11. Intempestividade e Trágico em Nietzsche

11. Untimeliness and the Tragic in Nietzsche

Tereza Cristina B. Calomeni

Resumo

O texto ora apresentado reflete sobre o sentido da intempestividade, em Nietzsche, e o caráter intempestivo, tanto da filosofia trágica quanto da proclamação da volta do trágico à cultura ocidental, tal como se expõe em O nascimento da tragédia e em obras tardias.

Palavras-chave | Trágico | contemporâneo | arte

Abstract

The text presented here reflects on the meaning of untimeliness, in Nietzsche, and on the nature of the untimely,  both in philosophy of the tragic as well as in Nietzsche's proclamation of the return of the tragic in Western culture, as exhibited in The Birth of Tragedy and in later works.

Keywords | The tragic | the contemporary | art

Tereza Cristina B. Calomeni é Professora Associada da Universidade Federal Fluminense (UFF), Departamento de Filosofia. Pós-Doutorado em Filosofia (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ). Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Mestra em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Tereza Cristina B. Calomeni is Associate Professor of the Universidade Federal Fluminense (UFF), in the Department of Philosophy and a Postdoctoral Fellow in Philosophy (Catholic University of Rio de Janeiro - PUC-RJ).  She holds a Ph.D. in Philosophy from the Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro (PUC-RJ) and a Master's in Philosophy from the same university.


Intempestividade e Trágico em Nietzsche

Untimeliness and the Tragic in Nietzsche

Tereza Cristina B. Calomeni

Em diferentes ocasiões, ao longo de sua trajetória filosófica, Nietzsche professa sua intempestividade como distinção de sua filosofia. Ao mesmo tempo, proclama-se, em escritos tardios, o “primeiro filósofo trágico”, o único que transformara o dionisíaco em “pathos filosófico”. Uma leitura atenta e cuidadosa percebe, facilmente, as diversas possibilidades de abordagem da estreita vinculação entre o caráter intempestivo do pensamento nietzschiano e o significado da filosofia trágico-dionisíaca, exaltada como radicalmente distinta da tradição da filosofia ocidental.

Sem qualquer pretensão de originalidade, a despeito dos múltiplos caminhos que se pode percorrer em direção ao tema – Intempestividade e trágico –, escolho, para esta nossa conversa, um dos mais evidentes: relacionar a intempestividade à proclamação de retorno do pensamento trágico à cultura ocidental. O texto que trago hoje abriga alguns trechos de artigos que escrevi, alguns publicados, outros ainda em vias de publicação. Com o texto, proponho que pensemos o sentido da intempestividade, em Nietzsche, e o caráter intempestivo, tanto da filosofia trágica quanto da proclamação da volta do trágico à cultura ocidental, tal como se expõe em O nascimento da tragédia e em obras tardias.

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Quem sabe respirar o ar de meus escritos sabe que é um ar das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, se não há o perigo nada pequeno de ser resfriar. O gelo está perto, a solidão é monstruosa – mas quão tranquilas banham-se as coisas na luz! Com que liberdade se respira! Quantas coisas sente-se abaixo de si! – filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a vida voluntária no gelo e nos cumes – a busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até agora baniu (Nietzsche, 1995: Prólogo, p. 3).

Pensar contra seu tempo, contra a corrente que, ao mesmo tempo, arrasta e aprisiona sua época e seus contemporâneos é, para Nietzsche, condição de nascimento de uma filosofia autêntica. Filosofar é, antes e além de tudo, ofício para inatuais e intempestivos que, na contramão do mais comum, banal e corriqueiro, se recusam a aderir plenamente ao imediato de seu tempo e ultrapassam a atualidade, olhos postos num futuro ainda por vir. É no efetivo exercício de contraposição ao tempo presente que se pode expressar a dimensão inovadora da filosofia e do olhar para uma cultura. Não é de outro modo que Nietzsche configura sua crítica da filosofia ocidental e da cultura moderna – em especial, a cultura alemã – e desenha suas tarefas filosóficas mais radicais.

