Tradução / Translation

6. Filosofia da Dança (1936)

6. The Philosophy of Dance (1936)

Paul Valéry

Tradução de Charles Feitosa

Resumo

Texto da famosa conferência do escritor francês Paul Valéry, onde a pergunta “O Que é a Dança?” é associada à famosa pergunta “O que é o Tempo?”, formulada por Agostinho de Hipona nas suas Confissões. Valéry pensa a dança como uma poesia geral da ação dos seres vivos e enfatiza a inteligência inerente ao corpo.

Palavras-chave | Corpo | pensamento | temporalidade | linguagem

Abstract 

Text of the famous conference of the French writer Paul Valéry, where the question “What is Dance?” is associated with the famous question “What is Time?”, formulated by Augustine of Hippo in his Confessions. Valéry thinks of dance as a kind of poetry of living beings' actions and emphasizes the inherent intelligence of the body.

Keywords | Body | thought | temporality | language

Paul Valéry nasceu em Sète, França, em 1871. Publicou seu primeiro livro em 1907, aos 36 anos. Apesar disso é autor de uma obra vasta e original que abrange temas bem diversos como arquitetura, música, literatura e dança. Trabalhou em empresas públicas e acadêmicas e foi professor do Collège de France. Morreu em 1945, em Paris.

Paul Valéry was born in Sète, France, in 1871.  He published his first book in 1907, at the age of 36.  Even so, he is the author of a vast and original work which covers topics as diverse as architecture, music, literature and dance.  He worked in both the public and academic spheres, and was a professor at the Collège de France.  He died in 1945, in Paris.


Filosofia da Dança (1936)1

Paul Valéry

Tradução de Charles Feitosa

Antes que Mme. Argentina2 se aproprie e capture vocês na esfera da vida lúcida e apaixonada que sua arte vai formar; antes que ela mostre e demonstre o que uma arte de origem popular, nascida da sensibilidade de uma raça ardente, pode vir a ser quando a inteligência dela se apodera, a penetra e faz dela um meio soberano de expressão e de invenção, vocês terão de se resignar a ouvir algumas considera­ções arriscadas feitas por um homem que não dança.

Esperem ainda um pouco para o momento da maravilha e lhes digo que estou tão ansioso quanto vocês para tocar as nuvens.

*

Vou direto às minhas ideias e lhes digo sem nenhuma preparação prévia que a dança, na minha opinião, não se limita a ser um exercício, um entretenimento, uma arte ornamental nem uma atividade social qualquer;  trata-se de coisa séria e, em certos aspectos, algo de muito venerável.  Toda época que entendeu o corpo humano, ou teve pelo menos algum sentido do mistério desta organização, de seus recursos, de suas limitações, de suas combinações de energia e sensibilidade, não apenas cultivou, como reverenciou a dança.

É uma arte fundamental, tal como é sugerido, se não comprovado, pela sua universali­dade, sua antiguidade imemorial, por seus usos solenes, pelas ideias e pensamentos que ela sempre gerou. É que a dança é uma arte derivada da própria vida, uma vez que não é apenas ação do corpo humano enquanto um conjunto, mas ação transposta em um mundo, em uma espécie de espaço-tempo, que já não é bem o mesmo que o da vida prática.

O homem percebeu que tinha mais força, mais flexibilidade, mais potencialidades articulatórias e musculares do que as necessárias para atender às demandas de sua existência e descobriu que alguns destes movimentos, pela sua frequência, sua sucessão ou sua amplitude, lhe davam um prazer que era uma espécie de intoxica­ção; tão intenso às vezes que somente um esgotamento total de suas forças, uma espécie de êxtase de exaustão poderia interromper seu delírio, seu dispêndio motriz exasperado.

Então temos muito mais poder do que necessidades. Vocês podem facilmente observar que a maioria, a grande maioria das impressões que recebemos de nossos sentidos são inúteis, inutilizáveis, não desempenham qualquer papel na operação de equipamentos essenciais para a preservação da vida. Vemos muitas coisas; ouvi­mos muitas coisas com as quais não fazemos nada e que não podemos fazer nada: as palavras mesmo de um conferencista, por exemplo.

