Entrevista / Interview

4. José Gil: O Corpo em Revolta de Vera Mantero

4. José Gil: Vera Mantero, the Body in Revolt

Entrevista a Helena Vieira

Resumo

Entrevista realizada por Helena Vieira com o pensador e ensaísta português José Gil sobre o contexto político, cultural e filosófico das experimentações corporais presentes na obra da coreógrafa lusa Vera Mantero.

Palavras-chave | Corpo | liberdade | revolta

Abstract 

An interview realized by Helena Vieira with the Portuguese thinker and essayist José Gil regarding the political, cultural and philosophical context of corporal experimentations present in the work of Portuguese choreographer Vera Mantero.

Keywords | Body | liberty | revolt

José Gil é filósofo, ensaísta e professor universitário português. Licenciado em Filosofia, em 1968, na Universidade de Paris. Em 1969 obteve o grau de mestre com uma tese sobre a moral de Immanuel Kant, em 1982 concluiu o doutoramento com uma tese intitulada Corpo, Espaço e Poder, publicada em 1988. Coordenador do Departamento de Psicanálise e Filosofia da Universidade de Paris VIII, em 1973. Em 1976 regressa a Portugal, para ser adjunto do Secretário de Secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica. Em 1981 instalou-se definitivamente em Portugal, tornando-se professor auxiliar convidado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde leccionou Estética e Filosofia Contemporânea. É autor de várias obras relevantes, que tratam de filosofia, artes, dança e literatura, entre eles: Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (Relume Dumará) e Movimento Total – O Corpo e a Dança (Iluminuras).

José Gil is a Portuguese philosopher, essayist and university professor.  With a degree in Philosophy in 1968 from the University of Paris, he obtained, in 1969 a Master's degree with a thesis on Immanuel Kant's concept of morality in 1982, completing his Doctorate with a dissertation entitled Body, Space and Power, published in 1988.  He was Coordinator of the Department of Psychoanalysis and Philosophy, University of Paris VIII, in 1973. In 1976 he returned to Portugal, to serve as Adjunct to the Secretary of State Secretary for Higher Education and Scientific Research.  In 1981 he settled permanently in Portugal, becoming a Visiting Professor at the School of Social Sciences and Humanities, at Universidade Nova de Lisboa, where he taught Aesthetics and Contemporary Philosophy. He has authored several important works, which deal with philosophy, the arts, dance and literature, among them: Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (Difference and Denial in the Poetry of Fernando Pessoa, Relume Dumará) and Movimento Total – O Corpo e a Dança (Total Movement - The Body and Dance, Iluminuras).

Helena Vieira, bailarina, coreógrafa, doutoranda em Artes Cênicas pela Unirio. Esteve em Lisboa com uma bolsa da Capes para pesquisar a obra coreográfica de Vera Mantero.

A choreographer and performer, Helena Vieira received her training in contemporary dance at the academy of Angel Vianna and is currently completing her Doctorate in Theatre Arts at UNIRIO, for wich she received a scholarship from Capes to research Vera Mantero’s work at Lisbon.


José Gil: O Corpo em Revolta de Vera Mantero

Entrevista a Helena Vieira

 

A Vera não se afirma contra,

o contra vem

porque ela se afirma.

(José Gil, 2011)

Nota prévia sobre o contexto da entrevista com José Gil em Lisboa

A fim de recolher o maior número de material para a tese e ter uma visão mais atualizada do contexto no qual Vera Mantero estava inserida,  contatei e organizei entrevistas filmadas. Foram mais de dez entrevistas, trouxe mais de 15 horas de fitas gravadas na mala. Entre as principais entrevistas estão os importantes depoimentos da jornalista Claudia Galhós; do programador de teatro municipal Maria Matos, Mark Deputter, dos programadores de reputadas organizações do país como Gulbenkian,  Culturgest e Fundação Serralves (Antônio Pinto Ribeiro, Gil Mendo e Cristina Grande, respectivamente) e finalmente, a mais esperada e preparada entrevista com o filósofo e professor José Gil.

