ENTREVISTA: JULIANA CARNEIRO DA CUNHA

INTERVIEW WITH JULIANA CARNEIRO DA CUNHA

Entrevista a Joana Ribeiro

(05 de maio de 2005, Paris, França)

 

Joana: Juliana, como foi o seu primeiro contato com o trabalho corporal?

Juliana: Eu comecei muito pequena. Morava no Sumaré, um bairro de São Paulo, onde também morava D. Maria Duschenes, e eu podia ir para as aulas sem que alguém me levasse. Comecei muito cedo, com sete anos, e fiz a minha formação até os 17. Eu realmente considero D. Maria Duschenes a minha mestra, porque quando você é criança você não se dá muito conta. E, pouco a pouco, fui percebendo que realmente era uma formação. D. Maria é húngara, e chegou ao Brasil na época da guerra, e a formação toda dela foi com a escola do Kurt Jooss, ela falava muito da Mary Wigman também. E depois, quando Jooss teve que ir para a Inglaterra, fugindo do nazismo, ele foi recebido pelo Laban. Então, minha formação era de Laban e Jooss. Era assim que a gente chamava a formação: “Laban e Jooss”. Era uma formação em dança; D. Maria nos levava até a fazer uma iniciação à técnica da Martha Graham de dança moderna. O que nós não tínhamos mesmo, nem um pouquinho, era dança clássica. Lembro-me, sobre essa técnica de Laban e Jooss, do trabalho feito em torno dos movimentos da natureza, primeiro com muita improvisação e, depois, com a parte mais teórica, quando D. Maria se deu conta de que era interessante ela deixar também uma parte mais teórica para as alunas que já estavam com ela há bastante tempo. Fizemos também um curso mais teórico, sobre a técnica - os movimentos da natureza, começando já do neném no ventre da mãe, a evolução. A gente falava que até o neném no ventre da mãe já tem os seus movimentos. E, nas improvisações, sobretudo para nós que éramos crianças, era baseado muito no movimento do mar, das folhas ao vento, dos animais. Era todo um trabalho feito em torno desse conhecimento, e sem espelho, tinha um espelho atrás da porta para alguma necessidade, que nos obrigava a ter uma noção muito correta, muito nítida, muito precisa do quê o corpo estava realmente contando. E esse trabalho da improvisação, que é um trabalho em que, por exemplo, nós podíamos, como exercício, fazer uma improvisação, e em seguida, tentar refazer exatamente o que nós tínhamos feito. Quer dizer, era uma improvisação, mas consciente. Entrava, por exemplo, os níveis: baixo, médio, alto; toda a parte do Laban, com a mesa, porta e roda; as dinâmicas, todas as dinâmicas. E as linhas, os desenhos no espaço; isso tudo permitia realmente, eu me lembro disso, de fazer improvisações e, em seguida, retomar a mesma improvisação como se fosse uma coreografia já ensaiada. Porque nós desenvolvemos essa capacidade, de improvisar de uma maneira bastante consciente.

Joana: Trabalhava-se ritmo?

Juliana: Muito. E D. Maria foi casada com o Sr. Herbert Duschenes, que também era um homem muito culto e professor de história da arte. Ele nos levava, por exemplo, ao atelier de um pintor para que o víssemos enquanto trabalhava. Depois nós improvisávamos sobre desenhos, pinturas e poemas. Com uns 10, 12 anos, eu já estava fazendo as aulas de D. Maria, em todos os níveis: adultos, crianças e adolescentes... Quando não estava na escola ia para lá, e realmente gostava demais, logo percebi que era essa a minha sina, o que eu ia fazer era a dança, não tinha muito questionamento quanto ao trabalho que eu ia seguir. A minha primeira saída do Brasil, em termos de profissão, foi para a Alemanha, justamente para a escola do Jooss e, por coincidência, cheguei no ano em que a Pina Bausch estava se formando. Pude assistir a um dos primeiros espetáculos da Pina Bausch no teatrinho da escola do Jooss, em Essen, na Alemanha. Fiquei só seis meses nessa escola, onde comecei a ter aula de dança clássica particular, porque não tinha nenhuma noção de dança clássica. Mas não era bem o meu lugar. Voltei ao Brasil por um período pequeno, e de novo para a França, onde comecei a fazer aulas de dança e teatro; quando ouvi falar da escola que o Béjart estava fundando em Bruxelas, que era justamente de formação do intérprete do “teatro total”. Ele a denominou Mudra, sigla que quer dizer “gesto” na língua sânscrita, mas o nome oficial da escola era Escola de Formação do Intérprete do Teatro Total. Nós tínhamos dança, teatro, canto, ritmo, técnicas de circo, dança indiana, dança espanhola e, evidentemente, dança moderna e dança clássica, que era onde eu estava mais atrasada. A escola foi fundada em 1970, quando eu entrei. Formei-me em 1973. Foram 3 anos bem intensos.

