8. Sobre o Corpo: Uma
Trajetória da Physis ao Corpo Poético
8. Regarding the Body: A Trajectory from Physis to the Poetic Body
Alexandre Ferreira
Eusébio Lobo da Silva
Resumo
O texto a seguir traz uma reflexão sobre a corpo poético, desejo e objeto de pesquisa dos artistas da cena, no entanto para falar sobre ele fez-se necessário o entendimento do conceito de physis e soma, desde os filósofos pré-socráticos até Merleau-Ponty. O artigo é dividido em dois tópicos, o primeiro que traz essa trajetória do conceito de physis e o segundo que estabelece a relação direta com o corpo poético. Neste tópico há uma reflexão que vem ampliar a questão do soma poietikos, onde chegamos à conclusão de que não há um mas vários corpos poéticos que repousam, não sobre o soma, mas sobre a physis. Assim, o artista da cena busca uma physis poietikos, ou seja, corpo como casa e janela, permitindo possibilidades de renascimentos; de saberes, de experiências que se darão e se manifestarão entre os conhecimentos adquiridos e a vida humana, numa relação dialógica entre a Arte e Vida.
Palavras-chave | Physis | soma | corpo poético
Abstract
This essay
presents a reflection on the poetic body, as the desire and object of research
of the scenic artist. However, in order to talk about this, it is necessary to
understand the evolution of concepts of physis and soma
since the pre-socratics to Merleau-Ponty.
The first part of the essay discusses the trajectory of the concept of physis and the
second establishes how this stands in direct relationship with the poetic body.
Our reflections aim to amplify questions regarding the soma poietikos as we reach the conclusion
that there is not just one, but numerous poetic bodies, which are contingent on
the physis
rather than the soma. Thus the scenic
artist searches for a physis poietikos,
where the body can act as home and window, allowing possibilities of rebirths;
a home and window between experimental knowledge to come and knowledge already
acquired in the course of a human life, within the dialogic relation
relationship that exists between Art and Life.
Keywords | Physis | soma | poetic body
Alexandre Ferreira é Professor efetivo e pesquisador do curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Goiás. Bacharel em Educação Física (Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp), Mestre em Anatomia Humana (Instituto de Biologia da Unicamp) e Doutorando em Artes da Cena (Instituto de Artes da Unicamp). Bailarino profissional.
Eusébio Lobo da Silva é Professor Livre Docente do Departamento de Artes Corporais da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisador vinculado ao CNPq. Mestre de Capoeira. Bailarino profissional com honras artísticas.
Alexandre Ferreira is
Associate Professor and researcher in the Undergraduate Program in Dance at the
Federal University in Goiás. He has a degree in Physical Education (Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp), Master's in Human Anatomy (Instituto
de Biologia da Unicamp) and
is currently pursuing a Doctorate in Theatre Arts (Instituto
de Artes da Unicamp). He is a professional dancer.
Eusébio Lobo da Silva
is Full Professor in the Department of Corporal Arts at
the Universidade Estadual
de Campinas and is a CNPq researcher. He is a
Capoeira Master and an award honored professional dancer.
Sobre o Corpo: Uma Trajetória da Physis ao Corpo Poético
Alexandre Ferreira
Eusébio Lobo da Silva
Sobre o corpo
O corpo para o intérprete-criador é um duplo habitar in sito, pois ao mesmo tempo se constitui em sua complexidade biológica e, portanto, o capacita enquanto ser vivo para a existência terrena, e, por complementariedade, é o templo que desenvolve, amplia e complexa essa mesma existência no caminho corporeificado à manifestação da sua Arte. É um misto de especializações que alude desde o micro-corpo (célula) ao macro-corpo (ser) capaz de transcender a barreira do “a olho visto” e adentrar ao interior visível-relembrado e expandir-se para o exterior invisível-imaginado. Neste ponto não se estabelece uma dialética, como se pode pensar à primeira leitura, mas um continnum desdobrar ou desenrolar dessa materialidade humana, em que há regiões constituintes tão pequenas e/ou encobertas por outras, as quais, para se dar continuidade ao conhecimento, são relembradas imageticamente, além de outras regiões que transbordam essa mesma materialidade, constituindo e conectando o indivíduo ao invisível de sua existência, sentida, porém, em carne, ossos e pele.