Inatual e intempestivo, Nietzsche se apresenta de diversas formas: ora é o psicólogo “um psicólogo sem igual” (Nietzsche, 1995: p. 58), como ele próprio afirma, em 1888 – de uma cultura medíocre e hipócrita, insciente de seus interesses mais fundos; ora é o genealogista que problematiza o valor da verdade e, de modo mais amplo, se interroga acerca da origem e do valor dos valores historicamente dominantes no ocidente; ora é o médico de uma cultura doente e enfraquecida, marcada por forças e valores decadentes; ora o discípulo do deus ou do filósofo Dioniso que, ciente do caráter contraditório e ambíguo da existência e em contraposição às amarras da concepção metafísica de ser, quer proclamar a “inocência do devir” para “livrar” a cultura da escravidão a determinadas ilusões que devem ser desmascaradas a duros “golpes de martelo”; ora o filósofo trágico apto a favorecer a reconciliação entre o homem e a existência, anunciando o eterno retorno de todas as coisas e convidando o homem ao amor fati, a máxima aceitação da vida no que ela tem de mais precário e infame; enfim, o crítico da cultura que, em favor de si mesma, deve tentar se desfazer de seus modelos e de suas fantasmagorias e superar-se a si própria, através da transvaloração de todos os seus valores e da observação dos ensinamentos da arte.

Realidade múltipla, múltiplos “eus”. Eis o homem: intempestivo, extemporâneo, dinamite, fatalidade. Eis o homem: tão inteligente, tão esperto, tão sábio, escritor de tão bons livros, poeta de outras palavras, cantor de ditirambos, leve e ágil dançarino, criador de novos valores, legislador, alegre mensageiro, arauto de sofisticadas novidades, homem de gosto refinado. Eis a filosofia: crítica, demolidora, iconoclasta, imoralista e, ao mesmo tempo, afirmativa, ativa, construtiva, criativa, farejadora, alegre, alvissareira, experimental – uma filosofia do meio-dia, a hora sem sombras.

É, portanto, no exercício efetivo e no cumprimento do arriscado ofício da crítica severa, corrosiva e radical que o filósofo pode, “em contradição” com seu tempo, seus contemporâneos, sua cultura e os valores que lhe são próprios, combater, duelar e, ao mesmo tempo – ou por isto mesmo –, favorecer a irrupção de uma nova cultura, forte, viva, vigorosa, plena de estilo; uma cultura em que poderia prevalecer um tipo de homem distinto, em sua constituição fisiológica, do idealista e decadente, do pesado homem da metafísica e da moral, dos trasmundanos e dos pregadores da morte, dos desprezadores do corpo: um tipo de homem afirmativo, que olhasse a vida e o instante com o mesmo zelo e o mesmo cuidado com que se olha para uma obra-de-arte. A intempestividade é a chave privilegiada para a abertura de uma compreensão mais pertinente e mais fecunda do que se expõe sob o signo da atualidade e, mais do que isto, é pressuposto da possibilidade de invenção de novas formas de filosofia e de cultura.

Estar à frente de seu tempo e, neste caso, contrariar o habitual, entrar em seu tempo como um guerreiro, um esgrimista empunhando uma espada desembainhada, entrar na sociedade com um duelo, como diz, em 1874, a II Consideração intempestiva em alusão à palavra de Stendhal, colocar a “faca no peito das virtudes do tempo” (Nietzsche, 1992: §212) são, para Nietzsche, pressupostos essenciais de sua atividade filosófica, de sua crítica da cultura e do homem moderno. Distante e descrente de uma filosofia contemplativa, abstrata, fria e supostamente desinteressada como é, para ele, a filosofia ocidental desde o gesto socrático-platônico de consolidação da metafísica, da conformação da aliança entre ser e verdade, da atitude de expulsão do devir para a esfera da aparência e da instituição dos nefastos dualismos, Nietzsche não tem outra escolha senão oferecer uma filosofia que, “do alto” e com novos olhos, múltiplos e interessados, vislumbra o horizonte infinito a que é possível e necessário conferir múltiplas interpretações. Filósofo das “andanças pelo proibido” (Nietzsche, 1995: p. 18), “filósofo da suspeita”, filósofo-dinamite, filósofo de “orelhas pequenas”, “homem do amanhã e do depois de amanhã”, a “má consciência de seu tempo”, em face de seu mal-estar, de seu incômodo, de seu estranhamento e também da certeza do impedimento fisiológico de aderir ao que, decadente e pobre, medíocre e vulgar, deve ser ultrapassado, não tem outra escolha ou outra atitude a não ser olhar sua cultura de uma certa distância para, compreendendo melhor o que se passa entre os modernos, trazer à cena sua nova forma de pensar e avaliar. “Caminhante solitário e das alturas”, prefere olhar “do alto”: “do alto”, os olhos não aceitam a pura contemplação; antes, adquirem o frescor e a vitalidade necessários à compreensão de que a riqueza do que percebem exige a multiplicidade de interpretações e a destruição da unidade de um “eu” contemplativo. “Do alto”, os ouvidos não absorvem o “alarido” dos homens da planície; finos e seletivos, têm sagacidade suficiente para perceber refinadas nuances, novos sons, novos acordes, novas composições, nova música do mundo.

