Tradução / Translation

7. O Admirável e a Filosofia

7. Wonder and Philosophy

Ute Guzzoni

Tradução de Charles Feitosa

Resumo

O admirar-se é frequentemente caracterizado como a atitude fundamental do filosofar. Mas se olharmos com cuidado então se revela que a admiração não é considerada como a disposição afetiva fundamental do filosofar em geral, mas apenas como o seu pathos de partida. Para aqueles que querem conhecer, parece ser mais importante o esforço de superar o pasmo, através da descoberta das razões e das causas, que fazem do não-entendível algo de entendível. Pode ser que a filosofia comece com o assombrar-se e o maravilhar-se, mas somente para se colocar no caminho de sua superação. Com isso coloca-se a questão, como o pensamento pode assumir a admiração sem avançar automaticamente para sua racionalização?

Palavras-chave | Finitude | arte | conhecimento

Abstract 

Wonder is often characterized as the fundamental attitude of philosophy. But if we look carefully then it is revealed that wonder is not considered as the fundamental affective disposition of philosophic activity in general, but only as its pathos as a starting point. Thus, for those involved in philosophic thinking, it would seem that the effort to overcome wonderment by the discovery of the reasons and causes that make something non-understandable or understandable would be more important to philosophic endeavor. It may be that philosophy begins with marvelment and wonder, but only as an obstacle to be overcome. This raises the question: How can thought assume wonderment without automatically going on to an immediate rationalization of the same?

Keywords | The finite | art | knowledge

Ute Guzzoni (1934) é Professora emérita de Filosofia da Universidade de Freiburg/Alemanha. Publicou diversos ensaios, particularmente em torno da obra de Heidegger e Adorno. Também escreveu varios livros, incluindo Nichts - Bilder und Beispiele (1999), Veränderndes Denken (1985) e Werden zu sich (1963), uma interpretação da Ciência da Lógica de Hegel. Principais temas: espaço, natureza, arte, imagen, filosofia contemporânea, pensamento asiático. 

Ute Guzzoni (1934) is Professor Emerita of Philosophy at the University of Freiburg/Germany. She has published numerous essays, particularly on the work of Heidegger and Adorno. She has also written a number of books, among them, Nichts - Bilder und Beispiele (1999), Veränderndes Denken (1985) and Werden zu sich (1963), an interpretation of Hegel’s Science of Logic. Her main themes are: space, nature, art, the image, contemporary philosophy and asiatic thought.

 


 

O Admirável e a Filosofia1

Ute Guzzoni

Tradução de Charles Feitosa

Desde meu primeiro contato com um texto filosófico, na escola até hoje, sempre vi como o motor propriamente dito da situação atual da filosofia o admirável em si mesmo. Para mim o decisivo parece ser a capacidade de manter a visão no admirável enquanto tal, quer dizer, sem transformá-lo em algo conhecido e familiar através de justificações ou esclarecimentos. Nos meus cursos e nas minhas publicações procurei trabalhar com o que é íntimo e o que é estranho, com o que é o mesmo e o que é outro, com o universal e o particular, com o que pode ser entendido imediatamente e o que causa admiração, sempre tendo cuidado em não colocá-los em oposição ou dar prioridade aos primeiros em detrimento dos segundos. Para mim sempre foi mais importante fazer filosofia de um modo que pudesse mostrar como o admirável pode trazer à linguagem isso que pertence ao específico, ao particular e ao acidental.

A seguir gostaria de compartilhar o modo exato como compreendo a questão filosófica acerca do admirável, em que medida essa questão não foi colocada, ou melhor, não foi sustentada na tradição ocidental do pensamento e como se apresenta para mim o caminho de um reconhecimento da admirabilidade do admirável. Minhas reflexões serão divididas em três partes.

I.

