O ATOR COMO ATLETA DAS EMOÇÕES: O
RASABOXES
THE ACTOR AS ATHLETE OF THE EMOTIONS: THE RASABOXES
EXERCISE
Michele
Minnick e Paula Murray Cole
Towson University (Towson, MD, USA) e
Ithaca College (Ithaca, NY, USA)
Tradução
de Ana Bevilaqua, Márcia Moraes e Michele Minnick
Resumo
Neste
artigo, originalmente publicado na revista Movement for Actors, em 2002, Michele Minnick e Paula Murray Cole discutem a teoria e prática de rasaboxes, uma abordagem ao treinamento do performer
baseada na emoção, criada por Richard Schechner e
desenvolvida pelas autoras. Elas explicam a teoria e conduzem a alguns
exercícios fundamentais, dando exemplos de suas próprias aplicações do trabalho
em ensaios e performances.
Palavras-chave | Treinamento
| Ator | Fisiologia |
Emoção | Performance
Abstract
In this article, originally published in Movement for Actors in 2002, Michele Minnick and Paula Murray
Cole discuss the theory and practice of the rasaboxes,
an emotion-based approach to performer training originated by Richard Schechner and developed by the authors. They explain the
theory take us through some of the fundamental exercises, giving examples of
their own applications of the work to rehearsals and performances.
Keywords | Training | Actor | Physiology | Emotion | Performance
Michele Minnick (CMA, MA),
performer e diretora, analista Laban de movimento, Mestre em teatro e
fomentadora de rasaboxes nos EUA e no Brasil (www.rasaboxes.org).
Professora de teatro na Towson University,
em Maryland, Michele é membro da companhia de Richard Schechner
East Coast Artist, e
co-diretora de educação, junto com Paula Murray Cole. Ela ensina nos programas
de certificado em Análise Laban do Movimento em Nova Iorque e no Rio de
Janeiro.
Michele Minnick (CMA, MA in Theatre) is a performer, director, Laban
movement analyst, and developer of the rasaboxes in
the U.S. and Brazil (www.rasaboxes.org), and teaches theatre at Towson University in
Maryland. Michele was a member of
Richard Schechner’s company East Coast Artists, and
co-director of education with Paula Murray Cole. She teaches and presents the rasaboxes in the U.S. and internationally. She teaches in
the LMA certification programs in New York and Rio de Janeiro.
Paula Murray Cole (MFA,
LMT) é professora assistente de interpretação no Ithaca College, em Ithaca, NY,
co-diretora de educação para a East Coast Artists. Desenvolveu o
treinamento rasaboxes com Michele Minnick na New York University e no Ithaca
College; ensina na University of Tennessee, em Knoxville; na
Central Washington University; na The Dell’Arte International School
of Physical Theatre; e no Actors Movement Studio (NY). Ela é colaboradora
do Rasaesthetics, de Richard
Schechner, para quem está produzindo o documentário em vídeo Crossing the Line: Inside Schechner’s
Performance Workshop.
Paula Murray Cole (MFA, LMT), is Assistant Professor of acting
at Ithaca College in Ithaca, NY. As co-director of education for
East Coast Artists, she developed rasaboxes
training with Michele Minnick at NYU and Ithaca College, and has taught rasabox work at the University of Tennessee at Knoxville,
Central Washington University, the The Dell’
Arte International School of Physical Theatre,
and Actors Movement Studio (NY). A contributer to Rasaesthetics, by Richard Schechner. Paula is producing the documentary video Crossing the Line: Inside Schechner’s Performance Workshop.
O ATOR COMO
ATLETA DAS EMOÇÕES: O RASABOXES
THE ACTOR AS ATHLETE OF THE EMOTIONS: THE RASABOXES EXERCISE
Michele Minnick e
Paula Murray Cole
Tradução de Ana Bevilaqua,
Márcia Moraes e Michele Minnick
Não podemos mais
pensar nas emoções como tendo menos validade que a substância física, material,
mas ao contrário, devemos vê-las como sinais celulares que estão envolvidos no
processo de traduzir informações em realidade física, literalmente
transformando mente em matéria. Emoções são as conexões entre matéria e mente, transitando de uma para outra e influenciando
ambas (Pert apud Juhan,
1998: p. 370).
Artaud, Schechner, O Natyasastra e
Neurociência: origens das Rasaboxes
Uma das grandes discussões do teatro do século XX foi
sobre a questão da direção do trabalho do ator: ele
aborda essa questão de fora para dentro
ou de dentro para fora? Em seu artigo “Rasaesthetics”, nosso professor e parceiro, teórico da
performance e diretor de teatro experimental, Richard Schechner,
discute uma questão co-relacionada: a localização da teatralidade,1
fazendo um diálogo entre o que poderia parecer a primeira vista, um trio sem
semelhanças: o texto clássico indiano sobre performance Natyasastra,2
estudos contemporâneos de neurobiologia e psicologia, e escritos do teórico e
pesquisador teatral do século XX, Antonin Artaud. Com um olhar mais apurado
podemos perceber que todos os três estão interessados em uma mesma questão: uma
teoria sobre uma relação circular, ao invés de binária, entre emoção e corpo,
dentro e fora, que está focada num modo de percepção instintivo, visceral, mais
do que em uma percepção apenas visual e auditiva.
Fascinado pela teoria clássica indiana de rasa,3
estimulado pelas descobertas da ciência contemporânea, desafiado pela proposta
de Artaud do ator ser um “atleta das emoções”,4
e destemido da idéia provinda de muitos treinamentos baseados no método
Stanislavski onde um ator não deve nunca “representar a emoção”, Schechner concebeu os exercícios de rasaboxes, o componente
prático de seu argumento teórico da Rasaesthetics. Ele começou a ensinar estes exercícios, em
workshops sobre performance na
Universidade de Nova Iorque (NYU), treinando a expressividade e agilidade
emocional-física-vocal do performer.
Desde que começamos nós mesmas a ensinar nesses workshops há alguns anos, vimos
desenvolvendo e aprofundando os exercícios e aplicando o treinamento em nosso
trabalho artístico de performance. Além de sua função como treinamento, o
rasaboxes nos propiciou caminhos para a construção da personagem, a criação de
partituras emocionais de performance e uma forma direta, encorpada e presente
para a preparação emocional anterior ao palco.
Princípios básicos do treinamento
O princípio mais básico de rasaboxes é o de que cada idéia
que um ator deseja comunicar deve, de alguma forma, ser incorporada, recebida
por e expressa no, ou através do corpo, mesmo que seja apenas no nível da
respiração. Idealmente, os exercícios esboçados abaixo colocam em movimento um
circuito de feedback entre interno e
externo: conforme a emoção corre através do corpo, ela dá forma ao
comportamento de acordo com suas demandas, e por seu turno, realimenta a
imaginação e aciona impulsos físicos. Fazer e manifestar de modo interligado
com receber e responder. Quando alguém se torna completamente conectado
energeticamente à emoção, está trabalhando em relação a ela a partir do
externo, até chegar ao interno, para novamente retornar. Mais do que focar em
um ou outro ponto, no interno ou no externo, o rasaboxes encoraja uma abordagem
holística para as relações entre os aspectos interno e externo do ofício de um
ator, gerando um diálogo frutífero entre mente e corpo, através de uma
focalização no que Candace Pert
refere (acima) como as “conexões” entre os dois.