Filosofia é, então, ocupação dos que, ousados e corajosos, escalam montanhas e, sem transigir, experimentam o perigo das alturas e, não raras vezes, o “gelo da solidão” imponderável. Filosofar é tarefa para aqueles que, em face de sua inatualidade, penetram, frequente e fatalmente, o terreno da solidão, mas não se deixam desanimar nem sucumbir. Filosofar é tarefa, árdua quase sempre, para quem não apenas aguenta ou suporta, mas, muito além disto, procura, requer, exige, incondicionalmente, o abrigo da solidão, ainda que se ponha sempre à espreita e à espera de companheiros de irreverência, de andança, de procura e criação.

A filosofia assim entendida – distanciamento e combate, “olhar oblíquo” e de suspeita, atividade irremediavelmente solitária – não implica, porém, o movimento estéril e pessimista de ausência da existência ou a atitude rabugenta e intolerável de negação ou difamação da vida. Condição e, ao mesmo tempo, preço do exercício do filosofar tal como o entende Nietzsche, a imponderável aliança entre intempestividade e solidão não significa desprezo pela vida, único critério de avaliação dos valores, nem juízo negativo que desqualifica a vida em nome de um ideal além-do-mundo, além-da-terra. A intempestividade, sintoma, inclusive, de “fidelidade à terra”, não resulta de um alheamento do tempo presente: ao contrário, das alturas, pode-se enxergar melhor; na distância, maior a chance de proximidade e compreensão; na solidão dos cumes, a inegável oportunidade de criação.

A solidão, tantas vezes reclamada por Nietzsche como necessária, imprescindível, preventiva, purificadora e até mesmo acolhedora, a solidão, uma das quatro virtudes apontadas no aforismo 284, de Para além do bem e do mal (1992), não é sinal de desinteresse ou sintoma de inatividade. Longe disto! Para Nietzsche, é expediente primordial à conformação de um tipo de pensamento – não dogmático, não sistemático – que, fértil e generoso, incapaz de depreciar ou caluniar a própria vida, pode colaborar para o surgimento de “novas auroras” e “novas estrelas” – novos filósofos, filósofos-legisladores,  “filósofos do futuro”, filósofos-experimentadores, filósofos do “perigoso talvez”. Fundamental, constitutiva, plástica, marca de distinção e de singularidade, a solidão é, para Nietzsche, a hora e o lugar mais fecundos e mais férteis, mais pertinentes e adequados à depuração do olhar e da escuta, ao burilamento e à sofisticação do diagnóstico, ao enriquecimento das vivências, à confecção de múltiplas perspectivas e, sobretudo, à lapidação da dádiva, do presente que dela, inevitavelmente, sempre advém. Na solidão “dadivosa”, pensa Nietzsche, amadurecem os melhores frutos. Não por acaso, como uma taça que quer transbordar seu excesso, Zaratustra desce, alegremente, da montanha em que se isolara por dez anos para ir ao encontro dos homens que, pensa ele inicialmente, poderão aceitar o grande presente a eles destinado – o super-homem; não por acaso, Zaratustra, por excesso, resplandecente e luminoso, desce ao vale, a fim de entregar aos homens da planície o mais belo e exuberante segredo que a própria vida lhe confiara, a grande dádiva, o presente mais valioso, o eterno retorno. Solitária e intempestivamente, constroem-se diferentes formas de valorar e avaliar, diversa hierarquia de valores, renovadas séries de “objetos venerados”, outro amor. Do alto da solitária montanha, a inatualidade é, pois, fundamental ao diagnóstico, à recusa, à demolição, mas também e, sobretudo, à urgente tarefa de transvaloração de todos os valores e à invenção de renovadas formas de vida, de diferente modo de relação com a existência, o tempo, a temporalidade, bem diferente da relação de remorso ou arrependimento, de revolta ou de vingança, tal como é, para Nietzsche, a relação do homem que crê na linearidade com o fluir inexorável e irrevogável do tempo.