Kant, nas suas reflexões sobre a metafisica de Baumgarten, mencionou uma vez a possibilidade de tentar apreender os acontecimentos, as coisas e nossos encontros com elas, não mais como causados por princípios verdadeiros e eternos, mas em si mesmos, no seu admirável ser sempre e de cada vez si próprios. Um pouco ludicamente ele coloca a questão se as coisas reais não poderiam ser vistas como luzes na escuridão [Lichter in der Finsternis], ao invés de tratá-las, como ele mesmo faz, como pedaços extraídos de uma realidade única e total. Todas as coisas iriam então diferenciar-se em função de sua luz, como se “surgissem originariamente a partir das trevas” (Kant, 1928, Bd. XVIII: p. 139). Quando Kant fala assim, ele está muito mais preocupado com a busca de conhecimento e de produção da realidade. Entretanto, para mim, a imagem da possibilidade contrária que Kant apresenta – luzes, brilhando na escuridão e a partir da escuridão, chegando aqui e agora de lugar nenhum – essa imagem é capaz de expressar de modo especial o caráter de admirabilidade do admirável.

O admirar-se [Erstaunen] e o maravilhar-se [Sich-wundern]– e não faço nenhuma distinção entre ambos, assim como não faço entre o surpreender-se [Staunen] e o admirar-se [Erstaunen] – enfim, o admirar-se é frequentemente caracterizado como a atitude fundamental do filosofar. Costuma-se citar como referência para essa determinação uma passagem do diálogo Teeteto de Platão e uma observação de Aristóteles no contexto de seu exame do caráter da sophia, que ele compreende como a investigação das causas primeiras e das causas finais. Mas se olharmos com cuidado a admiração nas duas passagens, então se revela que essa não é considerada como a disposição afetiva fundamental do filosofar em geral, mas apenas como o seu pathos de partida. Para aqueles que querem conhecer, parece ser mais importante o esforço de superar o pasmo, através das descobertas das razões e das causas, que fazem do não-entendível algo de entendível. A disposição para admirar-se comprova-se como apenas aparente, já que ela própria deve passar.

O pathos próprio da filosofia ocidental consiste em não deixar nada como algo admirável, mas progredir sempre na direção de conhecimentos e princípios cada vez mais profundos e amplos, tornado isso o que causa a admiração inválida e enfraquecida. Pode ser que a filosofia comece com o assombrar-se e maravilhar-se, mas somente para se colocar no caminho de sua superação. O que aparece imediatamente como algo incompreensível vai ser explicado e esclarecido, na medida em que são acrescentados fatos lógicos e empíricos necessários para sua compreensão, ou na medida em que são examinadas as condições de possibilidade de seu ser. Especialmente Aristóteles, quando enfatiza que a admiração é provocada pelo não-saber e que a filosofia começa com admiração, isso significa que ela começa como uma fuga ou evasão do não-saber. Nós nos admiramos que algo seja do jeito que é somente durante o tempo que não sabemos porque é assim. Por isso esse admirar-se transforma-se imediatamente em um fundamentar ou justificar [Begründen], quer dizer, uma investigação sobre causas e razões.

Claramente essa atitude pressupõe em ultima instância a crença que todos os entes possam ser explicados e esclarecidos. Desde os seus primórdios o pensamento tradicional é marcado pela consciência de que o mundo em geral pode ser conceitualizado, quer dizer, se algo é, então seu ser e sua estrutura fundamental pode ser apreendido de maneira racional. Dito de outra maneira: tudo se passa como se em todos os entes houvesse uma verdade que lhes serve de base ou fundamento. Pantes anthropoi tou eidenai oregontai physei: “todos os homens aspiram naturalmente a buscar sabedoria” – assim começa o Primeiro Livro da Metafísica de Aristóteles. Somente na modernidade aparece em alto e bom som o pensamento inquietante de que essa aspiração poderia fracassar. Mesmo assim desde a modernidade até o presente reina ainda uma tendência implícita de que o pensamento é capaz de apresentar razões inatacáveis ou condições transcendentais, de modo que a ciência e o conhecimento possam ser fundados epistemologicamente.

