3. A Ética de Espinosa para Pensar o Afeto na Dança

3. Spinoza’s Ethics as a Way to Think about Affection in Dance

Valeska Figueiredo

Resumo

O conhecimento afetivo e a compreensão da importância da vida em comum para se alcançar a liberdade são algumas das ideias propostas no livro Ética de Baruch Espinosa. Este artigo se dispõe a pensar a relação com a dança sob algumas proposições deste filósofo, como: a busca de pluralidade de afecções para promover uma elevação da potência de agir, o esforço para gerar conhecimento dos afetos, assim como desvinculação com causas externas e conexão com a consciência de si e da coletividade. Esta não é uma tarefa fácil e nem há fórmulas para que se atinja o conhecimento que leva ao máximo do contentamento. Porém, fica evidente que a passividade diminui a potência de agir e a ação através do conhecimento a eleva. Para a atuação artística parece fundamental entender não só como o corpo é afetado por uma dança, mas, principalmente, refletir as causas e efeitos das ideias que daí provém.

Palavras-chaves | Dança | afeto | conhecimento | potência | liberdade

Abstract

Among other ideas proposed in Ethics, Spinoza develops the idea of affective knowledge and the understanding of the importance of communal life as necessary to achieve freedom.  The goal of this article is to reflect on dance in relationship to elements of Spinoza’s philosophy, such as: the search for multiple affections to promote an elevated potency to act; the effort to generate affective knowledge; as well as how dance can act to promote disconnection with external elements and connection with consciousness of the self and of the collectivity.  This is not an easy task and there are no pre-established means to achieve knowledge that would lead to the greatest satisfaction.  However, it is evident that  passivity decreases the potency to act, while knowledge increases it. For artistic activity, it would seem fundamental to understand not only how the body is affected by a dance, but principally, to reflect about causes and effects from ideas generated by this dance.

Keywords | Dance | affection | knowledge | potency | freedom

Valeska Figueiredo é pesquisadora, intérprete-criadora e professora de dança. Dirigiu e atuou como coreógrafa e bailarina no Aplysia Grupo de Dança entre os anos de 1998 e 2007. Coordenou o Projeto Social Aplysia entre os anos de 2001 e 2006. É graduada em Psicologia e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, é integrante do Núcleo Artérias, professora de dança no Estúdio Nave e doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com bolsa de estudo da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Valeska Figueiredo is a researcher, dancer, choreographer and dance teacher. She directed, choreographed and performed with the Aplysia Grupo de Dança from 1998 to 2007 and coordinated the Aplysia Social Project between 2001 and 2006. She has a degree in Psychology and a Masters in Education from the Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).  Currently, she is a member of the Núcleo Artérias, teaches dance  at Estúdio Nave and is a Ph.D. student in Theatre Arts at the Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) with a scholarship from the Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).


A Ética de Espinosa para Pensar o Afeto na Dança

Valeska Figueiredo

O livro denominado Ética, escrito pelo filósofo Baruch Espinosa no século XVII, traz importantes questões para pensar a relação com a dança. É justamente sobre isso que este artigo se propõe a falar. No decorrer do texto, serão integradas à discussão algumas ideias de filósofos e cientistas contemporâneos. O objetivo desta combinação é mostrar como as reflexões realizadas por Espinosa há quase 400 anos continuam atuais e contribuem para o pensamento estético e político da dança.

No Postulado III da Parte II, Espinosa coloca que o corpo humano é afetado de inúmeras maneiras pelos corpos exteriores (Espinosa, 1997: p. 240). Deste modo, a relação entre o ser humano e uma obra de dança seria a vinculação entre o corpo humano e um corpo exterior. A dança se constitui, assim, como um objeto que gera afecções no corpo de dançarinos e espectadores. Espinosa completa, na Proposição XIV da mesma parte, dizendo que a alma humana é apta para perceber um grande número de coisas, sendo sua capacidade proporcional a quantidade de formas do corpo se dispor (p. 241). Ao se referir à dança contemporânea, Louppe afirma que esta tem por interesse os espaços intersticiais e de fronteiras incertas que promovem a criação de um corpo crítico (Louppe, 2007: p. 57-73). O dançarino contemporâneo, na maioria dos casos, busca constantemente diferentes formas de se estabelecer no tempo e espaço, sendo afetado e afetando outros corpos de diversas maneiras.

