12. Nem ele, nem ela: só garotos

12. Not He, not She: Just Kids

Ana Chiara

Resumo

Tomo, como ponto de partida, a oscilação de gênero, no livro Just Kids (Só garotos) de Patti Smith, cuja narração memorialística torna intercambiável a definição entre garoto e garota, entre as imagens feminina e masculina de Patti e de Robert Mapplethorpe, durante o período da emergência da moda unissex, das transformações comportamentais da década de setenta. Elejo, portanto, um começo para entender de que modo a desconstrução do masculino, que é o caso que interessa neste trabalho, pode ferir a narrativa dominante “dominant fiction”, segundo Kaja Silverman, de modo a criar não uma narrativa contra-ideológica mas o que chamo de “contranarrativa”, reação de hipersensibilidade que contamina o discurso hegemônico e deixa que o corpo masculino se apresente vulnerável, abatido, em risco, no centro mesmo de onde emana seu poder simbólico, como é o caso das escolhas de imagens masoquistas de alguns retratos de homem realizados por Mapplethorpe e do radical solo do performer Andre Masseno, em OUTDOOR CORPO MACHINE examinado neste trabalho.

Palavras-chave | Corpo masculino | gênero | Patti Smith | André Masseno | dominant fiction | contranarrativa

Abstract

I take, as a starting point, gender oscillation in the book Just Kids by Patti Smith, whose narrative memoirs makes the definition of boy and girl interchangeable, as seen in feminine and masculine images of Patti and by Robert Mapplethorpe during the emergence of unisex fashion and behavioral changes of the seventies.  This is a starting point for understanding how the deconstruction of the male, what is of interest here,  can cut into the dominant narrative (what Kaja Silverman calls dominant fiction”) in order not to create a counter-ideological narrative, rather to create what I term a counternarrative”. This entails a reaction of hypersensitivity that contaminates the hegemonic discourse and lets the male body present itself as vulnerable, dejected, at risk, even from the center from which its symbolic power emanates, as seen in the choice of masochistic images in some of the portraits of male bodies photographed by Mapplethorpe and in Andre Masseno's radical solo performance, OUTDOOR BODY MACHINE, examined in this work.

Keywords | Male body | gender | Patti Smith | André Masseno | dominant fiction | counternarrative

Ana Cristina de Rezende Chiara (Ana Chiara), Doutora em Letras pela PUC-RJ, Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.  Dedica-se à pesquisa nos seguintes temas: corpo, sexualidade, memória. Autora dos livros Pedro Nava: um homem no limiar (EDUERJ, 2001), Ensaios de Possessão (Irrespiráveis) (Caetés, 2006), e Angela Melim por Ana Chiara (Col. Ciranda de Poesia EdUERJ, 2011). Participa do GT ANPOLL de Literatura Comparada e coordena o GPESq Corpo & Experiência (http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com/). 

Ana Cristina de Rezende Chiara (Ana Chiara), Ph.D. in Literature (PUC-RJ), is an Adjunct Professor of Brazilian Literature at the State University of Rio de Janeiro (UERJ). Her research centers on the following themes: the body, sexuality, and memory. She is the author of Pedro Nava: um homem no limiar (Pedro Nava: a Liminal Man, EDUERJ,2001),  Ensaios de Possessão (Irrespiráveis) (Essays of Possesion (Breathless), Caetés, 2006), and Angela Melim por Ana Chiara (Col. Ciranda de Poesia EdUERJ, 2011). She participates in the ANPOLL Working Group of Comparative Literature and coordinates the GPESq Body and Experience (http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com/).


Nem ele, nem ela: só garotos

Not he, not she:  just kids

Ana Chiara

O poeta ficou afogado no fundo de sua meditação. Um corpo emerge. Explicações não cabem nos limites. Tudo é presença.

(Kiki Peixoto. http://kikipeixoto.blogspot.com/)

O Ator que entra vem do nada?   

(Valère Novarina. Para Louis de Funès.)         

