9. Nietzsche: Corpo e Subjetividade

9. Nietzsche: THE Body and Subjectivity

Miguel Angel de Barrenechea

Resumo

Neste trabalho analiso a crítica nietzschiana à tradição idealista que, desde Platão até os modernos, ao desvalorizar o corpo, privilegiou uma pretensa substância subjetiva – eu, sujeito, consciência, razão etc. –, que constituiria a característica essencial do homem. Nietzsche, na contramão dessa perspectiva, valoriza o corpo, entendido como fio condutor para a compreensão de todas as questões humanas. A partir desse olhar é possível vislumbrar uma nova compreensão da subjetividade, uma subjetividade carnal, na qual o essencial do humano é constituído por suas forças vitais, afetivas, instintivas.

Palavras-chave | Nietzsche | corpo | subjetividade carnal | sujeito | instintos

Abstract

This paper examines the Nietzschean critique of the idealist tradition that, from Plato to the Moderns, devaluates the importance of the body, favoring an alleged subjective substance – the "I", subject, consciousness, reason, etc. – which constitute the essential characteristic of man. Nietzsche, contrary to this perspective, values ​​the body, understood as a guide to understanding all human affairs. From this perspective it is possible to envisage a new understanding of subjectivity, a carnal subjectivity, in which what is essentials in humans is made ​​up of vital forces, emotional and instinctive.

Keywords | Nietzsche | the body | carnal subjectivity | subject | instincts

Miguel Angel de Barrenechea é Licenciado em Filosofia pela Universidad Nacional de La Plata, Argentina (UNLP/ARG), é doutor e mestre pela UFRJ/IFCS, com pós-doutorado pela UERJ. Professor Associado da UNIRIO, docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Memória, do PPG em Educação e da Faculdade de Filosofia da UNIRIO. Lecionou na Universidade Federal de Ouro Preto, na Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Universidad Nacional de La Plata. É autor de Nietzsche e a Liberdade (7 Letras, 2000) e Nietzsche e o Corpo (7 Letras, 2009) e organizador de diversas publicações acadêmicas no campo da Filosofia, dentre as que se destaca a organização dos seis livros correspondentes às diversas edições do Simpósio Internacional Assim falou Nietzsche, realizadas na UNIRIO.

Miguel Angel de Barrenechea holds a degree in Philosophy from the Universidad Nacional de La Plata, Argentina (UNLP / ARG), with a Doctorate and Master's from UFRJ / IFCS, and a Post-Doctororate from UERJ.  He is an Associate Professor at UNIRIO, and teaches and researches in the Graduate Program in Memory in the Graduate Program in Education, and the School of Philosophy at UNIRIO. He taught at the Federal University of Ouro Preto Federal, at the Federal University of Rio de Janeiro and at the Universidad Nacional de La Plata.  He is the author of Nietzsche e a Liberdade (Nietzche and Freedom, 7 Letras, 2000) and Nietzsche e o Corpo (Nietzsche and the Body, 7 Letras, 2009) as well as editor of several academic publications in the field of Philosophy, among them six books corresponding to the six symposiums of the "International Symposium thus spoke Nietzsche", hosted by UNIRIO.


Nietzsche: Corpo e Subjetividade

Miguel Angel de Barrenechea

Introdução: o corpo na tradição idealista

Nem existe ‘espírito’, nem razão, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade: são ficções inutilizáveis (Nietzsche, primavera 1888, 14 [122]).

E o que dizer do Eu! Ele se tornou uma fábula, uma ficção, um jogo de palavras: ele parou absolutamente de pensar, de sentir e de querer![...] O que se segue daí? Não há de modo algum nenhuma causa espiritual! Toda a pretensa empiria inventada para isso foi para o inferno! (Nietzsche, 2000: p. 3).

Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno mais rico q autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor estabelecida do q a crença no espírito (Nietzsche, agosto-setembro 1885, 40 [15]).

Decidi começar esta reflexão sobre a interpretação nietzschiana do sujeito, apresentando esses três parágrafos, dois fragmentos póstumos, e um publicado para evidenciar as duas estratégias argumentativas principais do autor – a crítica e a propositiva – com relação a uma questão que, principalmente desde a Modernidade, esteve no centro do debate filosófico: a questão do sujeito. Depreende-se desses textos a atitude profundamente crítica de Nietzsche com relação a todos as noções que privilegiam, na interpretação do homem, aspectos racionais, conscientes ou espirituais, que deixam de lado o aspecto corporal, carnal do ser humano. Por outro lado, no fragmento póstumo de 1885, o pensador apresenta uma ótica diferenciada na interpretação do homem e de todas as questões filosóficas: ele propõe colocar o corpo como fio condutor interpretativo, já que, na sua ótica, é algo muito mais rico, mais claro, mais próximo da nossa condição carnal e concreta, e que, portanto, nos permite observações mais precisas: “O corpo é um fenômeno mais rico que autoriza observações mais claras”.