Evidentemente que na era pós-hegeliana houve uma crise na pretensão de um saber e de uma fundamentação absoluta, quer dizer, no convencimento de que existe uma racionalidade ou justificabilidade universais do ente. É verdade que há ainda em nosso século diversas tentativas, dignas de nota, de fundamentação e compreensão racional dos entes – como, por exemplo, a fenomenologia de Husserl, o materialismo dialético ou a teoria dos sistemas, mas a essas tentativas opõem-se uma numerosa lista de esforços para evitar um pensamento que trabalhe reduzindo seu objeto a uma identidade integradora e generalizante (todos esses em consequência às reflexões de Nietzsche, Kierkegard e do jovem Marx). Mesmo que a filosofia ocidental seja no seu mais íntimo um pensamento histórico, quer dizer, não possa abandonar de vez o diálogo com a tradição, – sem falar de que os textos da ontologia antiga causam ainda uma grande fascinação – mesmo assim a filosofia tem trilhado agora um caminho em que quer ter em vista e refletir também sobre o particular e o cotidiano, o acidental e o finito, o irracional e o contraditório enquanto tais.

Com isso coloca-se a questão, como é possível um pensamento do finito, que não perca a sua finitude própria, mas que continue a ser filosofia? Como o pensamento pode encarar a admiração sem avançar automaticamente para sua racionalização? Não somos condenados no momento mesmo em que nos voltamos filosoficamente para o admirável, a perdê-lo de vista, quer dizer, jogarmos-nos contra ele, na medida em que nós o pensamos, quer dizer, ao mesmo tempo tentamos torná-lo compreensível? Ou, perguntando do ponto de vista do admirável, podemos dizer de algo que ele tem algo nele mesmo que causa admiração, não apenas de forma passageira, ou porque o entendimento humano é limitado, mas sim porque ele é o que é, e assim, para pensá-lo é necessário abrir-se para essa admirabilidade, trazer à expressão ou expor sua essência e modo específico de ser.

Esse questionamento torna-se ainda mais agudo através de um outro momento, momento este decisivo na relação entre o admirável e a filosofia. Olhemos com mais cuidado os exemplos que Platão e Aristóteles dão para o assombro desencadeador da filosofia e então veremos algo de intrigante. Isso o que deve provocar espanto, não são nunca os temas que Platão e Aristóteles consideram como os desafios e tarefas mais originais para o questionamento filosófico. O problema matemático da relatividade das relações de grandeza, que Sócrates apresenta a Teeteto, as propriedades e o surgimento dos corpos celestes, o mecanismo das marionetes, invisível para os espectadores, que Aristóteles cita como exemplos de coisas que causam admiração, são, pelo menos enquanto permanecem fenômenos inexplicáveis, realmente questões espantosas. Mas são questões que realmente dizem respeito à filosofia?

Se o filosofar tem mesmo algo a ver com o admirar-se, então tem que ser demonstrado que no ser mesmo dos entes reina uma certa admirabilidade. A questão, que exige uma tão radical capacidade de assombrar-se, pode ser resumida em uma formulação famosa da tradição: Porque as coisas são e não antes o nada­? [Warum ist überhaupt etwas und nicht vielmehr nichts?] No olhar admirado já é tomada a posição aparentemente evidente e inquestionável de que tudo o que é em geral, é. O ímpeto ontológico do pensamento ocidental, a questão pelo ser, surge de tornar questionável essa evidência, a saber, que o ente é ao invés de não ser, e isso significa dizer também, que não é nada.