                                                                        Para André Masseno,

Interessa, neste trabalho, particularmente, o corpo masculino tanto em suas biometáforas1 (Bordo, 1999) hegemônicas, atléticas, investidas de poder simbólico, como também pela a suavização desta imagem pela estética unissexual, bi, trans, ou gay, com corpos de musculatura alongada, corpos mais magros, mais femininos. E, por fim, também a desconstrução desse imaginário, na exposição do masculino vulnerável, ou posto em risco.

O corpo nu não é novidade na arte, mas provoca, de acordo com a cultura em que se insere, reações diversificadas. No Ocidente moderno e contemporâneo, enquanto a nudez feminina continua sendo recebida, pelo olhar público como “natural”, a nudez do homem, principalmente se negro, ainda provoca escândalo e questões. Susan Bordo cita o comentário de John Ashbery no New York Magazine: “O nu feminino parece estar no seu estado natural. Os homens, por alguma razão, simplesmente parecem estar sem roupa... Quando um nu não é nu? Quando é masculino”2 (Bordo, 1999: p. 179). Bordo percebe no comentário de Ashberry as várias “saídas de armário” da face mais reativa da cultura americana. O comentário “põe a nu” a cadeia de preconceitos cujas raízes partem do racial, passam pelo preconceito homofóbico e, por fim, desvelam o aspecto reificado do corpo humano na cultura burguesa.

Tomo, como ponto de partida para pensar as questões de gênero neste artigo, os pequenos deslocamentos que vão sendo operados no âmago do falocentrismo, a oscilação de gênero, no livro Just Kids (Só garotos) de Patti Smith, cuja narração memorialística torna intercambiável a definição entre garoto e garota, entre as imagens feminina e masculina de Patti e de Robert Mapplethorpe, durante o período da emergência da moda unissex, das transformações comportamentais da década de setenta. Elejo, portanto, um começo para entender de que modo a desconstrução do masculino, que é o caso que interessa neste trabalho, pode ferir a narrativa dominante “dominant fiction”,3 segundo Kaja Silverman, de modo a criar não uma narrativa contra-ideológica, como poderia ser a do discurso feminista, mas o que chamo de “contranarrativa”, uma espécie de reação de hipersensibilidade que contamina este discurso hegemônico e deixa que o corpo masculino se apresente vulnerável, abatido, em risco, no centro mesmo de onde emana seu poder simbólico, como é o caso das escolhas de imagens masoquistas de alguns retratos de homem realizados por Mapplethorpe e do radical solo do performer Andre Masseno, em OUTDOOR CORPO MACHINE.4

Na literatura brasileira dos anos 70, a presença intensa do corpo de um crioulo dançarino, no conto “A força humana”, de Rubem Fonseca, tornou-se antológica mesmo revelando certo estereótipo que definido como macho negro atlético: “Era alto; no meio da dança, sem parar de dançar, arregaçou as mangas da camisa, um gesto até bonito, parecia bossa ensaiada, mas acho é que ele estava era com calor, e apareceram dois braços muito musculosos que a camisa larga escondia. Esse cara é definição pura pensei” (Fonseca, 1991: p. 13). Silviano Santiago em “Errata”, posfácio ao livro Coleira de cão, de Rubem Fonseca,5 comenta o modo como Rubem se torna o anatomista da prosa literária dos anos 70: “Ele é o prosador por excelência do corpo na nossa literatura: peitorais, costureiros, bíceps se cruzam com pernas, seios e bundas. Suas descrições dos corpos dos atletas ou das mulheres são sempre antológicas [...]” (Santiago, 1982: p. 61). Essa figuração do corpo crioulo em “A força humana” reafirma os estereótipos masculinos hegemônicos acrescidos de certo ressentimento masculino de fundo racial fundado em teorias cientificistas do século XIX que aproximavam força e potência dos negros de certa animalidade mais próxima da natureza. Não se esgota, porém, nessa reedição de O bom Crioulo, positivada com a supremacia para o negro a complexidade que Rubem Fonseca imprime ao representar o corpo nos anos setenta. A comprovar que as questões sobre corpo/sexualidade apenas começavam a apresentar maior problematização, no mesmo livro de Rubem, o conto “A opção” lança a questão da mudança de sexo. A linguagem deste conto permanece no campo científico e desapaixonado do realismo fonsequiano, segundo se nota pelo seguinte comentário de Silviano Santiago: “seres ambiformes, seres ambisséxuos, que diante do médico ou da comissão médica esperam o momento da decisão, quando enfim lhes será designado, pela perícia do bisturi, o seu verdadeiro sexo, a sua forma definitiva” (Santiago: 1982, p. 61). Constata-se, destes exemplos, que o corpo humano apresentado nas narrativas progressivamente vai-se tornando presente como um campo de possibilidades indecidíveis, cujas imagens vão do aproveitamento irônico dos clichês assimilados no imaginário às rupturas e possibilidades das mudanças de padrões comportamentais e mesmo biológicos que atualmente vivenciamos vertiginosamente.