Joana: E a sua iniciação, foi na década 60?

Juliana: Eu nasci em 1949... Portanto comecei com sete anos, 56. Foi uma grande sorte eu morar perto e conhecer a D. Maria, eu ainda criança. A Maria Esther Stockler estava com ela nessa época também e a Helena Vilar. Eu era a mais novinha de todas, mas, fiz parte de um grupo de dança, que formamos na época. E depois da experiência no Mudra (do Béjart), nós criamos um grupo de oito, porque éramos oito formandos, que durou um ano, justamente para fazer espetáculos totais, como a gente chamava. Ainda na Europa, fui trabalhar como atriz num teatro totalmente tradicional de Bruxelas, Le Rideau de Bruxelles1. Foi a minha primeira atuação realmente como atriz. Fiz o papel da noiva de Bodas de Sangue, de Garcia Lorca. Ainda trabalhei depois em mais uma peça nesse mesmo teatro2, e voltei para o Brasil em 78. Teatro totalmente tradicional, nós tínhamos um mês de ensaio, ficávamos em cartaz um mês, e aquilo era programado com um ano de antecedência. Era teatro, não tinha nada a ver com teatro total, com dança, era realmente de teatro. E tive a oportunidade de trabalhar com o Pierre Laroche, um metteur en scène de Bruxelas, e pela primeira vez com texto. Apesar de ter tido aulas de teatro no Mudra e feito pequenas cenas, nunca tinha estado realmente em cena, como atriz, numa montagem integral.

Joana: Nem no Brasil?

Juliana: Não. Eu morei 10 anos na França, aqui, quer dizer, quando saí do Brasil era bailarina e queria fazer as minhas escolas de dança, mas comecei a sentir intuitivamente a aproximação com o teatro, e acabei me tornando intérprete do modo como o Béjart imaginava, intérprete para o teatro total. Quer dizer, uma intérprete capaz de atuar tanto com o corpo, quanto com a voz. E quando voltei para Brasil, de onde saí como bailarina, ninguém me conhecia como atriz. Demorou muito para me chamarem para fazer uma peça de teatro. A primeira peça, também numa passagem bem significativa, foi As lágrimas amargas de Petra von Kant, no papel da Marlene, justamente um papel sem texto. Quer dizer, era uma atriz, mas não tinha texto. E isso me abriu as portas para depois fazer Mão na Luva. Nessa ocasião, o Nanini e o Aderbal vieram me encontrar e me chamaram para fazer Mão na Luva, do Vianinha, meu primeiro texto em português.

Joana: Qual foi seu primeiro trabalho como profissional?

Juliana: Quando me formei, bem mocinha, comecei a trabalhar; e o primeiro trabalho com salário, foi a direção da Maria Esther Stockler, quando ela estava trabalhando com os Mutantes, com a Rita Lee e os dois irmãos3 dos Mutantes, que era um grupo de música. Fazíamos toda uma encenação, uma daquelas loucuras da época. Com esse primeiro salário paguei a minha passagem de navio para vir para a Europa. E depois, quando ainda estava trabalhando em Bruxelas, em 76, voltei ao Brasil, para tentar ver se conseguia um trabalho. Foi quando Klauss Vianna me convidou para dar aula na Martins Pena. Ele disse: “Você tem carta-branca e você faz o que você quiser”. Comecei então a transmitir aquilo que tinha adquirido no Mudra. Meu curso se chamava “Dança-Teatro”, isso logo que começou a aparecer essa “dança-teatro”. E era uma aula aberta a todos, não era só para bailarinos e atores, de acordo com aquela grande abertura de mentalidade que o Klauss tinha. Uma escola no centro da cidade, aberta a todas as pessoas, de todas as idades, e todos os níveis sociais, de profissões diferentes. E era um trabalho de dança-teatro como um curso livre. Não era uma disciplina de preparação corporal dentro de um curso de formação. E nessa época o Klauss também me perguntou se eu não teria um pequeno espetáculo para mostrar, algo que eu tivesse feito. Foi quando eu disse que tinha um pequeno solo, feito em Bruxelas, que se chamava Possession4, baseado num poema de Santa Tereza D’Ávila, em São João da Cruz. E esse pequeno solo era uma joiazinha, durava 16 minutos, e era muito preciso, e muito dramático. Com esse pequeno solo eu ganhei um prêmio de revelação. Por não ter vivido no Brasil durante 10 anos, a não ser por esse pequeno período em 76, as pessoas me conheciam como bailarina. Eu dava muita aula de dança-teatro, participei de várias coreografias de espetáculos de dança, mas nada em teatro. Aí, veio o Celso Nunes, diretor de teatro, e que também me conhecia desde que eu era criança, e me chamou para fazer o papel da Marlene nas Lágrimas amargas de Petra von Kant. Foi quando as portas se abriram para o teatro.