Um corpo crítico é quando o artista usa seu corpo para elaborar um pensamento sobre o mundo. [...] Este é um corpo que derrota os padrões usuais de auto-representação. [...] É um corpo que investiga rigorosamente os modos de produção a partir de sua própria experiência (Louppe, 2007: p. 9).1

Desta forma, a pluralização das afecções gerada através da relação com a dança pode estimular o pensamento e a reflexão, construindo o que Espinosa chama de conceitos claros e distintos. Tentarei a seguir elucidar mais claramente de que modo a Ética de Espinosa traz contribuições para a dança.

Chauí explica que Espinosa entende o corpo humano como relacional, isto é, constituído por relações internas e externas (Chauí, 2005: p. 50-51). As relações internas são aquelas que ocorrem entre o corpo e seus órgãos. As externas se referem às integrações com outros corpos e com as afecções produzidas, nas quais o corpo afeta e é afetado sem se destruir. Conforme Gleizer, o corpo humano para Espinosa é extremamente complexo e pode, de maneira variada, provocar e/ou ser atingido por afecções (Gleizer, 2005: p. 22). É a alma que percebe as afecções do corpo, pois o que Espinosa denomina de alma é a ideia do corpo e a ideia da ideia do corpo (Espinosa, 1997: p. 245-251). Isso significa que a alma é ao mesmo tempo consciência do corpo e de si mesma. Gleizer declara que a capacidade perceptiva da alma é proporcional à aptidão do corpo de afetar e de ser afetado (Gleizer, 2005: p. 22). No Escólio da Proposição XXI da Parte II, Espinosa comenta que o corpo e a alma são um mesmo indivíduo, concebido às vezes sob o atributo do pensamento e outras vezes sob o da extensão (Espinosa, 1997: p. 246-247). De acordo com Gleizer, a união entre corpo e alma é a expressão dupla de uma mesma realidade (Gleizer, 2005: p. 21). Vale questionar a necessidade atual de nomenclatura distinta para corpo e alma. Há uma crescente bibliografia na filosofia e na ciência que busca um único conceito que contemple em si mesmo estes dois atributos. Mas, no período em que Espinosa viveu era inconcebível pensar a dissolução destes termos. Propor corpo e alma como unidade já foi audacioso em termos filosóficos. E a explicação por ele dada acerca da constituição e dos mecanismos dessa unidade foi ainda mais impressionante. Sua filosofia é repleta de ideias que se opunham aos ditames filosóficos, teológicos, sociais, culturais e políticos de sua época. Não à toa, ele foi um pensador perseguido e rejeitado.

Espinosa apresenta na Proposição I da Parte V como ocorre a inter-relação entre corpo e alma (Espinosa, 1997: p. 410). Segundo sua proposta, a ordem e a conexão das ideias na alma se constituem segundo a ordem e o encadeamento das afecções do corpo, e vice-versa, ou seja, a ordem e a concatenação das afecções do corpo ocorrem da mesma forma que a ordem e o encadeamento dos pensamentos e das ideias das coisas acontecem na alma. Esta relação não é causal, já que ambos são afetados por modos diferentes de atributos de uma mesma e única Substância. Espinosa chama a esta Substância de Deus ou Natureza. Ambos são sinônimos e causa primeira, absoluta e infinita de todas as coisas. Não é uma entidade transcendente, ao invés disso, é a imanência geradora de tudo o que há. Na Definição III da Parte I, Espinosa explica que a Substância é aquilo que existe por si e por si é concebida (p. 250). Na Definição V da mesma parte, enuncia que os modos são as coisas naturais e finitas da Substância, isto é, são as próprias afecções da Substância. Eles existem no outro e são concebidos pelo outro. Enquanto o corpo é atingido pelo modo da extensão, a mente é afetada pelo modo do pensar. Isso significa que as leis e princípios que regem nossa extensão e nosso pensar são geradas pela Substância, ou seja, por Deus ou Natureza.