*

Mesma observação sobre os nossos poderes: podemos realizar uma série de atos que não têm nenhuma chance de encontrar emprego nas operações indispensáveis ou importantes da vida. Podemos desenhar um círculo, brincar com os músculos do nosso rosto, marchar ritmicamente; todas essas ações, que ajudaram a criar a geome­tria, a comédia e a arte da guerra, são em si inúteis, sem uso para nosso funcionamento vital.

Assim, os meios de relação de vida, os nossos sentidos, nossos membros articula­dos, imagens e sinais que controlam as nossas ações e a distribuição de nossas energias, que coordenam os movimentos de nossas marionetes, poderiam ser colocados apenas ao serviço de nossas necessidades fisiológicas; limitar-se-iam a agredir o meio ambiente em que vivemos ou para defender-nos contra ele, de modo que sua única atividade deveria consistir então na preservação de nossa existência.

Poderíamos levar uma vida estritamente ocupada com os cuidados da nossa máquina vital, perfeitamente indiferentes ou insensíveis a tudo o que não está envolvido nos ciclos de processamento que compõem o nosso funcionamento orgânico; sem sentir ou fazer nada para além do necessário, sem fazer nenhuma coisa que não fosse uma reação limitada, uma resposta finita a alguma intervenção externa. Pois nossas ações úteis são finitas. Elas vão de um estado para outro.

Notem que os animais parecem não perceber ou não fazer nada de desnecessário. O olho de um cão vê as estrelas, sem dúvida, mas o ser deste cão não dá qualquer seguimento a essa visão. O ouvido do cão percebe um barulho que o solicita e o inquieta, mas ele absorve do ruído apenas aquilo que precisa para responder através de uma ação imediata e uniforme. Ele não habita na percepção. A vaca no seu pasto salta com o ruído do expresso Calais-Mediterrâneo passando por perto; o trem se vai; suas ideias não acompanham o trem: ela retorna à sua relva macia, sem segui-lo com seus belos olhos. O índice de seu cérebro logo retorna a zero.

Os animais, no entanto, às vezes parecem se divertir. O gato, obviamente, brinca com o rato. Os macacos fazem pantomimas. Os cães se perseguem, saltam no focinho dos cavalos e não consigo pensar em nada melhor que dê a ideia de um jogo tão livre e feliz como os botos que se vê brincando na costa, emergindo, mergulhando, vencendo um barco na corrida, nadando sob o casco e reaparecendo na espuma, mais vitais do que as ondas, no meio das quais eles brilham e mudam de cor no sol. Será isso já dança?

Mas todos esses divertimentos animais podem ser interpretados como ações úteis, rompantes impulsivos devido à necessidade de consumir uma energia superabundante ou de manter a flexibilidade, ou ainda o vigor, dos órgãos destinados às manobras vitais, ofensivas ou defensivas. Observo que as espécies que parecem as mais rigorosamente construídas e dotadas com os instintos os mais especializados, tais como formigas ou abelhas, parecem-me também as mais eficientes em poupar seu tempo. Formigas não perdem um minuto. A aranha espreita e não brinca na sua teia. Mas e o homem?

*

O homem é esse animal singular que se olha ao viver, que se dá um valor e que identifica esse valor, dado a si mesmo com prazer, com a importância que confere às percepções desnecessárias e aos atos sem consequências físicas vitais.

Pascal coloca toda nossa dignidade no pensamento, mas esse pensamento que nos eleva – aos nossos próprios olhos – para além de nossa condição sensível é justamente um tipo de pensamento que não serve para nada. Notem bem que é inútil para o nosso corpo meditar sobre a origem das coisas ou sobre a morte; e mais ainda, que os pensamentos deste tipo, se exacerbados, tenderiam a ser bastante prejudiciais ou até mesmo fatais para nossa espécie. Nossos pensamentos mais profundos são os mais insignificantes à nossa conservação e de algum modo até triviais em relação a ela.

Entretanto, uma vez que nossa curiosidade tem sido mais ansiosa do que o necessário e nossa ação mais excitada do que o exigido para a realização de qualquer propósito vital, ambas têm se desenvolvido para o ponto da invenção das artes, das ciências, dos problemas universais, da produção de objetos, de formas, de ações, enfim, das quais poderíamos facilmente nos dispensar.