Servindo de ponte entre psicofisiologia
e expressividade, o rasaboxes desenvolve uma relação de trabalho consciente
entre o indivíduo-ator, corpo físico e emoções, e uma relação emocional-física
com o ambiente e outros performers. Os exercícios treinam performers a usar a
emoção como uma ferramenta objetiva com a qual podem desenvolver e investigar
personagens, cenas, peças inteiras e partituras de performance. Eles podem
ajudar o ator a fazer escolhas que não são apenas para ser vistas e ouvidas
pela audiência, mas também experienciadas palpavelmente
e engajadas visceralmente. Além disso, o rasaboxes pode servir como uma base de
treinamento multidirecional, onde hábitos e padrões podem ser trazidos à luz e
novas escolhas podem surgir.5
Seja como resultado de nosso treinamento cultural ou
teatral ou de nossas histórias individuais, muitos de nós têm acesso limitado à
experiência ou expressão de certas emoções. Nós observamos o poder de rasaboxes
para libertar performers (nós mesmas incluídas) para experimentarem e
desenvolverem uma ampla gama de expressividade, da atuação mais sutil do cinema
ao histrionismo operístico ou grotesco, sem sacrificar “sinceridade” ou
“verdade”. De fato, por causa de seu foco na incorporação e expressão física, o
treinamento rasaboxes pode servir para aprofundar a habilidade do performer em
encontrar conexões emocionais autênticas que poderiam, de outra maneira,
parecer indisponíveis ao performer. Esse treinamento estimula o ator a abordar
seu oficio como um processo consciente, orientado pelo corpo, onde ele possui
as chaves e as ferramentas de seu próprio desenvolvimento.
O que é rasa?
Rasa é uma palavra em
Sânscrito que significa, literalmente, essência, suco, sabor e pode ser
encontrada em antigos textos indianos Ayurvédicos
para descrever os seis sabores encontrados nos alimentos: salgado, doce,
amargo, ácido, acre e adstringente. Essa propriedade
da comida é então usada na combinação de alimentos para equilibrar os humores
do corpo – fogo, água e ar – que por sua vez, refletem a composição material do
universo. Rasa também se refere aos sabores que são percebidos na comida. No Natyasastra, rasa
é descrita como a experiência transmitida através da performance, que, nas
formas clássicas indianas que usam a teoria da rasa, é uma combinação inextricável de dança, teatro e música. Em
um capítulo dedicado à rasa, Bharata, o autor (talvez real, talvez mítico) do Natyasastra, diz:
Porque
ela [performance] é experimentada com prazer, ela é chamada rasa. Como o prazer
surge? Pessoas que comem alimentos preparados e misturados com diferentes
condimentos e molhos, etc, se elas forem sensíveis, apreciam os diferentes
sabores e então sentem prazer (ou satisfação); da mesma maneira, espectadores
sensíveis, depois de apreciarem as várias emoções expressas por um ator através
de palavras, gestos e sensações, sentem prazer, etc. Este sentimento (final)
dos espectadores é aqui explicado como (várias) rasa-s de Natya
(Vatsyayan, 1996: p. 55).
Neste contexto, a experiência da rasa é gerada pela representação das nove6
emoções básicas (chamadas de bhavas no Natyasastra) e suas muitas combinações possíveis.7
Como diz Schechner,
As sthayi bhavas são as
emoções “permanentes” ou “duradouras” ou íntimas, que são acessadas e evocadas
por uma boa atuação, chamada abhinaya. Rasa é a experiência de sthayi bhavas. Para colocar de outro modo, o
doce ‘em’ uma ameixa madura é a sthayi bhava, a experiência de “provar o doce” é rasa. Os
meios de chegar ao provar – preparando a ameixa, apresentando-a é abhinaya. Cada
emoção é a sthayi bhava. Atuar
é a arte de apresentar sthayi bhavas, desta
forma, ambos performer e público podem ‘provar’ a emoção, a rasa 9 (Schechner, p. 31).
As nove rasas
básicas e suas emoções correspondentes, livremente traduzidas, são: sringara (amor, o
erótico), raudra
(raiva), karuna
(tristeza, mas também pena e compaixão), bhayanaka (medo), bibhatsa (repugnância,
nojo), vira (coragem, virilidade), hasya (riso, o
cômico), adbhuta
(maravilha, surpresa), e santa
(graça, paz). A experiência dessas emoções tem lugar entre o performer e o espectador no momento da performance ao vivo.
Este espaço compartilhado entre é a
localização de rasa. O conceito de
prazer é essencial aqui tanto para o performer quanto para o espectador. Em
certo sentido, ambos estão provando a emoção representada. Embora alguns
praticantes da dança clássica indiana irão dizer que não vivenciam as emoções que estão retratando, o que é importante é
que eles representam de tal modo que a rasa
de uma emoção específica é usufruída – degustada como uma boa refeição – pela
audiência.
Como alguém alcança essa experiência compartilhada entre
ator e espectador? Nas formas de dança clássica indiana, tais como kathakali, expressões faciais específicas correspondentes
às nove emoções básicas são aprendidas e memorizadas pelos bailarinos-atores e
representadas em combinações altamente complexas de sapateado rítmico, gestos e
outros movimentos do corpo, todos os quais são codificados e representados como
dança-teatro “tradicional”, com apenas pequenas variações de uma geração de
dançarinos para a seguinte. Mas como esta idéia de rasa se relaciona à prática
cênica da performance ocidental? Será, afinal, um modo dos atores ocidentais
fazerem uso direto, físico das emoções, sem enfraquecer, mas pelo contrário,
fortalecendo outros modos de treinamento deles? Será que os performers podem
vir a ser o que Artaud apenas imaginou – “atletas das emoções”? Os exercícios
de rasaboxes descritos a seguir formam o campo de nossa exploração e
experimentação para responder a essas questões.
Linguagem: porque o sânscrito?
Antes de começarmos nossa descrição dos exercícios propriamente
ditos, é talvez necessário explicar nossa relação com os termos em Sânscrito e
a complexa teoria que eles refletem. Ao criar um exercício de treinamento
projetado principalmente para a aplicação nas práticas performáticas fora do
complexo dança-teatro clássico indiano, nós usamos o termo “rasa” (tanto como
parte do título da técnica de treinamento como nos próprios exercícios) de modo
específico que reflete o uso original no Natyasastra, mas expressa mais
exatamente, a maneira particular como Schechner
reconfigura o termo em “Rasaesthetics”8.