E, assim, quer concebamos a Natureza sob o atributo da extensão, quer sob o atributo do pensamento, quer sob outro atributo qualquer, encontraremos sempre uma só e mesma ordem, por outras palavras, uma só e a mesma conexão de causas, isto é, encontraremos sempre as mesmas coisas seguindo-se uma das outras (Espinosa, Escólio da Proposição VII da parte II, 1997: p. 229).

Segundo Espinosa, no Escólio da Proposição XVII da Parte II, quando as ideias da alma sobre uma afecção do corpo representam a presença dos corpos exteriores que lhe causaram, isso é chamado de imaginação (p. 243). A imaginação é o conhecimento sensorial que sabe de existências singulares, delas faz generalizações abstratas, e assim, acredita conhecer suas essências. É somente como imagem que a alma percebe o corpo.

[...] imaginação é o conhecimento sensorial que produz imagens das coisas em nossos sentidos e em nosso cérebro. Com essas imagens representamos as coisas externas e supomos conhecê-las, mas, na realidade, estamos conhecendo apenas o efeito interno (as imagens) das coisas exteriores. A imagem é o que se passa em nós, é algo subjetivo e não nos dá a natureza verdadeira da própria coisa externa (Chauí, 2005: p. 32).

Explicando por outra perspectiva, mas compatível com a noção de imagem de Espinosa, Damásio afirma que podemos ser afetados de duas formas: por processos e entidades concretas, isto é, por perturbações atuais do ambiente; e através de imagens oriundas da nossa ação mental, constituídas por lembranças do passado e pelos planejamentos para o futuro (Damásio, 2000: p. 402-404). Nossas interações com o ambiente nos fazem produzir imagens, mesmo quando não nos damos conta disso. Damásio nos mostra que as imagens, por sua vez, geram emoções (2004: p. 36-88). A noção cognitiva de emoção proposta por Damásio tem muito a ver com o conceito de afeto desenvolvido por Espinosa: ambos dependem do processo desencadeado quando uma afecção é gerada, seja ela decorrente de relações internas ou externas. Mais adiante, o afeto espinosano será melhor elucidado.

Voltando à questão das imagens, no Escólio II da Proposição XL da Parte II, Espinosa demonstra que as ideias provenientes da imaginação são inadequadas, mutiladas e confusas (p. 258). A imaginação ou opinião é o primeiro gênero do conhecimento, na qual a natureza das coisas é concebida apenas como elas nos parecem ser. Os efeitos são constatados e as causas ignoradas. No Escólio da Proposição XVIII da Parte IV, Espinosa argúi que somente as ideias oriundas da razão são adequadas, já que o fundamento desta última é o esforço em conservar o próprio ser (p. 356). Chauí explica que é a razão que conhece as leis ou relações necessárias entre um todo e suas partes, e entre as partes do mesmo todo (Chauí, 2005: p. 36). “Uma mente consciente é aquela que acaba de ser informada das suas relações simultâneas com o organismo dentro do qual se forma, e com os objetos que rodeiam esse organismo” (Damásio, 2004: p. 228-229). Damásio afirma que o “racional” diz respeito a uma correlação entre determinadas ações e conseqüências favoráveis à manutenção da homeostase, ou seja, da propriedade auto-reguladora que visa à conservação da vida de um organismo ou sistema (p. 161). Chauí diz ainda que para Espinosa é a razão que distingue as chamadas noções comuns (Chauí, 2005: p. 36). De acordo dom Deleuze, uma noção comum diz respeito à ideia de que dois ou vários corpos congruentes constituem suas relações conforme leis e princípios, bem como afetam-se por meio desta conveniência ou composição intrínsecas (Deleuze, 2002: p. 51-52). O segundo gênero do conhecimento proposto por Espinosa é a razão. Suas ideias adequadas “são ideias das propriedades comuns das coisas, seja de todas as coisas, seja de um subconjunto delas” (Gleizer, 2005: p. 27). Para que se alcance a ideia adequada das coisas enquanto essências singulares é preciso fazer uso da intuição intelectual. Ela conhece suas causas e efeitos necessários, assim como suas relações internas fundamentais com outras ideias e com a Natureza inteira. Este é o terceiro gênero do conhecimento. Cabe considerar que ao Espinosa propor a necessidade de conhecer a teia relacional de causas e efeitos, ele está justamente se opondo a um pensamento teleológico. Não há um fim a se chegar, mas tudo o existe faz parte de uma rede complexa de causas e efeitos que precisa ser, ao menos em parte, conhecida. Caso contrário, somos apenas arrastados pelas afecções. Somente pelo conhecimento racional e intuitivo, isto é, pela intensa reflexão, é possível afetar e ser afetado de maneira coerente com os nossos desejos.