O corpo do intérprete-criador pode ser discutido por diversas facetas, tais como: o corpo como arte; o corpo como caminho da arte; o corpo biológico modificado pela prática de sua arte; o corpo experiencial na arte; o corpo educado pela arte dentre outros. Então, qual será o caminho destacado desse universo que será discutido neste texto? Será discutido aqui o viés que permite ao intérprete-criador ser um constante, ou ser a busca desse constante “soma poietikos”.
Para chegar aí, observamos a necessidade de traçarmos uma trajetória da physis para desembarcar nessa volição contemporânea de apreensão do soma poietikos e até mesmo para compreender, ao menos em parte, esse fenômeno. Mas antes, esclarecemos o que vem a ser physis: trata-se, etimologicamente, de uma palavra grega utilizada primeiramente para o mundo vegetal, designando o processo de produzir, crescer. No entanto, os filósofos pré-socráticos expandiram esse entendimento da physis para a acepção do Homem, ampliando e aprofundando aspectos relacionados ao seu significado. De acordo com esses filósofos podemos levantar três aspectos interessantes sobre a physis: 1º) Indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se manifesta neste desdobramento, pondo-se no manifesto; 2º) Refere ao conjunto corpo e alma; 3º) Compreende a totalidade de tudo o que é (Kirk; Raven: 1982, p. 30-40).
No primeiro ponto, podemos compreender physis como a gênese, o princípio de tudo o que vem a ser, o que toma forma no mundo. Por esse viés, Heidegger diz que “é o próprio ser, graças ao qual o ente se torna e permanece observável” (Heidegger, 1997: p. 20). No segundo, percebe-se que para os pré-socráticos não havia oposição entre corpo e alma, e ambos faziam parte do humano e da Natureza que o gerava, ou seja, o
ser humano fazia-se nascer do interior da Natureza... fazer nascer o ser humano do interior de si própria, e a idéia da natureza humana estaria perfeitamente integrada à ordem da Natureza e dependente dos desígnios divinos (Silva, 2006: p. 28).
Portanto, havia uma relação de conteúdo entre o indivíduo, o coletivo e o Mundo. Havia a noção de unidade, uma essência que se mantinha presente em tudo que havia sobre a Terra, uma interligação permanente de movimento em si mesmo, atuando para um fim também em si, isto é, o próprio Existir. Os indivíduos existiam em uma relação de fluxo bidirecional entre sua condição humana de gênese natural e a Natureza como o cosmo potencializador do “ser” humano.
Por último, é apreendida em tudo o que acontece desde o germinar de uma planta até a organização social, indicando que o plano cósmico, do qual os deuses também faziam parte, se manifesta nos seres através da unidade “corpo-alma”. O corpo é um microcosmo dentro do macrocosmo: “[...] uma tensão aguda sobre a variedade de relações existentes entre o organismo e o meio ambiente” (Sant’Anna, 2006: p. 6). A physis é, ao mesmo tempo, o que conforma, fazendo crescer em si e a partir de si a própria Natureza, inclusive a humana, estabelecendo uma visão integral do humano e, porque não, integrativa, em que as relações se estabelecem em um mútuo afetar. Dessa forma, o Homem seria um espelho da Natureza, refletindo em si o processo cosmológico da existência tanto terrena quanto de experiência de ser no mundo.
Para Platão a physis continua sendo feita dos elementos naturais (fogo, terra, água e ar). No entanto, esse pensador sugere a oposição entre soma (corpo físico) e psyké (alma). Tal separação se faz dentro de uma concepção polar, porém conectada em fluxo que caminha em direção permanente a um mundo pleno, ao Mundo das Ideias, que era a máxima da permanência, destinada exclusivamente à alma. Ou seja, para Platão,
o que importava verdadeiramente é a realidade do mundo das Ideias, ou antes, a própria Teoria das Ideias que polariza a alma que se move a si mesma de seu próprio interior; a alma é seu próprio princípio de movimento, ela preexiste ao corpo, é imaterial e mortal (cf. Fedro 245d-246a). Já o corpo é movido pela alma e é, ao mesmo tempo, cárcere ou prisão da alma assim como seu túmulo; o corpo é material e mortal.
[...] Por um lado, a alma é congênita ao mundo das Ideias, se
assemelha ao que é divino, imortal, dotado de capacidade de pensar [...], por
outro lado, o corpo equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido
de inteligência (Cardim: 2009, p. 23; 24).