Como você poderá ver na nossa descrição dos exercícios básicos a seguir, nós
também mantivemos as palavras em Sânscrito original para cada rasa. Schechner fala de sua escolha por conservar o termo em
Sânscrito:
Para mim a razão
foi para ajudar os alunos – nenhum deles em minha prática jamais foi literato
em Sânscrito – a proporem seus próprios equivalentes para as rasas. É por isso
que o exercício começa com a escrita das palavras e desenho de imagens. Usar Inglês
(ou qualquer outra língua do conhecimento dos participantes) desde o início
seria despersonalizar e limitar o alcance de significados/sensações associados
com cada rasa específica. E mais ainda, se usássemos somente uma tradução feita
por mim mesmo. Minha “sringara” não é a sua “sringara”, e é importante para mim que durante o exercício
sua “sringara” encontre seu lugar. O exercício também
é exploratório. Você pode não saber o que sua “sringara”
é até você passar pelo processo de escrevê-la, se mover através dela,
vocalizá-la, etc. Finalmente, sua “sringara” de hoje
pode não ser, e certamente não será, sua “sringara”
de amanhã. Organicidade e vivacidade no sentido de possibilitar desenvolver
novos significados foram por longo tempo central tanto no meu trabalho
artístico quanto no acadêmico9.
De fato, nós observamos ser verdade essa liberdade
individual e mudanças constantes de associações. Na prática, cada rasa surge como uma categoria ou
“família” de emoção, tal como raudra, que contém uma série de emoções relacionadas. Nós
traduzimos livremente a palavra em Sânscrito raudra como “raiva”, mas, além
das várias associações pessoais que se possa ter do conceito de raiva, também
se subentende os vários níveis de intensidade emocional relacionados à raudra como
categoria maior: irritação, cólera, aborrecimento, e assim por diante. Assim,
em nosso uso da palavra, raudra
é uma rasa, irritação é um aspecto de
raudra10.
Finalmente, mais do que codificar a expressão da emoção
através de gestos e expressões faciais específicos, que são sempre executados
da mesma maneira (como na dança clássica indiana), nosso método é improvisacional. Enquanto o rasaboxes pode dar a sensação
de um mergulho na piscina universal das emoções, o modo como cada pessoa entra
em contato com e expressa cada emoção é específico do indivíduo e pode mudar a
cada vez que se engaja no exercício.
Alguns exercícios básicos11
A grade
Nós começamos fazendo uma grade no chão usando fita crepe
ou giz, deixando espaço em torno para as pessoas assistirem ao exercício. O
perímetro da grade é de aproximadamente 6,5 m X 5,5 m, criando nove retângulos
de lados iguais de aproximadamente 2,15 X 1,80 m. Normalmente trabalhamos em um
espaço tipo caixa-preta vazio.
Introduzindo as rasas
Primeiramente designamos cada uma das oito rasas aleatoriamente para cada uma das
oito “caixas” de fora, deixando o caixa central vazia. Esta caixa central é
reservada para santa, a rasa adicionada por Abhinavagupta
alguns séculos depois do Natyasastra
ter sido compilado. Refletindo a influência Budista que levou a sua adição como
a nona rasa, nós temos frequentemente
interpretado santa como um estado de
desapego das outras emoções. Localizada espacialmente sempre na caixa central, santa atua em certo sentido, como o olho
do furacão. Explicaremos como usamos a caixa de santa mais adiante.
Escrevemos a palavra em Sânscrito para cada rasa nas caixas no chão com giz
colorido. Se o chão não for apropriado para se escrever com giz, escrevemos em
grandes pedaços de papel colados com fita crepe no chão. Quando todas as rasas estão em seus lugares, andamos em
torno da grade e falamos sobre cada uma, dando descrições básicas de cada rasa, baseadas no seu significado e
contexto tradicionais Sânscrito, mas também em nossa compreensão contemporânea
desses oito estados emocionais. Por exemplo, podemos falar sobre sringara como
amor, amor erótico ou romântico, amor de uma mãe por seu filho, amor a Deus,
mas também como prazer físico, tal como ao cheirar odores doces, provar uma
comida salgada e assim por diante.
Após esta fase, a grade vai aparentar algo assim:
SRINGARA |
BIBHATSA |
KARUNA |
RAUDRA |
|
BHAYANAKA |
HASYA |
ADBHUTA |
VIRA |
Associação Palavra-Imagem
Em silêncio, os participantes entram em cada caixa,
desenhando e escrevendo (em qualquer língua que eles escolham) nas caixas suas
associações pessoais para cada rasa.
Essas associações podem ser diferentes de um dia para o outro. Essa fase do
exercício termina quando todos tiverem feito sua contribuição para cada caixa e
pisarem para fora da grade. Essas associações podem incluir desenhos abstratos,
citações de poesias, imagens evocativas, e tudo isso junto cria um tipo de
grafite evocativo para o grupo para aquele dia.
Incorporando as Rasas
Nós temos experimentado várias maneiras de começar o
trabalho de fisicalização. Normalmente começamos com
posturas que incorporam cada rasa no
seu extremo. O mais importante é que a rasa
seja plenamente fisicalizada, da cabeça ao dedo do
pé, todo o corpo engajado na sua expressão. Por exemplo, em raudra (raiva), os dentes podem estar à mostra, os punhos cerrados, a
barriga firme, os dedos dos pés agarrando o chão, os olhos arregalados, narinas
infladas, coluna em atitude de prontidão, a ponto de atacar.
Apesar das posturas serem “estáticas”, o corpo está ativo,
vivo. Geralmente as pessoas começam criando e memorizando as poses estáticas
para três ou quatro rasas. Depois que
estas poses foram memorizadas, os participantes praticam mover-se de uma caixa
para outra mudando instantaneamente de uma postura para a seguinte. A idéia é
fazer isso sem preparação ou transição entre as posturas de rasa, fazendo cada
rasa o mais “pura” possível – embora nós eventualmente combinamos rasas para alcançar emoções misturadas,
nesta fase, é importante mudar o mais completamente possível, sem permitir uma
rasa “sangrar” na seguinte. Essa mudança é o cerne do exercício rasaboxes, já
que ela desenvolve agilidade psicofísica, permitindo ao performer transformar
instantaneamente de raiva para amor, de medo para tristeza, e assim por diante.
Respiração e Voz
Uma vez que as poses são estabelecidas, procuramos
deixá-las mais vivas, engajando a respiração, sentindo como ela pode encher e
animar a forma do corpo. Então, a fisicalização da rasa dá forma à voz. (Também é possível
começar os exercícios com a respiração ou a voz e ir daí para o corpo). Conforme Schechner
aponta:
As primeiras
poses/sons freqüentemente têm a qualidade de clichês sociais – do “já
conhecido”, que encaixam nas rasas como casualmente subentendido. Grandes
risadas para hasya, punhos cerrados para raudra, choro para karuna e assim
por diante. A distância entre estereótipo e arquétipo não é tão grande. Mais
cedo ou mais tarde, o estereótipo/arquétipo social vai ser ampliado por gestos
e sons que serão mais íntimos, pessoais, peculiares, inesperados. A prática
leva a isso. A estrada de fora para dentro = a estrada de dentro para fora (2001:
p.41).
