2. O Corpo Revoltado

2. The Body in Revolt

Helena Vieira

Resumo

Este texto aborda questionamentos sobre o que é possível quando o corpo é ponto de partida e fio condutor de uma reflexão escrita. Discute-se ainda a dança que não apenas reproduz, mas resiste e produz pensamento. O texto tenta pensar o que é um corpo livre, crítico e inconformado com os mecanismos normativos de uma sociedade.

Palavras chaves | Dança contemporânea | desejo | revolução | revolta | resistência

Abstract

This essay addresses questions about what is possible when the body is the starting point and guiding principle for a written reflection.  Dance that does simply reproduce thought, but rather resists and produces thought is discussed. The text also tries to think what is a nonconformist, free body, one that would be critical regarding normative social mechanisms.

Keywords | Contemporary dance | desire | revolution | revolt | resistance

Helena Vieira é coreógrafa e intérprete. Doutoranda em Artes Cênicas pela UNIRIO, formada em Dança Contemporânea pela Escola Angel Vianna.  Co-fundadora do projeto universitário “Teatro nas Prisões”, tendo dedicado os últimos anos do projeto ao trabalho com mulheres encarceradas. Participou da fundação das companhias de dança: Lia Rodrigues; M.Groisman e Humas. Desde de 2003 tem se dedicado a trabalhos-solo, seguindo as temáticas: narrativa pessoal, gênero e revolta.

Helena Vieira, a choreographer and performer, received her training in contemporary dance at the academy of Angel Vianna and is currently completing her Doctorate in Theatre Arts at UNIRIO.  She is Co-founder of the university project "Theatre in Prisons", having spent the last years of the project working with incarcerated women.  She participated in the founding of the dance companies of Lia Rodrigues, and of M. Groisman and Humas.  Since 2003 she has devoted herself to solo work, with the following themes: personal narrative, gender, and rebellion.

 


O Corpo Revoltado

                                   Helena Vieira

Desejando refletir sobre o pensamento que o corpo na dança contemporânea vem produzindo ao longo dos anos, principalmente a partir da década de 1990, época pós-movimentos revolucionários (é assim que entendemos o momento que estamos), pretendemos criar um conceito que contribua para essa reflexão. Nossa tese é que a dança contemporânea está carregada de revolta. Revolta aqui não é manifestação contra a ordem estabelecida, mas sim, compreensão do dissenso como fonte criativa de produção de discurso. O corpo Revoltado é aquele que recusa a institucionalização do desejo. É um corpo que não quer mais atingir uma meta, está aberto e livre o tempo todo para tomar suas próprias decisões. É um corpo pulsante, livre, com um devir. Relacionamos revolta a uma consciência aguda, um “ataque” de lucidez que rompe com convenções e certezas e transforma o desejo em discurso, levando a cabo uma escrita e tornando o afeto fonte criativa e o discurso decorrente dele, um marco de ruptura e autonomia. A dança sobre a qual nos debruçamos e tentamos refletir é herdeira da arte de vanguarda, pós ideia de opressor e oprimido de Marx, porém ainda carregada de confronto e luta. Mas de que maneira? Como reconhecemos essa luta na dança contemporânea?

Seguimos o pensamento de Albert Camus sobre “revolta”, e de Hannah Arendt sobre “revolução”, mas queremos falar não de filosofia ou de política, mas de dança. Queremos precisar o aspecto positivo do valor que toda revolta pressupõe, comparando-a a uma noção totalmente negativa como a do ressentimento, presente na revolução. Para Arendt, a revolução destrói os seus atores juntamente com os seus inimigos, os agentes da contrarrevolução, uma vez que a liberdade da revolução não detém os crimes da tirania. Sem negar o enorme papel que a questão social desempenhou em todas as revoluções, Arendt é categórica ao afirmar que toda fraternidade de que os seres humanos podem ser capazes nasce do fratricídio e que qualquer organização política conseguida pelo homem tem no crime a sua origem (Arendt, 1971: p. 21). A revolta fragmenta o ser e ajuda-o a transcender. Ela liberta ondas que, estagnadas, se tornam violentas. O ressentimento significa, em nosso trabalho, uma autointoxicação, e, com as próprias e violentas palavras de Camus: “uma secreção nefasta, em um vaso lacrado, de uma impotência prolongada” (Camus, 2008: p. 30).

Falar em corpo revoltado é também pensar neste corpo como reflexo da época que vivemos, carregada de dissenso e fragmentação. É pensar em um corpo essencialmente efêmero, em revolta, talvez permanentemente em revolta, nunca resolvido. Vemos neste corpo algumas semelhanças com o movimento antropofágico dos anos 1920 e com a tropicália dos anos 1960, ambos ocorridos no Brasil, pois são movimentos artísticos que conciliavam desejo, discurso e contrassenso.

A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos (Oswald, 1928).