Intempestividade precoce, desde os primeiros escritos, Nietzsche não é compreendido por seus contemporâneos que, em sua franca opinião, não são criadores ou legisladores, dado o hábito de pensar através da ótica dos valores já consagrados pela moral da metafísica e da religião cristã, dado o apreço que ainda nutrem pela verdade. A voz de Nietzsche destoa na modernidade ainda presa à valorização da educação como erudição, à necessidade de constituição da ciência como explicação da realidade, ao “excesso de sentido histórico” ou a um tipo de historiografia que, apelando sempre à memória e às ideias de evolução, progresso e finalidade e não ao esquecimento, tão favorável à felicidade humana, em nada favorece o respeito à vida e ao que, no tempo, se perfaz. Os contemporâneos de Nietzsche, os contemporâneos de Zaratustra, “tagarelas” e repetidores, têm um julgamento limitado e inferior, pobre e enfraquecido, incapaz de ir à raiz das crenças e dos valores de sua época para tentar a travessia em direção à superação da moral adoecida e decadente e da concepção linear de tempo. Olhos embaçados, ouvidos embrutecidos e inertes, mergulhados e submersos numa cultura sem estilo e sem paixão, carentes do olhar artístico indispensável à crítica “farejadora”, carentes de “ouvidos finos”, sem faro seletivo, desejosos de se agregar às massas, falantes da linguagem comum e sem sangue, exangues, sem força, vigor ou vitalidade para amar a vida em seus aspectos mais ácidos e áridos, só podem aludir ao que é pequeno e medíocre, esquecendo-se do grandioso e fundamental: a própria vida, o “cultivo de si”, a riqueza do instante. Impossível ao filósofo-dinamite e, ao mesmo tempo, “alegre mensageiro” sentir-se inteiramente à vontade em seu tempo, encontrar parentesco ou pátria em seu hoje; o extemporâneo crítico da cultura transita, necessariamente, à distância e à contracorrente e se recusa a se apresentar, tranquilo, como um “fantasma da opinião pública”. Desde a juventude, Nietzsche repudia o “filisteu da cultura”, o “funcionário da filosofia”, o filósofo que, como um “cometa”, passa impunemente pelo céu de sua época. Seu interesse é muito diverso.

Diante da intempestividade precoce, muitas vezes, Nietzsche precisa pagar um preço tão alto quanto inevitável. Sem outra possibilidade senão a rejeição incontornável da mediocridade e da miséria de sua época, incompreendido e visceralmente solitário, Nietzsche, sabe dos imponderáveis perigos decorrentes de sua originalidade, compreende os riscos inerentes à sua intempestividade: todo filósofo corajoso que se pronuncia contra sua época e sua cultura está sujeito à incompreensão e ao isolamento. Desde cedo solitário, a solidão, sua amiga e confidente, quando é preço a pagar, em certa medida, incomoda. De companheiros, precisa Nietzsche, de alguém que sinta da mesma forma, que tenha os mesmos afetos ou afetos afins ou que seja afetado por sensações semelhantes. Diversos são os escritos em que ora se percebe o grande apreço pela vida solitária – a vida em gelo e silente nas ermas altitudes –, ora uma leve aflição, um indisfarçável desencanto em face do isolamento a que é submetido por muitos de seus contemporâneos que, em sua opinião, não tendo compreendido sua “missão” nem à grandeza de sua tarefa, reservam-lhe o destino de “homem póstumo” (Nietzsche, 1995: p. 18).

Mas “Alguns nascem póstumos”, diz ele, certo de que seu tempo – a cultura moderna – ainda não é o seu tempo: “que hoje não me ouçam, que hoje nada saibam receber de mim, é não só compreensível, parece-me até justo” (Nietzsche, 1995: Porque escrevo tão bons livros). Filósofo de muitos estilos, homem de outras palavras, mesmo decepcionado, Nietzsche permanece até o fim exaltando a solidão e a incompreensão como condições de determinação e distinção de sua filosofia e de quem ele é: não quer ser confundido por homens de “grandes orelhas” que em nada lhe interessam e não podem ser seus interlocutores. “Ouçam-me! Pois eu sou tal e tal. Sobretudo não me confundam!” (Nietzsche, 1995: p. 52).