Posteriormente a Platão, Aristóteles dá continuidade ao pensamento da physis como expressão da Natureza. No entanto, vai diferenciar do anterior por dizer que a alma e o corpo estão estritamente conectados a uma realidade natural, não tentando refletir o Mundo das Ideias, mas, o ser e o agir humanos se manifestando na/em essência do pensar e existir. “Para a filosofia aristotélica, a alma deve ser entendida como um princípio vital que é o ato de todo ser vivo” (Cardim: 2009, p. 26). Mais ainda: “a alma é o ato do corpo organizado. [...] se está compreendida na natureza, cabe ao estudioso da natureza estudá-la” (Aristóteles: 2006, p. 403).
Na Idade Média, o cristianismo acha por bem separar definitivamente o Homem da Natureza, passando o primeiro a transcender a segunda, ao mesmo tempo que começa tomar o status de dominador em relação a esta, já que fomos criados à imagem e semelhança de Deus. O que é natural torna-se findável, tem prazo, já o que se conjuga com o Todo Criador deve ser imortal, superior. Desta forma, a Natureza não é eterna e o Homem encontra-se inserido nela e não nasce dela. Nesse período tem-se a redução do conceito de physis, igualando-o ao soma, no qual o corpo torna-se um arcabouço que vai servir de morada da alma, mas ao mesmo tempo é o cárcere, já que o pecado original se dá não pela tentação a alma, mas ao corpo que é fraco e lascivo. O corpo torna-se um material singular, em que cada indivíduo carrega em si o pecado da culpa inata, local onde se manifesta os pecados e provações, conturbando a elevação da alma em direção ao Pai, portanto, devendo ser passível de aflições e restrições, daí nos diz Foucault: “o corpo era o lugar de inscrições dos suplícios, dos castigos, das penas, dos sofrimentos. [...] Era um corpo condenado” (apud Cardim: 2009, p. 127).
O corpo se vulgariza tanto em conceito quanto em substância, deixando evidente sua passividade em relação aos dogmas cristãos, sendo objeto de mazelas, mas, ao mesmo tempo, pertencente ao status de sagrado por ser habitat da alma, tomado por esse viés como um território que jamais poderia ser explorado pelo humano, tanto nos aspectos da vivência no mundo, ou seja, como um ser integrante da Natureza e, portanto, coabitado por processos inerentes à vida terrena, tais como os aspectos fisiológicos e anatômicos, quanto nas relações metaterrenas, aquelas que lidavam com a espiritualidade mais ampla, a alquímica do ser natural. O que acontecia de ruim ao corpo era causa da pressão poderosa da Mão do Todo Criador sobre seus filhos pecadores. Nesse período, o corpo (soma) não é mais o “ser”, mas o “ter”, o templo imperfeito que aprisiona a alma perfeita. Tal condenação era exaltada para que a alma pudesse percorrer o calvário e, assim, purificar-se de sua culpa adonista, ou seja, relativa a Adão, Eva e a Maçã. Tal concepção também tem um caráter de dominatione, em que os escolhidos por Deus e ligados a Igreja Cristã eram os pastores deste rebanho humano, guias dos filhos ao Pai, e isso lhes dava plenos direitos para ditarem as condutas da vida na Terra.
No Renascimento a dicotomia entre corpo e alma se intensifica e a redução da physis a soma também. A Idade Moderna tem seu início, dentre outros fatores, com a contribuição do filosofo francês René Descartes. Para ele, corpo e alma eram imiscíveis, eram substâncias distintas onde a segunda habitava o primeiro imbuindo-o de pensamento, isto era o que diferenciava os humanos dos animais. O corpo passa a ser vislumbrado como uma máquina. No entanto, o corpo-máquina do homem era superior ao dos animais por possuir o sopro espiritual que se manifestava através do pensar, transcendendo a lógica natural e elevando o Homem à categoria daquele capacitado a dominar o mundo.
Descartes aludia ao corpo como a res extensa, a substância presentificada no mundo material, durável e findável, e à alma como res cogitans, dotada da capacidade de pensar e, por isso, em conectividade com o divino. Para ele, a supremacia da alma era tal que essa poderia existir sem o corpo:
[...] de um lado tenho uma ideia clara e distinta de mim mesmo, na medida de que sou apenas uma coisa que pensa e não extensa, e que, do outro, tenho uma ideia distinta do corpo, na medida de que ele é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que esse eu, ou seja, a minha alma, pela qual sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e pode ser ou existir sem ele (Descartes apud Murta, 2006: p. 57).
