1. O Tédio e a Dança – Considerações a partir de Nietzsche, Valéry e Heidegger
1. Boredom and the Dance – Considerations on Reading Nietzche, Valéry and Heidegger
Charles Feitosa
Resumo
No famoso diálogo A Alma e a Dança, o escritor francês Paul Valéry sugere que a dança é o maior remédio contra o veneno do tédio. Este artigo pretende refletir sobre as várias possibilidades de relação entre dança e tédio a partir do pensamento de Nietzsche, Heidegger e do próprio Valéry.
Palavras-chave | Corpo | niilismo | jogo | temporalidade
Abstract
In the famous dialogue
"The Soul and Dance" the French writer Paul Valéry suggests that
dance is the greatest remedy against
the poison of boredom. This essay
reflects on the various possibilities of the
relationship between dance and
boredom, taking as its
starting point ideas from Nietzsche, Heidegger
and Valéry.
Keywords | Body
| nihilism | games/play | temporality
Charles Feitosa é Doutor em Filosofia pela Universidade de Freiburg i.B./Alemanha, Professor e Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da UNIRIO e autor, entre outros, de Explicando a Filosofia com Arte (Ediouro, Rio de Janeiro: 2004).
Charles Feitosa holds a Ph.D. in Philosophy from
the University of Freiburg i.B./Germany
and is Adjunct Professor and Researcher in the Graduate Program of Theatre Arts
(PPGAC) at UNIRIO. Among other
publications, he is the author of Explicando a Filosofia com Arte (Explaining Philosophy with Art, Ediouro, Rio de Janeiro: 2004).
O Tédio e a Dança – Considerações a partir de Nietzsche, Valéry e Heidegger
Charles Feitosa
I. Introdução
Quando
comecei a me interessar pelas artes cênicas verifiquei uma certa negligência da
filosofia em relação a dança.1 Em geral
os filósofos preferem recorrer à literatura, à pintura, ou mais recentemente ao
cinema quando vão confirmar seus argumentos ou quando querem investigar a
relação entre a arte e a verdade.
Constatei então que uma das grandes exceções era Nietzsche (1844-1900),
um entusiasta do corpo e de seus poderes. Sabemos que o pensador alemão
recorria constantemente à dança como imagem para seu pensamento, a dança
representava a tensão entre risco e disciplina, entre planejamento e
improvisação, entre vontade e destino. Outro exemplo excepcional de esforço
para se pensar a dança é justamente o diálogo A Alma e a Dança (1921),
de Paul Valéry (1871-1945). Assim como a maioria dos escritores de sua época,
Valéry também lia e apreciava Nietzsche. A diferença é que Nietzsche parece
jamais ter visto a dança como uma questão e sim como uma imagem de seu
pensamento, a imagem de um pensamento sem imagem, um pensamento ainda por vir.
A dança nunca foi para ele um problema, provavelmente porque sua filosofia já
fosse em si mesma dançarina, como se estivesse desde sempre “em casa” quando o
assunto dizia respeito aos afetos e ao devir. Valéry, ao contrário,
interroga-se sobre o sentido da dança enquanto tal, ele ousa perguntar “o que é
a dança?”.
II. Dança
O diálogo A Alma e a Dança (AD)
segue o modelo tradicional dos diálogos platônicos, pelo menos até um certo
ponto. O personagem principal é o mesmo, Sócrates (469-399 a.C.), pensador
lúcido, preocupado em compreender o mundo e a si mesmo. Seus interlocutores
também aparecem em outros diálogos platônicos, Fedro, um dos muitos discípulos
de Sócrates, um mestre da retórica, e Erixímaco, médico. Ambos participam do
famoso diálogo platônico sobre o amor, o Banquete.
No Banquete é Fedro quem dá inicio ao
festival com um apaixonado elogio ao amor, onde ele não arrisca dizer o que ele
é, nem fazer nenhum tipo de distinção entre os vários tipos de amor possíveis.
Fedro diz no Banquete: “o amor é dos
deuses o mais antigo, o mais honrado e o mais poderoso para a aquisição da
virtude e da felicidade entre os homens” (180c). Para Fedro o deus do amor está
naquele que ama, não em quem é amado. Isso quer dizer que mesmo quando não
somos correspondidos, isso não deve ser visto como falta ou defeito, mas como
um excesso de vitalidade em nós.