Em Nietzsche, dois sentimentos, habitual e francamente, parecem se misturar: a vontade de ter companheiros com quem possa compartilhar a pesada e alegre tarefa de filosofar e avaliar os produtos culturais da era moderna em benefício da criação de uma nova cultura e, por outro lado, o desejo de permanecer solitário e incompreendido, ao menos pela massa dos “homens iguais”, pela maioria dos “animais de rebanho”, pelos homens “fracos e escravizados”, pelos “tagarelas” da praça do mercado, pelos apressados leitores que não sabem ruminar, ver e ouvir, por uma nação sem paixão, por uma época e por uma cultura sem estilo como é, para ele, a cultura moderna, bem diferente da cultura grega arcaica. Não por acaso, Assim falou Zaratustra, o livro mais mascarado e disfarçado de Nietzsche, é escrito, em linguagem poética e metafórica, “para todos e para ninguém”. “Não queremos apenas ser compreendidos ao escrever, mas igualmente não ser compreendidos. [...] Todo espírito e gosto mais nobre, quando deseja comunicar-se, escolhe também os seus ouvintes; ao escolhê-los, traça de igual modo a sua barreira contra ‘os outros’” (Nietzsche, 2001: §381, p. 284). Nietzsche se distingue e distingue seu leitor: sua palavra não pode ser ouvida por aqueles ainda submissos à pretensa soberania do intelecto e da razão; só pode ser ouvida por seletos, os que estão aptos a uma compreensão não-racional, mas corporal, afetiva.

Forte – o que não mata fortalece –, Nietzsche resiste: “tenho necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre, leve, alegre...” (Nietzsche, 1995: Porque sou tão esperto, §8). E resiste porque tem ciência de que é inteiramente outra a sua filosofia; filosofia é experimento, ensaio, artesanato de perspectivas; filosofar não é fugir do incontrolável da existência, tentando aprisioná-lo nas sedutoras e consoladoras malhas do ideal ou na apertada rede da palavra conceitual; filosofar não é difamar a existência em nome de um suposto além-do-tempo; cabe à filosofia a recusa da comodidade e da resignação diante do atual, a sugestão de conciliação entre tempo e eternidade, entre decisão e instante, a sugestão de aceitação e amor à vida – eterna oscilação entre a precariedade e o gozo – no que ela tem de incontrolável, obscuro, precário e infame.

A intempestividade, o afastamento crítico, vital à filosofia, não resultam, portanto, em inércia ou pessimismo. Certo de que a vida é, ela mesma, um eterno criar e destruir, a negação da filosofia ocidental aponta para outro tipo de filosofia que, ao invés de procurar por verdades eternas e depreciar a existência, afirma a vida no que ela tem de mais duro e cruel. Intempestividade e trágico se conjugam: intempestivo, Nietzsche repudia severamente; trágico, alia – ou reconhece a aliança entre – demolição e construção, aliança peculiar à própria vida, ela mesma trágica. Intempestivo e trágico – duas faces de um destino fatal: “derrubar ídolos”, golpear a marteladas as categorias filosóficas da metafísica e os valores cristãos, suspeitar das supostamente nobres ideias modernas – evolução, progresso, igualdade –, mas também e, sobretudo, reconhecer a dimensão trágica da existência, recusar seu tempo para se colocar a favor de um tempo vindouro, inventar nova forma de filosofar, favorecer o advento de um novo jeito de compreender a existência e o tempo. “Eu contradigo como nunca foi contradito, e sou contudo o oposto de um espírito negador. Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças” (Nietzsche, 1995: p. 110).

A intempestividade é, pois, sintoma da oposição, em certa medida, já apontada em O nascimento da tragédia, entre dois tipos de filosofia: a metafísica e a filosofia trágico-dionisíaca. Enquanto a primeira dissimula a existência na postulação do ser e das categorias unidade, permanência, substância e identidade, a segunda acolhe, elogia e inocenta o movimento, as transformações, a contingência, o caos e o acaso.

A filosofia trágico-dionisíaca é, ela mesma, intempestiva, mas também intempestiva a proclamação do seu retorno à cultura.