Mais ainda decisivamente do que antes essa questão determina apenas o ponto de partida do pensamento. O admirar-se acerca do fato de que algo seja e seja de tal modo como é, transforma-se rapidamente na questão, porque algo é. Nessa questão, a busca pelas razões primeiras e princípios dos entes, na medida em que eles são, supõe uma pré-decisão significativa, que impregnou todo o pensamento metafísico ao menos desde Aristóteles. Muito mais inevitável parece-me ser a dúvida se a filosofia pode mesmo corresponder a uma experiência daquela admiração radical, pois na medida em que ela coloca a questão pelo porquê, ela já se joga no caminho da racionalização e por consequência na suspensão da admiração abrangente.

II.

Quando chamamos algo como admirável ou também estranho, algo que causa espanto e admiração, que nos maravilha, isso significa que esse algo nos chama atenção, por que aparece diferentemente do esperado, porque não podemos reduzi-lo ao que é conhecido ou familiar. Esse algo escapa do caminho habitual do entendimento, parece às vezes até refutá-lo. Nós nos assombramos, porque o que encontramos diante de nós não é da nossa confiança, porque talvez desse algo emane uma certa força própria que faz calar nossa capacidade de sempre entender tudo. Entre o admirável e aquele que se admira não há nenhuma ponte ou ligação de sabedoria ou intimidade. Da mesma maneira o admirável nos concerne enquanto um outro que nos toca, na medida em que nós não podemos ordená-lo no que já é conhecido. O admirável não é entretanto simplesmente um inabitual ou estranho absoluto, mas algo cuja estranheza chama a nossa atenção e tem algo a nos dizer.

Como estranho e como outro experimentamos o admirável antes de tudo quando levamos a sério a já mencionada radicalização do admirar-se. Quando se trata de um efetiva admiração filosófica, que não se assombra com qualquer coisa, mas com o simples fato de que isto que é, seja, e seja do modo como é. Esse assombro radical do ente pode também ser denominado de heterogeneidade originária do ente.

O admirável outro encontra-se em um espaço negativo, que interdita ou impossibilita sua apropriação. Habitualmente nos encontramos já sempre em um espaço de interpretação. Experiências históricas, determinações categoriais, relações lógicas de sobre- ou sub-ordenação, pré-conhecimentos sistemáticos e científicos determinam nosso ser no mundo cotidiano e nosso ser junto às coisas. O campo em que nos movimentamos, já está sempre atravessado por um feixe denso do que já é sabido ou pré-compreendido. O mundo, na qual vivemos cotidianamente, é fundamentalmente um mundo de confiança (íntimo), um mundo que se entende por si próprio.

Uma filosofia que queira deixar se envolver pela assombrosa alteridade do que encontramos no mundo, tem que enfrentar essa evidência e colocá-la em xeque. Para essa outra filosofia não importa mais fazer da admiração apenas um ponto de partida, mas muito mais conquistar e suportar a admirabilidade disso que é. Que o ente seja admirável significa então que ele resiste à identificação através do conceito, que ele é de outro jeito, do que a razão humana supõe e que nosso pré-saber cotidiano lhe atribui.

Se o pensar quiser permanecer diante dessa espantosa alteridade do que é, e assim mesmo quer permanecer um pensar, então ele se movimenta entre Scylla e Charybdis: de um lado não deve ser mais científico no sentido tradicional, quer dizer, abstrato, conceitual, racionalizante, redutor. Por outro lado, enquanto filosofia, não pode simplesmente falar de modo empírico e acumular saber de qualquer modo.

A admiração surge de uma decisão fundamental daquele que filosofa, de não absorver as coisas que o encontram, mas conservar uma certa abertura e disponibilidade, para aceitá-las como sem razão, sem fundamento, ou sem justificativa. Heidegger nomeava essa relação com o admirável com uma palavra que foi muitas vezes mal intepretada: Gelassenheit [serenidade]. Adorno chamava de um “demorado e não violento olhar sobre o objeto”, a atenção para as coisas, um achegar-se nelas, um aconchegar-se na questão, isto é, a concentração lúcida e paciente para com o ente enquanto algo que causa assombro, quer dizer como algo que tem seu ser-outro preservado.