Já Erixímaco, no Banquete, fala
como médico sobre as virtudes e perigos do amor para a saúde. Segundo ele o bom
médico sabe suscitar o amor onde não há e eliminá-lo quando for necessário. O
bom médico sabe harmonizar os princípios contrários no corpo (frio com o
quente, o seco com o úmido), por isso a medicina, assim como a ginástica e até
a agricultura seguem o principio de Eros. A fala de Erixímaco, o cientista,
fica famosa também porque é perturbada e acaba sendo interrompida pelos soluços
de Aristófanes, o poeta e comediógrafo.
Assim como nos diálogos platônicos há também em AD um preâmbulo
para a questão principal, também é Sócrates quem mais fala e quem conduz o
argumento, dominando a cena e ação. Mas o Sócrates de Valéry parece muito mais
moderno do que o Sócrates de Platão. A dimensão moderna do Sócrates de Valéry
não se resume a um certo lirismo de seu discurso, nem à sua simpatia pelas
mulheres e pelas artes. O Sócrates de AD guarda em si uma dimensão
misteriosa, que o aproxima mais do Sócrates descrito por Xenofonte.
Xenofonte (430-355 a.C.) também foi aluno de Sócrates
e também escreveu um diálogo chamado o Banquete,
embora haja controvérsias a respeito da autenticidade e a anterioridade do
texto em relação ao de Platão. No Symposium de Xenofonte
Sócrates elogia os movimentos de um bailarino e pede para que este lhe ensine
alguns passos de dança. Os amigos riem de seu gesto, mas ele desarma esse riso com
uma série de argumentos também engraçados, perguntando entre outras coisas se
eles estavam rindo da sua enorme barriga e confessando que costumava dançar
pelas manhãs (Xenofonte).
O Sócrates de Xenofonte se parece mais com o Sócrates de Valéry, pois
este valoriza a dança e o corpo. O diálogo AD
começa com uma conversa entre Sócrates e Fedro interrompida com a chegada de
Erixímaco. Este diz que está morrendo, morrendo de sede e de fome, de sede e de
fome não de bebida e comida, mas de “coisas secas, sérias, e totalmente
espirituais!” (AD, p. 17). A alusão
aos alimentos e a sua digestão, tanto pelo corpo como pela alma, dá o tom do
diálogo, que trata de saúde. AD é um diálogo sobre o comer, tanto com
gosto da boca quanto com o gosto estético. O que se segue é uma breve reflexão
sobre os remédios para o corpo (segundo Erixímaco: o quente, o frio; a
abstinência e seu contrário; o ar e a água; o repouso e o movimento) e ainda
sobre os remédios para a alma (segundo Sócrates: a verdade e a mentira). Aqui
se vê outra indicação de quão moderno é o Sócrates de Valéry, pois ao invés de
eleger a verdade como o único bálsamo da alma, ele defende a posição de que as
sombras, a ficção, a ilusão, a ignorância, os sonhos, podem ser tão benéficos
para a mente quanto o pensamento, a razão e a luz.
Após esse preâmbulo começa uma pequena investigação sobre a dança. É
interessante notar que na concepção teatral de Valéry deverá ocorrer uma
espécie de jogo coreográfico entre os discursos e os personagens. Tal como nos
textos nietzschianos a dança aparece inicialmente como uma espécie de metáfora
privilegiada. Primeiro Sócrates diz que a vida é um movimento misterioso que
liga os alimentos dos corpos e da alma, finalmente ele compara a vida à uma
“mulher que dança” (AD, p. 23). Mal
ele começa a descrever a relação entre dança e vida eis que Fedro exclama:
“Tuas imagens não podem manter-se imagens”, quer dizer, o que era só uma metáfora
ganha concretude, pois eis que entram em cena um grupo de graciosas dançarinas.2
O cenário não deixa de ter uma certa atmosfera sexista. Afinal são três
homens, que não dançam, olhando e falando sobre mulheres, que não pensam e nem
falam. Como uma espécie de “peep show” filosófico os
homens estão visivelmente “babando” de desejo, mas conseguem transformar essa
baba em poesia e pensamento. Sócrates “predador” diz: “Esta aqui se debate na
rede de nossos olhares, como uma mosca capturada. Mas meu espírito curioso
corre sobre a teia em direção a ela, e quer devorar o que ela consegue fazer!”