Assiste-se, a partir de então, a uma crescente produção de imagens do corpo na forma de “imagens invasivas” (cf. Susan Bordo), aquelas que provocam nossa fantasia, nossas sensações, sem, muitas vezes, sequer as experimentarmos em nossos próprios corpos a não ser como “voyeurs” excitados. O corpo progressivamente vai deixando a abstração simbólica para converter-se em matéria, carne, ou, como diz Gumbrecht (2010), em “produção de presença”, provocando o leitor, ou o público, afetando-o com intensidades insuspeitadas.

Num campo mais exigente e complexo, como o campo da arte, alguns criadores expressam a sensibilidade artística ferida pela saturação da fantasia e pedem algo mais visceralmente ligado ao desejo, conforme provocação de Valère Novarina: “(Mas) vi muito pouca carne de homem, ouvi muito pouco soar a língua francesa, ouvi pouco as consoantes, os ritmos, vi muito pouco o ator entrar de verdade” (Novarina, 2009: p. 27). Tratar-se-ia, então, de uma demanda mais rigorosa, de uma nova aprendizagem da “Língua” do corpo.

No livro de Patti Smith, o código corporal passa por um estado de turbulência que remete a essa nova “língua”. As remissões à indiscernível identificação de comportamentos até dos gêneros no casal, formado por Patti e Robert, proliferam pelas páginas. Para citar algumas:

Costumávamos rir de nós mesmos, dizendo que eu era uma menina má tentando ser boa e que ele era um bom menino tentando ser mau. Com o passar dos anos esses papéis se reverteriam, depois reverteriam de novo, até que acabamos aceitando nossa natureza dual (Smith, 2010: p. 18).                               

Robert reagiu como um gêmeo amado. Seus cachos escuros mesclavam-se ao emaranhado do meu cabelo... (p. 80).

- Vc. é menina? Perguntou.

- Sou, falei, algum problema?

Ele só deu risada. _Desculpe. Achei que vc. fosse um menino bonito (p. 119).

(Depois de Patti haver cortado o cabelo como Keith Richards) [...] alguém no Max’s me perguntou se eu era andrógina. [...] o que quer que significasse, com um simples corte de cabelo virei andrógina da noite para o dia (p. 134).

Não sei como ele faz isso, mas, em todas as fotos que (Robert) fez de você. (Patti), você está se parecendo com ele (p. 250).

Quem é o garoto? Quem é a garota? Em plena efervescência dos corpos na cena artística novaiorquina, Patti e Robert vivem o ineditismo de um casamento aberto e a busca de se expressarem, sobretudo, como desafio aos modelos estabelecidos, tanto no campo da linguagem, como da moda e também do comportamento. A moça de aspecto masculino e a delicada beleza do rapaz invertem os sinais dos papéis bem demarcados. “Ninguém vê as coisas como nós, Patti” é o mantra recitado ao longo do livro.

