Entrevista / Interview

5. Maxine Sheets-Johnstone: Fenomenologia da Dança

5. Maxine Sheets-Johnstone: The Phenomenology of Dance

Entrevista a Mónica Alarcón

Tradução de Charles Feitosa

Resumo

Entrevista realizada por Monica Alarcón com a dançarina, coreógrafa e pesquisadora norte-americana Maxine Sheets-Stone, uma das pioneiras da filosofia da dança do século XX, acerca das dificuldades e das repercussões de seu trabalho, tanto na área da filosofia como das artes cênicas.

Palavras-chave | Corpo | movimento | pensamento

Abstract

Inteview conducted by Monica Alarcón with the North American dancer, choreographer and scholar Maxine Sheets-Stone, one of the pioneers in the philosophy of dance in the Twentieth Century.  In the interview, she reflects on the repercussions of her work, both in the area of philosophy as well as in that of the theatre arts.

Keywords | Body | movement | thought

Maxine Sheets-Johnstone é uma pesquisadora associada do departamento de filosofia da Universidade de Oregon/USA, onde lecionou periodicamente na década de 1990. Ela obteve o Bacharelado em Literatura Francesa e comparativa na Universidade da Califórnia em Berkeley, um mestrado em dança e um doutorado em dança e filosofia pela Universidade de Wisconsin. Suas obras mais importantes são The Phenomenology of Dance (University of Wisconsin, 1966), The Roots of Thinking (Temple, 1990), The Roots of Power: Animate Form and Gendered Bodies (Open Court, 1994), e The Roots of Morality (Penn State, 2008), assim como  The Primacy of Movement (John Benjamins, 1999), Illuminating Dance: Philosophical Explorations (Bucknell, 1985), e mais recentemente The Corporeal Turn: An Interdisciplinary Reader (Imprint Academic, 2009).

Maxine Sheets-Johnstone is an independent scholar affiliated with the University of Oregon’s Department of Philosophy where she taught periodically in the 1990s. She received a BA in French and comparative literature from the University of California at Berkeley, an MA in dance, and a Ph.D. in dance and philosophy from the University of Wisconsin. Her work includes The Phenomenology of Dance (University of Wisconsin, 1966), The Roots of Thinking (Temple, 1990), The Roots of Power: Animate Form and Gendered Bodies (Open Court, 1994), and The Roots of Morality (Penn State, 2008), as well as The Primacy of Movement (John Benjamins, 1999), Illuminating Dance: Philosophical Explorations (Bucknell, 1985), and The Corporeal Turn: An Interdisciplinary Reader (Imprint Academic, 2009).

Monica Alarcón estudou filosofia em Valparaíso, Chile. Participou de diversas companhias de dança no Chile e no Brasil. Obteve o Mestrado em 2003 e doutorado em 2008 na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg/Alemanha. Atualmente, ela leciona no Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e é uma das fundadoras do grupo de pesquisa “mBody, Künstlerische Forschung in Medien, Somatik, Tanz und Philosophie” [“mBody, pesquisa artística na mídia, somática, dança e filosofia”]. Realiza workshops sobre filosofia da dança na Alemanha, Suíça e América do Sul, organiza projetos interculturais e interdisciplinares e atua como dramaturga em vários projetos de dança.

Monica Alarcón studied philosophy in Valparaíso, Chile and participated in several dance companies in Chile and in Brazil. She obtained her Master's Degree in 2003, and then a Doctorate in 2008 from the Albert-Ludwigs-Universität Freiburg/Alemanha. Currently, she teaches at the Albert-Ludwigs-Universität in Freiburg and is one of the founders of the research group, “mBody, art research in the media, somatics, dance and philosophy”. She carries out workshops on philosophy and dance in Germany, Switzerland and South American, organizing intercultural and inter-disciplinary projects, as well as acting as dramaturg for various dance projects. 