No primeiro aspecto aludido, isto é, num sentido crítico, Nietzsche questiona a  tradição de pensamento idealista que, desde Parmênides até Kant, sustenta uma compreensão do homem, entendido como um ser eminentemente racional, consciente, ou como alguém vinculado, através de um substrato imaterial e atemporal – a alma ou o espírito – a um outro mundo eterno, perfeito, imutável: um além. A alma, nessa tradição teórica, foi considerada o atributo substancial, a essência humana, que permanece imutável, para além dos avatares do tempo, das vicissitudes que corrompem tudo aquilo que é temporal e efêmero. Nesse sentido, o corpo foi entendido como uma natureza totalmente diversa daquela da alma. O corpo foi interpretado como o sintoma mais claro daquilo que é perecível, não essencial no ser humano. Na tradição metafísico-religiosa, desde Platão até a compreensão judaico-cristã, a alma foi exaltada como a essência do homem, como aquilo que merece toda atenção, todo cuidado. Como correlato, o corpo, na sua condição temporal, carnal, material, será desvalorizado, questionado, até considerado como aquilo que condena o homem a uma existência de sofrimentos e pesares. Platão estabeleceu de forma clara o dualismo filosófico que cinde, de forma radical, corpo e alma. Nesse sentido, ele herdou uma série de pressupostos míticos, místicos e religiosos que consideram o corpo como o “inimigo”, ou o “cárcere da alma”.  Na concepção platônica, tal como aparece, por exemplo, no livro X d´A república ou no Fédon, o corpo é apenas um vasilhame descartável, algo que nada tem a ver com a essência humana. Ao contrário, o corpo patenteia a condição da queda do homem, tal como é explicada no conhecido mito de Er do livro X d´A república: a encarnação e a conseguinte passagem pela terra é produto de uma falta, de um pecado, que deve ser expiado, que deve ser sanado (Platão, 1996, Livro X). Daí que o homem esteja obrigado à penosa tarefa de transmigrar, de percorrer uma e mil vezes o trânsito que leva do além, do mundo celestial, para a terra, para esse mundo imperfeito que será apenas o teatro, o lugar da expiação, do pagamento de erros ancestrais.

Em resumo, o corpo, para Platão, como para toda uma tradição precedente oriunda da perspectiva órfico-pitagórica, nada diz respeito à natureza do homem. Apenas patenteia a falha, a queda originária. Trata-se de um outro, com o qual a alma convive com muitas dificuldades, com muito pesar (Cf. Vernant, 2008: p. 459-460). Os sentidos, vinculados à natureza corporal, enganam permanentemente, não ajudam na procura da sabedoria; ao contrário, torna-se uma permanente tentação para incorrer no erro, na falsidade, na debilidade moral. Assim, configurou-se desde épocas longínquas uma visão do homem como um ser esquizofrênico, como uma espécie de nostálgico centauro que sonha com o “outro” mundo, mas padece na terra. A concepção que cinde homem em corpo e alma estabelece a separação, a ruptura e confusão como condição do humano. Trata-se de uma mescla, de uma conjunção nada harmônica de duas substâncias heterogêneas, cuja convivência não é amigável, mas de tensão, de confronto; daí que os instintos, os sentidos, os sentimentos, os amores e tudo o que diz respeito ao corpo seja considerado como “cárcere da alma”. Vejamos, como no Fédon, Platão alude a esse intruso ou inimigo: “esse intruso irrompe em meio de nossas investigações, nos entorpece, nos perturba e nos impede o discernimento da verdade. [...] se desejamos saber realmente alguma coisa, é preciso que abandonemos o corpo e que apenas a alma analise os objetos que deseja conhecer” (Platão, 1966, 66a-67d).

A alteridade corporal, muito antes da concepção platônica, podemos encontrá-la já desenhada, de alguma forma, nas ponderações de Parmênides, nos seus conhecidos versos Da nascividade, por exemplo, quando no Fragmento VI afirma: “mortais, que nada sabem, trilham errantes, esses bicéfalos; uma confusão no coração deles dá testemunho de um espírito confundível: são os que se arrastam, surdos e ao mesmo tempo cegos, estupefatos, multidão sem decisão [...]” (Parmênides, 1991, VI).