Deste desmanche da polaridade entre gêneros, interesso-me por uma “desconstrução do masculino” insinuada e pelos aspectos traumáticos que serão infligidos à imagem heterossexual, burguesa e falocrática, dos discursos triunfantes do período.

A opção de Robert Mapplethorpe pela fotografia coroa sua sensibilidade estética até então dedicada a instalações. Seus retratos de homens em poses “masoquistas” nunca repetem a vida. Essas poses, muitas sem que a cabeça do modelo possa ser vista, dão ao pênis uma feição escultórica e artificial, muito maior do que a dimensão dos nus da arte clássica, pois eram arranjadas, com rigor e estilo, para atingir uma forma perfeita de um Adônis moderno e chocaram a opinião do público, ao decapitarem o homem e exibirem o pênis de forma perturbadora e ostensiva.

Robert Mapplethorpe, Man in Polyester Suit (ZC9)

Robert Mapplethorpe, Man in a polyester suit

(http://images.artnet.com/artwork_images_424149003_242768_robert-mapplethorpe.jpg)

A exibição de um pênis negro, saindo da braguilha de um terno, na foto “Homem de terno de poliester”, cria uma espécie incômoda e invertida de exibição da potência masculina ao retirar de cena a cabeça do modelo, emblema da racionalidade, pondo em destaque a sexualidade paradoxalmente oferecida e subjugada como um pedaço de carne real, “the real thing”. Essa ferida aberta no imaginário de uma América branca e racista é oferecida por Mapplethorpe de forma amorosa, despudorada e ambivalente. Sua busca era pelo jogo de luzes e sugestões eróticas num nível até então desconhecido pela fotografia de arte que não elide o corpo do modelo. Ao deslocar o corpo masculino negro do plano da pornografia de massa ao bem cuidado da arte fotográfica, Robert Mapplethorpe parece esfregar no rosto do público objetos de desejo recalcados e mantidos à sombra pela “narrativa dominante”. Ou seja, como se lê no livro Uma mente própria, aquilo que numa “demonstração ao vivo da superioridade genital do africano em relação ao europeu era mais do que o homem branco podia aguentar” (Friedman, 2002: p. 128).

Artistas, como Mapplethorpe, acabam arriscando suas próprias fragilidades ao expor o corpo do seu desejo, materializado no corpo do homem negro, num misto de magnificação e reificação, complexo e genialmente acintoso, que, de início pode provocar uma disrupção no complexo cultural branco, heterossexual, mas, que acaba sendo reapropriados por seu potencial de consumo por esse mesmo sistema. No caso, ele usava as convenções da fotografia de moda para confrontar aspectos da cultura, mas, ao mesmo tempo, pode ter contribuído para, em meio ao escândalo, reforçar esses mesmos preconceitos, numa espécie de “triunfo do consumismo” (Bordo, 1999: p. 179) ao apresentar o nu masculino como objeto sexual.

Para Patti Smith o que preocupava Mapplethorpe eram os aspectos plásticos de suas fotografias, seus jogos de volumes e luzes. Mas, admitindo de modo implícito o realismo contido ali, ela escreve em seu livro que Robert nunca pediria desculpas por isso: “Suas imagens não estavam dizendo: Sinto muito, meu pau está para fora” (Smith, 2010: p. 216).

O que estou delineando, talvez de forma arbitrária, é uma linha contranarrativa que corrói a dominant fiction, e que se insinua no embaralhamento das identificações sexuais e dos emblemas masculinos – nem garoto, nem garota: só garotos,6 ou seja, no caso, gêneros em trânsito – do casal Patti e Robert, ícones do unissex, embaralhamento que se estende pela fotografia-de-arte do corpo negro homossexual, com suas implicações ambivalentes.