Maxine Sheets-Johnstone: Fenomenologia da Dança

Entrevista a Mónica Alarcón

Tradução de Charles Feitosa

Apresentação

Que tipo de relacionamento tem a dança com a filosofia? Aparentemente nada ou muito pouco, porque enquanto a primeira tem a ver com o movimento do corpo humano, a segunda se ocupa muito mais com a procurar da verdade ou com o mundo das ideias. Mas não é assim para a dançarina e pensadora norte-americana Maxine Sheets-Stone, uma das pioneiras da filosofia da dança do século XX. Seu primeiro livro Fenomenologia da Dança apareceu nos anos 60 e desde então a filósofa não parou de publicar uma série de livros e artigos sobre o assunto. Através de sua obra Maxine vem comprovando a importância e a relevância desse tipo de abordagem. Apesar da vastidão e diversidade dos seus trabalhos, há uma constante que se mostra de diferentes maneiras: sua paixão pelo movimento e em especial pela cinestesia, que até recentemente não era nem reconhecida como uma dimensão estrutural da percepção sensorial. Enquanto na América do Norte, a filosofia de dança já conta com uma certa tradição e é um assunto acadêmico reconhecido na América do Sul esse campo de pesquisa precisa ainda ser mais desenvolvido. A publicação dessa entrevista pretende ser uma contribuição para os debates entre dança e filosofia no cenário das pesquisas em artes cênicas no Brasil (Mónica Alarcón).

Mónica: Você foi uma das primeiras filósofas, talvez a segunda, se considerarmos o trabalho de Susan Langer, a escrever um livro sobre a fenomenologia da dança. Gostaria de saber como reagiu academia ao seu livro. Houve reconhecimento? Foi levado a sério? Teve muitas resenhas? Ou na verdade passou desapercebido?

Maxine: Quando eu estava trabalhando em meu doutorado, que girava em torno da filosofia e da dança, mais especificamente, em torno de uma análise fenomenológica da dança, conheci um professor de ciência política que, ao descobrir o caráter dual da minha pesquisa exclamou: “Mas como você vai conseguir realizar um doutorado em filosofia e dança? Uma tem a ver com a mente e a outra com o corpo!” Sua resposta indica uma forma inicial do tipo de reação que as pessoas tiveram com o caráter interdisciplinar do meu trabalho.

Minha motivação na época em que estava trabalhando em meu doutorado e em todos os anos subsequentes em que coreografei, executei e ensinei dança foi a de tentar entender o movimento na dança como uma forma de arte. Curiosamente, em toda a minha graduação, eu fui considerada a criança-prodígio da coreografia. Esse julgamento positivo de meu talento artístico sempre foi um ponto de partida, não um ponto de chegada para mim. Ou seja, eu sempre quis saber por que razão uma dança que eu tinha coreografado se sustentava formalmente – por que ela tinha sido bem sucedida. Eu não me sentia convencida, para dizer o mínimo, pelo que eu então eu chamava de “a linha do partido”, pelo mantra que foi reiterado repetidamente pela faculdade, ou seja, que a dança – assim como o movimento – é uma força no tempo e no espaço. Eu pensei que as coisas não podem ser assim: formigas e aviões e vários outros entes podem ser observados e considerados como forças no tempo e no espaço. A definição não faz justiça à dança e a seus movimentos - para a realidade da dança enquanto uma arte da forma e da performance, ou ainda em um sentido dinâmico para a realidade das experiências cinestésicas.

Criança-prodígio ou não, fui nitidamente considerada uma herege. Mas continuei meus estudos na fenomenologia e no livro que resultou daí – The Phenomenology of Dance [A Fenomenologia da Dança] – que não contém, curiosamente, nenhuma discussão ou menção às questões da mente e do corpo. Gostaria de acrescentar o seguinte postscript com relação à posterior recepção do livro.

Uma notável e bem conhecida historiadora da dança – Selma Jean Cohen - escreveu uma resenha de  Fenomenologia da Dança para o Journal of Aesthetics and Art Criticism. Ela afirmou que meu livro faria os estudos da dança retroceder em cem anos. Fiquei horrorizada e reclamei sobre a censura pública com John Martin, Professor de filosofia na Universidade de Temple e, na época, editor do jornal. Sua resposta imediata foi: “Cem anos! Uau! Que trabalho poderoso você escreveu!”