(AD, p. 42).
Encantado com as meninas Sócrates afirma repetidamente que em cada uma
delas “o ouvido é maravilhosamente ligado ao tornozelo” (AD, p. 24). Uma observação muito perspicaz, que coloca logo de
saída a dança como uma arte primordialmente voltada para a escuta e não para a
vista, como se costuma pensar. Poder-se-ia dizer que o bailarino não tem apenas
o ouvido ligado ao tornozelo, mas que seu corpo é todo ele percepção do audível
e às vezes do inaudível também.
Ainda nessa atmosfera de encantamento ouve-se Erixímaco, que cuida da
saúde das dançarinas, gabar-se de conhecê-las melhor do que elas a si mesmas.
Ele se diz acostumado a tratar de seus mal-estares: “entorses, espinhas,
fantasmas, males de amor, acidentes tão variados de suas profissões, até o
ciúme, seja artístico ou passional, até mesmo seus sonhos” (AD, p. 27). Sócrates, por sua vez,
demonstra inveja das dançarinas, gostaria de se expressar como elas dançam,
palavras tão volúveis e graciosas como seus movimentos.
Finalmente, após várias observações dispersas, surge “a pergunta”, a
pergunta típica dos filósofos: “oh meus amigos, o que é verdadeiramente a
dança?”. Mais adiante, de novo a pergunta, mas formulada de maneira mais típica
ainda: “O que podem dizer os passos [da bailarina]?”. Trata-se de uma pergunta
embaraçosa, tão difícil de ser respondida como: o que é o tempo, a morte ou o
mundo? A resposta de Erixímaco, entretanto, é surpreendente: “que
queres de mais claro sobre a dança, além da dança nela mesma?”. Trata-se de uma
tautologia, ou seja, a dança é a dança mesmo, pronto e acabou.
Fedro ao contrário acredita que a dança representa alguma coisa, embora
não uma coisa qualquer, mas o amor. Na verdade não o amor tal como normalmente
imaginamos, ou seja, a união harmônica de dois corpos balançando no mesmo
ritmo, mas, ao contrário, a impossibilidade mesma de obter tal harmonia.
Segundo Fedro, a dança representa o amor na medida em que este se caracteriza
essencialmente como “a tensão entre a diferença invencível dos amantes,
enquanto tem por matéria sutil a identidade de seus desejos” (AD, p. 46). A dança representa essa tensão através de
seus jogos de presença e de ausência, de consciência e inconsciência de si.
O que diz Sócrates? Para além do entusiasmo do retórico Fedro, que faz da
dança uma bela metáfora do amor, e do pragmatismo do médico Erixímaco, que
descreve a dança como um puro exercício intransitivo do corpo, Sócrates
surpreende ao sugerir que a dança é o remédio para o “veneno de todos os
venenos, essa peçonha oposta a toda a natureza” (AD, p. 56). Fedro então indaga a respeito da peçonha a qual
Sócrates está se referindo e a resposta vem dura e fria como aço: o maior
veneno é o tédio de viver.
III. Taedium Vitae
Quais podem ser as relações entre o tédio e a dança? A ideia
mais óbvia é aquela mesma que o próprio Sócrates de Valéry sugere, a saber, que
a dança pode ser um remédio para o tédio. Todo mundo sabe que quando se está
entediado, nada melhor do que ir ver um espetáculo de dança (ou de cinema, ou
de música, etc.). A rotina do trabalho nos impele a ir ver os que estão a
brincar e a jogar. A indústria do entretenimento e da propaganda tira seu
sustento da exploração do tédio generalizado no qual as pessoas se encontram
nesse começo de milênio (“nós temos a solução para aqueles seus dias de tédio”
promete um dos muitos sites de diversão da internet). Uma outra opção menos
óbvia diz apenas que quem está entediado tem a possibilidade não apenas de
assistir a dança, mas de dançar mesmo. Shake you body! Essa é a receita do
recente sucesso do filme japonês Dança
comigo? (Shall we dansu?, 1996), de
Masayuki Suo.