Outro ponto relevante é a observação, por Descarte, da interioridade da coisa pensante (sujeito) em oposição ao exterior deste (objeto). Aparece, então, a relação dialética entre o observador dominante em relação ao Mundo já que o cogitatio o pertence, sendo capaz de explicar os acontecimentos mundanos por métodos (caminhos sistematizados); e o objeto como matéria de análise presente nos acontecimentos do Mundo. Eles [os métodos] “tornam-se instrumentos que ajudam a representar as coisas de modo adequado, ajudam a controlar cada um dos passos dados e permitem deduzir algo desconhecido de algo conhecido” (Cardim: 2009, p. 30). Nesse período se desenvolve o materialismo experimental em que tudo teria que ser testado e demonstrado por meios eficazes. Por esse viés, os processos corporais podem ser reduzidos e explicados à maneira dos processos que ocorrem nas máquinas, sendo, portanto, sinônimo de extensão mecanicista submetida ao pensamento puro. Fica claro a heterogeneidade entre as substâncias res extensa e res cogitans para Descartes. No entanto, a forma como essa união se estabelecia não estava clara. Mas, uma coisa era sabida, essa conexão se estabelecia por um equivalente de importância e até de permanência. A psyké se sobrepunha ao corpo e, portanto, aos sentidos que, por sua vez, não necessitavam das experiências para se constituir como tal, podendo até existir sem o corpo. Esse, por sua vez, era um atributo secundário da permanência do Homem, concebido por uma substancialização transitória e impermanente em relação à alma, que era seu oposto.
Kant traz um novo olhar sobre a substancialização da alma e do corpo, tirando eles deste lugar e colocando-os na categoria de fenômenos1. O corpo deixa de ser apenas arcabouço e toma lugar nas manifestações do Mundo, se constitui como acontecimento e como tal sua visão hermética torna-se porosa, é um corpo de relatos (experiência). O racionalismo sede lugar a visão empirista, concepção essa que fundamenta nosso conhecimento ou o material com o qual ele é construído, na experiência através dos cinco sentidos (Honderich, 1995: p. 225).
Cabe nesse instante, fazermos uma reflexão sobre o conceito experiência, pois se com o racionalismo e sua visão de métodos o termo experiência torna-se passos realizados pelo Homem como caminhos possíveis de explicar o fenômeno, visto que esse deveria ser decupado em uma lógica sequencial e capaz de ser repetida, exata e novamente do mesmo jeito por outros. O modernismo e sua lógica racionalista convertem a experiência em experimento, em etapas objetivas que se dá fora do ser humano e, portanto, dissociado de seu corpo. Como diz Bondía,
A partir daí o conhecimento já não é um páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um mathema, uma acumulação progressiva de verdades objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao homem (Bondía, 2002: p. 28).
Com o empirismo, que vem tecer críticas duras ao racionalismo, experiência retoma seu lugar de origem, visto que epistemologicamente vem da palavra grega εμπειρισμός. E para os gregos, o corpo era um lugar de complementariedade, uma physis e não um soma, portanto, não havia um fazer experiemento mas passar por um experimento, por uma tentativa que atravessava e afetava o corpo, transformando-o em receptáculo no qual se imprimia os dados do mundo exterior, transmitidos pelos sentidos através da percepção. Para Locke e Berkeley esses dados que imgressam nesse “receptáculo” são as chamadas “ideias”, que Hume denomina de “sensações”. Essas ideias ou sensações constituem a base de todo o conhecimento (Mora, 1982: p. 150). Assim, não se tem mais (apenas) um objeto da experiência mas um sujeito da experiência, “que seria algo com um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (Bondía, 2002: p. 20).
Então, para Kant o corpo e alma não mais poderiam ser tratados como substâncias, pois isso seria a redução de um fenômeno maior, do existir e sua relação como o Mundo. “[...] todo o conhecimento das coisas proveniente só do puro entendimento ou da razão pura não passa de ilusão; só na experiência há verdade” (Kant apud Pascal, 2005: p. 30). O corpo além de empírico é transcendental, é ao mesmo tempo experimentado (objeto) e experienciado (sujeito), é para nós dados anatômicos e fisiológicos que são de ordem orgânica de construção, definidos por processos bioquímicos, mas também, é parte vivente e constituinte das relações de sujeitação. Quero dizer com esse termo uma hibridação, em primeira instância, de dois termos: sujeitar (verbo) e sujeito (substantivo), aquele que é submetido a modificações, as relações dos fenômenos e por elas afetado e, em segunda instância, com ação (verbo), aquele que é submetido a modificações e age sobre essas ao mesmo tempo, provocando movimentos de intencionalidades, portanto de ordem dos fenômenos.