Joana:  Nessa montagem existia um preparador corporal?

Juliana: O Celso era diretor, ótimo diretor, mas não havia nada de preparação corporal. Nós ficamos em cartaz por dois anos, o que e é uma coisa rara; não me lembro de um dia, durante esses dois anos, que não fosse para o teatro com a maior alegria, com o maior prazer. Era sempre extremamente prazeroso estar em cena com esse espetáculo, com a Fernanda Montenegro, com quem eu atuava. Quer dizer, como eu fazia o papel justamente da secretária da Petra, e a Fernanda fazia o papel da Petra, eu estava sempre em cena. E com Rosita Tomás Lopes, com Renata Sorrah, o figurino da Kalma Murtinho, foi maravilhoso.

Joana: Você coreografou o seu personagem?

Juliana: Não, não era coreografado. Talvez seja um pouco difícil de explicar realmente como foi. Mas não era coreografado. E também não era o se chama de expressão corporal, era uma atuação sem palavras. Realmente isso. Quer dizer, vinha ao encontro do que fazia o Théâtre du Soleil em noventa, onde a exigência de um trabalho corporal é enorme, mas é essa mesma coisa: uma atuação sem texto, não uma dança, não uma coreografia. Evidentemente, exige um conhecimento muito grande do corpo, que é adquirido com a dança, que me deu toda essa possibilidade de conhecimento de técnica corporal, mas é uma atuação. Na minha concepção, eu diria que é uma dança, mas não uma coreografia. Não é uma linguagem abstrata, ela é totalmente concreta. Não estou dizendo que o abstrato é negativo, mas ela não é abstrata, ela é muito concreta. Totalmente desenhada. E na peça a Marlene se encontrava diante de uma prancha de desenho, porque a Petra von Kant era estilista de moda, e ela era a secretária, ela desenhava. Então, era mais uma atitude dela na expressão de escuta, demonstrando para o público o quê ela estava sentindo em relação àquilo tudo que estava acontecendo em cena. A devoção. E eram gestos com os tecidos, o modo de trazer o carrinho de chá. Havia ações bem específicas, e toda uma emoção desenhada. As emoções desenham muito, evidentemente, com a expressão do rosto e com o corpo, porque o corpo todo fala. (A Ariane, numa das improvisações em que a gente trabalha, ela diz: “Tudo que você está contando, conta com o pé”.)

Joana: Não se trata de um trabalho de mímica?

Juliana: Não tem nada a ver com mímica. Se você está apaixonado por alguém, como é que você vai mostrar que está apaixonado, aqui para a gente, para o público? Porque é uma linguagem. Como é que você vai contar para o público que você está apaixonado, se você contar só com o pé? Porque naquela situação tudo é muito inventivo, muito livre. E muito concreto, muito em cima de ações.

Joana: Você disse também que não é expressão corporal?

Juliana: É, também não é o que se conhece como expressão corporal. Porque a expressão corporal (eu me lembro dessa época que a gente tinha que inventar um pouco um nome, o título dos cursos) porque expressão corporal às vezes tinha uma conotação pejorativa na época. Alguém dizia: “A pessoa começa a se torcer de todos os lados e diz que aquilo é expressão corporal”. Se a gente pegar a palavra correta é uma expressão do corpo, é uma expressão corporal. Mas, como teve essa conotação de que, de repente, expressão corporal se tornou quase que cerebral. E não é; o cérebro não deve funcionar. A Ariane também fala isso para a gente: “Não seja inteligente. Deixa de ser inteligente”. Quando eu dou aula agora, porque estou dando muitas aulas, eu sempre falo muito isso também: não sejamos cerebrais. Porque a tendência muito grande é essa também.

Joana: Você contou da experiência como professora, proporcionada pelo Klauss Vianna? Como você o conheceu?

Juliana: Eu tinha uma amiga, Marina Elu, que me substituiu no papel de Marlene durante uns dois meses, porque estive grávida durante esses dois anos da Petra von Kant. Quando Aderbal [Freire Filho] e [Marcos] Nanini vieram me chamar, perguntando se eu não poderia fazer parte de Mão na Luva, a Marina estava livre, e Lágrimas amargas ainda tinha uma turnê pelo sul; então, para eu poder ir fazer minha primeira experiência com texto de teatro no Brasil, a Marina me substituiu na turnê. Quando nós começamos a ensaiar, o Nanini me disse que tinha chamado Klauss para nos ajudar na parte corporal. E que todos, não só ele e eu (porque éramosos dois em cena), todo mundo ia fazer aula com Klauss. Até o Aderbal começou a fazer. Ninguém podia ficar olhando. Nanini dizia: “Eu não vou fazer circo para ninguém”. E o Klauss nos fazia trabalhar os músculos abdutores. (Eu nem sabia o que era - os músculos que abrem). E nos fazia trabalhar desde os dedos, passando pelo pé, pelo tornozelo, pela perna, chegava até o rosto. (Ele falava que o ator também deve trabalhar os abdutores no rosto, que se abrem para mostrar). Dizia que a gente está em cena para mostrar, para se abrir e mostrar.