A conclusão que eu retirei daí coincidiu com o que eu tinha aprendido em minha vida como uma dançarina: tanto no processo coreográfico como na sua execução, você não está se movendo através de uma forma; a forma é que está se movendo através de você. Da mesma maneira como na filosofia, o que é importante é que possamos escutar o trabalho em que estamos envolvidos, e nesse escutar, vitalizar-se até a promessa, no sentido de cumprir as suas expectativas, quer dizer, aprender a partir do trabalho e de como ele próprio se desenrola. Ser verdadeiro para o trabalho em si é o que importa.

Mónica: Em seu primeiro libro, o conceito de “formas simbólicas” desempenha um papel muito importante na interpretação fenomenológica da dança. Gostaria de saber qual a opinião você tem hoje a este respeito. Na verdade tenho alguns problemas em relacionar o fenômeno da dança com o conceito de símbolo. Parece-me que a corporeidade e a “realidade” da dança corre risco de ser interpretada de forma muito pouco – por assim dizer – física. Por outro lado, é evidente que a dança não é apenas uma atividade física, embora isso seja justamente o lema de muitos estilos de dança pós-moderna. Parece-me que temos de encontrar um conceito intermediário.

Maxine: Estou totalmente de acordo com você, Mónica. A dança não se reduz ao simbólico! No prefácio da segunda edição do The Phenomenology of Dance (1979/1980), que foi publicado mais de 15 anos depois que o livro foi escrito na verdade (1961-63), salientei que, no momento em que o livro foi publicado originalmente (1966), não havia praticamente “nenhuma literatura existente de dança” e enfatizei “o valor global do livro hoje [i.e. 1979/1980] a partir de três perspectivas” (Prefácio). A primeira concerne ao fato de que o livro oferece uma análise de um determinado tipo de dança, ou seja, danças que tem um caráter eminentemente simbólico. Enfatizei que “formas simbólicas de dança foram o esteio da dança moderna na América antes das mudanças de foco, revolucionárias e, em última análise, incisivas, provocadas por Merce Cunningham e por bailarinos a Church Judson em Nova Iorque na década de 1960”.

Dois anos mais tarde, em um artigo publicado no The Journal of Aesthetics and Art Criticism (1981) intitulado “Thinking in Movement” [Pensando em Movimento], apresentei uma análise descritiva de dança-improvisação, uma forma de dança que tinha se desenvolvido nos anos posteriores à primeira edição de The Phenomenology of Dance e que se tornou proeminente através do trabalho de seu fundador, Steve Paxton, e de uma grande dançarina, Nancy Stark Smith. Nesse artigo procurei especificar como uma dança pode ser não-simbólica, ou seja, como uma dança pode ser tão não-referencial, que em tal dança, movimentos não são indicadores em um sistema de significados, “eles são não apontando ou referindo-se a significados para além de si mesmos, mas em si e a partir de si mesmos, inteligentes e inteligíveis” (1980: p. 404). Em suma, demonstrei através de uma análise fenomenológica como, em uma dança-improvisação, movimentos da bailarina não são um discurso “sobre” algo qualquer da mesma maneira que um sorriso não é sobre prazer. Indiquei também a diferença entre trabalhar com o movimento como uma forma simbolicamente orientada e trabalhar com movimento enquanto movimento, como fizeram dançarinos na década de 70 e em seguida.

Finalmente, gostaria de observar que alertei aos leitores no prefácio para a segunda edição do The Phenomenology of Dance sobre um artigo publicado em Leonardo em 1978 intitulado “An Account of Change in Dance in the U. S. A.” [Um Balanço da Mudança na Dança nos E.U.A.], em que fiz especificamente a distinção entre o simbólico e o não-simbólico na dança.