Desde O nascimento da tragédia, Nietzsche prenuncia, intempestivamente, a inevitável volta do pensamento trágico-dionisíaco ao seio da cultura ocidental. Tal prenúncio só é possível porque, desde o início de sua atividade filosófica, percebe que, mesmo com o duro golpe desferido pela racionalidade, o trágico-dionisíaco não é inteiramente desfigurado. Se a vida é precariedade e ambiguidade, à espreita, permanece, na cultura, o pathos trágico. Desde o texto de 1871, Nietzsche se certifica de que o espírito dionisíaco não se subjuga inteiramente à racionalidade – a vida mesma é incontrolável e, desta forma, não pode ser plenamente suprimido ou privado de expressão. O texto, que embalado pela convicção do retorno do trágico, é uma crítica da modernidade, indica o predomínio do socratismo na cultura ocidental, mas também o imponderável renascimento da concepção trágica, “a ressurreição do espírito dionisíaco” (Nietzsche, 1995: p. 121), espírito que, segundo Nietzsche, já presente à cultura moderna, voltará a prevalecer. Assim como o otimismo teórico predomina na cultura ocidental, o espírito dionisíaco, reprimido pela racionalidade, mas sempre presente à cultura, pode, insurgente, insistir em se sobrepor ao ideal socrático. Esta é a expectativa de Nietzsche, médico e psicólogo que não quer somente diagnosticar a doença de uma cultura decadente como a moderna, mas pensar alternativas de superação daquilo que, no seu entender, é extremamente nefasto à cultura a  disjunção entre filosofia, arte e vida, a desconsideração da existência temporal.

À época de elaboração de O nascimento da tragédia, a música de Wagner e a filosofia de Kant e de Schopenhauer guardam o indício do retorno do trágico. Cada um a seu modo, os três são testemunhos de que, na modernidade, já se contém o aparentemente irrefreável desejo socrático de encontro da “verdade a qualquer preço”, mesmo que o ideal de conquista do verdadeiro ainda se manifeste na ciência moderna. Embora não tenham propriamente excedido os dualismos metafísicos, Kant e Schopenhauer têm o grande mérito de proceder a uma crítica importante – ainda que não suficiente – da razão e de sua suposta competência absoluta, o que sugere o início do esgotamento da metafísica, o decréscimo da crença outrora professada tão veementemente por Sócrates e, atreve-se Nietzsche a dizer, a introdução de uma cultura trágica. Em O nascimento da tragédia, bem próximo da concepção schopenhaueriana e wagneriana de música e, portanto, nitidamente inspirado em Wagner e em Schopenhauer, Nietzsche acredita que, pela arte e, em especial pela música, neste momento, personificada por Wagner, o espírito alemão poderá reencontrar-se a si próprio, já que a hipertrofia da racionalidade e o poder da lógica não aniquilam absolutamente o pathos trágico.

Até o final de sua atividade filosófica, de certa forma, Nietzsche, permanece fiel à sua inspiração inicial sobre o trágico: extrapolando os limites de uma reflexão puramente estética interessada em pensar a tragédia como gênero literário, a reflexão sobre o trágico pode valer como uma espécie de fio condutor da crítica nietzschiana da filosofia e da cultura, desde o livro de 1871.

Enquanto no livro de 1871, Nietzsche vê em Kant, Schopenhauer e Wagner o sintoma da reapresentação do espírito trágico pré-platônico ao solo cultural da Alemanha de seu tempo, em obras ulteriores – especialmente as que compõem o período iniciado com Assim falou Zaratustra –, o ressurgimento do trágico é compreendido como o resultado incontornável do acontecimento mais significativo da modernidade, a morte de Deus, e referido, necessariamente, a outros temas importantes: super-homem, vontade de potência, niilismo e, especialmente, eterno retorno e amor fati. Com a constatação da morte de Deus, Nietzsche, que nesta época já havia destilado sua crítica a Wagner, Kant e Schopenhauer, encontra outras razões para se pronunciar, intempestivamente, sobre a volta do trágico-dionisíaco que, abafado desde o gesto socrático na Grécia clássica, aceita a fatalidade do devir inocente e sem objetivos.