Havia preparado 20 perguntas, uma hora de entrevista e combinado com uma pessoa para fazer a filmagem. No dia marcado, porém, houve um pequeno contratempo que mudou tudo. Como combinado, comecei a ligar para confirmar a entrevista uma hora antes do horário marcado, e o telefone estava inexplicavelmente “fora da área de cobertura”, nervosa segui ligando até chegar ao destino, meia hora depois do ajustado e sem ajuda do amigo cinegrafista (diante de tanta incerteza preferi não arriscar). José Gil estava a minha espera, sem entender o que acontecera, já que não via problemas com seu telefone celular. Não queria perder mais um segundo daquele tão aguardado momento, tirei rapidamente computador e gravador da bolsa e iniciei a entrevista fazendo questão de deixar registrado um pedido de desculpas pelo meu excesso de formalismo e obediência, poderia ter ligado na véspera, mas não fiz pois o combinado era fazer no próprio dia! E assim, apenas com uma pergunta e muita liberdade para as respostas tive uma surpreendente entrevista, clara, objetiva e carregada de sincera admiração. 

A entrevista

Helena Vieira: Estou em Lisboa desde maio, e venho levantando e pesquisando o trabalho da Vera Mantero, que é o intuito da bolsa, na verdade quero falar principalmente de um deles, que é o motivo que me traz aqui: “Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois” foi onde tudo começou para mim. 

Vou ler algo que preparei para situa-lo na minha questão.

A ideia central da tese é criar um conceito de corpo revoltado, um “ataque” de lucidez (li em umas de suas entrevistas que o senhor considera essa palavra paralisante), um ataque de consciência que rompe com convenções e certezas e transforma o desejo em discurso, levando a cabo uma escrita e tornando o afeto fonte criativa e o discurso decorrente dele, um marco de ruptura e autonomia. Eu penso “revolta” de uma forma positiva, como um princípio superabundante e de energia. O corpo revoltado não é um corpo revolucionário. É importante dizer que eu vejo a revolução como algo ligado a estagnação, ao saudosismo, ao apego, e vejo também uma institucionalização do desejo, mas ambos são importantes para o nosso processo de formação, mas na revolta há uma inquietação que na revolução não há. Algo, importante dizer, de ressentimento que eu vejo no revolucionário, que eu não vejo no revoltado. Eu parti do Camus em O Homem Revoltado porque há esse rompimento com convenções, com coisas que ele vinha pensando, como também em Hannah Arendt quando fala sobre a revolução, como uma ideia negativa.

O que eu falei para Vera é o que repito para o senhor: o problema é pensar tudo isso na dança, pois eu não sou da filosofia ou da antropologia, minha formação inteira é em artes cênicas, fiz graduação em teatro, muito para ajudar a dança, não tenho outra formação, e eu precisava pensar isso na dança. Houve também um evento muito importante para eu pensar isso que foi a ida de Michael Hardt e Antonio Negri ao Brasil, para um seminário chamado Resistências, organizado por um grupo de professores, no cinema Odeon, no centro do Rio. Estávamos entrando numa nova época, com a entrada do Lula no poder. O Negri estava muito animado com isso, algo marcante para mim, vontade de pensar isso: que corpo é esse que poderia falar por mim?

JG: Eu tenho vontade quase de lhe reenviar à questão. Por que é que vê na Vera, na dança, coreografia da Vera, um corpo revoltado?

HV: Por que ele está cheio de afetos. É um corpo que não faz o programado, ele esta aberto ao que possa acontecer naquele momento, e também porque ele sai de uma estranheza para uma beleza. Por isso o acho revoltado.

JG: Por que não o chama de corpo crítico?

HV: Pode ser, cabe. Mas acho a revolta mais pulsante, mais forte, mais potente.