Uma relação com a rasa,
que pode começar a partir de uma imagem estereotipada de uma emoção, progride
para um diálogo intrincado entre o performer e sua própria fisiologia e
imaginação associativa. Pode-se entrar em uma caixa e experimentar a emoção a
partir de uma sensação em um órgão específico, uma imagem visual ou sensação
evocativa – ver um amante, segurar uma pedra na mão, sentir o chão como feito
de areia, uma brisa na pele – uma memória pessoal, a forma que o corpo faz, o
peso do corpo no chão. Os exercícios de rasaboxes trabalham como um tipo de
processo de impressão, desenvolvendo uma conexão entre mente, corpo, e emoção
através do qual o performer descobre chaves específicas que irão abrir e
reabrir os caminhos entre sensação interna e expressão externa.
Improvisação com Som e Movimento
Eventualmente, a incorporação da respiração, corpo e voz
levam a abrir para improvisação com som e movimento nas caixas. Pode ser útil
começar essa fase a partir das posturas estáticas, permitindo que som e
movimento surjam a partir delas.
Imagine cada rasa
como uma substância que preenche o espaço tri-dimensional de cada caixa e que é
acolhida, absorvida pelo corpo. É como um tipo de processo alquímico, através
do qual a constituição do corpo é alterada no nível celular, permitindo à rasa
então emanar do corpo, através da pele, olhos, voz, gesto, etc. Esta
transformação energética é palpável – nossa experiência é que quase todo mundo
observando sente a mudança tomar lugar na sala. Não apenas aqueles de “fora” se
tornam visceralmente engajados com a emoção sendo realizada, como eles
freqüentemente refletem fisicamente essa emoção na face e em outras partes do
corpo. Se a performance é verdadeiramente “rásica”,
não existe mais um fora – ambos, performer e espectador estão dentro, provando
e desfrutando a mesma rasa. É muitas vezes nesta fase que a caixa de rasa se torna um ambiente potencializado
de onde personagem, situação, e relação (com pessoas ou objetos reais ou
imaginários) começam a surgir.
É normalmente12
nesta fase do exercício que introduzimos a possibilidade de entrar na caixa de santa. Schechner
propõe isso como uma opção apenas se alguém sente que está claro em relação a
todas as outras caixas. Nós também trabalhamos sem esta restrição, tratando santa, às vezes, somente como mais uma
rasa a ser explorada. A caixa de santa
também pode servir como um lugar para se re-equilibrar neurologicamente, para
clarear, esvaziar ou acalmar-se, assim como a “postura do cadáver” deve atuar
ao final de uma prática árdua de yoga. Contudo, enquanto que a postura do
cadáver sugere um foco interno, a caixa de santa
é um lugar a partir do qual ainda se pode relacionar com os outros e com o
ambiente, mas sem se relacionar com uma emoção em particular.
Relacionando
Uma série de exercícios muito importantes foca na
interação entre pessoas em diferentes rasas. Primeiro, duas pessoas entram cada
qual em uma caixa diferente, digamos karuna e raudra.
Inicialmente, eles se ignoram um ao outro, focando na expressão de suas
próprias rasas. Então, eles começam a
se engajar um com o outro a partir dos pontos de vista de suas respectivas rasas, respondendo não ao estímulo de
sua própria caixa ou imaginação, mas à outra pessoa. Quando os dois estiverem
plenamente engajados um com o outro, cada um pode mover-se para outra caixa,
assim duas pessoas podem ir de uma relação em karuna-raudra para sringara-bibhasta.
Por último, o jogo abre para incluir as seguintes escolhas para cada jogador:
mudar de caixas; permanecer na mesma caixa enquanto o outro jogador muda;
deixar o jogo para permitir que outro jogador entre.
A relação abre uma dinâmica complexa. Mudanças tanto sutis
quanto radicais em qualidade e intensidade surgem quando duas rasas estão em diálogo. Por causa do
desafio que inicialmente se apresenta, nós geralmente, limitamos o
relacionamento verbal, ao uso dos primeiros nomes, e talvez uma troca tal como
a que se segue:
Jogador A:
“Eu sou (nome do jogador A). Quem é você?”
Jogador B:
“Eu sou (nome do jogador B). Quem é você?”
Invariavelmente, uma vez que as palavras são introduzidas,
a improvisação verbal entra na troca.
Finalmente, expandimos as possibilidades de relação
através da incorporação de textos memorizados (cena, monólogo, ou poema). Em
situação de grupo, nós geralmente pedimos a todos que decorem as mesmas seis ou
oito linhas, de modo que eles possam fazer o “trabalho de cena” nas caixas em
um formato de revezamento. Se estivermos trabalhando com uma cena de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee
Williams, por exemplo, o grupo vai decorar tanto as falas de Stella quanto as
de Blanche. Uma pessoa entra fazendo Stella, outra, Blanche. Depois de se
moverem através de várias trocas em diferentes rasas, uma delas vai sair das caixas, e outra vai entrar,
começando a cena novamente e assim por diante. As palavras são usadas como
textos abertos, focando a exploração de como cada rasa informa esse texto
diferentemente, ao invés de focar em personagens, circunstâncias dadas, ou
outros elementos do texto da peça. O texto permanece fixo, enquanto as rasas mudam. Nós aprendemos com esse
processo que emoção não é, necessariamente, psico-“lógica”. Muitas vezes, a
emoção menos lógica é a que torna a cena mais interessante.
Camadas
Enquanto que em todos os exercícios prévios, os
participantes tentavam trabalhar com rasas “puras”, sem mistura, nesta fase,
eles começam a combiná-las. Existem várias possibilidades. Pode-se trabalhar
com uma rasa como base, como centro
ou rasa primária sobre a qual outras rasas
vão se sobrepor. A Blanche representada com
raudra (raiva) como a rasa primária, vai criar uma resultante muito diferente daquela
representada com karuna
(tristeza), por exemplo. A idéia de uma rasa primária pode sugerir algumas
coisas: que existem rasas máscaras sobre ela para esconder ou
proteger a primária, ou que existem simplesmente rasas superficiais
momentâneas, que mudam de acordo com as ações e eventos da peça (veja a
narrativa de Paula Murray Cole abaixo para uma descrição completa deste
processo).
Duas ou mais rasas
podem também ser misturadas para criar combinações de emoção mais complexas.
Por exemplo, o que resultaria se você combinasse de 50% de raudra (raiva) com 50% de karuna
(tristeza)? Ou 70% de sringara
(amor) e 30% de hasya (riso)? As emoções representadas no
rasaboxes como estados distintos e isolados, de maneira nenhuma abrangem a
totalidade de extensão da emoção humana. Elas podem ser pensadas preferivelmente
como uma palheta básica a partir da qual todo o espectro pode ser criado.
A idéia da superposição de rasas pode estender-se como uma abordagem para o trabalho de cena.