Gostaria de salientar que algumas pessoas que professam ser perspicazes fenomenologicamente, aparentemente não conseguem entender o conteúdo essencial de The Phenomenology of Dance, ou seja, a apresentação de uma análise fenomenológica das qualidades estruturais inerentes aos movimentos. Fracassam também ao ler o prefácio para a segunda edição, como se eu não tivesse feito nenhuma reavaliação do meu livro original, nem nenhumas das minhas posteriores investigações em dança (ver, por exemplo, artigo de 2005 de Phillipa Rothfield em Topoi intitulado “Differentiating Phenomenology and Dance” [“Diferenciar Fenomenologia e Dança”]). O lapso conceitual é decepcionante e desconcertante, especialmente desde que, além de discutir os meus próprios ajustes no prefácio para a segunda edição, conclui dizendo: “vou deixar para o leitor a tarefa de ler o livro de outras perspectivas e sugerir novas melhorias ou adições. Na verdade, espero que dentro do espírito das pesquisas fenomenológicas, novas dimensões possam surgir que servirão de incentivo a investigação e conduzirão a novos campos da intuição e da descoberta” (Prefácio). Fenomenologia, de fato, é um empreendimento em progresso. Além disso, é metodologicamente aberto a verificação, mas apenas na medida em que realmente se pratica seu programa metodológico e não simplesmente distribui críticas baseadas em alianças teóricas específicas.

Mônica: Você foi uma dançarina e uma coreógrafa bem sucedida. Como explica a necessidade de trabalhar teoricamente sobre dança e não simplesmente continuar dançando e coreografando?

Maxine: Dancei brevemente com a Lester Horton Company. O trabalho de Horton foi muito influenciado pela dança caribenha. Bailarinos importantes tais como Carmen de Lavallade atuaram em sua companhia. Alvin Ailey veio da companhia de dança de Horton e é talvez o coreógrafo mais famoso a ter dançado originalmente com Horton. Eu era muito ligada à técnica de Horton e suas origens e quando estava ensinando dança em uma universidade no início dos anos 70, me candidatei e recebi uma bolsa de verão para estudar dança no Haiti, Jamaica e Trinidad. No Haiti tive aulas com Lavinia Williams, na época uma dançarina bem conhecida e com Boscoe Holder, em Trinidad (o irmão de Geoffrey Holder – se bem me lembro – coreografou musicais para a Broadway em NY. Ele também era casado com Carmen de Lavallade).

Jamais pensei a filosofia como uma disciplina que se opõe à dança, mas pelo contrário, como uma maneira de examinar seu tremendo alcance e poder afetivo, de compreender a dinâmica inerente do movimento e assim por diante. Em geral, não achei bailarinos ou professores/professores suficientemente interessados nesses temas ou esclarecidos sobre a própria arte que eles praticavam.

Mónica: Muitos filósofos relacionam imediatamente uma filosofia da dança com Nietzsche e a dança com um estado de êxtase dionisíaco. Como você definiria a relação de êxtase com a dança? E o que acontece com o Eu e a individualidade do dançarino na dança (em uma dança ocidental, não-ritualística)?

Maxine: Enquanto alguns filósofos podem associar suas investigações filosóficas da dança e seus escritos em dança com Nietzsche e por sua vez conceber a dança em termos de um êxtase dionisíaco, da minha parte não considero essa abordagem, ou seus resultados, frutífera e isso simplesmente porque desse modo não se começa com a coisa propriamente dita. Pelo contrário, assim inicia-se com uma certa concepção, ou melhor,  uma certa preconcepção sobre a dança e o dançarino.

O famoso dictum de Husserl “voltar às coisas mesmas” é uma expressão apropriada e sucinta do ponto processual em questão. Existe na verdade uma correspondência marcante entre as investigações socráticas e as husserlianas na sua priorirização metodológica, no seu chamamento epistemológico mútuo para se debruçar sobre as realidades experienciadas na própria vida. No Crátilo, Sócrates pergunta a seu  interlocutor se é possível aprender sobre as coisas simplesmente através de nomes ou apenas através das “coisas mesmas” e mais tarde afirma:  “a questão como a existência real deve ser investigada ou pode ser descoberta está, eu suspeito, para além do nosso alcance. Mas podemos admitir por enquanto que o conhecimento das coisas não deve ser derivado de nomes. Não, elas devem ser estudadas e investigadas nelas mesmas (Cratylus, 439 A; itálico adicionado pela entrevistada). O dictum clássico de Husserl, “ir às coisas mesmas” é uma reiteração do dictum anterior de Sócrates. Em particular Husserl afirma: “julgar racional ou cientificamente sobre coisas significa estar em conformidade para com as coisas mesmas ou recuar das palavras e das opiniões, voltar às coisas mesmas, consultá-las em sua auto-apresentação e se retirar de todos os prejuízos alheios à elas” (Husserl, 1983: p. 35).