Então, a relação corpo-alma, para Kant, é parte de sua doutrina denominada de idealismo transcendental: “Chamo idealismo transcendental de todos os fenômenos a doutrina segundo a qual nós os consideramos sem exceção simples representações, não coisas em si” (Kant apud Lalande, 1999: p. 50). E se são representações as coisas não são em si, mas são coisas para nós, vista por uma perspectiva de interação ambientesujeito, de conectividade e não de substâncias imiscíveis que são agregadas em escalas de prioridades. Para que o sujeito possa se reconhecer, ele o faz somente tomando status de objeto, portanto, o corpo é um objeto no meio dos outros. No entanto, esse mesmo objeto é reflexivo, podendo se olhar, dando sentido às relações através das experiências, tornando-se sujeito-sensível, formando um sistema de unidade dialógica, e não dialética, pois presume outro entendimento, onde a relação do indivíduo no Mundo não se dá por uma única via linear de observador e observado, mas se dá por diversas fissuras que surgem a partir da ambiguidade inerente do ser-no-mundo, ou seja, não existe sujeito e nem objeto separados do mundo, esse é imanente ao ser que se instala no espaço da existência e reverbera na temporalidade da consciência. No ato da percepção que se torna perspectiva, e, logo, o corpo é fluxo condutor da observação e fluxo de resistência do observado. “Assim, para Kant o corpo toma uma dupla característica: ele é ao mesmo tempo empírico e transcendental” (Cardim, 2009: p. 50).
Percebemos até aqui uma diferença marcante entre Descartes e Kant no que tange a discussão sobre o corpo: para o primeiro a relação corpo/alma é um ambíguo que se manifesta em uma relação dialética, portanto contraditória de uma existência que se caracterizava pela sobreposição da alma sobre o corpo e do fato desta estar no Mundo como um cogitatio manifesto até mesmo independente do sujeito-corpo. Já em Kant essa relação se constrói no Mundo e a partir deste, deixando a ambiguidade e tornando se um duplo corpo-alma, que vai caracterizar um sujeito-objeto-de-experiências.
Merleau-Ponty nos apresenta outra possibilidade da concepção de corpo, onde esse não mais é transcendental como na visão kantiana, ou seja, o mundo não é imante ao sujeito, mas esse é “concebido como transcendência em direção ao Mundo” (Merleau-Ponty, 2006: p. 10). A relação se dá essencialmente pela percepção que vai além da dicotomia sujeito/objeto e também do simples empirismo, se apresenta na relação fenomenológica de facticidade 2 do Homem e o Mundo, portanto, o corpo apresenta-se como mediador da materialidade humana num Mundo que já existia por si mesmo independente do ser-humano, mas que é para nós aquilo que representamos, “não como homens ou como sujeitos empíricos, mas enquanto somos todos uma única luz e enquanto participamos do Uno sem dividi-lo” (p. 8-9). O corpo sensível toma as coisas para ele também, inclusive a si mesmo, como nos diz Husserl:
Compreendido em sua forma espaço-temporal orgânica e em sua relação interna com o viver, o corpo torna-se o lugar da inscrição do sensível. Vem daí o duplo modo de interpretação do corpo, ou antes, o modo duplo com que o corpo originalmente se constitui: ele é ao mesmo tempo coisa física ou matéria e o que experimento nele e sobre ele (Husserl, 2004: p. 60).
Há aí um desdobramento das experiências humanas em factos3 que se relativizam no indivíduo, visto que cada ser é um ser individual e cada consciência se dá pela apreensão dessas experiências, é um mostrar-se por facetas projetadas pela percepção de um todo que se apresenta por estas mesmas facetas, ou seja, por uma essência da Grande Essência, como se fosse um resquício do objeto que se mostra, mas que em sua prima-existência contém todas as características do objeto maior.