JG: Sim, podemos ir por aí e eu não estou em desacordo com a sua ideia sobre corpo revoltado. O que me faz em primeira mão resistir um bocadinho é a etiqueta, mas é um quase conceito, o corpo revoltado, e você vê isso na dança da Vera constantemente. Porque na dança dela, em quase todas as coreografias que eu conheço, ela apresenta uma géstica, uma trama de movimento que vai contra não só os hábitos, mas as narrativas mesmo que estão por trás desses hábitos. Uma das coisas mais interessantes que me impressionaram na Vera quando eu a conheci, logo ao principio, foi o fato da Vera introduzir numa sociedade, num espetáculo habitual, na arte, não só na arte cênica, mas na arte em geral, foi um fator que, nesse momento eu chamei de loucura. O que é absolutamente característica da cultura portuguesa no século XX é, em contraste com a cultura europeia, o fato da dimensão da loucura não aparecer. E isto tem a ver com muitas razões, com o fato de nós não termos praticamente participado das guerras. Não ter havido uma evolução urbana das subjetividades e uma fragmentação das subjetividades, como houve na Europa. Portanto nós nos mantivemos aqui no cantinho tranquilos e tivemos cinquenta anos de uma ditadura tranquila. Para tranquilizar. A geração da Vera herdou todo esse passado. E é uma geração que vive numa sociedade normalizada; contrariamente ao que vê na literatura da França, Inglaterra, Alemanha, você não vê indivíduos, subjetividade despedaçadas, nem erupção da loucura, não vê um escritor em que, por exemplo, um personagem como o Molloy do Beckett possa existir, não há, infelizmente, ou felizmente, as nossas intrigas, as nossas tramas, as nossas narrativas, em qualquer que seja. As artes visuais, ou artes performativas são no fundo narrativas bem construídas com princípio meio e fim, bem significativas, com sentido, quer dizer dá a impressão que tudo o que passou pela  Europa, o movimento das vanguardas, em Portugal foi abortado, logo que aparecia era abortado. Pode-se dizer que o mais forte foi o que aconteceu com o modernismo do Sá Carneiro, do Fernando Pessoa, dessa gente, a volta do Orfeu (revista sobre os movimentos literários modernos, o ícone da revista era o pintor Almada Negreiros) e depois todos os movimentos foram importados, o surrealismo português é pequeníssimo, e foi importado, veio de fora e caiu, e não teve uma verdadeira expansão, e, sobretudo não se impregnou, não teve influência social, no espaço público artístico. Isto para dizer que de repente aparece no meio desta bela calma, monótona e moralizada da vida portuguesa, e dos padrões artísticos em todos os planos da arte, aparece alguém que introduzia um fator absolutamente perturbador e fazia um corte, uma infração nessa vida, que foi a Vera. Quando a vi pela primeira vez eu disse: “De onde ela vem? Como é possível?” De repente aparece alguém com as características precisamente, mas diferentemente expostas, expressas, do modernismo, das vanguardas, as coreografias eram sem narrativas ou eram fragmentadas, como no modernismo, seu movimento não obedecia as normas, lembravam mais o movimento da Judson Church, que era um movimento que os americanos chamam de pós-modernismo, dos anos 80, fim dos anos 60 e 70 em Nova York, portanto muito recente. E a Vera apresentava-se retomando essa tradição, mas com uma característica, que eu achei formidável, é que ela inseria-se na vida portuguesa. Sobre a vanguarda portuguesa que eu lhe falei, o nosso surrealismo era importado, o nosso abstracionismo foi importado. Quer dizer, tudo que nas artes visuais aparecia como vanguardista era artificial, por isso não pegava, não se inseria, não se via um feedback que tinha a ver com a vida portuguesa. A vida portuguesa era uma vida que no fundo pedia romances de costumes. na Europa já havíamos ultrapassado Beckett, para falar do Joyce, bom estávamos muito longe e aqui ainda escrevíamos romances ou então tentativas mais avançadas de romance também importado. Vários escritores, cineastas também que procuravam importar ritmos e narrativas americanos, escritas americanas, era tudo artificialmente vindo de fora, era a história da nossa arte no século XX, e a Vera não. É verdade que ela alimentava-se do que ela via e conhecia do estrangeiro também, mas conseguia metabolizar a vida portuguesa e virá-la ao contrário. Estou a lembrar de uma peça dela, SOB, conhece?