Quando nos voltamos para dança nela mesma e para o bailarino dançando a dança, e na verdade, “retirados todos os preconceitos que lhes são alheios” como é necessário em uma análise fenomenológica, vamos nos encontrar no que eu descrevi como o desafio de traduzir a experiência em linguagem. Em outras palavras, quando desistimos de nomear, conceber e categorizar antecipadamente e nos voltamos para a dança propriamente dita, ou seja, a dança como está sendo dançada pelo(s) dançarino(s), encontramo-nos confrontados com algo cuja descrição é desafiante.  Devemos enfrentar esse desafio, indo a ele sem preconceitos (em termos fenomenológicos, por “redução”) e prestando atenção estreita e profunda para o que está lá diante de nós. Ao fazê-lo, encontramos uma forma cinética qualitativamente flexionada se desdobrando diante de nós, uma forma dinâmica articulada como uma melodia cinética por um corpo ou por diferentes corpos em movimento. A forma possui crescendo e decrescendos, momentos de contração e expansão, intensidades, diluições, velocidades, tranquilidades e assim por diante. Na qualidade de observadores, experimentamos uma forma dinâmica no seu fazer-se.

Quando nos voltamos para o(s) dançarino(s) dançando a dança, encontramos uma outra dimensão da dança que reverbera ao longo das linhas de um poema de William Butler Yeats e que pode ou não ser explicitamente evidente aos membros do público. A dimensão refere-se à relação do(s) dançarino(s) com a própria dança. A relação foi colocada de maneira provocadora e eloquente por Yeats, que perguntou no final do seu poema “Among School Children” [Entre Crianças de Escola]: “Ó castanheiro, ó grande castanheiro de raízes profundas / você é a folha, a flor ou o tronco / Ó corpo seduzido pela música, Ó brilho reluzente, / como podemos distinguir o dançarino da dança?” [O chestnut tree, great rooted blossomer, / Are you the leaf, the blossom or the bole? / O body swayed to music, O brightening glance, / How can we know the dancer from the dance?].

A pergunta de Yeats é uma provocação justamente porque a relação entre o dançarino e a dança é incomum. Na vida cotidiana para começar, o movimento não costuma merecer destaque, mas é algo que uma pessoa faz para atingir um determinado objetivo, para chegar a um determinado lugar e assim por diante. Além disso qualquer que seja o movimento, não é apenas pouco destacado, como não é dada comumente a devida importância a sua dinâmica qualitativa. Pelo contrário, os movimentos são simplesmente tomados como as maneiras habituais em que alguém faz algo, por exemplo, ou como a maneira mais eficaz de se chegar a um determinado fim. Com efeito, a gente passa por determinados movimentos – a gente se move através de certas formas de movimento como varrer, andar, chegar ou girar – certos padrões de todos os dias, hábitos e estilos de mover-se. Em contrapartida, resumidamente, o bailarino dançando a dança não está se movendo através de uma forma; a forma está se movendo através dele. Como Yeats reconheceu implicitamente, dança e dançarino estão em unidade.

Mónica: Eu acho que uma reflexão sobre a dança tem mais sentido no âmbito de uma reflexão filosófica sobre o corpo humano. Gostaria de saber qual é a diferença entre o movimento e dança para você? E qual é a contribuição da dança para uma reflexão sobre o corpo?