Podemos caracterizar esse pensamento também como um pensamento indireto ou análogo, ou ainda em um sentido específico, como um pensar e dizer imagético-figurativo [bildhaftes Denken und Sprechen]. As imagens linguísticas repetem seus respectivos objetos em uma outra forma sensível, elas os pintam com tintas, dão uma sensação pensada [Denkempfindung] deles, evocam sua evidência, sem se aproximar em demasia deles. Nesse sentido escreveu Peter Szondi sobre o modo como Benjamin tratavam as figuras de linguagem: “A linguagem das imagens permite entender o estrangeiro, estranho, sem que este deixe de ser estranho ou estrangeiro” (Benjamin, 1992: p. 93).

O modo direto da linguagem, isto é, o modo cientifico, é o enunciado [Aussage]. De modo bem simplificado, ela expressa algo sobre ou de algo, ela determina o sujeito, na medida em que lhe atribui um predicado ou lhe acrescenta um ou mais objetos. Através dos enunciados determinantes isso o que está em questão é fixado, identificado, determinado, – o que em nosso contexto também significa: ele perde sua capacidade de provocar admiração. O discurso filosófico indireto, ao contrário, não determina seu objeto, mas o circunscreve – fala em redor de, com cuidado. Ele o reproduz na medida em que narra, traz à expressão, expõe, desenha e torna nítido. Nesse sentido na medida em que não é mais um pensamento generalizante de ser, ele é em si mesmo negativo, e de outro lado, ele não é mais conceitual, mas imagético ou figurativo. É um pensar ou falar que é capaz de se movimentar nos interstícios e intervalos, que pode deixar aberto e permitir o que se mostra como lacuna, irracionalidade ou ruptura. E que procura se aproximar das suas questões através de analogias e imagens.

Muitos textos filosóficos do século XX narram, pintam imagens pensantes, por exemplo, textos de Benjamin, Bloch, Barthes, Jabès, Flusser, Sloterdijk e muitos outros. Eles tomam emprestado algo da sensibilidade, da imaginação, da experiência afinada de cada vez de outro modo. Esses filósofos não se mantêm no campo herdado da pura racionalidade ou conceitualidade, por que eles perceberam que isso que é não é apenas e nem de modo primordial racional ou conceitual. Na sua auto-compreensão realiza-se uma mudança fundamental que torna inválida ou inócua a simples classificação diferenciadora entre poesia e filosofia.

Algo é. O que é? Um domingo, um pensamento, um gesto do qual me lembro, uma ação de guerra da qual ouço falar, um carro que passa por perto, um aroma sedutor. Algo é. Nunca isso que é, é apenas um algo, mas sempre infinitamente muito e múltiplo. Tudo o que é, é. Não estamos apenas acostumados com isso. Nós nem percebemos isso enquanto tal. Nós mesmos somos já sempre – antes de prestar qualquer atenção expressiva – cercados da suposição, de que é e é como é. Admirar-se com isso, significa, suspender o ser e o comportar-se habituais e assumir um golpe de vista filosófico. Para esse outro olhar, isso o que é, é de outro jeito. Não apenas de outra maneira que antes, mas de um outro jeito em si mesmo, ou em todo caso, de outro jeito do que o olhar cotidiano pretende, de outra maneira do que o esquema, em que esse olhar habitual se absorve. O olhar filosófico é portanto um olhar de estranhamento, na medida em que acolhe as coisas e os acontecimentos em sua estranheza como algo que lhe pertence essencialmente, como próprio. O olhar filosófico deixa as luzes serem, que brilham da e na escuridão; entes, que vêm do nada. Ele os tematiza de tal forma, que nada seja projetado neles que não seja o que e o como deles mesmos.

III.