Pode-se marcar uma cena inteira sobre a “chave” de uma rasa específica (ou uma combinação de rasas), enquanto que personagens ou momentos podem ser
representados em outras rasas. No
terceiro ato de As Três Irmãs, de
Tchekhov, por exemplo, enquanto todos os outros estão traumatizados e operando
em um estado de emergência por causa do fogo (talvez bhayanaka [medo] ou karuna
[tristeza]), Masha não pode fazer nada a não ser
deleitar-se com seu recém-encontrado amor (sringara) por Vershinin.
Muitas vezes, rasas específicas
parecem surgir logicamente do próprio texto, como se o autor estivesse
trabalhando com um tipo de palheta “rásica”, mas
também é possível aplicar aleatoriamente em um texto rasas escolhidas (ou combinações) para descobrir o que funciona.
Além das caixas
Por último, um performer com experiência no treinamento
rasaboxes pode internalizar sua estrutura e é capaz de transformar de um estado
rásico para outro sem o mapa físico das caixas. É
possível para tal performer mudar a qualidade emocional de um momento, um
discurso, ou uma cena em qualquer ponto sem necessariamente mudar seu lugar no
espaço. Emoção, como espaço, tempo e outros elementos da encenação, se torna
simplesmente mais uma outra ferramenta para ser usada no processo de exploração
e desenvolvimento do trabalho de performance. O rasaboxes pode libertar os
performers de questões sobre “motivação”, permitindo-os pensar e usar emoção de
um modo mais divertido e arriscado. Finalmente, emoção – que tão frequentemente
é bloqueada ou internalizada – se move no corpo, onde pode energizar o espaço entre um performer e outro e entre
performer e espectador.
CONSTRUINDO O PERSONAGEM E
A COMPOSIÇÃO DA PERFORMANCE: DUAS NARRATIVAS
Paula Murray Cole
Em 1999 eu interpretei Ofélia
na adaptação teatral de Richard Schechner para Hamlet de Shakespeare. Eu apliquei o
trabalho das rasas de diferentes
maneiras nesta produção: (1) como uma ferramenta de descoberta para o conteúdo
emocional da peça tanto na análise teórica de texto, quanto na exploração
psicofísica nos ensaios de cenas; (2) como um caminho para a construção da
estrutura psicológica do personagem; (3) como uma ponte entre preparação
emocional fora de cena e a performance no palco em si.
Quando começo a trabalhar em
uma peça, mergulho no texto buscando informações sobre o meu personagem: olho
as circunstâncias dadas e a forma como suas relações se constituem13.
Eu começo a entender os objetivos do personagem (o que ele deseja em relação
aos outros), quais os obstáculos que ele enfrenta na busca desses objetivos e
quais são as ações específicas que ele toma. Baseada nas informações colhidas
do texto, eu desenvolvo uma biografia para o personagem, o que me ajuda a
estruturar e a lidar com a sua psicologia: o quê e quem influenciaram na
definição de sua identidade, nas suas necessidades emocionais, na sua relação
com os outros, no meio em que vive e no seu comportamento. Este trabalho me
ajuda a considerar quais as rasas eu
possivelmente usarei durante o processo. Eu começo a sentir quais sensações rásicas são mais acessíveis ao meu personagem, quais melhor
apoiarão o texto, a minha própria interpretação do papel, e a visão do diretor
para a montagem. Mesmo tomando notas sobre todo este trabalho, mais importante
ainda é o processo de fisicalização e externalização em voz alta. Este é o meu processo
individual de ensaios e preparo para os ensaios em grupo.
Eu então começo a experimentar
com as rasas em ensaios de cenas. Uma
forma de incorporar o método em processo de ensaios, utilizada por mim em Hamlet, foi a interpretação de cenas
inteiras dentro de uma única rasa e em intensidade máxima. Por exemplo, a cena
na qual Ofélia conta a seu pai Polonius que Hamlet a
havia assustado comportando-se de maneira estranha, eu inicialmente ensaiei a
cena em bhayanaka
(medo), depois em karuna
(tristeza), posteriormente em sringara (amor), depois em raudra (raiva) e assim
sucessivamente em todas as rasas. Eu
reparava em como cada rasa afetava o
ator interpretando Polonius e em como isto informava
as ações que eu escolhia fazer. Este tipo de experiência me ajuda a descobrir
uma gama de variações emocionais e de ações dramáticas e a definir quais eu
desejo manter e quais não, descartando as outras possibilidades que parecem
menos úteis.
Próxima vivência é a
superposição de camadas rásicas para explorar e criar
os conflitos internos e externos que movem as decisões do personagem através da
peça. Para Ofélia eu escolhi trabalhar com quatro rasas principais: duas rasas
superficiais com as quais ela habitualmente gravitaria: bhayanaka (medo) e karuna
(tristeza); uma rasa máscara: sringara (amor); com a qual ela se identifica
profundamente e também usa estrategicamente para obter aprovação familiar e
social; e uma rasa primária: raudra
(raiva), que é reprimida até a sua última cena. Eu usei estas escolhas em
variações de níveis de intensidade ou peso dependendo dos desafios enfrentados
por Ofélia nas cenas dadas.
O elemento chave na minha
interpretação do personagem foi a forma na qual eu utilizei a rasa primária, raudra:
Ela fundou uma base psicológica da qual eu construí a minha linha-pensamento de
ações. Eu decidi que a sobrevivência de Ofélia em sua vida familiar com Polonius e seu irmão, Laertes (e posteriormente, por
extensão, seu amante Hamlet) dependia inteiramente de sua habilidade em
suprimir qualquer resistência sua diante do que era esperado dela. Imaginei que desde a sua infância qualquer
mínima reação de resistência da parte dela seria completamente esmagada por um
tratamento de rejeição e desaprovação de seu pai. Enquanto que seu bom
comportamento sendo doce, gentil, complacente e amorosa era prazerosamente
recompensado. Ela assimilou, seja inconscientemente, que reprimir seus
sentimentos de raiva (raudra)
por baixo de uma máscara amorosa (sringara) era a forma de sobreviver, prosperar e ser bem
sucedida em seus relacionamentos. Então eu neguei a Ofélia livre acesso ao
sentimento de raiva até a sua última cena (embora o liberando em chamas intensas rapidamente sufocadas ao final da cena do
convento e na cena dos Atores, à medida que sua
situação e relacionamentos iam se distendendo). Mesmo assim raudra era a rasa por
baixo de todas as outras, gerando a tensão que dava forma as outras rasas, como um grão de areia irritante
criando uma pérola.
Determinando esta
estrutura psicológica ao personagem, o que acontece a Ofélia quando seu pai é
assassinado por seu amante na ausência de seu irmão e todo o acontecido sendo
encoberto pelo Rei? O que acontece quando ela sente a “emoção proibida” de
raiva e perplexidade por ter sido seu assassinado pai enterrado sem nenhuma
cerimônia? O que ela faz quando as relações que solicitavam a repressão da sua rasa primária e a aderência a sua rasa máscara desaparecem, violentamente
arrancada? Felizmente Shakespeare nos
leva a essa resposta na famosa cena final de Ofélia: a cena de sua
loucura.