Um outro modo de lidar com a questão segue, a meu ver, no comentário crítico performatizado no trabalho OUTDOOR CORPO MACHINE de André Masseno, que passo a examinar. Neste solo, o corpo do homem se expõe num crescendo de poses que vão da estatuária clássica, da beleza e graça atléticas, culminando no símbolo do homem-razão com a pose de “O Pensador”, ao corpo-mítico de um fauno, ser híbrido e sedutor, até progressiva reificação do corpo masculino, o corpo-coisa, corpo-boneco, corpo-máquina. No caso, Masseno põe em prática a indagação intelectual que norteia suas pesquisas acadêmicas, dando origem à dissertação de mestrado, intitulada: Ele está presente: a obra de Silviano Santiago e as performances do artista perigoso.7 Na dissertação, André Masseno trata conceitualmente da “performance do artista perigoso”, cuja projeção prática será a performance OUTDOOR CORPO MACHINE, que apresentou no Festival. Masseno, ao ler um artigo em que comenta o trabalho de Marcelo Evelyn, usa o conceito de “contágio do artista perigoso”: como um operador de leitura, não-pragmático e flexível, que pode abranger produções artísticas de décadas subsequentes, que lidam com problemas de gênero e sexualidade. Sendo assim, permito-me apropriar desta noção para empreender uma leitura breve e nada exaustiva de duas produções da dança contemporânea brasileira que colocam em xeque o desejo da esfera social de normatização e catalogação de comportamentos sexuais considerados dissidentes. Produções que são perigosas por evidenciarem que as estruturas binárias homem e mulher, masculino e feminino, homossexual e heterossexual, são precárias e insuficientes para dar conta dos corpos na contemporaneidade (Masseno,  Festival Move Berlim, 2011).

A performance de Masseno, em consonância com suas indagações,  leva ao limite os aspectos fixados no imaginário por imagens do corpo masculino veiculadas na mídia e fixadas no imaginário como “imagens invasivas”, deixando que, por uma estratégia de saturação e de esforço físico levado ao limite, essas imagens se contradigam em tensão, se disseminem de forma absolutamente rigorosa e controlada até que esse esforço maquínico faça com que se desmanchem.

Do que se trata? No quadrado delimitado pelo espaço da performance, com poucos objetos cênicos,  o corpo do artista, que desde o inicio é submetido ao movimento repetitivo da música que ouve num aparelho, em seguida ensaia e depois repete poses de revistas Gays e escreve algumas frases em tiras de papel. As variações das frases, escritas pelo performer, dialogam com a presença excessiva do corpo que vai da “abstração” simbólica da potência e poder masculinos em poses sensuais e oferecidas ao desejo do público àquelas de submissão patética ou mesmo masoquista, das biometáforas, no conceito de Susan Bordo, que são aquelas imagens genéricas, ao silêncio ofegante do corpo ao final da performance. 

A partir desses movimentos corporais que reenvio agora à fascinação exercida pelo corpo do dançarino crioulo no conto de Rubem Fonseca, as cenas são referendadas por frases irônicas como as de Oscar Wilde: “Para ser grego não precisa ter corpo / Para ser medieval não precisa ter roupa/ Para ser moderno não precisa ter alma” (Oscar Wilde), que sublinham a perda de “presença” no mundo contemporâneo; às comutações das frases Heroico / (H)eróTico, passando do heróico-hierático ao erótico incômodo; da referência ao mítico de A tarde de um Fauno / até à referência ao michê de A tarde de um menino do Rio. Também apontam para o desfazer masturbatório, das cenas de sedução e de sujeição do garoto, do menino do Rio, do michê, e desembocam no uso do corpo dentro de um sistema de consumo irrefreável, em 100 meninos do Rio nus, Meu Reebok, Meu Nike, Meu Adidas, Meu tênis moderno, culminando com a escrita de sangue na pele, por escarificações provocadas por uma hipersensibilidade alérgica,  reação do sistema imunológico.   

André Masseno: OUTDOOR CORPO MACHINE. Foto: Nilmar Lage.