O admirável e a filosofia. A filosofia ocidental esteve desde sempre interessada em refletir como e o que isto que é, é; quer dizer, de cada vez realizar novos passos na direção da articulação de um entendimento humano do mundo e de si mesmo. Já mostrei que no momento atual ela não mais pretende uma elaboração sistemática da estrutura apriorística do ser dos entes ou das condições de possibilidade de sua cognoscibilidade. Não obstante continuam vigorando os mesmos temas que já há dois mil anos intrigam os filósofos – às vezes mais, às vezes menos – tais como o ser-outro, a diferença, a transitoriedade, o espaço, o tempo, o ser com os outros, as coisas, a história, a linguagem, a morte, o ser e o nada, etc. Penso que esses são objetos originários da filosofia, porque eles nomeiam experiências fundamentais do modo humano de ser no mundo e do próprio mundo, no qual vivemos.

A filosofia também às vezes se orienta para essas questões universais, mas de um modo em que ela os detecta e os examina em campos problemáticos específicos, como por exemplo, em relação ao agir político, as mudanças tecnológicas do mundo, a realidade mediática, a diferença sexual, o diálogo entre culturas, etc. Mas a filosofia não toma essas especificidades por causa de exigências ou pretensões, quer dizer, não porque ela tenta se tornar atual ou contemporânea, ou ainda não porque ela pretenda oferecer indicações do modo como devemos ou não agir. Em relação a uma utilidade cotidiana, a filosofia, assim como a arte, não pode oferecer nenhuma contribuição. Por exemplo, para a filosofia não importa uma instituição de novos valores (como Nietzsche queria), ou recuperar valores antigos, como alguns políticos ou oradores domingueiros querem acreditar hoje. Da mesma maneira esse enfrentamento filosófico da questão acerca do caráter de admirabilidade do admirável não traz imediatamente nenhum sentido prático. Mas ele constitui, como toda filosofia séria, e como, por exemplo, o poetar, o pintar, o compor, uma dimensão essencial do modo humano de ser. Uma época histórica, que não seja capaz de reconhecer o agir, que não busca utilidade do pensamento e o projetar e formar artístico no seu ser social, teria se tornado lamentavelmente pobre, apenas para dizer o mínimo.

Na última parte das minhas reflexões quero aprofundar a investigação sobre a admirabilidade do admirável recorrendo a alguns exemplos da pintura e da poesia. Se inspirar a partir do outro, mesmo que não tenha uma origem filosófica, escolher imagens estranhas para expressar o que é próprio, faz parte desse pensamento imagético e indireto da qual falei antes. Sem dúvida a antiga sabedoria zen e a poesia dos haikais que vou mencionar em primeiro lugar, não são filosofia no sentido usual da palavra. Contudo podemos começar algo com elas. Com toda cautela podemos através de suas expressões e experiências tornar evidente a nadidade ou a negatividade, o ser-outro, diferente, alterado da admirabilidade do admirável, isso que um pensamento enunciador e determinativo recusa-se a fazer.

Pois enquanto a filosofia e a atitude espiritual ocidentais se concentram com toda energia do pensamento no ser, na fundamentabilidade e no significado, o pensamento oriental, especialmente, o zen-budista, procura libertar-se do sentido e da predicação. O espaço da nadidade é para o pensamento zen tão evidente como o espaço da experiência de mundo e de si, conquistado através de um intensivo esforço espiritual.  Em nenhum outro lugar como no haikai japonês a admirabilidade disso que de cada vez é e não é, encontrou um lugar tão digno, seguro e ao mesmo tempo tão frágil.

Para começar, gostaria de citar um antigo livro zen do século XIII, que se chama Bi-yän-lu ou ”Manuscrito da escarpa de esmeraldas” [Niederschrift von der smaragdenen Felswand]. Aqui um dos assim chamados exemplos: “Neve jaz sobre pétalas de flores na margem do rio, díficil diferenciar onde esta começa e aquelas terminam”. O sentido dessa observação se decifra em conexão com o exemplo mesmo. Uma vez o mestre Ba-ling foi perguntado pelo sentido da verdade em uma antiga escola budista e respondeu: “sobre a tigela prateada junta-se a neve” (BI-YÄN-LU, 1998: p. 251). O branco da neve que encobre as cores e formas sobre as pétalas das rosas, assim como o branco da tigela prateada, aponta na direção de uma retirada do expressivo e do delimitado para amplo e vazio espaço do indizível e do invisível, onde tudo é singular, mutável e transitório. Yüan-wu, o autor do manuscrito, fala da região da coloração única e igual, onde um tal aforisma encontra sua morada.