Não há tédio na pista de dança, acreditam aqueles que preferem muito mais
brincar eles mesmos do que simplesmente observar a brincadeira dos outros.
Existem possibilidades menos óbvias de relacionar o tédio à dança, afinal
a dança não funciona apenas como remédio para o tédio, às vezes a dança pode
causar ela mesmo tédio. Para um fanático por futebol, por exemplo, a ideia de
assistir a um espetáculo de ballet pode soar como uma tortura. Para um
aficionado por ballet, por outro lado, uma apresentação de dança contemporânea
parece monótona, já que não reconhece nela nenhum fio narrativo e, consequentemente,
nenhum sentido. A dança contemporânea pode inclusive explorar o tédio
intencionalmente, através da lentidão dos movimentos ou da sua aparente
suspensão. As “paragens” são comuns nas obras de Steve Paxton
ou de Jerome Bel.3
No Brasil causou polêmica a apresentação em 2000, na nona edição do Panorama RioArte
de Dança,
da obra de Tom Plischke intitulada Affects, em que o dançarino pula no mesmo lugar durante
vários e longos minutos, despertando cansaço e revolta da platéia. Qual o
sentido de provocar o tédio no expectador ainda mais em um espetáculo chamado Afetos? O tédio não é a ausência de todo qualquer
afeto? A dança cura ou causa o tédio?
Existe uma expressão em inglês, que se chama “dance of boredom” e refere-se ao complexo de
gestos que costumamos fazer, quando nos sentimos entediados: ir pra lá e pra
cá, olhar trezentas vezes para o relógio, contar as árvores na rua, sentar-se
em uma pedra, suspirar profundamente, desenhar figuras no chão, olhar outras
trezentas vezes para o relógio, etc. Esse tipo de dança que todos conhecemos é
o tédio, que nos acomete nos mais variados momentos da vida cotidiana. Mas terá
sido esse tédio o pior dos venenos tal como o Sócrates de Valéry se refere? Na passagem anteriormente mencionada de A Alma e a Dança, o próprio Sócrates diz que não se trata de um
tédio passageiro, mas de um tédio profundo, relacionado com a vida mesma, vista
na sua nudez. O
diálogo A Alma e Dança foi publicado
no número especial da Revue musicale, “Le ballet au xix siècle”, no dia 1º de dezembro de 1921. No dia 21 de
janeiro de 1922, Valéry escreve em uma carta a seu irmão: “há quinze dias que
eu durmo apenas uma hora por noite. O espírito trabalha em mim e me mata: é o
mais importante dos meus males, se eu não tivesse esta inquietude, este taedium vitae corrosivo que se implantou
em mim, esse desgosto ativo demais, eu já estaria curado há muito tempo”(Valéry,
1957: p.1634). O tédio do qual Valéry fala não
é um qualquer, mas um com “T” maiúsculo.
O tédio é parente do desespero, da angústia e do
desgosto. Costuma ser associado à
impaciência e ao bocejo. O dicionário define o tédio como uma sensação de
enfado produzida por algo lento, prolixo ou temporalmente prolongado demais. Em
geral é o contrario de alegria e de diversão. O filósofo alemão Martin
Heidegger (1889-1976) distingue três formas principais de tédio no curso
intitulado Conceitos Fundamentais da
Metafísica (1929/30). Podemos nos entediar com alguma coisa, um livro, um
filme, uma palestra, com a longa espera de um ônibus, um trem, um avião. O
tempo fica longo (em alemão tédio é Lange-weile = Tempo longo), o tempo não passa, por isso o
“passa-tempo”, os jogos e as brincadeiras, são tão valorizados, porque faz com
que o tédio vá embora, embora o tédio nunca vá embora de vez, mas só adormeça.