HV: Como era?

JG: Três ou quatro raparigas que atravessam em diagonal o palco e vão ao mesmo tempo andando, mas tropeçando e vão cantarolando com gestos quase de dislexia, não sabem andar, é o contrario de uma dança normal.

HV: Com umas cabeças?

JG: Sim, ela variava. É uma peça absolutamente extraordinária. Depois estou a lembrar de e.e cummings, homenagem a Josephine Baker... ela não só importava, inseria, mas inventava, ela inventava sem aplicar teorias isso que é extraordinário. Ela consegue qualquer coisa que eu acho extraordinário quando se é muito inteligente, é de uma inteligência abstrata, especulativa, que ela tem também, ela tem uma inteligência afetiva, mas ela é capaz de inteligência abstrata muito forte. Tem-se a tentação de aplicar teorias que se compreendeu muito bem a uma forma dada como a escrita, e ela não faz isso. Ela é capaz de guardar as suas teorias e depois ter a espontaneidade de uma criação que não aplica esquemas, mas que de uma maneira que só ela sabe faz uso disso, mas sem que haja artificialidade e o que é extraordinário é que aparece como novo e inaugura uma dança, a nova dança portuguesa, ela é uma das pioneiras dessa dança, é esse tipo de coreografia em que o espaço é o espaço português e nesse espaço português aparecem figuras da loucura, da anti-dança, tradicional, clássica, portanto ligada a toda uma cultura do hábito, do conformismo, conservadora, tradicional, ela faz um corte e aí aparece como um corpo possivelmente em revolta. Em revolta, você vai me perguntar por quê. Por que o corpo da Vera é em revolta? É preciso conhecer a Vera, não é? E eu não quero fazer uso do conhecimento que eu tenho da Vera. Vamos pensar nas coreografias dela para poder responder a pergunta, por que o corpo em revolta?

HV: Em revolta, não revoltado?

JG: Sabe qual é a diferença para mim? Sabe por que eu prefiro um corpo em revolta que um corpo revoltado? Você possivelmente não está de acordo, possivelmente a Vera não estaria de acordo, mas é a minha ideia. Eu vejo as coreografias da Vera como intervenções locais, violentas, violentamente críticas e libertadoras, mas locais. É um corpo em revolta, não é um corpo revoltado, quer dizer, que é estruturalmente revoltado e que continua a ser revoltado, não!

HV: Ah! Faz sentido.

JG: Ele é em revolta, por que era a resposta àquela nossa primeira pergunta; ele é em revolta por que há na Vera, no corpo da Vera, no corpo dançante, no corpo dançado da Vera uma diferença libertadora, ela é disjuntiva, se repararmos nos gestos que ela faz, ela é uma grande mover, como dizem, quando se é um grande mover pode ser muito pouco inteligente, há coreógrafos assim, americanos que são great movers, mas que não são grande coisa e depois há os que têm grandes ideias e que não são sensacionais movers, o Cunnigham era os dois, por exemplo, Yvonne Rainer era os dois, Steve Paxton era os dois, quando se consegue ser um great mover, que é o caso da Vera, ela tem uma plasticidade de gestos e movimentos, capacidade de escutar e de refratar absolutamente à parte, quer dizer não é uma boa bailarina que faz coreografias inteligentes, não, ela é uma grande bailarina. Isto para dizer que as intervenções que ela faz sendo capaz por que tem também toda uma tradição da aprendizagem do balé, de onde ela vem, os seus movimentos de repente se cortam eles próprios (faz som de algo que corta) cortam-se, fragmentam-se, e ela sabe como criar “uma narrativa” fragmentada que deixa de ser, como cortar a narrativa? Para fazer isso é preciso ter um vazio, uma diferença interior, em si, que se multiplica, quer dizer, é preciso ter vento e ter espaço para que vento possa andar, isto as pessoas chamam de liberdade.