Lembremos que Parmênides está tecendo complexas ponderações metafísicas sobre a possibilidade de conhecer o ser, de aceder ao reino da luz, a um caminho racional, de chegar à morada da verdade, isto é, atingir o des-velamento, a-letheia, a verdade que não é acessível à maioria dos mortais. Parmênides apresenta imagens claras, e asserções categóricas sobre a natureza da realidade, sobre as possibilidades humanas de conhecer essa realidade essencial, mas, além disso, ele define a condição do homem. Parecem muito expressivas as imagens usadas nesses versos, nesse fragmento. O fato de que os homens afirmem ou acreditem no não ser, desviando-se da sua condição racional, da apreensão adequada do único real, o Ser, decorre da natureza dúbia, dicotômica do humano. Nesse sentido, Parmênides usa um termo significativo, considerando os homens como bifrontes. Esta caracterização é muito importante. Conforme essa ótica, o genuinamente humano será justamente a sua condição racional, isto é, o aspecto humano capaz de conhecer o ser. Por outra parte, o termo bifronte alude ao que deve ser descartado, isto é, à sua condição sensível – que o vincula ao não ser. Daí que os sentidos levem à maioria dos homens à situação de “errantes”, “cegos, estupefatos, multidão sem decisão”.

Com certeza não deve ter sido a intenção de Parmênides apresentar uma conceituação antropológica, uma caracterização detalhada da natureza essencial do homem. Contudo, de fato, na sua concepção ontológica e na sua perspectiva epistemológica, subjaze uma interpretação sobre o homem, sobre o humano. Como foi dito, ele será definido como bifronte: racional e sensível, isto é, o homem é caracterizado como um ser dúplice: capaz de aceder ao mundo perfeito do Ser ou passível de perder-se nos enganos de sua natureza sensível.

Está longe da proposta deste trabalho aprofundar a problemática do ser em Parmênides – embora, de alguma forma, já tenha me atrevido, sim, a tecer algumas ponderações sobre tema tão complexo. Contudo, o meu objetivo atual é assinalar de que forma a metafísica desde os seus primórdios, inaugurou-se com a rejeição do corpo, com a negação do corpo e, ato seguido, muito mais do que isso, com o esquecimento do corpo. A condição carnal do homem nada diria respeito à filosofia, ao conhecimento, ao ser. Na carne não haveria nada que possa interessar na tarefa reflexiva; a vista, o ouvido, o tato, todos os sentidos, estariam totalmente banidos da tarefa do pensar. À filosofia, destinada a refletir sobre o universal, a desvendar o reino perfeito do inteligível, só teríamos acesso graças a nossa condição racional. Toda ciência, nessa ótica, depende da razão; os sentidos em nada contribuem para esse conhecimento do essencial. O corpo, então, nada tem a ver com a filosofia. O pensar, a partir da metafísica parmenídea, inaugura-se como uma tarefa realizada sem a participação do corpo, sem a presença da carne. O corpo, na concepção metafísica parmenídea, está presente apenas como aquilo que deve ser banido do campo da razão, e ato seguido deve ser esquecido. Conforme estas ponderações, quero apresentar a hipótese de que a metafísica surge com o questionamento da carne, com o imediato esquecimento de tudo o que é corporal. Trata-se de um procedimento de desqualificação e esquecimento. Nesse sentido, vejamos as palavras de Mainetti que se aproxima da nossa interpretação ao sustentar que o surgimento da filosofia se dá nesse duplo registro, como rejeição e esquecimento do corpo: “A pergunta pelo corpo e a pergunta pelo ser tem a mesma origem e destino; ambas as experiências caminham, de certa forma, paralelas, como ‘descoberta’ e ocultamento, como revelação e ‘esquecimento’ na história do pensamento” (Mainetti, 1972, p. 20).1

Platão, como já assinalei anteriormente, desenvolverá uma concepção que, aprofunda a perspectiva idealista e dicotômica inaugurada por Parmênides, ao afirmar a existência de um mundo inteligível, ao qual só teremos acesso, através da alma, do exercício racional das faculdades da alma (Cf. Platão, 1996, Livro VII). O corpo e os sentidos estão na contramão do pensar, já que nos afastam do genuíno trânsito filosófico. A única ciência é própria da razão; os sentidos apenas apresentam meras opiniões, fantasmas. No reino das penumbras – do mundo sensível - nada enxergamos, só temos opinião, doxa, já que dominam as sensações subjetivas, que estão longe de desvendar o mundo perfeito das ideias. Por isso, todo o esforço da alma será procurar libertar-se dos sentidos, abandonar o terreno efêmero e enganoso do corpo para chegar ao reino universal das ideias. Neste ponto, é importante lembrar um trecho elucidativo do Fédon, onde fica claramente estabelecida a relação entre alma e verdade, que diverge totalmente do corpo, que está sempre atrelado à falsidade, à corrupção, a vazias ilusões: “[...] já que é impossível conhecer alguma coisa de forma pura, enquanto temos corpo; é preciso que não se conheça a verdade ou então que se a conheça após a morte, pois a alma se pertencerá, livre deste fardo [...]”. Daí Platão concluir que o corpo é totalmente alheio à verdade, já que