Tem gente que se entedia de si mesmo também e quando isso acontece busca-se
experiências extáticas (sair de si através de bebida ou drogas) ou ainda
tenta-se mudar constantemente as roupas, o corte de cabelo, o contorno do nariz
ou do queixo. O tédio de si mesmo geralmente está associado com uma rotina
repetitiva de trabalho; as viagens se oferecem então como os melhores remédios.
Para Heidegger o tédio por alguma coisa ou o tédio em
relação a si mesmo têm algo em comum, ambos são formas de tédio com uma causa
determinável. Existe entretanto um forma de enfado mais profundo, um “tédio de
raiz”, radical, que não tem uma causa específica. Para esse tipo de tédio não
funcionam mais nem a diversão, nem o jogo, nem o passatempo. Tudo se torna
desinteressante, as pessoas, as coisas, si mesmo, não há projeto para o futuro,
todo o sentido pelo qual poderíamos nos ligar ao mundo desaparece. O tédio sem
causa resiste à festa, ao cinema, ao show. Não é esse livro, nem essa pessoa,
nem nada que provoca o tédio, exatamente esse “nada” é a chave da compreensão
do tédio mais profundo. Conhecemos na existência cotidiana a experiência de que
o tempo flui, mas o tédio revela algo desconhecido, uma espécie de “agora” que
permanece, algo que está em nós e ao mesmo tempo para além, a saber, o vazio em
tudo.
No seu curso Heidegger afirma que o século XX
é marcado por crises e de vazios: miséria social, confusões e corrupções
políticas, ineficiência da ciência, esvaziamento e empobrecimento da arte,
impotência das religiões, desenraizamento das filosofias. Todos esses vazios só
são o indício de um vazio mais radical, essa sensação dolorosa de falta de
adesão ao mundo que caracteriza o tédio profundo e é a atmosfera afetiva
fundamental da nossa época: o niilismo.
IV. Conclusão: A Mobilidade Serena da Dança
Sugiro agora ouvir de novo a frase do Sócrates de Valéry: ”A
dança é o remédio para o tédio” da seguinte maneira: a dança é uma saída para o
tédio profundo, o tédio com ”T” maiúsculo, o niilismo. Que tipo de dança? Heidegger falou muito do tédio, mas
pouco (ou quase nada) da dança. Nietzsche, por sua vez, falou bastante da dança
e da arte em geral, embora pouco tenha mencionado o tédio. Duas raras, embora
importantes, passagens em torno do tédio devem ser mencionadas na obra de
Nietzsche. Uma nota, datada de novembro de 1887, contrapõe a alegria de viver,
mesmo na dor, contra a apatia da resignação: “‘Resignação’ – Por que as
lágrimas? – uma forma fraca e sentimental de pensar. ‘Un monstre gai vaut mieux
qu'un sentimental ennuyeux’”
(Nietzsche, KSA, v. 12, p. 398). A frase em francês no original pode ser precariamente
traduzida da seguinte maneira: “Um monstro alegre vale mais do que um entediado
(e entediante) sentimental”.
A outra passagem vem do §611 do livro Crepúsculo dos Deuses (1888) e
relaciona justamente o tédio e a dança, ainda que de uma forma inusitada.
Nietzsche sugere uma genealogia do tédio através de uma lógica da carência e do
hábito. Segundo sua argumentação o que nos leva a trabalhar é a necessidade de
suprir nossas carências materiais, mas na medida em que nossas carências
materiais se renovam constantemente acabamos ficando acostumados a trabalhar
diariamente. Quando aparece uma oportunidade de pausa, quando nossas carências
estão momentaneamente saciadas, apareceria então o tédio, que nada mais seria
do que um acostumar-se tanto à ocupação em geral, que acaba se tornando uma
nova necessidade ou carência adicional. Quanto mais se estiver acostumado com o
trabalho ou quanto mais se tenha sofrido com as carências materiais mais forte
ainda é a sensação de tédio, esse desejo de manter-se ocupado. Para escapar do
tédio duas alternativas são possíveis; ou homem trabalha além da medida de suas
necessidades normais ou inventa o jogo, quer dizer, o trabalho, que não tem por
meta saciar nenhuma necessidade a não ser aquela por alguma ocupação ou por trabalho
mesmo. Já vimos que a dança como diversão (observada ou praticada) entra nessa
categoria de jogo e é uma das muitas formas de passa-tempo proporcionada pela
sociedade de espetáculo.