Ao contrário do senso comum que considera a performance como algo eventual e mesmo improvisado, neste projeto de André Masseno tudo está referenciado e calculado com rigor. O circuito de referências utilizadas aponta a importância que tanto Oscar Wilde quanto Nijinski tiveram para o desenvolvimento das lutas pela diversidade sexual. Tanto Wilde, um “artista perigoso” que foi castigado com a prisão por seu “ativismo” avant la lettre, quanto o dançarino russo conferem à performance potência política de discussão e transgressividade no universo pretensamente tolerante, mas ainda eivado de preconceito.

O corpo e a performance de Nijinski são paradigmáticos do turning point da dança quanto ao corpo masculino em cena. Se até este dançarino o corpo masculino no balé estava aliado à força viril que agia como suporte para o corpo da bailarina, no caso em questão esse paradigma começa a ser rompido. Vejamos como Masseno equaciona a questão de poder do coreógrafo nos bastidores e do bailarino em cena:

Neste período (anterior ao século XX), a figura masculina não podia ser emocional e cenicamente expressiva, enquanto, paradoxalmente, o coreógrafo e o produtor eram homens e figuras centrais no poder, ditando a organização coreográfica e a maquinaria do espetáculo. O foco de atenção direcionava-se à bailarina, que então tinha o seu corpo controlado pelo olhar masculino ao lhe depositar imagens de graciosidade; olhar que a idealizava sobre uma condição etérea, e que desumanizava cenicamente o seu corpo em meio a imagens de sílfides, cisnes e fadas, retirando-lhe a devida carnalidade (Masseno, Festival Move Berlim, 2011).

Ramsay Burt, no livro The male dancer (1995-2007), reporta-se ao caráter “andrógino” do bailarino russo cujo corpo e performance ressaltavam as qualidades de “graça, inocência e pureza” associadas  à estética andrógina. A ambiguidade de Nijinski derivava, segundo ele, de “muitas descrições contemporâneas [que] atribuem qualidades andróginas à sua dança, enfatizando seu poder másculo, mas com sensualidade feminina”8 (Ramsay, 2007: p. 69).

Essa ambiguidade do bailarino russo era reforçada pela sensualidade equívoca (por vezes descrita como masturbatória) de um ser mais próximo à natureza (um fauno), criando uma situação de alta voltagem erótica, perturbadora para o público, mas ainda distante e estranha ao cenário da “vida real”.

L’après-midi d’un faune (1912)

(http://mediatheques-montereau.eklablog.fr/sisley-musique-et-impressionnisme-3-a37883256)

Masseno fratura esse contrato de aceitabilidade entre Serge Diaguilev (o coreógrafo de Nijinski) e o público ao atualizar a figura do “Despertar de um fauno” aliando-a à “tarde de um menino do Rio”, expondo, desta forma, o caráter muito mais perturbador de um oferecimento masculino muito próximo do público. Neste momento, rompe-se a carapaça ou blindagem do corpo musculoso viril, “suporte” da bailarina, em função da emergência de um corpo nu e sexualmente marcado, mas afastado das conotações de nudez natural, lembro observação anterior sobre a nudez masculina, feita por John Ashbery. O corpo masculino nu nesta performance está em causa; não obviamente o corpo do artista. Neste sentido, o performer faz com que seu corpo em carne viva torne-se uma presença virulenta ou perigosa, como ele mesmo define esse tipo de performance, encarnando imagens de corpos masculinos cujas poses não deixam de misturar força e derisão, sensualidade e submissão. Trata-se de um processo de dessubjetivação por deslocamentos. Valère Novarina define bem como se dá essa potência corpórea do ator como abertura a um devir “outro corpo”:

O que, o que, o que? Por que se é ator, hein? Só é ator quem não consegue quem não consegue se habituar a viver no corpo imposto, no sexo imposto. Cada corpo de ator é uma ameaça, a ser levada a sério, para as ordens ditadas ao corpo, para o estado assexuado; e se um dia a gente está no teatro, é porque tem algo que a gente não suporta. Existe em cada ator algo como um corpo novo que quer falar. Uma outra economia do corpo que avança, que empurra a antiga, imposta (Novarina, Carta aos atores, 2009)