Havia nesses movimentos o uso poético da ideia de “antropofagia”, ou seja, “comer” o outro, no caso desses movimentos, o estrangeiro, e fazer suas próprias metabolizações. Há no corpo revoltado uma resistência contra as forças hegemônicas, pois é um corpo crítico, porém é, paradoxalmente, por elas abastecido. O artista revoltado alimenta-se dessa cultura, mastiga-a e o que não lhe serve, cospe.

Encontramos esse corpo nas coreografias da bailarina e coreógrafa portuguesa Vera Mantero e dedicamos uma tese a ela.  É uma artista ainda viva, jovem, cuja trajetória artística é marcada pela coerência entre pensamento e dança.

 “Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois...”

É um solo de 1991, um trabalho que começou improvisado e assim ficou. Em apenas 20 minutos vemos uma extraordinária capacidade da bailarina em transformar a estranheza de seus gestos em movimentos dotados de extrema beleza e virtuosismo. Primeiro, a coreografia nos chamou atenção, depois veio a curiosidade pelo título da obra: “Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois...”, vimos na frase uma maneira da coreógrafa de ainda querer expressar-se  pelo movimento. Poderia ser óbvia esta afirmação, mas não é. A dança contemporânea em sua justa e legítima busca de entendimento, veio ao longo dos anos questionando sua estrutura, os movimentos fixos, a repetição, o puro virtuosismo, a vaidade excessiva e vazia da dança etc., e, em certo momento, o pensamento tornou-se muitas vezes paralisante para os criadores. “Naquela altura senti que havia em mim um lado de pensamento que impedia o meu trabalho. Talvez ela pudesse dançar e pensar ao mesmo tempo, pelo menos isso” (Mantero, 2007).

O título da obra é retirado de um diálogo dos personagens na peça “Esperando Godot”, e, assim como a peça de Beckett, traz questões sobre o próprio discurso e faz uso do humor como estratégia para se enfrentar a vontade de não se mexer.

Eu acho que, principalmente nos primeiros anos do meu trabalho (mas facilmente se podem considerar como primeiros anos pelo menos os primeiros dez anos... se não mais), cada processo de trabalho “era também” um processo de tentar perceber como se faz uma peça, o que é uma peça, o que é que deve ser uma peça, quais as “regras” que regem o fazer de uma peça, o que é que rege a vida/a perfeição/o sentido/a intensidade/a magia de uma peça. “era também” é uma forma simpática de pôr a coisa porque podia mesmo tornar-se mais tudo isso do que propriamente fazer a própria peça em causa. Querer perceber como se faz uma peça (antes de a fazer e de forma a poder fazê-la) podia tomar a dianteira do processo, podia tornar-se o interesse maior da questão, e isso ameaçar a feitura da própria peça em questão. Portanto, quando fui rever os sublinhados que tinha feito durante a leitura do “Waiting for Godot” (que li em inglês) a frase “talvez ele pudesse dançar primeiro e pensar depois” (que é imediatamente seguida por algo como “que é, aliás, a ordem natural das coisas”) fez-me um sentido imenso tanto em relação àquilo que eu estava a atravessar no processo de trabalho como também em relação às questões da nossa cultura ocidental (débito de corpo, etc.) (Mantero, 2011).

O solo estreou no Festival Klapstuck, na Bélgica, no âmbito do Festival Europália 911 (evento importante, pois catapultou a cena da dança contemporânea portuguesa, projetando muitos coreógrafos no cenário internacional, principalmente a artista Vera Mantero). Quem convidou Vera foi o diretor do festival, Bruno Verbergt, na Bélgica, com auxílio de Gil Mendo, hoje diretor da fundação Culturgest em Lisboa e na época responsável pela escolha dos artistas portugueses. Vera estava preparando um trabalho em grupo, não funcionou e ela escreveu aos organizadores dizendo que desistiria, mas eles não aceitaram a recusa e, ao contrário, ofereceram-lhe todo o incentivo necessário para apresentar o que desejasse, da forma que melhor lhe conviesse, tamanha era a confiança na artista. É assim, incentivada por esta confiança, que Vera estreia este solo completamente improvisado (para improvisar Vera faz uso em seus trabalhos da escrita automática, método em consiste colocar o fluxo de pensamento solto para o corpo e no espaço), com música de Thelonius Monk (na época da criação Miles Davis havia morrido, isto a deprimiu bastante e só o som de Monk a fazia desejar mover-se). Neste trabalho, a experiente bailarina, outrora solista do Ballet Gulbenkian, movimenta-se à sua própria maneira e constrói um discurso criativo e carregado de dissenso. O cenário é de André Lepecki, outro nome de fundamental importância não só para ela, como para geração chamada nova dança portuguesa, pois com seus textos publicados nos jornais ajudava a permanente reflexão, e, consequentemente, a existência da dança contemporânea em Portugal durante a década de 1990.