A resposta “sobre a tigela prateada junta-se a neve” parece falar de uma coisa bem diferente do que foi perguntado. Mas trata-se de um falar indireto, que deixa um espaço livre para o singularmente admirável enquanto tal. Assim como às vezes podemos captar com mais precisão algo que se olha de soslaio, a atenção flutuante pode oferecer a possibilidade de um mergulho no inesperado, assim como o deixar as coisas passarem diante de nós mesmos permite às vezes uma descoberta rara. Da mesma forma a resposta, na região da coloração única e igual, acerta o alvo, na medida em que é capaz de guiar uma experiência de admiração para uma abertura fundamental.

O tradutor alemão da obra, Wilhelm Gundert, enfatiza, em seu comentário, que nesse exemplo é tratado “o ponto central do esforço zen, a saber, a tarefa de tornar acessível ao olho, ao ouvido e às mãos, isso que é maximamente inacessível... Trata-se da questão: existe uma possibilidade, de adaptar o dizer ao indizível, de modo que nele o indizível possa se tornar audível?” (BI-YÄN-LU, 1998: p. 258). Essa questão corresponde ao problema da possibilidade de pensar o admirável enquanto tal. Não será talvez isso que está em jogo na imagem da neve, que jaz sobre a tigela?

Em seguida vou ler um haikai do conhecido poeta japones Bashô:

Primeira neve -

Ela cai

Sobre a ponte semiacabada.

Uma ponte semiacabada, sobre a qual a primeira neve cai leve e cuidadosamente. O que ainda não está pronto, o que é faltoso, defeituoso, humilde, pequeno, é especialmente apropriado para transferir visibilidade ao espaço vazio e invisível a partir do qual as coisas que encontramos aparecem. O que não está pronto aponta, indica para além de si mesmo, deixa aberto. Da mesma maneira uma construção interrompida ou inacabada pode significar uma certa aspereza ou até violência. Mas então isso se acalma e se tranquiliza através da neve macia que se acumula sobre ela. O manso cair da neve doa visibilidade ao espaço e o preenche também de uma leve sonoridade, presenteia à ponte semi-inacabada um surpreendente e admirável estado de ser que chega [Angekommensein], que pré-voa por todo tornar acabado ou não tornar acabado. A disposição afetiva da experiência de um tal ser pronto no seu não acabamento é um alegria tranquila, despreocupada e admirável.

E ainda mais um exemplo: No meu livro sobre o nada,2 introduzi algumas imagens em verniz, dentre as quais gostaria de mostrar uma hoje: O lado interior da tampa de um recipiente para guardar instrumentos de escrita, oriundo da segunda metade no século XIX.

Detalhe de uma caixa para instrumentos de escrita, Shunshô, 2ª metade do Século XIX (Museum für Ostasiatische Kunst da cidade de Köln).

Em uma pairante leveza é firmemente descrito o momento de um acontecimento natural. Através de diagonais, que se entrecruzam, através de movimentos antagônicos, através de surpreendentes relações de grandeza, através do contraste da disseminação de ouro e prata, através da indicação de uma grande paisagem e de coisas mínimas. A contraposição da lua tranquila e da grama em movimento, separadas e ligadas através dos gansos selvagens que chegam voando no contravento, tudo isso articula uma constelação admirável, na qual o nada é transformado em algo poético.