Joana: Um endehors em espiral muscular...

Juliana: Até o rosto! Eu me lembro disso em detalhe: nós próprios ficamos admirados com o trabalho que fazíamos, Nanini e eu, de uma briga em cima da mesa, a briga do Lúcio e da Silvia, em que os personagens terminavam embaixo da mesa. Era uma briga, em que tudo foi totalmente coordenado, trabalhado, coreografado, porque a gente fazia com uma grande violência, mas com uma grande precisão. Era totalmente verossímil, e muito perfeito porque a gente não se machucava. Você, olhando, achava: se eles fazem isso toda noite, eles acabam se machucando. E fazíamos aquilo com muita precisão, ritmado e com muita coordenação entre Nanini e eu, os corpos estavam muito trabalhados.

Joana: Ele dava um aquecimento anterior ao ensaio, e depois ele ia para a cena?

Juliana: Exatamente, nos momentos necessários. Porque era uma peça em que tinham pouquíssimos objetos e uma grande coreografia, um grande movimento cênico. E ia do passado para o presente. No passado eles dançavam, eles se amavam; e no presente eles estavam brigando.

Joana: E quando ele trabalhava com o Aderbal ele o intermediava?

Juliana: Não. Com o Aderbal era tudo muito intrincado. Mas Aderbal é um diretor magnífico, e se o Klauss sentisse alguma necessidade – ele participava dos ensaios – se ele percebia que ali, naquele momento ele deveria interferir, ele intervinha e todo mundo escutava, evidentemente. E no momento preciso, por exemplo, de uma briga, o Aderbal mesmo pedia ajuda. Mas era pontual. Era de acordo com a necessidade da cena.

Joana: Ele poderia até pegar aquele momento da cena e trabalhar nele depois, ou durante o aquecimento, com calma?

Juliana: Isso, exatamente. A gente deixou um tempo para o corpo no começo. E à medida que a peça foi avançando era mais específico. Trabalhávamos mais especificamente aquele momento que estava precisando ser trabalhado.

Joana: E você já tinha feito aula com o Klauss Vianna?

Juliana: Eu já tinha feito aula com ele antes. A lembrança que me ficou do Klauss foi uma aula que eu fiz com ele na Rua Augusta, quando ele tinha um estúdio de dança em São Paulo, e num momento dado, não sei como é que foi que ele conseguiu, nós tínhamos uns saltos para fazer e eu voei. E eu me lembro desse momento porque eu sempre tive muita dificuldade justamente com os saltos, porque o salto é um dom que alguns bailarinos têm mais que os outros. E eu nunca saltei muito. Mas o Klauss foi trabalhando, eu não sei o que ele me dizia, não lembro, mas me lembro de ficar no ar. E, de repente, com medo, porque eu estava muito alta, estava muito em cima, quase tocando o teto, sei lá, é uma lembrança. Eu saltei muito alto e ele falou assim: “Está vendo como você pode?”.

Joana: E depois, quando você veio para a França novamente,  entrou direto no Théâtre du Soleil?

Juliana: Não. Eu vim em 1988, e em 1989 entrei na companhia de dança da Maguy Marin, que foi a minha grande amiga na época do Mudra. Fomos colegas, fizemos os 3 anos juntas e estava vendo se conseguia algum trabalho na França, porque estava com vontade de voltar para cá, meus meninos já estavam grandes, tinham 9, 10 anos. Era 1989, ano da comemoração do bicentenário da Revolução Francesa, e a Maguy estava fazendo um espetáculo em relação a esse bicentenário, que se chamava: Qu’est-ce que ça me fait à moi? E o quê eu tenho a ver com isso? O que o contribuinte, uma pessoa do povo mesmo, contribuinte de impostos, o que ele diria, o francês falava le contribuable. Que existia até uma música, ela fez toda em cima de textos de autores franceses. E a comemoração desse bicentenário - o quê eu tenho a ver com isso, hoje? O quê isso me dá? Era como uma crítica,  todo dançado, e era realmente extenuante. Quando ela chamou, eu falei: Maguy, mas há mais de 10 anos que não estou em nenhuma companhia, não estou dançando, estou mais atuando; no Brasil quase não trabalhei, apesar de dar muitas aulas, fazer muitas coreografias para peças infantis e adultas, sempre trabalhando o corpo, mas sabia muito bem que não estava com o pique físico de entrar numa companhia de dança. E a Maguy me respondeu: “Ah, eu te conheço muito bem, não tem nada disso”.