Nietzsche fala então da possibilidade de que o jogo
mesmo se torne enfadonho: “Quem se cansou do jogo e não tem em novas
necessidades ou carências nenhuma razão para trabalhar, este é tomado de
assalto pelo desejo de um terceiro estado, cuja relação com o trabalho seja
parecida com a relação entre o dançar com o andar, esse terceiro estado é de
uma mobilidade serena: é a visão do artista e do filósofo da felicidade (Nietzsche, KSA, v. 2, p. 346). O nome desse terceiro estado é a
dança, mas não a dança-diversão ou a dança-passatempo, mas a dança com “D”
maiúsculo, dança como emblema para a atividade artística em geral. Dançar não é
um mero “seguir os passos de alguém”, mas corresponder de forma improvisada a
um som. Só é capaz de dançar quem sabe ser criativo. A capacidade de jogar; não
para saciar o desejo de se manter ocupado, mas para escapar da própria regra
não escrita que torna a existência uma alternância sem-fim de trabalho-jogo-trabalho;
a capacidade de brincar não apenas nas regras, mas contra e para além delas é o
que faz da dança, ou da arte em geral, o melhor remédio, conforme o Sócrates de
Valéry, contra esse veneno terrível que é o tédio de viver. Quem vive contra e
para além das regras corre o risco de gerar formas monstruosas ou de se tornar
ele mesmo um monstro, quer dizer, alguém que não se encaixa mais nos lugares
esquemas previstos pela sociedade. Mais vale portanto um monstro excessivo, mas
dançante e alegre, do que ser conforme às normas, se entristecido e entediado!
Referências Bibliográficas
FEITOSA, Charles. Por que a Filosofia esqueceu a
dança? FEITOSA;
CASANOVA; BARRENECHEA; DIAS (orgs.). Assim
Falou Nietzsche III: Para uma Filosofia do Futuro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2001, p. 31-37.
LEPECKI, Andre. Desfazendo a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still acts’ em The Last Performance de Jérôme Bel. Tradução de Thereza Rocha. Lições de Dança, n. 5, Rio de Janeiro, 2005, p. 11-26.
HEIDEGGER, Martin. Die Grundbegriffe der Metaphysik, Welt - Endlichkeit - Einsamkeit [Conceitos Fundamentais da Metafísica, Mundo - Finitude - Solidão] (1929-1930), ed. F.W. von Herrmann, Vittorio Klostermann, Frankfurt a.M.: 1992.
NIETZSCHE, Friederich. Kritische Studienausgabe (KSA),
ed. G. Colli
e Mazzino Montinari, Walter
de Gruyter, Berlin/New York: 1988.
PLATÃO. Symposion [O
Banquete]. Sämtliche Werke, v. IV, Insel Verlag, Franfkfurt am Main e
Leipzig: 1991.
VALÉRY, Paul.
A Alma e a Dança e outros Diálogos. Trad.
Marcelo Coelho. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____ Cahiers. Œuvres II. Paris: Pléiade, 1957.
XENOPHON. The Symposium. Translation by H. G. Dakyns, The Project Gutenberg Etext, acesso
em novembro de 2011.
(http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/gu001181.pdf).
1 Desenvolvo isso num artigo, Por que a Filosofia esqueceu a dança?, publicado em Assim Falou Nietzsche III: Para uma Filosofia do Futuro, livro que organizei com Marco Antonio Casanova, Miguel Angel de Barrenechea e Rosa Dias (2001).
2 Na verdade, Valéry cita o nome de 9
bailarinas (Nips, Niphoé, Néma, Niktéris, Néphéle, Nexis, Rodhopis, Rhodonia,
Ptilé e Athikté) e um bailarino (Nettarion), que é descrito como feio e sem
graça e será totalmente ignorado durante o diálogo.
3 Ver o artigo de Andre Lepecki: Desfazendo
a fantasia do sujeito (dançante): ‘Still
acts’ em The Last Performance de Jérôme Bel, 2005.