Maxine: Qual é a diferença entre o movimento e dança? A resposta para a pergunta poderia preencher um livro e até mais se a gente levasse em conta não só a história do balé e da dança moderna, mas também a dança na Grécia arcaica, a dança folclórica, a dança social e a dança ritualística, por exemplo. Além disso, na medida em que o movimento é a essência da vida e todas as formas animadas de vida se movem, a gente pode levar em conta os rituais de acasalamento dos animais não-humanos, por exemplo, e especificar como e por que esses movimentos, na medida em que se assemelham a coreografias, podem ser considerados como  dança. Na verdade, Havelock Ellis considera as “danças de amor” dos machos cortejadores – insetos e aves – como os movimentos precursores da dança humana. Em seus escritos sobre o assunto, Ellis realmente está elaborando o que Darwin primeiro geralmente descreve como “Love-Antics and Dances” [“pantominas e danças do amor”] e mais tarde simplesmente como “danças masculinas do acasalamento” (cf. Ellis 1976 [1929]; Darwin 1981 [1871]; para uma discussão completa, consulte Sheets-Johnstone 2005, também em Sheets-Johnstone, 2009, capítulo XII).

Eu só posso dar uma resposta curta para a questão da diferença entre o movimento e dança nesta entrevista. Essa resposta curta é: A dança é uma forma de arte criada, criada não para servir a qualquer propósito mas criada por si própria. Sua integridade estética predomina sobre qualquer história que ela possa querer contar, por exemplo, ou qualquer “mensagem social", que talvez queira apresentar. Movimento na vida cotidiana – tanto o movimento de seres humanos ou de animais não-humanos – normalmente não é nem criado por si mesmo, nem criativo.

O que dança traz de reflexões sobre o corpo? Novamente, uma questão que, para mim pelo menos, poderia preencher – e tem preenchido – mais de um livro. O estudo da dança coloca a kinesthesia [cinestesia] em foco, uma tarefa nada fácil nesta época em que nós seres humanos ainda consideramos que temos apenas cinco sentidos (Sheets-Johnstone, 1966 [1979/1980]). Além disso, coloca em foco as dimensões filo- e ontogenéticas, fortalecendo, entre outras coisas, uma apreciação do fato de que o movimento é nossa língua materna (Sheets-Johnstone, 1999). O estudo da dança evidencia as competências cognitivas e racionais do corpo, destacando-o como um modelo semântico, por exemplo (Sheets-Johnstone, 1990). Enfatiza as competências comunicativas do corpo, esclarecendo as relações espaciais de inter-corporeidade, por exemplo (Sheets-Johnstone, 1994). Por fim o estudo da dança traz a percepção de que a virada corporal [corporeal turn], uma virada, tal como a virada linguística do século XX, requer atenção para algo que foi por muito tempo dado como óbvio e resolvido (Sheets-Johnstone, 2009).

Mónica: Que pergunta ainda não fiz e que você gostaria de responder?

Maxine: Ninguna! [NT: em espanhol no original] Eu sei que é muito fora do comum citar referências em uma entrevista, mas elas parecem-me de interesse e até mesmo necessárias.

Referências bibliográficas

DARWIN, Charles. The Descent of Man and Selection in Relation to Sex [1871]. Princeton: Princeton University Press, 1981.

ELLIS, Havelock. The Dance of Life. Boston: Houghton Mifflin, 1929, p. 34-63.

HUSSERL, Edmund. Ideas Pertaining to a Pure Phenomenology and to a Phenomenological Philosophy. First Book. The Hague: Martinus Nijhoff, 1983.

SHEETS-JOHNSTONE, Maxine. The Phenomenology of Dance. Madison, WI: University of Wisconsin Press, 1966; London: Dance Books Ltd., 1979; New York: Arno Press, 1980.

_____ The Roots of Thinking. Philadelphia: Temple University Press, 1990.

_____ The Roots of Power: Animate Form and Gendered Bodies. Chicago: Open Court Publishing, 1994.

_____ The Primacy of Movement. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing, 1999.

_____ “Man Has Always Danced”: Forays into an Art Largely Forgotten by Philosophers. Contemporary Aesthetics (electronic journal), v. 2, n. 1, 2005.

_____ The Roots of Morality. University Park, PA: Pennsylvania State University Press, 2008.

_____ The Corporeal Turn: An Interdisciplinary Reader. Exeter, UK: Imprint Academic, 2009.