E ainda, todas essas invenções e produções livres e gratuitas, todos esses jogos de nossos sentidos e de nossas potências, gradualmente providenciaram para si próprios uma espécie de necessidade e um tipo de utilidade. Tanto a arte como a ciência, cada uma segundo suas vias, tendem a criar uma espécie de útil a partir do inútil, uma espécie de necessário a partir do arbitrário. Desse modo a criação artística não é tanto uma criação de obras, mas sim a criação da necessidade de obras; as obras passam a ser produtos, ofertas, que pressupõem demandas e necessidades.

*

Olha aí a filosofia, devem estar pensando... Admito que coloquei um pouco demais dela para vocês... Mas quando não se é um dançarino, quando seria difícil não apenas dançar, mas explicar cada passo e quando se possui apenas os recursos do espírito para lidar com as maravilhas que fazem as pernas, então não há escapatória senão através de uma certa dose de filosofia – ou seja,  procuramos nos acercar das coisas de muito longe com a tênue esperança de que as dificuldades diminuam com a distância. É muito mais simples construir um universo do que explicar como um homem se mantém sobre seus pés. Pergunte a Aristóteles, Descartes, Leibniz e a outros.

No entanto, parece-me legítimo que um filósofo possa muito bem olhar para uma dançarina em ação, notar que tem prazer nisso e ainda tentar extrair do seu deleite um prazer secundário: o de expressar suas impressões em sua própria linguagem. Primeiro ele pode tirar daí algumas belas imagens. Filósofos gostam de imagens: não há atividade que mais as exija, ainda que às vezes elas se escondam sob o disfarce de palavras com aparência de muralhas. Os filósofos criaram imagens famosas: um, uma caverna; o outro, um rio sinistro ao qual não se pode retornar nunca; e ainda um outro, um Aquiles correndo ofegante atrás de uma tartaruga inacessível. Os espelhos paralelos, corredores passando de um a outro uma tocha, indo até Nietzsche, com sua águia, sua serpente, seu equilibrista na corda bamba. É todo um material, uma figuração de ideias, que poderia constituir um ballet metafísico muito bonito, onde a composição da cena se daria por tantos símbolos famosos.

Meu filósofo, no entanto, não se contenta apenas com essa representação. O que fazer afinal diante da dança e da dançarina para dar a ilusão de conhecer um pouco mais do que ela mesma sobre algo, que ela conhece melhor e ele nada sabe? Será preciso compensar sua ignorância técnica e esconder seu constrangimento através de alguma interpretação engenhosa dessa arte universal, cujas maravilhas ele percebe e experimenta.

Ele embarca em sua tarefa, se dedica a seu próprio modo... À moda de um filósofo: todos sabem como acontece sua dança... Ele rascunha as etapas da interrogação. E, como convém a um ato desnecessário e arbitrário, ele se entrega sem prever um fim e entra em uma interrogação ilimitada, no infinito da forma interrogativa. É o seu trabalho.

Ele joga o jogo que conhece. Começa com seu começo usual. Eis aí sua pergunta: “O que é isto então, a dança?”

*

O que é isto então, a dança? Logo fica perplexo e seus pensamentos se paralisam – o que nos faz lembrar a famosa pergunta e a famosa perplexidade de Santo Agostinho.

Agostinho confessa que uma vez perguntou o que é o tempo; ele admitia que sabia muito bem do que se tratava enquanto não se fazia essa pergunta, mas se perdia nas encruzilhada da sua mente quando lidava com esse termo, quando o isolava de qualquer uso imediato ou expressão particular. Uma observação muito profunda...

Meu filósofo está bem aí: hesitando sobre o limiar formidável que separa uma questão de uma resposta, obcecado pela memória de St. Agostinho, sonhando em sua penumbra com a perplexidade desse grande santo:

“O que é a dança? Mas afinal o que é a Dança?...” Mas a dança, disse a si próprio, é afinal uma forma de tempo, é a criação de um certo tipo de tempo, de um tipo completamente distinto e único.

Aqui ele já está menos preocupado: tinha promovido o casamento de dois problemas. Cada um deles, em seu estado separado, o deixava perplexo e impotente; mas ei-los articulados. Talvez a união seja proveitosa. Isso vai gerar algumas ideias e é isso precisamente o que ele busca, é o seu vício e seu brinquedo.