Joana: Era sobre a ideia ainda do “intérprete total”?

Juliana: Intérprete total, com uma técnica muito pesada, eu emagreci 10 kg, fiquei um fiozinho. Foi ótimo, adorei porque me deu de novo uma força física muito grande; fizemos muitas turnês, e foi uma época maravilhosa também. Mas voltei, para você ver como eu sou bailarina e atriz. Naquela época ainda mais, porque saí do Brasil onde, primeiro, não queriam me aceitar como atriz, quando eu fui atriz, fiquei só sendo atriz. Aí voltei para cá e estava como bailarina. E fiquei até 1990, em agosto de 1990 eu entrei no Théâtre du Soleil.

Joana: Ficou só um ano com a Maguy Marin?

Juliana: Fiquei um ano e meio. Eu entrei no mês de maio de 90, justamente num período em que não tinha turnês, mesmo porque as companhias de dança aqui funcionam uns dois meses, de ensaio, e depois o espetáculo é apresentado, no máximo, quatro, cinco apresentações num lugar. Não ficamos em cartaz com um espetáculo de dança como uma peça de teatro, durante um ano ou dois. E fazíamos muitas turnês, tanto pela França toda, quanto pelo mundo todo. Com a Maguy nós fomos para os Estados Unidos, para o Japão, viajamos muito. E nesse mês de maio de 1990, estávamos num período sem turnês, e tive a possibilidade de fazer um estágio no Théâtre du Soleil. Foi quando a Ariane me viu pela primeira vez e no mês de agosto, quando nós fomos para o Japão, e eu estava voltando com a Maguy, que era nossa última turnê, recebi um telefonema, me perguntando se eu estava interessada em ir ao Théâtre du Soleil fazer um teste-audição, uma coisa que nunca tinha sido feita antes, e nem foi feita depois. Porque, até aquele momento, eles não tinham encontrado, na companhia, quem fizesse o papel da Clitemnestra.

Joana: Você já tinha feito o estágio?

Juliana: Eu fiz o estágio, que é o estágio que a Ariane dá, um estágio de máscaras, com duas semanas de improvisação. Um trabalho muito baseado em improvisação. Mesmo com o texto na mão. E ela tinha me visto nessas duas semanas do mês de maio, e em agosto me chamaram no Théâtre du Soleil. Entrei para fazer o papel da Clitemnestra e lá estou até hoje.5

Joana: E, no Théâtre du Soleil, nesses 15 anos, como foi o tratamento do corpo, você sentiu alguma diferença?

Juliana: A Ariane é muito exigente com o físico. Desde que eu estive lá nós fizemos Os Atridas, textos gregos, e  Tartufo, de Molière. De clássico, foram só dois, todas as outras peças são criações coletivas, sendo que uma delas foi um texto da Hélène Cixous, uma autora contemporânea que consideramos como a nossa autora no Théâtre du Soleil. É um teatro internacional, que atrai muito e em que muitos atores gostariam de entrar. Mas todos os que entram têm alguma técnica, alguma formação corporal. E nós fazemos um aquecimento de acordo com a peça. Em peça como os Atridas, em que o coro dançava, 14 atores e atrizes no coro não diziam uma palavra, só reagiam pela dança.

Joana: E como eram as danças?

Juliana: Eram danças inventadas, mas eram danças. Não era o que eu chamo de “o que o corpo fala”, eram danças coreografadas, mesmo. Isso tudo no Teatro du Soleil é feito com o tempo. O músico, Jean-Jacques Lemêtre, fica conosco desde o primeiro segundo, cria e escreve as músicas, e nós vamos aprendendo e fazendo, nesse caso específico dos Atridas, havia coreografias. Desde então, nunca mais houve espetáculo com coreografias. Uma das meninas, a que fez o Corifeu, falava texto e tinha tido uma experiência de vida na Índia: com a ajuda de uma outra pessoa, a Nadejda Loujine, que também trabalha muito com a Ariane, fizeram as coreografias. Nós trabalhamos muito o corpo, o corpo que fala.

Joana: E cada montagem tem uma demanda corporal específica?

Juliana: É, por exemplo, a penúltima peça que fizemos uma história passada na Ásia – havia as marionetes e os coquens atrás, os marionetistas. Nosso figurino era feito de maneira que fosse possível preender as marionetes ao corpo, com umas alcinhas, por dentro. E os marionetistas tinham que pegar o ator-marionete e manipulá-lo, levantando-o. Quer dizer, é como se fosse um pas de deux de dança clássica. Os meninos todos tiveram que fazer muita musculação, porque tinham que estar muito fortes. E para você ser uma marionete verossímil você também tem que ter um conhecimento do corpo, era um trabalho muito físico.

Joana:E, no caso, é chamado alguém específico para aquela área?