Em suma, imaginação, razão e intuição são três gêneros do conhecimento distintos e necessários. A imaginação exprime como o corpo é afetado pelos corpos exteriores, e neste sentido é verdadeira. Ela é parcial e confusa porque se produz sem que conheçamos as causas verdadeiras de sua formação. O que torna a imaginação falsa é acreditarmos conhecer as causas através dela, apenas por meio das afecções. Neste caso, tem-se o efeito como causa. As ideias adequadas derivam do nosso intelecto, quando sabemos a gênese das causas e efeitos das ideias. É importante conhecer as imagens para ir além delas. Para a atuação artística é fundamental entender não só como o corpo é afetado por uma dança, mas principalmente, refletir sobre as causas e efeitos das ideias que daí provém. Ao se relacionar com a dança desta forma, deixa-se de ter uma postura passiva com a arte. É inadequado quando artista e/ou espectador ficam inertes perante a dança, posto que este ato não promove aumento da potência de agir. A conexão com a arte é positiva quando não se restringe somente às afetações, mas também, abrange contemplações e apropriações. Só assim, pode-se atuar e fruir livremente na dança.

Tendo como base algumas ideias presentes na filosofia proposta pela Ética de Espinosa, podem-se pensar as imagens provenientes da noção de um corpo ideal na dança como exemplos de ideias inadequadas. Segundo Espinosa, no Prefácio da Parte IV, o ser humano tem como hábito criar ideias universais tanto das coisas naturais quanto das artificiais (p. 341-343). Estas ideias são tidas como modelos que forjamos para comparar indivíduos da mesma espécie e gênero. Aqueles que se integram ao padrão são tidos como perfeitos, os que não se adéquam são os imperfeitos. A hegemonia de certos modelos construídos para a dança restringe a pluralidade de afecções, e, por isso, são inadequados. Se estes ficarem apenas no âmbito da imaginação, muito provavelmente, debilitarão a potência de agir. Espinosa revela, na Proposição XXXII da Parte V e na sua Demonstração, que o que é compreendido pela intuição intelectual traz o maior contentamento possível, pois aumenta a potência (p. 431-432). Para se alcançar a intuição intelectual é fundamental conhecer mais do que as propriedades comuns das coisas, mas as suas causas singulares. Este conhecimento é vinculado à natureza do nosso próprio ser, o que nada mais é do que o princípio e fundamento da Natureza. Isso significa que aumentar a potência de agir do ser através da intuição intelectual é elevar a potência dos demais seres, pois todos são regidos pelas mesmas leis. Neste caso, a criação da dança pode ter como intuito a ampliação das possibilidades de afetação que aumentam a potência, e a fruição da dança pode ser uma prática de construção do conhecimento racional e intuitivo, na qual a elevação da potência de agir é sempre coletiva. Espinosa comenta que a felicidade ou liberdade consiste justamente em desenvolver este conhecimento intuitivo, que é o mesmo que o amor à Natureza (p. 430). Deste modo, a liberdade está intimamente ligada ao amor aos seres humanos e aos outros seres. Entretanto, este processo não é fácil. Não há fórmulas para isso. Somente através da reflexão e da experimentação é possível ir desenvolvendo um conhecimento para a liberdade.

