade dos textos originais e de material audiovisual. No caso de Hipólito e Velocidade máxima, os textos originais foram disponibilizados para estudo pelos autores através da pesquisadora Nara Keiserman, sendo que no site do coletivo há registros em vídeo de ambos os espetáculos. No caso do Visões Úteis, apesar dos vídeos disponibilizados no site serem menos ricos em detalhes, o coletivo demonstra um interesse continuado pela publicação de textos oriundos de seus trabalhos, divulgando assim sua obra.
3 Citado do site do coletivo, http://www.visoesuteis.pt/, último acesso em julho de 2011.
4 Crítica de Christine Zurbach na revista Sinais de Cena, n. 14, publicada em março de 2011 em http://www.visoesuteis.pt/pt/novidades/item/191-a-comissão-na-revista-sinais-de-cena, último acesso em julho de 2011.
5 Citado do site do coletivo, http://www.visoesuteis.pt/pt/historial/item/103-boom-bang, último acesso em julho de 2011.