Ele observa então a bailarina com olhos extraordinários, olhos super-lúcidos capazes de transformar tudo que veem em uma presa para a mente abstrata. Ele reflete, decifra o espetáculo a seu jeito.

Parece-lhe que a pessoa que dança se fecha, de alguma maneira, em uma duração que ela mesmo engendra, uma duração toda feita de energia imediata, feita de nada que possa efetivamente durar. Ela é o instável, ela propicia o instável, exige o impossível, abusa do improvável, e, por força de seu esforço para negar o estado normal das coisas, ela cria a ideia na mente de um outro estado, uma condição excepcional – um estado que é apenas ação, uma permanência que se constituiria e se consolidaria através de uma produção incessante de atividade, comparável a pose vibrante de uma abelha ou borboleta na frente do cálice de flores que ela explora, e que permanece, no comando da potência motriz, quase imóvel, apoiada pela batida incrivelmente rápida de suas asas.

Nosso filósofo pode comparar a bailarina a uma chama, e, de fato, a qualquer fenômeno visivelmente sustentado pelo uso intenso de uma energia de qualidade superior.

Parece-lhe também que, no estado dançante, todas as sensações do corpo, simultaneamente movente e movido, estão encadeadas em uma determinada ordem – estão se chamando e se correspondendo umas as outras como se repercutissem reciprocamente, como se fossem refletidas na parede invisível da esfera de forças de um ser vivo. Perdoem-me por esta formulação terrivelmente audaciosa: não posso encontrar nenhuma outra. Mas vocês sabiam de antemão que sou um escritor obscuro e complicado...

Meu filósofo – ou, se quiserem, o espírito açoitado pela mania do questionamento –, coloca diante da dança suas interrogações habituais. Emprega seus por quês e comos, seus instrumentos costumeiros de elucidação, os aparatos técnicos de sua arte. Ele tenta substituir, como vocês acabaram de perceber, as expressões imediatas e simples das coisas por fórmulas mais ou menos bizarras que lhe permitem conectar o fenômeno gracioso da dança com a totalidade disso que ele conhece – ou pensa que conhece.

Ele tenta aprofundar o mistério de um corpo que, de repente, como se estivesse sob o efeito de um choque interior, entra em uma espécie singular de vida, estranhamente instável e ao mesmo tempo estranhamente regrada; a uma só vez: estranhamente espontânea, estranhamente inteligente e certamente planejada.

Este corpo parece estar separado do seu equilíbrio normal. Parece que ele está brincando de ser mais esperto – quero dizer, de ser mais rápido –, do que o seu próprio peso, evitando a todo o momento essa sua tendência. Evitemos falar aí de punição!

Em geral, o corpo fornece um regime periódico mais ou menos simples, que parece manter-se por si mesmo; parece dotado de uma elasticidade superior, capaz de recolher o impulso de cada movimento e restituí-lo imediatamente. Isso lembra um pião, que fica em pé sobre sua ponta e que reage tão sensivelmente ao menor toque.

*

Eis aqui uma observação importante que vem à mente deste filósofo, que talvez fizesse melhor ao entreter-se sem reservas e render-se totalmente ao que vê. Ele observa que o corpo que dança parece ignorar o seu entorno. Parece só lidar consigo próprio e com outro objeto, um objeto capital, de onde ele se desconecta e para o qual regressa, mas somente para reunir os recursos para outro voo...

Este objeto é a terra, o solo, o lugar sólido, o plano sobre o qual a vida comum pisoteia, onde se realiza a caminhada, a prosa do movimento humano.

Sim, o corpo que dança parece ignorar o resto, nada sabendo de tudo que o rodeia. Parece que ele ouve e escuta somente a si mesmo, parece que não vê nada e que os olhos que porta são apenas joias, essas joias desconhecidas de que fala Baudelaire, faróis que não servem para nada.

Desse modo, a dançarina está em outro mundo, não mais aquele que se pinta diante de nossos olhares, mas aquele que ela tece através de seus passos e constrói por seus gestos. Neste mundo não há um propósito fora dos atos, não há objeto a ser apreendido ou conquistado, para repelir ou para escapar dele. Não há um objeto que determine exatamente uma ação e que dê aos movimentos, antes de tudo, uma direção e uma coordenação externas, depois uma conclusão clara e certa.