nesta vida não aproximaremos da verdade a não ser afastando-nos do corpo [...] e conservando-nos puros de todas as suas imundícies até que o deus venha nos libertar. [...] livres da loucura do corpo, conversaremos [...] com homens que usufruirão a mesma liberdade e conhecermos por nós mesmos a essência das coisas (Platão, 1966, 66a-67d).

Também é importante esclarecer que está longe do meu propósito atual abordar detalhadamente a concepção platônica do conhecimento, da realidade e da natureza humana. Apenas pretendo apresentar algumas ponderações sobre uma teoria bastante conhecida – cuja complexidade excede o tratamento no âmbito deste artigo - para abordar, na sequência, a interpretação nietzschiana do sujeito. Nesse sentido, é possível sustentar que tanto Parmênides quanto Platão inauguram uma concepção dicotômica em diversos planos, não só metafísica e epistemológica, mas também na sua compreensão do homem. A partir desta afirmação, retomo a nossa questão principal que é a reflexão sobre o corpo e o sujeito. É possível sustentar, após termos abordados algumas teses de Parmênides e de Platão, que a tradição dicotômica durante muitos séculos desconsiderou totalmente o corpo. O corpo foi interpretado como o outro do homem, mas também o outro do pensar, do conhecer, o outro da ciência.

O corpo como fio condutor

Nietzsche, como assinalei no início, critica de forma categórica toda compreensão do homem que sustente a existência de uma pretensa alma imortal, ou qualquer noção que aluda a um pretenso substrato subjetivo, vinculado a um mundo supra-sensível. Ele também será um agudo crítico daqueles que julgam que o essencial do humano seria a consciência, a razão, o pensamento. Nesse aspecto, o filósofo alemão produz uma importante subversão na concepção tradicional do homem. O corpo deve ser, na sua ótica, o fio condutor para a compreensão do humano, para interpretar todas as questões, desde as premências vitais, do dia-a-dia, até as ideias consideradas como as mais elevadas, mais complexas da reflexão filosófica. Por isso, o pensador indaga se “até hoje a filosofia de modo geral não terá sido apenas uma interpretação do corpo e uma má compreensão do corpo” (Nietzsche, 2001, Prólogo: p. 2).

As noções de alma, razão, eu, consciência, sujeito, todos os conceitos que sustentam que haveria uma substancialidade interna no homem, serão considerados como fantasias, ficções, ídolos, fábulas. Trata-se apenas de conceitos vazios, hipóstases de noções sem conteúdo. Para Nietzsche, o homem é corpo e, nada além disso, como sustenta em uma conhecida passagem do Zaratustra: “Eu sou todo corpo e nada além disso; e a alma é somente uma palavra para alguma coisa do corpo” (1998, Primeira Parte, Dos desprezadores do corpo: p. 5).

Na ótica nietzschiana, o corpo é um permanente jogo de forças, de instintos em relação; trata-se de uma luta entre afetos, sentimentos, entre impulsos que se encontram num constante embate, numa incessante mudança. O pensamento considerado racional, dito consciente, é apenas um resultado, um fruto desse jogo total de forças corporais inconscientes, não racionais: “é apenas uma certa relação dos instintos entre si [...] a atividade do nosso espírito ocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós” (2001: p. 333).

A crítica ao sujeito moderno

A crítica nietzschiana às concepções que desvalorizam o corpo não se detém em questionar as visões metafísicas da antiguidade, como a platônica, ou as posturas religiosas, como a perspectiva judaico-cristã, nas quais tudo o que é de natureza corporal é julgado como suspeito, imperfeito, até pecaminoso. O autor alemão critica o dualismo metafísico que cinde corpo-alma e também coloca em xeque noções da modernidade que sustentam que o homem estaria constituído por uma substância subjetiva: um cogito ou coisa pensante. Nesse sentido, Nietzsche contestará principalmente a concepção cartesiana e a kantiana do sujeito. Ele objeta, com mais freqüência esses dois autores, mas seu objetivo principal é colocar em xeque toda e qualquer noção de sujeito. Neste artigo focarei a crítica nietzschiana do sujeito deixando para outra oportunidade uma reflexão mais abrangente sobre as diversas interpretações do sujeito oriundas da modernidade. Lembremos que Descartes sustenta que a razão, a substância pensante, a res cogitans, é a genuína natureza humana. O homem é sujeito, é uma substância que nada tem a ver com o corpo, entendido como parte da res extensa, a extensão. O homem, enquanto ser pensante, é algo totalmente alheio aos seus aspectos corporais; contudo, o ser humano vive uma curiosa situação, sua existência decorre de uma mescla entre substâncias, já que ele está inserido no corpo, vinculado ao corpo, como um anjo dentro de uma máquina. Descartes afirma: “Eu era uma substância cuja essência ou natureza reside unicamente em pensar e, que para existir, não necessita de lugar algum nem depende de nada material, de modo que eu, isto é, a alma, pela qual sou o que eu sou, é totalmente diversa do corpo” (1982, IV: p. 62).