Resumindo, a minha
partitura física e ação psicológica durante a cena de loucura de Ofélia
focou-se em: (1) encenar um respeitável funeral para meu pai; (2) punir e
humilhar ao Rei e a Rainha pelo assassinato de meu pai; e (3) secretamente
alertar meu irmão desta traição. Para Ofélia esta cena é motivada pela lógica,
porém seus conflitos psico-emocionais levam-na ao
desequilíbrio, desorganizando e fragmentando o seu senso de realidade. As
minhas quatro rasas principais foram
energizadas ao extremo absoluto, enquanto eu abruptamente (mas não
ilogicamente) trocava reações entre elas. Nesta cena eu permiti à Ofélia a
completa vivência e expressão de raudra. A força desta rasa,
finalmente liberada, era muito estimulante, fazendo surgir outras rasas: hasya
(pelo ridículo) e bibhatsa
(pelo nojo), o que melhor servia para golpear e humilhar ao rei e a rainha.
Indispensável para
o processo de construção deste espetáculo foi a compositora e coreógrafa Liz
Claire. Ela e os outros músicos criaram a trilha sonora que entrelaçava e
costurava o tecido de ensaios e apresentações deste espetáculo. Liz é treinada
no método rasaboxes e eu tive o privilégio de trabalhar com ela nas cenas de
Ofélia, na maioria desenhada ao som de seu violino. Entre nós duas, compusemos
movimento e música que geravam suporte, ampliavam, e reforçavam bem as escolhas
rásicas que foram feitas para o trabalho.
Finalmente utilizei
o método como um aquecimento preparatório para o espetáculo antes e durante as
apresentações com o objetivo de rapidamente entrar no estado fisiológico da
cena. Durante o treinamento dentro das rasas, eu aprendi a localizar pontos
específicos no meu corpo, onde ao movê-lo ou ao mantê-lo em uma determinada
posição gestual ou rítmica, desencadeava-se uma mesma sensação psicofísica de
uma rasa em particular. Por exemplo,
quando eu vagarosamente e gentilmente girava meus braços para o céu em um gesto de impotência, eu me sentia naturalmente engajada
com a rasa karuna. Isto acontecia em
questões de segundos. Então como preparação para a entrada em minha cena da
loucura de Ofélia, eu me engajava com esta rasa
ainda fora de cena, de modo a parecer como se eu estivesse chorando
inconsolavelmente por semanas. Meu rosto tornava-se vermelho e inchado,
lágrimas caindo pela minha face, e líquido corria pelo meu nariz! Isto era
fácil e divertido de fazer, nada dolorido ou pessoal. Assim que eu crusava a
linha de entrada nas cenas eu sentia que a platéia vivenciava a rasa junto a mim. O seu retorno me alimentava ainda mais,
abastecia a rasa estabelescendo um movimento entre nós. O efeito, ao que parecia, era tanto persuasivo e
lancinante.
O trabalho nas rasas me auxiliou a traçar os conflitos
de Ofélia em sua trajetória pela jornada da peça. Me ajudou a acessar seus
conportamentos psicológicos e emocionais, a desenhar de momento a momento as
suas ações físicas. Em termos rásicos, eu posso dizer que o trabalho me ajudou
a descobrir a minha própria receita para a performance: quais ingredientes
escolher e misturar, por quanto tempo mexer e cozinhar, provar e fazer ajustes
e finalmente oferecer a todos a minha criação para ser dividida e saboreada.
Michele Minnick
Adicionando a
função de treinamento para o performer e a construção de personagem a partir de
um texto dramático, é também possível aplicar o método rasaboxes como uma
ferramenta de criação para a composição de um trabalho autoral, uma performance
que se origine mais de um processo de pesquisa corporal do que de um texto
dramático já existente. Eu no momento desenvolvo uma performance autoral que
será interpretada por mim e pela coreógrafa e compositora Liz Claire, sobre a
poetisa russa Marina Tsvetayeva. Nós estamos usando
um material biográfico, histórico e poemas para o texto da peça e o método
rasaboxes como um dos muitos meios para desenvolver a composição física
emocional da dramaturgia e a composição musical.
Rasaboxes me
proporcionou uma estrutura para os ensaios, um caminho que nos permitisse
navegar por possíveis mapeamentos de emoção para ser usado como parte da
partitura física da performance. Assim como também mostrando um caminho para a
minha descoberta de possíveis escolhas para o “personagem”. A minha abordagem
do método pensando o personagem é diferente da forma como Paula abordou Ofélia.
Nesta peça eu não trabalho Tsvetayeva como um
personagem completo, a ser desenhado por mim de uma forma unificada, mas sim
como uma série de estados, momentos, uma pluralidade de “personas” com as quais
eu possa mover e navegar através do personagem, ao mesmo tempo me mantendo
presente na peça. Apesar de eu ainda estar no meio do processo de criação e
saber que muito do material até então gerado poderá ser descartado, posso falar
um pouco sobre algumas coisas que venho descobrindo através da utilização de
rasaboxes nos ensaios.
Trabalhando com a
Liz e com a dramaturga Gisela Cardenas, eu usei a
técnica rasaboxes na primeira fase do processo de ensaios como uma moldura para
investigação. Espalhando pelo chão no início de todos os ensaios um mapa
emocional que eu havia montado com textos, poemas, objetos, peças de figurino,
e muitas fotografias de Tsvetayeva que Gisela havia
juntado e catalogado para mim. Quando comecei a trabalhar com todo este
material dentro das diferentes rasas, ele começou a estabelecer uma relação
dinâmica entre si: em relação às emoções das rasas, com o universo da vida de Tsvetayeava
retirado das pesquisar feitas em sua biografia, com movimentos improvisados,
sons, e textos novos que surgiam do processo de ensaio.
Texto
e movimento
Por exemplo, uma
simples forma de trabalhar tem sido selecionar uma parte de um poema e
simplesmente trabalhar com ele sonoramente em cada rasa. Até o momento tenho trabalhado com os poemas no original em
Russo, ocasionalmente improvisando textos “como a própria Tsvetayeva”
baseando-me tanto no que já sei sobre a sua vida quanto também no que eu
imagino dela, em Inglês e Russo. Assim como as rasas podem servir como um espaço para a interpretação de textos,
elas também podem gerar estímulos para a criação de novos textos, que foram
surgindo a partir do meu próprio corpo emocional e imaginativo. Esta é uma
forma bem diferente do processo de escrita de um texto, daquele sentado em uma
escrivaninha (o que não deixa de fazer parte do processo também).