Se o caminho que eu mostrei conduzir a este estado parece muito árduo, pode, todavia, encontrar-se. E com certeza que deve ser árduo aquilo que muito raramente se encontra. Como seria possível, com efeito, se a salvação estivesse à mão e pudesse encontrar-se sem grande trabalho, que ela fosse negligenciada por quase todos? Mas todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras (Espinosa, Escólio da proposição XLII da Parte V, 1997: p. 436).

Para compreender como se chega à intuição intelectual, é necessário entender como as ideias se formam. Na Definição III da Parte II, Espinosa explica ser a ideia um conceito da alma formada pelo fato desta ser uma coisa pensante (1997: p. 223). Durante uma aula da Professora Marilena Chauí oferecida em 2009 pelo curso de Pós-graduação em Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), ela explicou que as ideias podem se constituir de duas maneiras. Na primeira, a ideia se forma como uma ação própria da mente enquanto coisa pensante, ou seja, conduzida pela razão. Neste caso, as ideias são dirigidas pela própria natureza da alma que, por sua vez, é determinada por Deus ou pela Natureza. Isso não quer dizer que a natureza da alma seja algo enrijecido, mas que é processual. Esta vai se constituindo a partir de uma cadeia causal que tem alguns princípios e leis oriundos da Natureza. A operação dessas ideias é denominada de ação ou intelecção. Na Proposição XV da Parte I está escrito: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem ele nada mais pode existir nem ser concebido” (Espinosa, 1997: p. 166). Em suma, essas ideias que provêm do conhecimento de Deus são intrínsecas e possuem conceitos claros e distintos. Elas são chamadas de afetos ativos ou ações. Elas sempre aumentam a potência de agir e trazem contentamento ao espírito, pois se explicam exclusivamente pelas leis da nossa natureza. Além destas ideias, há aquelas que provêm de causas externas determinadas por ideias de afecções do corpo. Estas são chamadas de paixão e sua operação é a imaginação. As paixões podem ser boas ou más, ou seja, aumentar ou diminuir a potência de agir. Espinosa expõe na Explicação II e III da Parte III que quando a potência é aumentada, o homem passa de uma perfeição menor para uma maior, assim como, quando a potência é diminuída ocorre o inverso (p. 324). Em suma,

Por afeto entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as ideias dessas afecções. Quando, por conseguinte, podemos ser a causa adequada de uma dessas afecções, por afeto entendo uma ação; nos outros casos, uma paixão (Espinosa, Definição III da Parte III, 1997: p. 276).

Quando a criação ou fruição de uma dança está subordinada a conceitos de corpo vinculados a noções como consumismo, competição e padronização, ocorre uma diminuição da potência de agir. As necessidades naturais são subordinadas às coisas da fortuna que não estão em nosso poder, pois são produzidas apenas por produzir, visando gerar excedente de mercadoria, descartá-la, e assim, produzir novamente. O corpo, construído e concomitantemente constituinte desta lógica, rejeita a pluralidade de relações, pois estas se tornam demasiadamente superficiais e breves. Além disso, está constantemente baseado em um ideal de corpo, mesmo que este seja rapidamente substituído por outro. Embora possa dar a impressão de que este excesso de trocas aumenta a potência de agir, isto é uma grande ilusão. Sloterdijk mostra que a noção de mobilidade infinita é composta por um excesso de movimentos que não geram qualquer mudança (Sloterdijk, 2002: p. 201-209). Depara-se ultimamente com a ausência de deslocamentos e com a generalização da estagnação. Ao refletir sobre a cultura ocidental européia, o autor constata que se vive do jogo da desatualização do atual. E é justamente esta situação que explica a necessidade do uso dos pós para pensar a sociedade do ocidente. “O que é de ontem é incessantemente desatualizado pela mobilidade; é a partir do próprio gesto de desatualização que é lançada a nova atualidade, para cair logo no projeto: uma transitoriedade expulsa a outra” (p. 204). É uma mobilização que impede a compreensão. Ou segundo Espinosa, que nos afasta da verdadeira virtude.

[...] a verdadeira virtude não é outra coisa que viver só sob a direção da Razão, e, por conseguinte, a impotência consiste só em o homem se deixar conduzir pelas coisas que estão fora dele e em ser determinado por elas a fazer aquilo que a constituição comum das coisas externas reclama e não o que reclama a sua própria natureza, considerada só em si mesma (Espinosa, Escólio I da Proposição XXXVII da parte IV, 1997: p. 369).