Juliana: Não, geralmente não, somos nós mesmos que trabalhamos. Porque como tudo que é feito vem da proposta dos atores como, por exemplo, essa Catherine Schaub, que foi a Corifeu dos Atridas, ela tinha dois anos de Kathakali, e se a Catherine Schaub não estivesse conosco durante os Atridas, os Atridas não teriam sido o que eles foram; porque não teria tido essa pessoa que estava propondo. Somos uma base entre 30 e 40 atores, e quando começamos a ensaiar não sabemos quem vai fazer qual papel, não sabemos nem se vamos fazer algum papel, porque às vezes você não consegue entrar naquele mundo imaginário; você faz propostas, mas não consegue. E tudo vem da proposta dos atores. A gente tem um dia de leitura, que é o primeiro dia, e no segundo vamos para a sala de ensaio, e temos maquiagem, roupas, panos, e propomos a estética, o figurino, a maquiagem, o mundo, o cenário. Por exemplo, começamos a ter necessidade de estar em cima de um muro. Aí construímos um muro mais ou menos, depois aquele muro é feito no cenário pelo cenógrafo. O texto é proposto, se ele é clássico, ele é proposto e aceito. Se ele não é clássico ele é criado... (pela Hélène Cixous, nossa autora).

Joana: Mas no caso do corpo não tem ninguém, quer dizer, no caso do cenário tem alguém, na iluminação tem, e no corpo essa função estaria disseminada entre vocês mesmos, são vários os preparadores? Tem aqueles atores que também são preparadores?

Juliana: Isso. São os “atores-preparadores”. Eu dou muita aula, tem um rapaz chamado Duccio Bellugi Vannuccini, que se formou com a Pina Bausch, inclusive, se formou em mímica, ele também dá aula. Os que são mais fortes naquele domínio, dão a aula.

Joana: É interessante porque a gente vê como essa função está tão ligada ao trabalho de interpretação. Porque no Brasil, às vezes, ela ainda é de fachada, o preparador vem de fora, porque a formação do ator brasileiro, às vezes é precária no sentido corporal.

Juliana: Mas eu não diria nem no ator brasileiro, eu acho que o ator do mundo inteiro; eu acho que isso é bem específico do Théâtre du Soleil, porque se você trabalha com qualquer outro metteur en scène aqui na França, ou onde seja no mundo, às vezes nem tem preparação corporal. Evidentemente o Grotowski, o Eugenio Barba, outros que têm outras técnicas.

Joana: E como preparadora corporal, você trabalhou no Brasil em montagens fazendo coreografias?

Juliana: Trabalhei com montagens infantis, e um pouquinho com preparação física dos atores. Mas um pouco, me sentindo... como dizer? Agora já estou com mais segurança. Mas nunca tive vontade de ser coreógrafa, de dirigir; eu me sinto muito bem no papel de intérprete e no papel de assistente de diretor. Quando me chamam para fazer uma coreografia não é o meu domínio. Mesmo dado aulas, as aulas que dou são uma tentativa de transmitir essa técnica de improvisação do Théâtre du Soleil. Quando vou dar uma aula acabo dando uma aula de yoga, que é em que mais me sinto capaz.

Joana:  Mas no Théâtre du Soleil, quando você conduz o aquecimento?

Juliana: Eu posso conduzir o aquecimento, mas não me sinto confortável. E mesmo no Théâtre du Soleil, quando conduzo, o aquecimento acaba sendo de yoga. As posturas todas, a respiração, o trabalho da imobilidade. No Mudra, nós fazíamos aulas de yoga todos os dias pela manhã, em jejum; é uma coisa que me marcou muito também. Então, até hoje o trabalho de flexibilidade muito grande, é um trabalho que completa. A gente acaba chegando a essa conclusão; eu adoro fazer uma aula de dança clássica também. Uma técnica bem trabalhada.

Joana: Como você diferenciaria essa disponibilidade corporal, ou até de intérprete em estar numa companhia de dança ou de estar numa companhia de teatro?

Juliana: Eu posso dizer que numa companhia de dança, fisicamente, por exemplo, quando estava numa companhia profissional, na companhia da Maguy,  a gente fazia um trabalho árduo, de emagrecer 10 kg. E eu estive numa companhia de teatro aqui na França, que é a companhia da Ariane, em que também se trabalha muito árduo das 08h30min da manhã às 20h00min da noite. O que eu não me sinto bem é quando se trabalha muito o texto em volta de uma mesa, quando é muito cerebral realmente eu fico sem munição. Porque eu sei, por exemplo, se você me dá um texto para ler, eu não sei te dizer o que eu acho daquele texto, não tenho muito essa capacidade. Mas, se você me põe em cena, com o texto na mão, o texto vai surgir sem que eu nem saiba. Esse trabalho da Ariane com o texto na mão, que fazemos, me convém muito, porque me dou conta de que, em cena, com uma roupa ou figurino criado na hora, só para a minha imaginação, tentando me colocar naquela situação daquele personagem, com aquela atenção que acontece no momento de uma improvisação, o texto sai pela minha boca, a emoção sai de mim. Eu sei que a minha capacidade cerebral é muito pequena, em relação à minha capacidade de receber, eu sei lá o quê, nem de onde vem.