Vemos, na perspectiva cartesiana, a total heterogeneidade, a total divergência existente entre corpo e alma, entre o sujeito substancial e o corpo acidental que compõem o homem. O corpo nada tem a ver com a condição propriamente humana, é apenas algo pertencente ao mundo objetivo, das coisas extensas, é algo que nada diz respeito à humanidade, que seria essencialmente razão, ser pensante, sujeito racional.

Nietzsche contestará essa concepção cartesiana do homem – que re-edita com uma nova roupagem conceitual, mas mantém as noções básicas do dualismo oriundo da antiguidade –, entendido como um sujeito puro, como um ego desencarnado, como um estrangeiro do corpo, como uma substância pensante totalmente alheia aos sentimentos, aos afetos, aos instintos. Todos esses aspectos não racionais são nada menos, conforme a concepção cartesiana, que idéias obscuras e confusas, às quais não podemos dar crédito algum, já que carecem de toda confiabilidade, de toda certeza. Somente os pensamentos puros, claros e distintos, vinculados à nossa razão, à nossa condição de substância pensante merecem crédito, são confiáveis do ponto de vista epistemológico. O corpo, por sua vez, é algo que não tem nada a ver com a nossa essência racional; trata-se de algo totalmente alheio, algo acidental, até desnecessário para a nossa vida. Como aponta Descartes, a alma não depende de nada material, o corpo, por sua vez, não tem a ver com a nossa condição de sujeito, de humano; muito pelo contrário, apenas faz parte da extensão, trata-se de uma máquina, à qual de alguma forma estamos vinculados.

Nietzsche mostra que a concepção cartesiana, assim como todas as tendências modernas que afirmam a existência de uma substância pensante, continua sustentando uma visão distorcida do homem, como no dualismo clássico; acreditam na fantasia de um eu pensante, de um ego puro, de uma razão alheia à totalidade corporal. Em diversos aforismos, Nietzsche contestará a pretensa auto-evidência do cogito. A postulada intuição direta da nossa natureza pensante, que estaria implícita no cogito cartesiano, longe de ser uma evidência, trata-se de uma construção, de uma crença não fundamentada. A passagem da afirmação de uma atividade pensante à pretensa crença em uma substância pensante que fundamentaria esse pensar nada tem de lógico nem é algo evidente. Não é uma inferência, mas é uma crença mal fundamentada: do fato de haver pensamento não se conclui que há um sujeito pensante substancial. Em Além do bem e do mal, Nietzsche mostra que é improcedente pretender demonstrar a evidência da existência do eu, do cogito, apenas pelo fato de haver atividade pensante. Poderíamos, sim, conforme a argumentação cartesiana, demonstrar que há atividade de pensar. Mas isso não permite inferir que há um sujeito pensante: “É o fato de que um pensamento ocorre apenas quando quer e não quando ‘eu’ quero, de modo que é falsear os fatos dizer que o sujeito ‘eu’ é o determinante na conjugação do verbo ‘pensar’. ‘Algo’ pensa, porém não é o mesmo que o antigo e ilustre ‘eu’” (Nietzsche, 1993: p. 17).

Descartes, como já apontei, como outros pensadores modernos, acredita na existência de um sujeito substancial, cuja natureza é racional. Para ele, essa substância racional ou coisa pensante determina a essência do homem; mas ele esquece – ou nega deliberadamente – a importância dos processos corporais e orgânicos que são constitutivos de todo pensar, de todo raciocinar. Tudo aquilo que provém do corpo, do organismo, configura apenas ideias obscuras e confusas; trata-se de algo alheio ao genuinamente humano.