 Como a potência de agir pode ser aumentada quando se segue um modelo de corpo ideal, se movimenta sem se deslocar ou se é conduzido pelo meio a alcançar o que já está descartado?

Espinosa diz, na Proposição VIII da Parte V, que quanto mais uma afecção é determinada por uma pluralidade simultânea de causas, maior será sua contribuição (1997: p. 414). A isto completa na proposição seguinte que uma afecção que se refere a várias causas diferentes é menos prejudicial e traz menos sofrimento do que quando é determinada por uma causa singular, já que uma afecção só é má quando impede a alma de poder pensar. Se conseguirmos contemplar vários objetos ao mesmo tempo, nossa mente pode, por um lado, pensar em diferentes coisas, e por outro, não precisa estar ocupada com poucos objetos ficando cega ao restante. Quando gastamos horas, dias e anos da nossa vida tendo como único objetivo o consumo, nos fechamos para uma pluralidade de afecções e reduzimos nossa potência de agir.

O conatus é abalado quando a potência de agir é diminuída. Na filosofia espinosana, conatus significa o esforço de todo indivíduo para permanecer na existência, é o cerne atual do corpo e da alma. “O conatus humano, portanto, não é apenas um princípio de autoconservação, mas também de auto-expansão e realização de tudo o que está contido em sua essência singular” (Gleizer, 2005: p. 31). As afecções e os afetos dedicam-se à manutenção da vida. As afecções do corpo são os afetos da alma. “Em outras palavras, as afecções do corpo são imagens que, na alma, se realizam como ideias afetivas ou sentimentos. Assim, a relação originária da alma com o corpo e de ambos com o mundo é uma relação afetiva” (Chauí, 2005: p. 59). Tudo que aumenta a potência de agir é útil e preserva o ser, enquanto as coisas que diminuem a potência de agir o destroem. Em síntese, na Definição I da Parte IV, Espinosa determina o bom como sendo aquilo que nos é útil, ou seja, o que aumenta nossa potência de agir (Espinosa, 1997: p. 343). A Definição II da mesma parte estabelece como mau tudo aquilo que diminui esta mesma potência ou virtude, ambos são sinônimos. Então, o que a razão determina como útil é bom. A potência da mente desenvolvida plenamente aumenta a potência de agir. Por outro lado, tudo o que limita a ação da mente é mau. De acordo com Deleuze, o bom para o ser se caracteriza por possíveis organizações de encontros, pela junção ao que é conveniente à sua natureza e pela composição de relações afins, todas estas com elevação da potência (Deleuze, 2002: p. 29). Já o mau, vinculado à diminuição da potência, é constituído por encontros somente casuais, pela passividade, por reclamações e acusações perante uma contrariedade. Nesta concepção, a Moral é substituída pela Ética. O foco não está na oposição dos valores presente na dupla bem e mal, mas nos modos de existência contidos no bom e mau.

A lei é sempre a instância transcendente que determina a oposição dos valores Bem/Mal, mas o conhecimento é sempre a potência imanente que determina a diferença qualitativa dos modos de existência bom/mau (Deleuze, 2002: p. 31).