Joana: É o lugar da dramaturgia, do texto, e você já está no lugar da cena. Você vai direto.

Juliana: Exatamente. E é revelador. É como se as palavras saltassem, e numa frase, uma ou outra palavra, mais ainda. E aquela palavra salta, e vem uma emoção junto. Aí, depois: Ah... então, nesse momento, ela ou ele, o personagem... Porque, inclusive, temos essa grande oportunidade de fazer todos os personagens, masculinos e femininos, enquanto se está procurando quem é, como é, de onde vem, o que é? Então, me convém muito porque não sou cerebral. Eu não estou dizendo que é assim que deve ser, mas eu sei que eu sou assim; eu não sou cerebral. Não é um cerebral de dedução lógica, de: Ah, então é por isso e aquilo. Ah, se ela é da classe média, ela é assim e assado. Eu preciso e gosto de sentir que, de repente, o meu corpo, e inclusive a voz também mudam, porque a gente não tem um trabalho; isso a gente não tem, um trabalho de voz, de fazer exercícios vocais.

Joana: Não tem um fonoaudiólogo?

Juliana: O fonoaudiólogo tem porque de vez em quando acontece da gente precisar... como numa peça em que eu fazia o papel de um velho e de uma mulher; o velho tinha uma voz muito grave, e a mulher era uma vendedora de macarrão, uma chinesa com uma voz muito aguda, o fato de ter esses dois, quando eu estava fazendo a peça em continuidade não teve nenhum problema, mas quando começamos a fazer turnê, e que interrompíamos o trabalho, passando duas, três semanas sem fazer nada, quando voltava de novo eu perdia a voz. Porque não estava com os músculos adequados. Então, tive que ir à fonoaudióloga. A gente não tem um trabalho de aquecimento. Pode até ter individual, mas o aquecimento físico é de grupo e o aquecimento vocal é cada um na sua capacidade.

Joana: Eles não são integrados, o aquecimento físico com o vocal. Bem:  juntando as pontas da conversa, pode-se dizer que estar numa companhia de dança ou numa companhia de teatro não se diferencia, para você?

Juliana: Não. Mas estou falando da minha experiência própria. Porque quando estava na dança, eu diria: “Nossa, mas os bailarinos trabalham muito mais do que os atores!” Que seria o que a gente imagina. Mas acontece que eu estou numa companhia de teatro onde eu acho que a gente trabalha ainda mais, porque a gente chega lá às 8:30 da manhã e sai às 20:30, 22:00 da noite. Estou numa companhia de teatro que é um pouco excepcional. Mas eu sei, por exemplo, há pouco tempo eu fui fazer A morte de um caixeiro viajante, no Rio. A gente se encontrava à tarde e não tinha o mesmo ritmo de trabalho, tinha que trabalhar sozinho em casa, o que para mim foi difícil, porque não estava habituada a trabalhar sozinha. Eu via que o Nanini chegava com muito mais preparação do que eu. Eu estava hospedada na casa da Renata Sorrah, e a Renata me falava: “Juliana, eu não estou te vendo trabalhar!” Porque a Renata também é atriz, e no Brasil, e ela trabalha em casa como uma louca. Quando eu fico hospedada na casa de Renata, em que ela está fazendo uma peça, a gente não se fala. Quando ela acorda fica trabalhando sozinha; eu não estou habituada a trabalhar sozinha. Então, é diferente, você tem que ter uma autodisciplina diferente quando você está sozinha.

Joana: E a sua disponibilidade corporal, em cena, para as duas linguagens é a mesma?

Juliana: A minha disponibilidade é a mesma, acho que isso eu adquiri, justamente, nessa história do que foi, na época uma novidade - o “intérprete do teatro total”. Mas, evidentemente, numa companhia de dança a gente deve fazer e se não fizer não vai para frente uma aula de uma hora e meia, duas horas de aula por dia. Aula técnica, senão não dá. Tanto que, quando eu voltei para a companhia da Maguy, fazíamos aquelas aulas todas e percebo que é uma outra disciplina. Porque, mesmo os aquecimentos que a gente faz no Théâtre du Soleil, quando começo a dar uma aula de uma técnica mais específica, percebo que os atores, mesmo no Théâtre du Soleil, não têm capacidade, porque nunca fizeram, não têm os membros, as pernas e a noção do quê é uma dinâmica. Por exemplo, quando começo a dar aula, e vejo as pessoas fazerem, eles não têm noção do que é dinâmica forte, ou lenta.