Uma das propostas da filosofia de Merleau-Ponty trata-se da suspensão dos prejuízos tradicionais que colocam o sujeito na dicotomia polarizada e excludente, sem mediação, meios ou processos, ou se existe como coisa ou como consciência (cognoscente). O corpo deixa seu status de matéria pobre e de limite enclausurante, de uma fornalha hermética que vai degradando a si mesmo por ser coisa perecível, para ser aquele que limita e abre a experiência: é fronteira, um lugar de tensão permissível, permeável, de troca de experiências e apreensão das mesmas, consumando e consumindo em seus tecidos as relações, impregnando-se de signos e significados que constrói histórias e estórias nos corpo-orgânico e projetando-as aos demais corpos sutis. Isto é, “ficando no seu corpo feito tatuagem [...] também pra perpetuar em tua escrava que você pega, esfrega mas não lava”. Peço licença aqui para transcrever um trecho da música de Chico Buarque, Tatuagem, por perceber que assim se comporta um corpo experienciado, ou seja, o sujeito que é sujeito ao Mundo, mas também é serjeito, um modo de se manifestar particular e dependente, pois ser-no-mundo é para além da relação sentir e responder, mas para sentir, transformar e responder, pluralizando as maneiras de existir,
o corpo humano, no qual tanto o passado mais longínquo quanto o mais próximo de todo o devir orgânico torna-se de novo vivo e corporal, por meio do qual, sobre o qual, no qual e para além do qual parece fluir uma torrente imensa e inaudível: o corpo é um pensamento mais espantoso do que a antiga alma (Nietzsche, 2008).
A junção corpo/alma é, agora, relação corpo-alma que nos fornece consequências capazes de perceber outra relação: a do sujeito e do objeto em conexões orgânicas enquanto organização perceptível em si, porém sempre em relação a alguma coisa. É um corpo referenciado, inscrito em tecidos e sistemas, é corpo próprio em permanência transitória, meio vital da subjetividade, elemento mediador, textura que retorna a si e convém a si mesma, apresentado em carne, sendo carne para Merleau-Ponty:
uma massa interiormente trabalhada definida pela noção de reversibilidade, que, ao fim e ao cabo, é uma verdade última... Há, portanto, a carne das coisas ou a carne do mundo, a qual deve ser descrita como segregação, dimensionalidade, continuação, latência, imbricação (Merleau-Ponty, 1999: p. 150).
Ou seja, o próprio corpo possui em si uma propriedade primordial, que se instaura no tempo e espaço enquanto consequência do agora, vagueando pelo passado, se presentificando e indo em direção ao futuro sendo, o indivíduo também uma dimensão universal, aquilo que é presente aqui e acolá independente da vontade. O corpo, assim como o Mundo, é imanente para si, existindo sem a fruição do pensamento enquanto matéria, portanto, se a alma também pode existir sem o corpo, esse mesmo pode existir sem cognoscência, mas talvez não mais da mesma forma ou nos mesmos padrões, mas sim, em impermanência, em uma mutabilidade de categorias filogênicas, assumindo para si características animalescas de comportamento tanto físicas quanto psíquicas, mas que não deixa de ser um sujeito diante da Natureza, mas não mais o mesmo que se apresenta para mim ou para o outro, mas aquele possível de ser habitado e dar continuação a vida deste mesmo indivíduo na Terra. Há, por assim dizer, uma relativização do corpo diante da matéria, vida e espírito, ou seja:
em relação à matéria ou plano físico, o corpo é considerado
como uma “massa de compostos químicos em interação. Em relação à biologia ou
plano da vida, o corpo é a dialética do vivente e de seu meio. Em relação à
psicologia ou plano do espírito, esse é a dialética do sujeito social e de seu
grupo, e mesmo todos nossos hábitos são um corpo impalpável para o eu de cada
instante (Merleau-Ponty, 2006: p. 325).
Assim a corporificação do corpo próprio, ou seja, a presença do indivíduo enquanto organismo (coisa) e subjetividade (sujeito) é do campo do ser; é um acontecimento que existe enquanto materialidade no espaço e no tempo; é um preencher para então passar a existência factual e, logo, do conhecimento experienciado ou do fenômeno. Isto nos leva a entender que o corpo organismo existe por si mesmo como presença em um meio favorável, logo o corpo físico pré-existe ao conhecimento do Homem, já que antes de se constituir uma relação corpo-alma, há no Mundo um conhecimento que não está em mim, mas nesse mesmo Mundo, e que para se consolidar em mim ou ser para mim é necessário que eu nasça na concretude orgânica, na existência molecular organizada em sistemas que irão compactuar na manutenção da vida humana.
Agora o próprio corpo é corpo próprio, “meio vital da subjetividade, ele é o elemento mediador graças ao qual o sujeito mantém um comércio originário com o mundo, com as coisas, com as outras pessoas e com ele mesmo” (Cardim, 2009: p. 87). É corpo habitado em essências, transmutado em estados de atenções reflexivas pela própria condição do existir, pela premissa da vida que é o cobrar em ATP (adenosina-trifosfato)4 aquilo que é tanto da coisa quanto da subjetividade, é um corpo encarnado5 em aspectos bio-psico-dinâmicos.