*

Isso não é tudo: aqui, neste mundo não há nada de imprevisto, em alguns momentos parece até que o ser dançante age frente a um incidente imprevisto, mas esse inesperado faz parte de uma previsão muito clara. Tudo se passa como se... Mas nada mais!

Portanto, nenhum propósito, nenhum incidente verdadeiro, nada de exterioridade...

O filósofo exulta de alegria. Nada de exterioridade! Para a dançarina não há o fora... Nada existe para além do sistema que é formado por seus gestos, um sistema que lembra o sistema exatamente oposto, não menos fechado, que nos constitui enquanto estamos dormindo, cuja lei exatamente oposta é a abolição de todos os gestos, a total abstenção dos atos.

A dança aparece para ele como um sonambulismo artificial, um grupo de sensações que fazem de si mesmas uma residência onde certos temas musculares se sucedem em uma série que estabelece seu próprio tempo, uma duração absolutamente própria. Ele contempla com um crescente prazer intelectual esse ser que gera, que produz das profundezas de si mesmo essa bela sequência de transformações de sua forma no espaço, que às vezes é transportado, mas sem realmente ir a qualquer lugar; que às vezes se metamorfoseia no local, se expondo em todos os aspectos, que às vezes modula habilmente sucessivas aparições, como se fossem fases controladas, que às vezes se transforma em um turbilhão, que acelera cada vez mais rapidamente e então para repentinamente, cristalizando-se em uma estátua, adornada por um estranho sorriso.

*

Mas esse desprendimento do meio ambiente, essa falta de objetivo, essa negação do movimento explicável, essas rotações completas (que não são exigidas ao nosso corpo em nenhuma circunstância da vida comum), esse sorriso mesmo que ninguém possui, todos esses traços são decididamente opostos aos da nossa ação no mundo prático e do nosso relacionamento com ele.

No mundo prático nosso ser é reduzido à função de intermediário entre o sentimento de uma necessidade e do impulso que irá satisfazer essa necessidade. Neste papel, procede-se sempre através do caminho mais econômico, senão sempre o mais curto: mira resultados. A linha reta de ação mínima, o menor tempo, são seus guias. Um homem prático é um homem que tem o instinto dessa economia de tempo e recursos, além disso, tem pouca dificuldade em realizar esse instinto, pois seu propósito é nítido e claramente localizado: um objeto externo.

Mas como dissemos antes, a dança é exatamente o oposto. Ela move-se em si mesma e não pressupõe, em si, nenhuma razão, nem nenhuma tendência para seu acabamento. Uma fórmula de dança pura não pode conter qualquer coisa que faça com que ela tenha um termo de conclusão. São acontecimentos exteriores que a finalizam, os limites de sua duração não são intrínsecos, mas se dão pela duração convencional de um espetáculo, pela fadiga, pela perda de interesse. A dança ela mesma não tem nada em si para terminar. Ela cessa como um sonho cessa, um sonho que poderia continuar indefinidamente. Ela cessa não por causa da conclusão de qualquer empreendimento, uma vez que não é negócio, mas pelo esgotamento de alguma outra coisa que está fora dela.

E assim – permitam-me exagerar alguma frase – não poderíamos considerá-la – e já me sinto intimado a isso – como uma forma de vida interior, dando agora para esse termo, típico da psicologia, um novo significado, onde a fisiologia é predominante?

Vida interior só que toda construída a partir de sensações de duração e de energia que se correspondem e formam um círculo de ressonâncias. Essa ressonância, como qualquer outra, é comunicada: nossa parte enquanto espectadores é o prazer de nos sentirmos a nós mesmos tomados pelos ritmos, de nos sentirmos virtualmente dançarinos, nós mesmos!

*

Vamos um pouco mais além nessa filosofia da dança a fim de obter consequências ou aplicações bastante curiosas. Se até agora falei dessa arte me atendo a considerações muito gerais, é um pouco pela motivação de levá-los onde estou agora. Eu tentei dar-lhes uma ideia bastante abstrata da dança e de apresentar-lhes como uma ação que se deriva da ação ordinária e útil, depois dela se libera e finalmente, a ela se opõe.