Joana: As qualidades são códigos que não foram apreendidos. Analisando a maneira do ator e a do bailarino dançar, podemos dizer que o ator, por não ter os códigos, quando ele dança, ele critica a dança, ele pega pela forma. Por exemplo: “Vamos fazer uma dança indiana”. E ele pega a forma da dança indiana e brinca com a crítica daquilo, comenta. E o bailarino, no caso, se ele estuda a dança, ele vai pegar pela segmentação, ele vai pegar pelos códigos do movimento, pela dinâmica. Ele vai ter outro tônus, é outra forma lidar com a dança, talvez não criticando, mas de dentro.

Juliana: É, agora há pouco, faz um mês, mais ou menos, eu fiz cinco dias intensos de dança do Sri Lanka; eram cinco horas por dia, Joana. Eu não entendo como é que a gente conseguia, eu chegava ao final e falava assim: “Como fizemos cinco horas?” E não parava! E era uma dança também com os seus códigos, a gente fazia, por exemplo, a dança do elefante, no ritmo. E, evidentemente, que o fato de eu ter feito dança me facilita. Pelo menos, quando eu olho, vejo imediatamente direita e esquerda, vejo o ritmo, sou capaz de olhar e fazer uma leitura muito mais rápida. Agora, a minha base, se eu for pensar bem na minha técnica de base, com D. Maria Duschenes, é o que chamávamos também do expressionismo alemão, que era o de contar, o de expressar; eu já tinha, na época, uma noção do quê era contar com o corpo.

Joana: E quando você pensa no Klauss hoje, o que vem de imediato?

Juliana: Uma grande doçura e uma sabedoria...

 

Juliana Carneiro da Cunha é carioca, atriz e bailarina, radicada em Paris desde 1990, onde atua no Théâtre du Soleil, companhia de Arianne Mnouchkine. Durante a década de 70, estudou com Maurice Béjart, Pina Bausch, Maguy Marin e Robert Wilson, entre outros.  Voltando ao Brasil in 1976, atua como atriz em teatro e cinema, destacando-se, entre outras atuações, na encenação de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, de Rainer Maria Fassbinder,  em 1982, com direção de Celso Nunes.

Juliana Caneiro da Cunha (Rio de Janeiro) is an actress and ballerina, residing in Paris since 1990 where she works at Arianne Mnouchkine's company, Théâtre du Soleil.  During the 1970s Juliana studied with Maurice Béjart, Pina Bausch, Maguy Marin and Robert Wilson, among others.  Returning to Brazil in 1976, she worked as an actress in theatre and film, standing out, among other appearances, in Fassbinder's  The Bitter Tears of Petra von Kant, directed by Celso Nunes in 1982.

Joana Ribeiro da Silva Tavares é Professora Recém-Doutora do PPGAC/UNIRIO pelo programa PRODOC da CAPES. Defendeu sua tese de doutorado “Klauss Vianna, do coreógrafo ao diretor de movimento. Historiografia da Preparação corporal no Teatro Brasileiro” no mesmo programa em 2007, sob orientação da Profa. Dra. Tania Brandão e co-orientação da Profa. Dra. Angel Vianna, após completar estágio de doutorado na Universidade de Paris-8 em 2005-06, sob a supervisão da Profa. Dra. Isabelle Ginot.

Joana Ribeiro da Silva Tavares, PHD is a researcher and post-doctorate teacher of the PPGAC/UNIRIO with a PRODOC scholarship from CAPES, a division of the Brazilian Ministry of Education. Awarded a scholarship for international exchange, she completed part of her doctorate studies in France (at Université Paris 8) during 2005 and 2006, under supervision of professor Isabelle Ginot (PhD). She defended her doctorate thesis in 2007 with support from the same scholarship program, under the direction of professor Tania Brandão (PhD) and co-directed by professor Angel Vianna (PhD). The subject of her thesis was “Klauss Vianna – from choreographer to movement director. Historiography of the physical coach in Brazilian theatre”.



1 Le Rideau de Bruxelles: teatro fundado no Palais des Beaux-Arts em 1943, por Claude Etienne, ator e diretor, que dirigiu a companhia durante 49 anos. É a companhia teatral mais antiga de Bruxelas, Bélgica.

2 O nome da peça era: L’Oiseau Vert.

3 Juliana devia estar se referindo aos irmãos Baptista, Arnaldo (baixo e teclado) e Sérgio (guitarra), fundadores do grupo junto com Rita Lee.

4 Possessão, de 1976, Rio de Janeiro, RJ. Juliana Carneiro da Cunha recebeu o Prêmio revelação da Associação Paulista de Críticos de Arte, APCA.

5 15 anos, na ocasião da entrevista (1990 – 2005).

6 Les Tambours sur la Digue (1999).