Do corpo ao corpo poético
Neste ponto iremos tratar daquilo que chamamos de corpo poético, dessa trans-substancialização biosubjetiva6 que permite ao intérprete-criador se deslocar do estado de estar para um de ser, uma vibração fisiológica que permite através de seus processos uma subjetivação em ondas de propagação que conectará o artista consigo mesmo e com o seu derredor, ondas de cor (preenchimento, texto intrínseco criado e manipulado pelo próprio artista) e desejos que fazem da execução um caminho possível de demonstração de algo maior do que simplesmente um corpo móvel, mas um corpo mobilizador de perspectivas aparentes sentidas na carne merlo-pontyana.
Ser poética é se colocar em poiein que significa eclodir; é apreender estruturas através de caminhos que serão impregnadas na materialidade e poderão ser acionadas face à necessidade do artista. Visto que, o artista do corpo é arte mediante ao desejo de transpor a barreira do mundo e colocar-se em conexão porosa com o mesmo, permitindo ser um catalisador de si, para si, dos desejos seus e de outros, vistos a sua perspectiva, portanto, buscar ser um todo em extensão. Assim como “as fábulas devem apresentar uma extensão tal que a memória possa também facilmente retê-las” (Aristóteles, 2010: p. 403), o corpo poético também deve se apresentar em extensão que provocará no espectador um momento estético. Tem-se aqui não o conceito estético realista apresentado por Aristóteles no seu livro A Arte Poética que afirma que “o belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem” (2010: p. 39).
Nas visões clássicas a Estética era definida como a
Filosofia do Belo, e o Belo era uma propriedade do objeto, propriedade que, no
objeto e como modo do ser, era captado e estudado (Suassuna, 2009: p. 21). No
entanto, o Belo não é característica onipotente do campo da Estética, mas
outras categorias foram, ao longo do tempo, percebidas e legitimadas como
partes desse todo. Edgar De Bruyne nos coloca a par
dessa questão no trecho a seguir:
A arte não produz unicamente o Belo, mas também o feio, o horrível, o monstruoso. Existem obras-primas que representam assuntos horríveis, máscaras terrificantes, pesadelos que enlouquecem. Será que é o mesmo o prazer que sentimos diante de Goya e Ingres, ante os fetiches congoleses e os torsos gregos do período clássico, ante o Partenon e os templos hindus? Será que são os mesmos, por um lado, o prazer do Trágico e do Sublime, misturados de sentimentos desagradáveis, e, por outro, o prazer sereno e harmonioso que nos causa o Belo puro? E sobretudo, com que direito tomamos nós, como unidade de medida em nossas apreciações da Arte universal, aquilo que nós, europeus ocidentais do século XX, consideramos como belo? (Bruyne, 1930: p. 41).
Dessa forma, aquilo que recai o estético, seja ele objeto ou sujeito, não se dá apenas no Belo, em um sentido aristotélico de proporções e grandezas, de ordem e equilíbrio. Não se trata de uma questão puramente realista compactuada entre os corpos, em escalas de dimensões agradáveis aos olhos. Pois tomar apenas como Belo, não é somente negar a existência do Feio como tal, mas também, toda e qualquer forma que se agrega da mistura entre esses vivendo no ínterim, é desprezar a diversidade. Mas colocar a conexão objetiva e subjetiva em mescla de sensações que nos causa o arrebatamento, nos pega pela mão, coração e sistema límbico, fazendo nos parecer pactuadores daquilo, nem que for à distância e por instante, é se dar naquilo que nos atravessa permitindo uma experiência única cravada no Tempo.
Esse momento estético a que nos referimos, se aproxima da visão Kantiana da Estética, onde na Crítica da Razão Pura nos diz:
Para discernir se uma coisa é bela ou não, nós não relacionamos a representação a seu objeto, mediante o entendimento, para o conhecer, mas ao sujeito e ao sentimento de prazer ou desprazer que ele experimenta, mediante a imaginação, aliada, talvez, ao entendimento (Kant, 1951: p. 60).
Assim, esse momento está no escambo que se realiza dentro do espírito do contemplado. Aqui, pode-se perguntar: mas então esse momento estético não é universal, é puramente particular, pertence somente aquele que se realiza nesse instante como receptor?