A dança, que gera afetações, aumenta a potência de agir e promove o conhecimento, fortalece nossa conservação como ser. Conforme Chauí, quanto mais apto estiver o corpo para afetações múltiplas e simultâneas, mais a alma poderá se compreender como poder de reflexão e atingir o sentido de si mesma pelo pensamento (Chauí, 2005: p. 65-66). Deste modo, a alma age segundo os ditames internos, pelas suas próprias necessidades naturais. A palavra de ordem é conhecer, e só assim o homem é livre. Como exposto anteriormente, somente através do conhecimento pode-se atingir o contentamento íntimo. Segundo a Explicação XXV da Parte III de Espinosa, o contentamento interior é a alegria oriunda da contemplação do homem de si mesmo e da sua capacidade de agir (Espinosa, 1997: p. 294). Quando se restringe o corpo a um modelo a ser alcançado, limitam-se as possibilidades de afecções e de afetos. Além disso, a competição incentivada pelo sistema de produção e pela mobilidade infinita depende de afecções como a inveja e a ambição. Espinosa define a ambição como uma alegria excessiva vinculada à ideia de alguma ação nossa sendo louvada pelos outros (p. 374-375). Ao passo que a inveja seria o ódio que faz com que o homem se entristeça da felicidade do outro, bem como com que se contente com o mal de outrem. Tanto uma paixão triste quanto uma alegria descomedida diminuem a potência de agir do homem e com isso se opõem a conservação do ser, denominada de Virtude ou Potência. Isso negaria a própria natureza de cada um. Se útil é tudo aquilo que dispõe o corpo humano para ser afetado ou afetar de diversos modos os corpos externos, como definido na Proposição XXXVIII da Parte IV por Espinosa, o prejudicial seria o seu oposto (p. 371). Espinosa completa no Capítulo XII da Parte IV que não há nada mais útil aos homens do que estreitarem suas relações e se unirem (p. 399). Destarte, noções como competição, padronização e consumismo se mostram conceitos inadequados. Ao se relacionar com uma dança é importante refletir sobre as ideias que estão sendo propostas. Às vezes, são proposições degradantes da potência de agir. Entretanto, quando a dança faz gerar afecções no corpo que aumentam esta potência, ela gera ideias adequadas. É importante destacar que a ideia para Espinosa é afetiva, mesmo porque a ordem e a conexão das afecções do corpo estão intimamente relacionadas à ordenação e concatenação dos pensamentos da mente. Conforme foi exposto pela Professora Marilena Chauí em aula, quando a mente está internamente disposta para conhecer, ela separa o afeto de sua causa externa e o conecta a outros pensamentos, seguindo sua lógica e potência pensante. O afeto é uma afecção corporal ou uma ideia de afecção do corpo que aumenta ou diminui a potência de agir do corpo e da mente. Por ser a ideia o próprio afeto, a mente através da reflexão interpreta as afecções do seu corpo e os afetos da alma, e desta forma, compreende intelectualmente e afetivamente. Neste sentido, as afecções do corpo de artistas e espectadores provocadas por uma cena de dança, cuja ação artística gera diferentes afecções incitadas de diversos modos, pode produzir ideias adequadas em mentes internamente dispostas. Para isso, é preciso sempre estar atento e rompendo com a servidão humana. Chauí coloca que a servidão humana acontece quando nos deixamos habitar e governar pela exterioridade, momento este que nos tornamos alienados (Chauí, 2005: p. 62). No Escólio da Proposição XX da Parte V, Espinosa propõe ações contra a submissão: a primeira seria conhecer as afecções; depois, separar a afecção do pensamento de suas causas externas; e por fim, executar um movimento de interiorização para que a alma interprete seus afetos e as afecções do corpo (Espinosa, 1997: p. 420). Este processo é a busca pelo conhecimento afetivo, movido pela força da razão para moderar e refrear as paixões, assim como, para compreender a utilidade da vida em comum. Esta é a noção de liberdade proposta pelo filósofo. Se não há nada mais útil ao ser humano do que outros seres humanos, a dança e suas pesquisas devem ter como intuito aumentar a potência de agir de cada um e de todos. É primordial que atinja a outrem incitando a mente a agir. Quando o contentamento interior é coletivo, ele é mais forte, bem como a liberdade e felicidade são mais plenas.

Referências bibliográficas

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LOUPPE, Laurence. Poètique de la Danse Contemporaine: la suite. Bruxelles: Editions Contredanse, 2007.

SLOTERDIJK, Peter. Depois da Modernidade. A Mobilização Infinita: para uma crítica da cinética política. Relógio D’água: Lisboa, 2002.



1 “Un corps critique, c’est l’artiste qui se sert de son corps pour élaborer une pensée sur le monde. [...] C’est un corps qui met en échec les habituels schémas de représentation de soi. [...] C’est un corps qui questionne les modes de production spectaculaire, à partir de l’expérience du corps lui-même”.