Nietzsche, ao criticar a concepção do sujeito moderno em suas diversas modalidades, desde Descartes a Kant, propõe uma nova crítica da racionalidade, uma nova crítica da razão. Mas não é uma crítica da razão pura, ou uma crítica de um pensamento desencarnado. Nietzsche – conforme aponta Stiegler em Nietzsche et la critique de la chair – propõe uma crítica da carne, da razão carnal, uma crítica do corpo (Stiegler, 2005: p. 15-18). Nietzsche afasta-se da crença idealista em um sujeito puro do conhecimento, em uma pretensa substancialidade subjetiva ou racional. Ele interpreta o homem a partir de sua condição corporal, instintiva. Desde o seu primeiro livro, O nascimento da tragédia, Nietzsche apresentará uma perspectiva singular que colocará pelo avesso esse sujeito pensante: o homem será interpretação a partir dos instintos (Triebe) artísticos que o constituem, pelo contínuo confronto entre forças apolíneas e dionisíacas (Nietzsche, 2006, p. 1). Daí que ele considere este livro, como sua primeira transvaloração de todos os valores. Assim, o ponto de partida será a carne, o corpo, os impulsos. A história do homem, a história do ocidente consiste na realização da efetiva história dos afetos, dos sentidos, dos instintos. Tudo começa a partir do jogo dos impulsos conflitantes: Apolo e Dionisos defrontam-se; as tendências, oriundas do helenismo, ao configurado e ao não configurado, à medida, e ao exagero, pulsam em toda sociedade, em todo homem. Conforme o apontando, não é a razão o que determina a vida humana: são os impulsos inconscientes em jogo, as forças em conflito. Nessa interpretação, a consciência, as atividades racionais são apenas um resultado, uma decorrência do mundo instintivo e pulsional.

Como vimos, Nietzsche critica de forma radical as concepções que definem o homem a partir da razão, da consciência, da alma, a ponto de chegar a sustentar uma tese radical, ao interpretar o pensamento racional como uma doença.2 O homem seria um animal doente, pois a razão é imperfeita, que o conduz permanentemente ao erro, devendo ser protegido e conduzido pelos instintos, sempre certeiros.3 Contudo, o autor aceita a existência de processos corporais conscientes, isto é, todo pensamento consciente é decorrente de atividades corporais, de uma longa cadeia de forças inconscientes. O pensamento consciente é apenas uma “pequena razão”, um instrumento da grande razão que é o corpo, que é a totalidade orgânica (Nietzsche, 1998, Dos desprezadores do corpo: p. 1). Esse pensar consciente é apenas uma ínfima parte da miríade de pensamentos corporais, é apenas um pensar que se traduz em palavras. Consciência e linguagem se articulam na visão de Nietzsche. Os processos orgânicos para os quais carecemos de palavras que os traduzam permanecem ignorados. Contudo, esse pensar não-consciente predomina no organismo. Em resumo, o jogo dos instintos, a luta dos impulsos perfaz a dinâmica fundamental em nossa condição corporal e a denominada “consciência” ou “razão” nada mais é do que forças corporais que se transformam em signos comunicáveis.

Daí é possível concluir que não há nada que possa ser entendido como uma substância, como uma entidade subjetiva que seria a natureza, o aspecto essencial do homem. Todo e qualquer conceito identitário, referente a uma pretensa substancialidade subjetiva – sujeito, ego, eu, consciência – deve ser contestado. Os instintos são múltiplos, longe de constituírem uma unidade, eles se desenrolam em um jogo de permanentes mudanças, em uma série de composições e recomposições nas relações de poder entre as forças. Nietzsche é categórico ao colocar em xeque essa crença na substancialidade subjetiva do homem. Lembremos que em “Os quatro grandes erros”, a crença num sujeito operante, num eu como causa de ações, é denunciada como um erro, como uma fantasia, como um engodo, como um fetichismo construído pela tradição metafísico-teológica: “Esse fetichismo vê por toda parte agentes e ações [...] Ele crê no ‘Eu’, no Eu enquanto ser, no Eu enquanto substância [...]” (Nietzsche, 2001: p. 5).

Considerações finais: a subjetividade carnal

Uma vez que foram questionadas as noções do dualismo metafísico e religioso que cindiam o homem em corpo e alma; uma vez objetada a crença moderna em um sujeito do pensamento puro e desencarnado, seria possível afirmar que Nietzsche nega toda e qualquer noção de sujeito ou de subjetividade?