Mas esse ponto de vista é excessivamente genérico (é por isso mesmo que o adotei hoje) e nos conduz a algo muito mais amplo do que a dança propriamente dita. Qualquer atividade que não se dirige ao útil, e, por outro lado, é suscetível de educação, de aperfeiçoamento, de desenvolvimento, está relacionada com esse tipo simplificado de dança. Por consequência todas as artes podem ser consideradas como casos especiais dessa ideia geral, já que todas as artes, por definição, têm alguma forma de ação, ação que produz a obra ou que a deixa se manifestar.

Um poema, por exemplo, é ação, porque só é um poema no instante da sua declamação: o poema é portanto somente em ato. Este ato, como a dança, tem por finalidade criar um estado do espírito; esse ato se dá as suas próprias leis; através dele cria-se também um tempo e uma medida de tempo que lhe convêm e lhe é essencial: não se pode distingui-lo de sua forma de duração. Começar a dizer os versos é entrar em uma dança verbal.

Considere também um virtuoso no trabalho, um violinista, um pianista. Olhe apenas para as mãos dele. Tapem os seus ouvidos, se quiserem. Mas só olhem aquelas mãos. Vê-las agir e correr sobre o palco estreito oferecido pelas teclas do piano. Não são essas mãos também bailarinas que foram submetidos por anos a uma estrita disciplina, a exercícios sem fim?

Gostaria de lembrar que vocês não estão escutando nada. Você só vê as mãos que vêm e vão, se fixam em um ponto, se cruzam, por vezes, brincam de pular carniça; às vezes uma espera, enquanto os cinco dedos da outra parecem buscar seu ritmo na outra ponta da pista de marfim e ébano. Vocês passam a suspeitar que tudo isso está sujeito a certas leis, que todo esse ballet está definido, determinado...

Observem, de passagem, se vocês não ouvem nada e se não conhecem a música que está sendo tocada, então não podem antecipar qual parte da peça musical está sendo executada. O que vocês veem não demostram por nenhum índice o estado de progresso da tarefa do pianista, mas não tenham dúvida de que essa ação na qual ele está envolvido em todos os momentos está sujeita a uma regra bastante complexa, sem dúvida...

Com um pouco mais de atenção vocês encontrariam em tal complexidade algumas restrições à livre circulação das mãos que trabalham e multiplicam-se sobre o piano. O que quer que elas façam, parecem se submeter a algum tipo de organização contínua. Cadência, medida e ritmo se manifestam. Não quero entrar nessas questões, que podem ser bem conhecidas e sem dificuldades na prática, mas que carecem de uma teoria satisfatória, tal como acontece em outras áreas e em todos os assuntos onde a questão do tempo é diretamente envolvida. Será preciso voltar portanto ao que dizia Santo Agostinho.

Mas é fácil de observar como todos os movimentos automáticos, correspondentes a um estado de ser e não a um objetivo figurado e localizado, apresentam um regime periódico: o homem que caminha adota um sistema desta espécie; o distraído que balança o pé ou tamborila os dedos sobre o batente da janela, o homem em profunda reflexão que coça o queixo, etc.

*

Então, ainda um pouco de coragem. Avancemos um pouco mais e distanciemo-nos da ideia imediata e usual que se faz da dança.

Eu disse, anteriormente, que todas as artes são uma variedade de formas de ação e se deixam ser analisados ​​em termos de ação. Considerem um artista em seu trabalho, eliminem os intervalos de descanso ou abandono temporário; vejam-no agir, imobilizar-se, retomar vividamente seu processo.

Suponha que ele seja bem treinado tecnicamente, tão confiante de seus recursos que enquanto vocês o observam ele se torna simplesmente um executante, cujas operações sucessivas tendem a ser feitas em espaços de tempos mensuráveis, isto é, com um certo ritmo. Vocês poderão conceber então que a realização de uma obra de arte, seja uma obra de pintura ou escultura, é ela mesma obra de arte; o objeto material que está tomando forma sob os dedos do artista é apenas um pretexto, o acessório da cena, o tema do ballet.