O trabalho da Vera é marcado por uma não aceitação de um status quo. Inquieta a artista o cerceamento de liberdade e enquadramento que uma sociedade é capaz de fazer com o indivíduo quando este se torna um adulto, às crianças ainda resta alguma liberdade, aos adultos, não. Talvez aos artistas é dado o direito de enlouquecer, mas  é permitido dentro da moldura da arte. Mas no contexto social, não. Para Vera, a separação entre corpo e o pensamento, ou débito corporal, gerava se não uma revolta (aqui no sentindo original da palavra; indignação), uma dificuldade em suportar um estado de corpo na sociedade em que cresceu, essa revolta existe em geral no seu trabalho (entrevista concedida à autora em Lisboa, agosto de 2011).

Entrevistamos para nossa tese o filósofo José Gil, que dedica alguns ensaios sobre o corpo e é um espectador atento do trabalho da coreógrafa.2 O que se tinha em Portugal, segundo ele, eram narrativas bem construídas, com principio, meio e fim, e de repente apareceu nesse ambiente belo e calmo, monótono e moralizador, um fenômeno artístico perturbador, Vera Mantero, quando a viu o filósofo se perguntou: “De onde ela vem?”. Ele viu alguém em cena  introduzindo a loucura na sociedade portuguesa. Segundo ele, em contraste com a cultura europeia, a loucura em Portugal não existiu. O que é absolutamente característica da cultura portuguesa do século XX, em contraste com a cultura europeia, é o fato da dimensão da loucura não aparecer. Isso tem a ver com muitas razões, talvez a não participação nas guerras seja uma delas, talvez isso tenha lhes tirado a fragmentação da subjetividade. Tiveram 50 anos de uma ditadura tranquila. Não houve uma evolução urbana das subjetividades, uma fragmentação como houve na Europa, usando suas palavras: “ficamos no cantinho e tivemos 50 anos de uma ditadura tranquilos”. A geração da Vera é uma geração que herdou todo esse passado, e vive numa sociedade normalizada, não se vê contrariamente ao que vê na literatura da França, Inglaterra, Alemanha, indivíduos, subjetividade despedaçadas, nem erupção da loucura, não vê um escritor em que, por exemplo, um personagem como o Molloy do Beckett possa existir, não há, infelizmente, ou felizmente, as intrigas, as tramas. As narrativas, nas artes visuais ou artes performativas, são no fundo bem construídas. Tem-se a impressão que o que passou na Europa, o movimento das vanguardas, em Portugal foi abortado, logo que a aparecia era abortado. Vera alimenta-se do que vê e vive no estrangeiro, mas consegue em suas danças metabolizar a vida portuguesa.  

 Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois...” surgiu depois de Vera ter estado em Nova York, onde fez aulas de voz com um terapeuta de bioenergética que unia técnica de voz a exercícios corporais de bioenergética. Aquilo foi para ela uma revelação, pois pôde perceber a potência de algo que, depois de deixar sair e fazer circular, o resultado era surpreendente. Resolveu experimentar essa técnica para produzir não canto, mas dança. Isso em parte explica o solo, não uma grande parte, mas uma parte importante. Essa coreografia adquiriu uma velocidade difícil de agarrar, de marcar, de decorar, tão difícil que ficou sempre sendo improvisada. A cara foi acordada por essa técnica, acordada por esse busca. Muito dessa peça é o que essa técnica baseada na bioenergética pôde produzir para uma dança.

Este solo, por todas as razões ditas acima e por muito mais que ainda irão aparecer nos apresenta as características de um corpo revoltado; autonomia, crítica e conexão com seu tempo. O corpo da coreógrafa tornou-se o objeto principal de nossa tese, o solo que nos referimos, coincidentemente, é um trabalho considerado divisor de águas na trajetória da artista. Marca uma espécie de loucura criativa. De um convite e um voto de confiança extraordinário, nasce um trabalho respeitado e conhecido internacionalmente, marcante na carreira da artista, para nós, há aqui uma transformação clara de desejo em discurso. De algo que a principio a paralisava (e lhe causava falta de vontade em dançar), em algo que, de tão coerente com o seu pensamento e desejo, rendeu-lhe uma obra que esta viva e circulando até hoje.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Sobre a Revolução. Lisboa: Editora Moraes, 1971.

CAETANO, Maria João. A morte de Deus segundo Vera Mantero. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=649140. Diário de Notícias, Portugal, 1/11/2007.

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2008.

REICH, Wilhem. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

RIBEIRO, António Pinto. Catálogo da Exposição “Retrospectiva em imagens do trabalho de Vera Mantero”. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1999.

 

 



1 Todos os anos esse festival elege um país e o homenageia, no ano de 2011 o Brasil foi o país escolhido.

2 Veja a entrevista completa com José Gil no presente número de O Percevejo Online.