As coisas naturais da paisagem são retiradas da sua habitual inaparência e trazidas à tona, para os olhos, mas de um modo em que elas só se mostram a si mesmas, e mesmo assim recolhem e concentram em si a impressão de uma totalidade indizível. As delimitações as quais estamos acostumados não são encontradas, céu e terra, grande e pequeno, distante e próximo, imóvel e móvel, estão em jogo um com o outro e propiciam um espaço aberto da admirabilidade. Nesse espaço reina um fascinante e maravilhoso comparecimento de indiferença e de diferença entre um e outro.

Gostaria de dar mais dois outros exemplos, um antigo e outro recente do nosso ocidente. A admiração está na solidão própria de seu ser outro, apesar de todas alusões que se possam fazer com ele. O pensamento que quer corresponder ou reproduzir isso, nos leva para o co-pertencimento entre ser e não-ser. Da mesma maneira que era importante para a filosofia moderna ter certeza e segurança das coisas, é importante para um pensamento da admiração a abertura, sinceridade e fraqueza, que ele aprende a se permitir. Esse pensamento experimenta essa abertura tanto como o espaço de chegada do nada, como o de uma despedida em direção ao nada. Para tornar isso visível quero mostrar um quadro de Magritte, que tem o título ”A Ponte de Heráclito” [Le pont d’Héraclite].

A Ponte de Heráclito (1935), René Magritte.

O emaranhado de visível e invisível é evidente: a ponte vai até ao nada, embora seu reflexo traia sua totalidade. Se estivéssemos realmente diante da ponte, provavelmente não perceberíamos seu estado de metade, porque nossa consciência iria completar a lacuna da percepção sem grandes questionamentos. A visibilidade aparente engana. Mas isso é uma negação dupla. Os olhos não mostram talvez realmente – em todo caso simultaneamente – como o fenômeno é? Um feixe de céu e ponte, de nada e ser, enfim, uma realidade deslocada para o admirável?

E finalmente uma outra imagem, que mostra um jovem, que se joga das colunas de Hércules por sobre o mar, uma imagem que evoca o limite do saber humano possível e a morte. Ela se encontra na face interna da tampa de um túmulo grego (com influências etruscas e itálicas), em Paestum, mais ou menos da mesma época do poema de Parmênides ou das odes de Píndaro.

http://www.civita.it/content/download/113480/816590/file/Museo%20di%20Paestum_lastra%20del%20tuffatore_copertura%20(15).jpg

Museo di Paestum: um jovem, que se joga das colunas de Hércules.

Face interna da tampa de um túmulo grego.

(http://www.civita.it/servizio/sala_stampa)

 

Aqui se expressa uma dimensão ainda não mencionada do admirar-se diante disso, que algo é e não é, a saber, o maravilhamento a respeito do que nós mesmos somos, o que pode significar, que nós em algum momento não seremos. Falei antes da despedida em direção ao nada. Um tal partir é o morrer, que no manuscrito Bi-yän-lu é chamado de “adentrar ao silêncio” (p. 313). Mesmo quando nossa experiência usual da morte na maior parte das vezes é uma outra, nessa imagem parece-me que o tornar presente da realidade da morte de maneira admirável é apresentado pictoricamente, colocando-nos na soleira entre o ser e o não ser.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Staedtebilder. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1992. 

KANT. Gesämmelte Schriften, v. 18 (Metaphysik), Walter de Gruyter, Berlin & Leipzig, 1928.

BI-YÄN-LU. Meister Yüan-wu's Niederschrift von der smaragdenen Felswand. Trad. Wilhelm Gundert. Hanser Fachbuchverlag, 1998.



1 NT: texto apresentado em palestra realizada a convite do Departamento de Filosofia e de Ciências Sociais da UNIRIO, em 23/05/2001, no Auditório Paulo Freire, CCH - UNIRIO.

2 NT: O livro mencionado é intitulado Nichts. Bilder und Beispiele [O Nada. Imagens e Exemplos], Düsseldorf: 1999.