Explícita no aforismo 125 de A gaia ciência denominado O insensato e, logo em seguida, em Assim falou Zaratustra, a morte de Deus é, para Nietzsche, o fato mais espetacular da modernidade: é sinal indicativo do esgotamento da metafísica. Ainda que a modernidade não compreenda plenamente seu significado, é inegável que seus efeitos podem ser vislumbrados na era moderna. Intempestivo, Nietzsche compreende que a modernidade ainda não é a hora de instituição de uma nova tábua de valores porque os modernos ainda não levam a morte de Deus às últimas consequências: sobretudo pela ciência, a modernidade perpetua o ideal ascético, continua a reconhecer a verdade como valor superior e, com a permanência do ideal de verdade, não se livra das “sombras de Deus”. Nietzsche admite a eficácia da moral cristã ao reeditar o ideal socrático-platônico, percebe a durabilidade dos valores cristãos – não só na religião, mas, por exemplo, na política –, reconhece claramente que a influência da moral cristã ainda será sentida pelo menos por mais dois séculos, pondera que a herança do cristianismo não pode ser rapidamente desfeita e que, por isto mesmo, não basta anunciar uma nova doutrina, um novo pensamento, mas na morte de Deus, pressente uma espécie de condição, embora não suficiente, para a configuração de uma nova forma de pensar e valorar e, em última instância, para o retorno do trágico. A morte de Deus é acolhida por Nietzsche como um dos ingredientes capazes de alimentar o processo de configuração de uma nova era, não mais inspirada em antigos ideais e antigos valores, mas na arte, na criação e no modo trágico de compreender a existência e o tempo, na compreensão da dimensão trágica da vida e de tudo o que ela encerra de mais infame, doloroso e precário. Com a morte de Deus, certamente o homem pode continuar a “blasfemar contra a terra”, mas, ainda assim, é possível entrever a possibilidade de configuração de novas experiências. Nietzsche admite que a superação da moral só poderá acontecer depois de um longo tempo de triunfo do niilismo, mas, ainda assim, a morte de Deus é um dos elementos mais importantes à crítica nietzschiana da modernidade, não só porque está diretamente relacionada à crítica da metafísica, mas sobretudo porque é abertura a novos experimentos. A morte de Deus é a manifestação do diagnóstico do niilismo moderno, mas carrega consigo a semente da superação e já é sintoma da derrocada da metafísica. Se, em O nascimento da tragédia, os indícios de ressurgimento do trágico reúnem-se em Wagner, Kant e Schopenhauer, agora a expectativa se exprime na morte de Deus e se consuma no pensamento abissal do eterno retorno. Se, em sua primeira grande obra, a volta da cultura trágica é algo imponderável, no terceiro período, o retorno do trágico-dionisíaco pode ser precipitado pela exacerbação do niilismo – especialmente pelo anúncio do eterno retorno – característico da modernidade. Homem de seu tempo, embora imponderavelmente intempestivo, inatual, homem das alturas, andarilho seduzido a pensar e caminhar contra sua época, “contra a corrente da história”, Nietzsche avalia o perigo das consequências da morte de Deus, mas antevê, neste acontecimento sem igual, inauditas promessas de futuro. A maior e mais importante promessa é precisamente a volta do trágico, a composição de uma nova cultura: a morte de Deus pode invocar a presença de impulsos humanos até então inusitados, promover a lembrança ou o retorno de pulsões esquecidas e impulsos abafados pela racionalidade, induzir ao abandono da visão moralista da metafísica e da religião cristã, abrir caminho para a superação do niilismo assustador em que se encerra o Ocidente e, finalmente, favorecer a construção de uma nova hierarquia de valores.

De fato, nós filósofos e ‘espíritos livres’ sentimo-nos, à notícia de que ‘o velho Deus está morto’, como que iluminados pelos raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro, pressentimento, expectativa – eis que enfim o horizonte nos aparece livre outra vez, posto mesmo que não esteja claro, enfim podemos lançar outra vez ao largo nossos navios, navegar a todo perigo, toda ousadia do conhecedor é outra vez permitida, e o mar, nosso mar, está outra vez aberto, talvez nunca dantes houve tanto ‘mar aberto’ (Nietzsche, 2001: §343, p. 233-234).

A morte de Deus é, então, uma novidade plena de consequências positivas para o homem e para a cultura. Na constatação da morte de Deus não se pode inscrever a postulação de um novo fundamento para a existência, a proposta de uma espécie de salvação messiânica ou a proclamação de um ideal, no sentido tradicional do termo, mas, em Nietzsche, justifica-se a alegre exaltação da dimensão positiva e afirmativa da morte de Deus, motivo de alegria porque favorece a instituição do tempo da contestação do otimismo teórico e da recusa da concepção idealista que anima a cultura ocidental desde Sócrates e Platão, da rejeição da relação judicativa com a vida, da superação dos dualismos e de uma moral nefasta, equivocada e enganadora como a moral da metafísica e da religião cristã; numa palavra, do tempo da reapresentação da cultura do vigor dionisíaco. Apoiado nas ideias de força e vontade de potência, super-homem e eterno retorno, sobretudo depois de Assim falou Zaratustra, é categórica a assertiva de que a existência – irremediavelmente trágica – merece a afirmação incondicional e ininterrupta de seu eterno movimento de criação e destruição. “Primeiro filósofo trágico”, Nietzsche exalta o tempo da inocência e do acaso para assegurar a plena justiça da existência e a irremediável necessidade do amor fati. Com o declínio das ilusões metafísicas, religiosas e políticas, o homem poderá, sem ressentimento, como artista ou como criança, afirmar a existência e a eternidade do instante presente num generoso sim à totalidade da vida.