HV: Vazio.

JG: Se quiser, chamam de liberdade, ou podem chamar capacidade de ir em mil direções e inventar mil direções.

HV: Capacidade de escuta também.

 JG: Isso é uma condição, ou capacidade da persuasão. Capacidade de desaparecer, desaparecer enquanto pequeno ego, o narcisismo dos bailarinos muitas vezes reflete sobre si, não, ela não tem esse tipo de coisa de todo. Isto dá uma possibilidade que não existe cá, é a possibilidade da invenção permanente de um corpo livre e de um corpo que se liberta. Isto explica porque corpo revoltado.

HV: Mas isto ainda me afirma mais.

JG: Isso a mim não me afirma. Afirma mais no não estável do corpo revoltado, sabe por quê? Por causa da liberdade.

HV: Sabe por quê?

JG: Diga lá.

HV: Porque para mim é isto, essa tentativa que eu friso muito, que é difícil para a gente, que é pensar revolta como algo de extrema liberdade, de extrema positividade. Quando a gente fala no corpo revoltado dá essa ideia de guerra, de intriga, de alguma coisa assim, de confronto no pior sentido, revoltado é isso aquele que se rebela contra coisas que não precisa. A ideia é que não... (É interrompida.)

JG: Então tem que definir novamente.

HV: Por quê? Porque eu penso ela inserida nesse período que a gente está, que a gente passou, de movimentos revolucionários, que mais ou menos, pelo menos da onde eu venho, de alguma forma fizeram parte da nossa vida, a gente saiu de uma ditadura, teve um milhão de coisas, passamos por uma monte de coisa até chegar num momento... esse momento... mais ou menos, bom... (risos), mais ou menos fértil no sentido que aquelas pessoas ali que fizeram parte do movimento revolucionário estão no poder. Aconteceu nesse ínterim uma coisa importante, que foi o Movimento da Tropicália, do Caetano, na década de 60, e várias outras coisas que vem disso, o Zé Celso... tudo isso que fez com que a gente pensasse  a Europa também de outra forma. A dança contemporânea contempla isso, é um corpo que está pensando neste momento que está e ele se predispõe a isso, a entender que saímos do momento revolucionário e estamos no momento revoltado, tem um pouco do contexto histórico também.

JG: Se quiser...

HV: Por exemplo, ela é a tropicália, tem tudo a ver para mim.

JG: O que eu vejo na Vera é que a sua revolta, o movimento de revolta nela é, por assim dizer, espontâneo. “Ça va de soi”, ela não tem que exercer a vontade forte da revolta para derrubar obstáculos, muros, celas, prisões... etc. Não.

HV: Não! De forma alguma.

JG: Quase naturalmente ela derruba, e derruba-o com prazer, com uma fluidez de movimento e sem mensagem política ideológica, a mensagem dela é, até se podia chamar, é micropolítica, não tem mensagem, e ela própria é a mensagem.

HV: Isso é importante, não ter mensagem.

JG: Bom, por isso é que corpo revoltado há uma positividade na Vera tal, há uma força, e realmente uma potência do corpo nela tão imediata, nas suas coreografias e isso é muito importante, tão imediatamente inteligente, porque quando se diz, toda a gente diz, a Vera é muito inteligente no que ela faz, mas é preciso saber o que é ser inteligente assim. Há qualquer coisa que ela tem muita consciência é que uma grande parte, se não sempre, de suas coreografias aquilo que ela chama de temas essenciais, de temas existenciais, metafísicos quase, quer dizer, ela pensa o que nós estamos aqui a fazer, bom... ela tem a capacidade de ligar esses temas a cotidianidade, a trivialidade, isto é a primeira coisa, em segundo lugar, a força que ela tem, de que estávamos a falar, vem em parte do fato, em grande parte do fato, de ela estar constantemente a viver estes temas, quer dizer, que a força desses temas, porque eles tem diretamente a ver com a vida, com a morte, com o jogo, isto são grandes palavras, mas no corpo, por exemplo, é possível dar... a peça sobre Josephine Baker... uma interpretação muito...