O sujeito, entendido, como substância, res cogitans, ou sujeito transcendental da operação de pensamento, como foi dito, é contestado pelo autor. Contudo, é possível repensar a condição do homem a partir da carne, dos instintos, dos sentidos. Vemos surgir uma concepção não do sujeito, mas da subjetividade, de uma subjetividade processual, dinâmica, em permanente construção, uma subjetividade carnal, corporal. Que significa neste caso a noção de subjetividade? Não aludimos a uma entidade, a um substrato, a uma essência, a um aspecto permanente e essencial do ser humano. No homem, na carne humana, encontramos um incessante dinamismo, um perpétuo jogo de forças; contudo, a cada momento dessa configuração do dinamismo corporal, a totalidade orgânica estabelece hierarquias. Entre as forças há algumas que pontualmente vencem, dominam e impõem sua vontade à totalidade corporal. Existem então pontos de sujeito, pontos de subjetividade. Os processos, ditos internos, se desenrolam em um dinamismo de pulsões, em um cenário de lutas corporais. Nesta ótica, a subjetividade, longe de ser pensada como um novo substrato, interpretada como uma outra essência, agora é considerada no seu caráter corporal, como um processo, como uma luta que estabelece, momento após momento, harmonias provisórias, conforme as necessidades da ação de um determinado organismo. Nesse sentido, o homem é múltiplo, diverso, como múltiplas e diversas são suas pulsões, emoções, desejos.

A noção de subjetividade carnal alude à impermanência do homem, à sua condição afetiva, sensível, mas também racional já que o conjunto corporal precisa da razão como seu instrumento, como seu aparelho de signos, como seu órgão para a comunicação. Isto é, a razão, a consciência, é apenas um instrumento do todo corporal:

Instrumento do teu corpo é, também a tua pequena razão [...] a qual chamas ‘espírito’, pequeno instrumento e brinquedo da tua grande razão. ‘Eu’, dizes; e ufanas-te desta palavra. Mas ainda maior, no que não queres acreditar – é o teu corpo e a sua grande razão: esta não diz eu, mas faz eu (Nietzsche, 1998, I, Dos desprezadores do corpo).

O conceito de subjetividade carnal, de subjetividade corporal, longe da tradição idealista e substancialista, partindo da concepção nietzschiana de corpo, destaca a condição do homem concreto, da experiência vivida, valorizando um saber do singular, do absolutamente pessoal. Contudo, seria possível um saber dessa singularidade corporal que possa ter validade objetiva, aceitação supra-individual? Seria possível uma universalidade do puramente pessoal? Não estaríamos nos antípodas do platonismo? Não estaríamos, em oposição ao  mundo ideal dos paradigmas, olhando para um individual efêmero, incapaz de ser transmitido, partilhado? Não estaríamos retornando ao plano fantasmático da doxa, da caverna sensível?

Nietzsche mostra a possibilidade de pensar o singular, o corporal, o instintivo, sem renunciar ao pensamento comunicável. Longe de sustentar um pensamento abstrato, que se impõe por generalização, por impessoalidade, a subjetividade carnal propõe uma universalidade do absolutamente singular. Uma doxa que pode ser partilhada, comunicada; trata-se de uma singular visão de uma doxa que poderia ser partilhada, mostrando outra possibilidade de entender um saber universal. Não provém do plano das generalizações e abstrações, como procede a ciência; não provém de um sujeito puro e desencarnado, como postulado pelos modernos. A universalidade do absolutamente singular é uma doxa que se torna episteme, pois aponta para a experiência vivida que pode ser entendida e transmitida por outros; aponta para a nossa efetiva experiência carnal, para aquilo que  é nosso, que é singular e único mais que pode ser compreendido pelo outro, pode ser partilhado; assim como entendemos das nossas digestões, emoções, percepções, desejos, também entendemos as dos outros. Secularmente acostumados a acreditarmos na alma, na razão, na consciência, nos pensamentos abstratos, temos dificuldades de reconhecer  o que é mais singular, o mais concreto da nossa experiência. A lida com a carne, com a digestão, com o sono, com a sede, parece algo trivial, algo carente de interesse maior, algo que não merece ser considerado no plano filosófico. Contudo, como manifesta Nietzsche, em Ecce Homo, é muito mais importante a alimentação do que a “salvação da alma”. Porém, geralmente estamos preocupados por grandes questões como os ideais, como as grandes idéias abstratas. Esquecemos da lida com a comida, a leitura, as distrações. Ocupamo-nos dos grandes e solenes pensamentos, enquanto a nossa vida efetiva, a vida vivida, permanece ignorada. Quando falamos do corpo e seus cuidados, aludimos ao que há de essencial em mi e também nos outros. Talvez a ciência seja uma ciência do corpo, do meu corpo, que alude ao nosso corpo, aos nossos corpos. Por isso, em “Por que sou tão inteligente”, Nietzsche afirma a relevância das questões corporais. Essas questões são essenciais na vida humana:

Nunca refleti sobre problemas que não o são – não me desperdicei. [...] ‘Deus’, ‘imortalidade da alma’, ‘salvação’, ‘além’, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando criança – talvez não fosse infantil bastante nisso. – [...] interessa-me uma questão da qual depende mais a ‘salvação da humanidade’ do que qualquer curiosidade de teólogos: a questão da alimentação (Nietzsche, 2000a: p. 1).