Devemos dizer que isso é uma questão mortuária para os intérpretes-criadores, pois como si fazer em momento estético que não seja individualizado, que não seja apenas sensação de um ou de outro, que seja unânime (se é que existe tal consequência). Lembrando que existe algo que é comum a todo ser humano: a sua organização biológica, que nos dá áreas funcionais de percepção também comuns. Por conseguinte, apreensão nos é vazada e capturada por processos bioquímicos inerentes a todas as células que nos constituem. Por outro lado, as experiências são da ordem geral e particular, o mesmo acontecimento pode arrebatar em diferentes graus a todos, cabendo ao intérprete-criador não preocupação de ser universal, mas de produzir em si experimentos que são lançados para além do seu corpo orgânico, atingindo a outros e provocando estremecimentos que serão da ordem individual de sentimento, mas universal na apreensão e modulação do (que é) sentido.
Aqui percebemos uma imbricação dos sujeitos (sabemos que um deles é o intérprete-criador, o outro oscila entre o coreógrafo, diretor, espectador etc.), aquele gerador, que capta por suas sensações os estímulos, copula com suas experiências e gera uma luz que se rompe em conteúdo subjetivo mas repleto de forma, ou seja, de amálgama moldado e finalizado em fronteiras intrapessoais, produzindo o instante de Beleza que clareia o lado obscuro da matéria, que dá significados possíveis eclodindo no intérprete-criador e no outro.
O corpo poético é um corpo produtor e criativo, agindo de maneira eficaz sobre o particular e se colocando em universalidade percebida em diferentes graus, já que a poética depende de uma comunicação interna e externa, de um conjunto catalisador subjacente e vulcânico, que pertence ao indivíduo e que é expelido na e pela corporalidade e captado na corporeidade do outro.
Sendo assim, o binômio soma poietikos não cabe como busca e materialização desse desejo contemporâneo do artista do corpo, pois isso restringe essa poética numa fôrma colocada sobre o corpo biológico enquanto arcabouço, desvalorizando o seu devir enquanto existência ou existências, diminuindo a possibilidades de encontrar caminhos para se construir um corpo poético, que deve ser experimentado e experienciado. Então, o que foi sugerido no início do texto toma aqui outra dimensão, não mais aquela restrita a mecanismos ou meios pelos quais a poética vem se instalar, mas a que gera, cria nesse corpoator lambadas de energias subtextualizadas, como diz Merleau-Ponty:
Eu decolo de minha experiência e passo à ideia. Assim, como o objeto, a idéia pretende ser a mesma para todos, válida para todos os tempos e para todos os lugares, e a individuação do objeto em um ponto do tempo e do espaço objetivos aparece finalmente como a expressão de uma potência posicional universal (Merleau-Ponty, 2006: p. 109).
Por esse olhar não há possibilidade da existência de um corpo poético, mas de corpos poéticos coabitando em relações de experiências, portanto, ganhando status ou voltando à origem de uma physis poietikos, ou seja, corpo como casa e janela, permitindo possibilidades de renascimentos; de saberes de experiência que se darão e manifestaram entre os conhecimentos adquiridos e a vida humana, numa relação dialógica que lhe é peculiar entre a Arte e Vida.
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1 Para Kant os fenômenos são como as coisas se apresentam para o sujeito, elas são para nós, não representando coisas em si mesmas (Kant: 1987, p. 322).
2 Facticidade – limitação imposta “pela própria contingência ou condição ambiental”. Esse relacionamento, que se dá entre o SER e a condição ambiental, é real e concreto e por essa razão é denominado “facticidade” (Martins e Bicudo: 1983, p. 84).
3 Se o ser humano é para a relação “ser” e ambiente que está contida na facticidade, então, factos são a própria condição humana em trânsito com o Mundo e portanto, se dá pela porosidades dos atravessamentos das experiências em nós (grifo dos autores).
4 ATP: produto resultante das reações metabólicas intracelulares das macromoléculas energéticas: carboidrato, lipídeos e proteínas, que fornece energia vital ao organismo para que ele possa existir no Mundo enquanto ser-vivo.
5 Corpo encarnado é o corpo sujeito de uma existência a que está indissoluvelmente ligado, centro de um universo pessoal. É o corpo que tem consciência de si mesmo, assim com tem consciência de outros corpos. Quem assegura a encarnação é o próprio corpo. A encarnação, fundamento de todo ser no mundo, realiza a todo instante a conversão do objetivo em pessoal, que subtrai o meu corpo no mundo dos corpos (v. Venâncio, 1994: p. 38).
6 Referimos a isso o entrecruzamento das substâncias orgânicas que formam todo e qualquer ser vivo, e também está presente no ser humano. Por isso, bio (vida) subjetivo (sujeito).