Aqui, pode-se trazer à cena a crítica nietzschiana ao “excesso de sentido histórico”, ao apego exagerado aos fatos históricos, à valorização da história como ciência. Desde a Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche reclama por uma história que esteja a serviço da vida e uma história a serviço da vida pressupõe um sentir “a-histórico”, fora da linearidade e da causalidade. Desde a Segunda Intempestiva, Nietzsche reclama por outra relação com o tempo e com o passado. É precisamente aí que se expõe uma das faces positivas do esquecimento: ao convidar o leitor a pensar na cena de um animal pastando, calma e livremente, metaforicamente, Nietzsche alude à necessidade de atenção ao instante e à capacidade de escapar à linearidade que pode levar o homem ao remorso ou ao ressentimento, ao enfado, ao fastio. O animal não carrega o peso do passado nem a expectativa do futuro. Assim como a criança absorta em sua brincadeira, o animal, que nem do presente pode ter ciência, escapa à relação nociva com o tempo. Viver o instante em sua singularidade pode evitar que o homem seja “um mau espectador do passado” (Nietzsche, 2000: Da redenção). Sem a atividade do esquecimento, sem uma espécie de dosagem ou de medida da memória, impossível a felicidade: “que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico quando de modo a-histórico”. Não por acaso, o anúncio da reaparição do trágico está, em obras tardias, associado, especialmente, ao pensamento do eterno retorno: exacerbar o niilismo até o extremo com a hipótese de que tudo retorna pode provocar, pensa Nietzsche, o advento de uma outra relação com a existência e o tempo, uma relação em que o sim de Dioniso proclame o amor pela eternidade da existência temporal. Ainda que tudo retorne incessantemente, a vida merece o júbilo, o riso, a alegria, a afirmação amorosa e incondicional. Não há motivo para a vingança contra a vida, contra o tempo, contra o caráter irrevogável do tempo. O eterno retorno, o pensamento abismal, abissal, o “pensamento dos pensamentos” é a máxima expressão da filosofia trágica: oposto ao espírito de vingança contra o tempo que passa, contra o caráter irrevogável do tempo, é expediente de recusa da concepção de tempo linear que, não raro, leva o homem pensar no passado como um fardo. Com o provocativo pensamento do eterno retorno, importante elemento da filosofia experimental, Nietzsche sugere que o homem (re)afirme permanentemente a necessidade de se reconciliar com o tempo e de querer a vida, a ela concedendo um exuberante sim dionisíaco: “Redimir o passado [...] e recriar todo o ‘Foi assim!’ até que a vontade diga: ‘Mas assim eu quis! Assim hei de querê-lo!’” (Nietzsche, 2000: Das velhas e das novas tábuas). A plasticidade do esquecimento e a atividade da memória aliam-se à tragicidade da afirmação do eterno retorno e da aceitação, incondicional, da vida.

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Uma vez intempestivo, sempre intempestivo! Num tempo das informações apressadas e velozes, a exigência da ruminação, da leitura lenta; num tempo de horror à solidão, a exigência de “pôr-se de lado”, de “ficar silencioso”, de “retornar a si”; num tempo de tirania da felicidade confundida com conforto e bem-estar, num tempo em que se assiste ao extremo poder da mídia e à servidão à tecnologia; num tempo de medicalização exagerada dos gestos e do comportamento, da vontade de escapar das rugas e da velhice; num tempo de “instrução sem vivificação”, do império da lógica do mercado, da invasão do pensamento pela lei da produtividade, talvez Nietzsche ainda nos convidasse a esquecer, isto é, a não glorificar, ingênua e passivamente, as imposições do nosso presente. Talvez nos convidasse a recordar o que, em nós, há de mais forte como modo de resistência às diversas e sutis formas de governo da vida, como tentativa de expressão do que, em nós, há de mais singular e mais próprio. Talvez nos dissesse que, em benefício da autonomia do pensamento, a filosofia, se não quiser se adaptar continuamente e, com isto, manter o atual, será – deverá ser – sempre intempestiva.

Referências bibliográficas

NIETZSCHE. Além do bem e do mal, prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

_____ Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém. 11ª ed. Tradução Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

_____ A gaia ciência. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

_____ Ecce homo, como alguém se torna o que é. Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.