(Campainha toca e ele pede licença para levantar da mesa).

JG: ... fortemente política e antirracista, o André Lepecki faz muito isso, mas é possível ver outra coisa, por exemplo, ali há o que Deleuze chama um devir, um devir animal. Lembra-se? Ela tem uns pés de cabra, o corpo nu e uns pés de cabra e tem praticamente gestos que não se sabe bem se são gestos humanos ou o que, porque está sempre em um equilíbrio. Bom, nós podemos ver isso imediatamente como uma micropolítica, porque primeiro, é muito natural para ela apresentar-se nua, mas a nudez não era comum na coreografia portuguesa, na dança portuguesa, em segundo lugar, o apresentar do devir que ela apresenta em outras peças também. Um devir cabra, uma metamorfose própria, isto é uma invenção que ela descobriu (ela própria) que seu corpo devia qualquer coisa. E o devir é uma fonte fantástica de novidade e de crítica, porque precisamente as forças hegemônicas querem um status quo, querem ficar na mesma, não se querem metamorfosear e ela vai por caminhos imprevisíveis com o devir precisamente. Ela inseriu esse devir num devir que é nosso ao mesmo tempo. É uma homenagem a Josephine Baker, mas nós aqui não estávamos a assistir uma peça de uma coreógrafa estrangeira, tinha a ver conosco, aqueles movimentos tem precisamente a ver com a nossa plasticidade e isso é extraordinário, não é? Quer dizer, para terminar sobre o corpo revoltado é que ele é tão espontaneamente fora e tão espontaneamente contra, que o afirmar-se contra é uma maneira que me parece estranha à coreografia e a dança da Vera, a Vera não se afirma contra, o contra vem porque ela se afirma. Primeiro, diferentemente, e se afirma na diferença dos outros. E afirma-se na liberdade extraordinária que ela tem, eu quero insistir nisso, porque eu vejo os outros e comparo com outros  jovens, menos jovens coreógrafos portugueses e não há dúvida que não há ninguém que tenha a liberdade, a liberdade plástica de fazer, de movimentar o seu corpo, de deslocar o seu corpo nos dois sentidos de deslocamento, alterar e deslocar no espaço, não há ninguém como a Vera aqui em Portugal. Que tenha essa liberdade, que também é muito pensado.

HV: Ela é uma pessoa muito curiosa, muito aberta também...

JG: Pois vem daí...

HV: ... muito interessada no que as teorias podem fazer para ela, ou provar... (Interrompe para falar com uma pessoa na casa). Vamos ter que terminar, é isso?

JG: Pois...

HV: Ah! Que pena. Bom, muito obrigada!

JG: Bem, não sei se disse alguma coisa.

Lisboa, 2/09/2011.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Oswald de. Em Piratininga Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha. Revista de Antropofagia, ano 1, n. 1, maio de 1928. Manifesto acessado em 2011 no endereço: http://www.lumiarte.com/ luardeoutono/oswald/manifantropof.html

CAETANO, Maria João. A morte de Deus segundo Vera Mantero. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=649140. Diário de Notícias, Portugal, 1/11/2007.

CAMUS, Albert. O Homem Revoltado. Rio de Janeiro: Record, 2008.

REICH, Wilhem. A Função do Orgasmo. São Paulo: Brasiliense, 1982.

RIBEIRO, António Pinto. Catálogo da Exposição “Retrospectiva em imagens do trabalho de Vera Mantero”. Lisboa: Centro Cultural de Belém, 1999.