Esse ponto de vista parece exagerado, talvez? Mas lembrem-se que, para muitos grandes artistas, uma obra nunca está acabada, isto que eles acreditam ser o seu desejo de perfeição e que é talvez uma forma dessa vida interior, que mencionei antes, toda feita de energia e sensibilidade em intercâmbio recíproco e reversível.

Lembrem-se, por outro lado, daquelas construções dos antigos que se elevaram ao ritmo de flauta, cujos mandamentos eram cumpridos a risca por pedreiros e operários.

Eu poderia contar-lhes também a curiosa história que relata o Diário dos irmãos Goncourt,3 acerca de um pintor japonês que veio para Paris e foi convidado por eles para realizar algumas obras em uma pequena reunião de amantes da arte.  

*

Mas é chegada hora de terminar com esta dança de ideias em torno da dança viva. Eu queria mostrar como esta arte, longe de ser um entretenimento frívolo, longe de ser uma especialidade que é limitada a produção de algumas performances para a diversão dos olhos que a contemplam (ou os corpos que dela fazem parte), é simplesmente uma poesia da ação geral dos seres vivos: ela isola e desenvolve, distingue e desenvolve as características essenciais dessa ação, transformando o corpo dançante em um objeto, cujas transformações e sucessão de aspectos, cuja busca dos limites de potência instantânea de ser, fazem necessariamente lembrar à função que o poeta dá à seu espírito, às dificuldades que ele se propõe, as metamorfoses que ele obtém, aos voos que ele busca e que, por vezes até excessivamente, o retiram do solo, da razão, do bom senso e da lógica do senso comum.

O que é uma metáfora, senão uma espécie de pirueta realizada por uma ideia, permitindo assim relacionar diferentes imagens ou nomes? E o que são todos essas figuras que usamos, todos esses meios, tais como rimas, inversões, antíteses, a não ser os usos de todas as possibilidades de linguagem, que nos libera do mundo prático para formar em nós, em nós também, nosso universo particular, um lugar privilegiado da dança espiritual?

*

Eu os libero agora, cansados do discurso, mas ainda mais ansiosos pelo encantamento sensível e pelo prazer sem dor. Eu os deixo liberados para a arte mesma, para a chama, para a ação impetuosa e sutil da Sra. Argentina. Sabem muito bem das maravilhas da invenção e da compreensão que esta grande artista criou a partir da dança espanhola. Quanto a mim, que falou da dança apenas no abstrato – e o fiz de forma excessiva – não posso cansar de dizer o quanto admiro o trabalho de inteligência através do qual Argentina desenvolveu um estilo nobre e profundamente estudado, revitalizando assim um tipo de dança popular, que costuma ser menosprezado com facilidade, especialmente fora de Espanha.

Penso que ela obteve esse resultado magnífico - pois se tratava de salvar uma forma de arte, regenerando sua nobreza e sua potência legítimas - através de uma análise, tanto dos recursos infinitamente refinados desse tipo de arte, como dos seus próprios. Eis o que me toca e me interessa apaixonadamente. Sou um homem que jamais viu oposição entre sensibilidade e inteligência, entre consciência refletida e  seus dados imediatos. Eu saúdo Argentina, enquanto um homem que é encantado com ela exatamente do mesmo modo como gostaria de ser consigo próprio.  

 



1 NT: Conferência apresentada à Université des Annales, 05/03/1936, publicada em VALERY, Paul: Philosophie de la Danse, Oeuvres, Tome I. Paris: Pléiade, 1957, p.1390-1403.

2 NT: Antonia Mercé y Luque (1890-1936), mais conhecida como La Argentina, foi uma dançarina e coreógrafa nascida em Buenos Aires, que se tornou uma das mais importantes inovadoras da dança espanhola no século XX. Valéry assistiu em 1925 sua famosa obra para ballet L’amour Sorcier e a convidou para ilustrar sua palestra na Université des Annales, pouco antes de sua morte precoce, por problemas cardíacos, em 18/07/1936.

3 NT: O Journal des Goncourt (1851-1896), escrito pelos irmãos Edmond (1822-1896) e Jules de Goncourt (1830-1870), é uma crônica da vida cultural, íntima e social da França na segunda metade do século XIX.