À medida que eu
entrava em cada rasa eu imediatamente associava aquela emoção com certos
períodos da vida da personagem, certas pessoas, ou certos aspectos da vida de Tsvetayeva. Eu passei um ensaio simplesmente me
movimentando de uma rasa a outra
falando às vezes com figuras imaginárias, às vezes diretamente com a Gisela. Hasya (riso) me levou a infância, karuna (tristeza)
para a morte da mãe de Tsvetayeva, raudra (raiva)
para o sentimento de traição sentido por ela em relação a toda Rússia e bhayanaka (medo)
ao meu retorno para um tempo de solidão absoluta perto ao fim da vida de Tsvetayeva. Às vezes a combinação entre a emoção e o
aspecto da vida da personagem me levava a falar, gerando novo texto e às vezes
me levava somente a mover e pesquisar sons, gerando um tipo de coreografia
emocional composta por posturas particulares, gestos e movimentos.
Objetos
e Imagens
Um dos objetos com
o qual desenvolvi relações claramente diferenciadas durante um período de dois
ou três ensaios é o papel. Ele entrou inicialmente no jogo um dia através da rasa sringara
(amor). Nós tínhamos um grande rolo de papel branco em mãos, mais para o
objetivo de escrever dentro das rasas.
Em certo momento do ensaio Gisela trouxe-o para mim enquanto eu estava
trabalhando em sringara, com imagens na minha mente do primeiro
encontro entre Tsvetayeva e o homem que mais tarde
viria a se tornar o seu marido, de repente o papel tornou-se ele mesmo,
transformou-se em um véu de noiva, e voltou ao seu significado próprio de papel
onde eu escrevia cartas e poemas para ele.
Esta foi a primeira
vez que o papel entrou como objeto e imagem no nosso processo. Uma descoberta
cheia de sentidos, tendo em vista o relacionamento de uma vida da poetisa com
uma folha de papel em branco. Posteriormente ele entrou na rasa bhayanaka (medo). Eu estava no meio
de um processo de descoberta onde o medo, aqui em uma alquimia complexa: eu + Tsvetayeva + medo, significava a perda da memória, a perda
de sentido. Eu comecei a rasgar o papel em que tinha escrito a palavra bhayanaka. Cada
pedacinho branco de papel encarava a mim (como Tsvetayeva)
representando partes da minha vida, do meu passado, que de alguma forma haviam
escorregado para longe de mim, não estavam ao alcance e nem a uma possível
identificação. Eu comecei lentamente a nomear cada coisa com palavras simples,
infantis, como “mamãe”, “Sergei” (marido de Tsvetayeva),
pegando cada pedaço de papel representando essas coisas perdidas e colando-as
juntas em uma espécie de “fio de vazio”, aterrorizada
pela possibilidade dos espaços vazios do papel em branco não serem nunca novamente preenchidos, nem com a vida que
eles representavam, nem com a poesia que no passado sempre chegava até a mim.
Mais tarde na rasa raudra (raiva),
eu me encontrei novamente picando papel, mas desta vez, raivosamente, zombando
em palavras todo o tempo sobre uma Rússia que me havia traído. Eu empurrei cada
pedaço de papel para dentro da minha boca e mastiguei-os. À medida que o papel
enchia a minha boca o som da minha voz tornava-se mais monstruoso. Esta imagem
de comer o papel retornou a mim em outro dia, quando eu trabalhava com o foco
em diferentes períodos da vida de Tsvetayeva em cada
caixa. De frente com a morte da filha de Tsvetayeva,
Irina, morrendo de fome em um orfanato com a idade de dois anos, de repente, eu
me vi empurrando uma enorme quantidade de papel dentro da minha boca, até
novamente meu discurso soar hediondo, monstruoso. A ação e a imagem produzidas
representavam para mim a culpa em não ter sido capaz de alimentar minha própria
filha.
Musica
e movimento
Liz e eu começamos
a explorar uma interação entre músico e ator dentro das rasas. Ela trabalhando com o seu violino e eu com texto e
movimento. A música que ela cria, e o movimento que eu faço nas diferentes rasas criam um diálogo, que vem abrindo
novos territórios para nós duas. O que ela toca estimula meus movimentos de uma
forma que me permite entrar profundamente nas rasas e a continuar descobrindo novas conexões físicas a elas. Eu
me lembro dela ter em um ensaio tocado por um longo tempo na rasa karuna, e
o som do violino parecia ter aberto o meu peito, como se minhas costelas se
separassem. Os movimentos descobertos nesta sessão eram bastante poderosos, é
um material que provavelmente voltaremos a visitar. De maneira geral, seguir um
impulso musical (e de certa forma não ter que continuamente gerar meus próprios
estímulos para a rasa) me liberta
para ir a lugares onde eu não iria normalmente. Assim a rasa se torna um terreno para o diálogo entre ator e músico,
borrando as fronteiras entre os nossos papéis e técnicas disponíveis a nós.
Eventualmente,
conforme passarmos de uma fase mais exploratória para uma fase de composição,
eu largarei as caixas, para que a partitura corporal da peça possa realmente
surgir. Como estas imagens, movimentos e textos vão se encaixar, e se as rasas individuais da forma como as
usamos vão aparecer como uma ferramenta consciente de composição, eu ainda não
sei. No entanto elas já estão inseridas no processo de construção em camadas,
no sentido de minhas relações com a poesia, com os objetos, com todo o material
usado por mim, incluindo meu próprio corpo e voz, todo este material já é rásico. Embora as rasas
eventualmente se tornem invisíveis elas profundamente informaram a trajetória
de toda a peça.
Existem apenas até
o devido momento dois exemplos de como aplicar o trabalho de rasaboxes na
composição de uma performance. Mas as possibilidades são infinitas. Como Bharata fala no Natyasastra:
É impossível [...] saber tudo sobre natya
já que não há limites para bhavas (emoções) e nem fim
para as artes envolvidas (no natya). Não é possível ter um conhecimento profundo de nem mesmo uma delas que
dirá de todas elas (Rangacharya, 1986: p. 53).
É o nosso desejo
que nesse espírito, a prática de rasaboxes assim como Rasaesthetics
(à qual é atribuída) sirva como um campo criativo
cada vez mais amplo de exploração para fins de
treinamento e composição da performance, assim como também para a saúde geral do corpo-mente.
Referências
Bibliográficas
PERT,
Candace. Molecules of Emotion apud JUHAN, Deane. Job’s
Body. Barrytown, N.Y.: Station Hill/Barrytown Ltd., 1998, p.370.
RANGACHARYA,
Adya. The Natyasastra. Nova Delhi: Munshiram
Manoharlal Publishers Pvt., 1986.
SCHECHNER,
Richard. “Rasaesthetics”.
The Drama Review, Cambridge, Mass:
MIT Press, Fall 2001 (T136).
VATSYAYAN, Kapila.
Bharata: The Natyasastra.
Nova Delhi: Sahitya Akademi, 1996.
1 Ver: Schechner, 2001
(T136). Neste artigo, Schechner discute a “localização da teatralidade”,
comparando a teoria e prática teatral ocidental (Aristotélica) com a prática e teoria
clássica indiana para a dança-drama-teatro. Com base
em estudos sobre o sistema nervoso entérico, “Rasaesthetics” sugere uma
abordagem à teoria e prática da performance mais visceral, do que puramente
visual. O artigo apresenta a teoria que Schechner chama de performance
“rásica”, assim como dá uma explicação básica sobre a
abordagem do treinamento emocional e sobre a composição da performance em
rasaboxes.