O autor finaliza, ainda em Ecce Homo, destacando a relevância da lida com essas coisas proteladas, esquecidas, consideradas banais, indignas de reflexão ou ocupação filosófica: “Em tudo isso – na escolha da alimentação, de lugar e clima, de distração – reina um instinto de autoconservação que se expressa da maneira mais inequívoca como instinto de autodefesa” (p. 8).  E, em outro trecho, continua: “Neste ponto já não há como eludir a resposta á questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte de preservação de si mesmo – do amor de si” (p. 9).

O poeta corrobora a tese nietzschiana de uma ciência do corpo, de um saber do absolutamente singular, das nossas experiências únicas vinculadas à alimentação, às digestões, aos afetos e a todos os cuidados do corpo. O poeta mostra como seria possível um saber da carne; saber primordial, uma ciência do único, uma episteme da carne. Aludo a Paul Valery, quando em Journal d´Emma, revela as inquietações de uma subjetividade carnal, de uma ciência do corpo, tão protelada, tão esquecida pela tradição dualista, pelo idealismo. Desejo culminar minhas reflexões sobre a questão do corpo e da subjetividade em Nietzsche lembrando as palavras de Valery que aludem a essa possível ciência do corpo, a esse conhecimento do absolutamente singular, mas compreensível por todos os homens, capazes de entenderem, em carne própria, os saberes da subjetividade carnal. Vejamos as palavras do Journal d’Emma:

[...] Meu corpo, Minha terra! Como se pode pensar em ti, a coisa mais íntima e mais estrangeira: Meus seios me surpreendem. Parece-me que são belos, mas que fazem sobre mim essas belas formas de carne: Além do mais, o que eu chamo meu corpo é o fruto de uma quantidade de descobertas. Talvez jamais tenha terminado de explorar? Às vezes, um gesto improvisado, um movimento que realizamos para não cair, nos dá a sensação de que tudo é novo para nós... Porque não realizar um Diário do próprio corpo? Ousaria escrever meu corpo? Tudo o que eu sei dele? Não meu corpo, aquele dos médicos, mas o que Eu conheço. Eu não sou nada sem ele. Ele é minha ciência, e, estou segura, o limite de toda ciência; ele, seus assuntos, mal-estares, necessidades e impedimentos; suas regularidades e seus transtornos; suas digestões, menstruações e os sujos detalhes úmidos do amor... Oh, Corpo sem glória, algum santo deveria ter amado teu excremento! Interior ainda, é sagrado como algo de mim, e quando digo: mim, ele está ali, compreendido. Logo, se torna diferente ainda em mim, e imperioso. Contudo, é Minha criação, minha obra mais importante... Mas que é também mais estranho que o fato de que exista um Dentro e um Fora? [...] (Valéry apud Israel, 1968: p. 37).

 


Referências Bibliográficas

DESCARTES, René. Discurso del método y Meditaciones metafísicas. México: Espasa-Calpe, 1982.

VALÉRY, Paul. Journal d´Emma. Apud ISRAEL, Lucien. Le médecin face au malade. Bruxelles: Dessar, 1968.

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____ O anticristo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

____ O nascimento da tragédia. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.



1 É interessante notar como Mainetti parafraseia, de alguma forma, a famosa tese heideggeriana da simultânea descoberta e ocultamento do ser. Conforme o pensador alemão, os gregos, no seu contato originário com o ser, logo o equiparam a um ente específico – physis – e esquecem completamente dele, tematizando a partir desse momento exclusivamente os entes. Mainetti formula um pensamento análogo: o corpo, semelhante ao ser, no ato de sua descoberta é logo rejeitado e esquecido pela filosofia ocidental.

2 “[...] o tornar-se consciente, ‘o espírito’, é para nós o sintoma de uma relativa imperfeição do organismo, é experimentar, tatear, errar, um esforço em que muita energia nervosa é gasta desnecessariamente – nós negamos que alo possa ser feito perfeitamente enquanto é feito conscientemente” (Nietzsche, 2007: p. 14).

3 Vanessa Lemm apresenta uma importante tese sobre Nietzsche ao destacar o primado da condição animal no homem; essa condição teria se extraviado a partir da exagerada exaltação dos aspectos racionais ou conscientes, em detrimento da sua animalidade. Ver: LEMM, Vanessa. Nietzsche’s Animal Philosophy: culture, politics, and the animality of the human being. Nova York: Fordham University Press, 2009.