2 Além de
“Rasaesthetics”, de Richard Schechner, ver o excelente estudo de Kapila
Vatsyayan, Bharata: The Natyasastra
(Nova Delhi: Sahitya Akademi, 1996), para um panorama sobre a história de Natyasastra e diversas interpretações,
assim como The Natyasastra, de Adya
Rangacharya (Nova Delhi: Munshiram Manoharlal Publishers Pvt., Ltd., 1986).
3 Para manter a
singularidade desta palavra em Sânscrito, separada da palavra “rasa” em
português, chamamos atenção para a sua pronúncia correta: “r”, como falamos a
palavra “prática”, e o “s” soando como “ss”: rrrrassa.
4
Ver: “An Affective Athletecism”,
em The Theatre
and Its Double, by Antonin Artaud. (New York: Grove Press,
1958). Caroline Richards traduz a frase como “atleta do coração”, mas a versão de
Schechner: “atleta das emoções” oferece uma descrição mais clara do nosso uso
da idéia de Artaud.
5 Em nossa experiência, o exercício rasaboxes é uma forma de treinamento de movimento que afeta
diretamente o trabalho de um ator, já que ele imediatamente engaja todo o
complexo de emoção-corpo-voz-imaginação-personagem, que um ator deve acessar
quando está trabalhando num papel. Rasaboxes não
apenas treina diretamente as emoções,
como integra um treinamento físico e emocional de um modo profundamente
pessoal.
No entanto, o rasaboxes não
necessariamente treina o corpo diretamente em termos de relaxamento, alinhamento,
flexibilidade, força, etc, da maneira que outras
formas de treinamento físico o fazem. Nós recomendamos que o treinamento rasaboxes seja acompanhado de práticas de ioga ou outra
forma de aquecimento físico que alongue, abra e relaxe o corpo de maneira
profunda. O rasaboxes não pretende suplantar outras
formas de treinamento do ator. Um ator treinado em rasaboxes
não vai necessariamente abandonar objetivos, super objetivo, improvisações
criativas, e outras abordagens amplamente usadas. Se esses métodos são usados
para responder às questões sobre “o quê” da atuação, o rasaboxes
pode ser usado, em combinação com eles para responder às questões sobre o
“como”. Mudanças qualitativas podem ser feitas aplicando a idéia de rasa a um personagem, uma cena, ou mesmo
uma peça inteira. Às vezes, é útil pensar na rasa como uma espécie de
tonalidade, ou ritmo da representação, que pode ser modulado como o tom e clave
ou o tempo e ritmo de uma peça de música podem ser modulados.
6Nota para esta
tradução: hoje em dia, eu nomearia somente as oito rasas originais, pois são elas que são treinadas expressivamente. A
santa, representa o entendimento
budista da relação humana com as emoções. No rasaboxes, ela é o centro de tudo,
mas não é de verdade uma emoção, e não é trabalhada da mesma maneira que as
outras rasas. Este estado de ser
importantíssimo existe como a âncora invisível de tudo, o próprio coração do
trabalho, que se toca no treinamento, mas que não é visto pelos espectadores da
mesma forma que as outras.
7 Nota para esta
tradução: hoje em dia, eu nomearia somente as oito rasas originais, pois são elas que são treinadas expressivamente. A
santa, representa o entendimento
budista da relação humana com as emoções. No rasaboxes, ela é o centro de tudo,
mas não é de verdade uma emoção, e não é trabalhada da mesma maneira que as
outras rasas. Este estado de ser
importantíssimo existe como a âncora invisível de tudo, o próprio coração do
trabalho, que se toca no treinamento, mas que não é visto pelos espectadores da
mesma forma que as outras.
8 Para permanescermos fiéis à teoria do Natyasastra, tecnicamente
deveríamos chamar o exercício de “Bhavaboxes”,
já que bhava se refere às
emoções que são de fato representadas
a fim de evocar rasa. Porém mantemos
o uso da palavra rasa tanto por uma
questão de simplicidade, como também por suas outras associações – como o
prazer e a experiência física do saborear, com o sentido de algo físico que é
desfrutado entre ator e espectador.
9 Este comentário foi
feito por Minnick em um artigo que está escrevendo, sobre os benefícios e
problemas potenciais em torno do aspecto da apropriação cultural em rasaboxes.
10 Quando ensinamos
rasaboxes, usamos as palavras em Sânscrito para as rasas que representam as nove emoções primárias, embora haja
inúmeras outras diferentes: são palavras
relacionadas e correspondentes às bhavas,
que, segundo o Natyasastra, são efetivamente as "emoções" interpretadas. Nós limitamos a quantidade de
idioma em Sânscrito que usamos em nossa prática a fim de evitar confusão: muita
terminologia nova pode paralisar programas de treinamento que são geralmente de
curta duração. (ver também nota 11)
11 Ao longo dos anos que
vimos ensinando e desenvolvendo os exercícios de rasaboxes, Paula e eu mudamos
bastante o número, a ordem, o foco e a natureza dos exercícios. O que segue
aqui é uma representação de algumas etapas imperdíveis do trabalho, no contexto
de uma oficina introdutória completa.
12 Agora em vez de
“normalmente,” diria que historicamente, fazíamos assim. Nos últimos anos, vimos
desenvolvendo mais e mais a função de santa
no treinamento. Explicar o meu novo entendimento desta “nona” rasa exigiria um artigo inteiro, mas
aqui quero enfatizar algumas coisas fundamentais. A santa toma seu lugar no centro da grade, como um lugar de aprender
desapego, silêncio, paz. É um lugar, e um papel receptivo, mas não reativo –
quem entra em santa vai ficando
sempre presente ao que acontece ao redor, mas sem reagir, sem ser ativado nem
afetado pelas outras rasas. Em
contraste às outras oito rasas, é um
lugar completamente sem desejo, sem ação, no sentido normal da palavra no
contexto teatral. Hoje em dia usamos esta caixa com muito mais frequência. Lá,
o ator vai exercitar sua capacidade de presença pura. Todo o poder das oito rasas básicas de possuir o corpo-mente
do ator se dissolve em santa. Apesar
de eu ter uma idéia específica do que seja santa,
que vem da minha própria experiência da meditação e do meu entendimento da
filosofia budista, tentamos não dar uma definição limitada dela, mas sim de
propor várias possibilidades do que poderia ser explorado pelas pessoas: um
vazio, uma sensação de paz, uma tentativa de desapegar das influências das
emoções, etc.
13 Muito do que se segue é uma
descrição bastante compacta cujo
entendimento é relativo ao quão familiar o leitor é sobre a História de Hamlet. Minha esperança
é de não alienar aqueles não familiarizados com o texto da peça. Minha intenção é a de ser concisa
sobre como eu
usei o trabalho, sobre a construção de um personagem em particular
e suas funções na peça.