Masseno leva ao paroxismo esta performance ao “desenhar com seu próprio sangue” cifrões no abdômen em conseqüência do dermografismo, estimulado pelo esfregar das mãos na pele. A hipersensibilidade da plateia desperta também insuflada pelo incômodo do tempo dilatado de cada deslocamento, de cada pose, pela respiração “gaita de fole”, pele inflamada e inchada, pelo suor, pelo controle total e milimétrico dos músculos que sublinham o tremor máquinico anunciado desde o início, e, ao final, pelo irrespirável da máscara grotesca do tênis, lembrando as máscaras contra contaminação por gases, evocando um chute na boca, dado ou levado, um insulto, um “foot in mouth”.

André Masseno: OUTDOOR CORPO MACHINE. Foto: Nilmar Lage.

Ou seja, a plateia é confrontada pelo corpo levado ao insuportável e à exaustão, corpo transformado num outdoor ele próprio da entrega e do sacrifício do ator presentificados – como nas cenas bárbaras das arenas – pela escrita de sangue, outdoor da morte no e do corpo, contradizendo a beleza atlética, o vigor performático, a sugestão de perfeição inatingível do corpo do homem insinuados na progressiva sequência inicial de poses atléticas da performance.

André Masseno exibe o lugar de onde vem, como na pergunta da epígrafe de Novarina. Ele mostra o corpo-carne do performer, não como suporte de um outro, mas o corpo que “mostra a doença que vai levá-lo” (Novarina, 2009: p. 16), e, neste caso, a doença é da cultura da imagem. Ele nos esgota, nos leva ao limite do que podemos suportar e quando sai do quadrado iluminado, nos relega ao nosso pobre corpo, ao nosso quase nada corpo, à nossa falta de presença, ao nosso abandono. “Ele me dá a doença da minha percepção” (p. 18).

André Masseno: OUTDOOR CORPO MACHINE. Foto: Nilmar Lage.

Os corpos masculinos revistos em cena neste artigo (no espaço das artes coreográficas ou das narrativas ficcionais) ajudam-nos a repensar os modelos impostos ao corpo do homem com sacrifício de aspectos mais “moles”, menos endurecidos, modelos enrijecidos com que se forjaram as idealizações da masculinidade: falo do corpo carapaça, do corpo armadura, que de forma espectral foi reutilizado pelas narrativas nazista e fascista do inicio do século e que servem ainda ao preconceito gerado no seio da “dominant fiction”, agora talvez com preocupações menos ideológicas e mais de mercado.

Penso agora a partir de Só Garotos e de OUTDOOR CORPO MACHINE um corpo dessemelhante. Falo de modelos inéditos de corpos. Modelos que ainda não fracassaram. Hilan Besusan, no artigo que apresentou no IV Colóquio Filosofia e Ficção, em 2009, na UERJ, perguntava “Quantos trizes fazem uma performance? Uma vida? Quantos centímetros, quantos centilitros de hormônio, quantas centenas de palavras? Dizem que os padrões de ativação do córtex são diferentes entre cis-homens e trans-mulheres. Trans-pessoas são aquelas que fizeram uma transição desde sua categoria de sexo de nascença. Cis-pessoas são aquelas que não atravessaram o Rubicão”. Para Besusan, o novo emblema do corpo trabalhará na dessemelhança alegre, sem possibilidade de sustentação referencial, ou de representação por substituição. Cis e triz lutam para superar esquemas mentais aferrados a uma ordem do humano demasiado humano.

Falo do corpo por vir? De seus usos? Nele vence o ut pictura ou só a poiesis? Pergunto então, onde se esconderá o desejo no corpo desta década que vem? Na esponja do dia, onde tudo se apaga, na protuberância, na frincha de um corpo real? Na fantasia de um assassinato completo do real, como imaginou Baudrillard, crime perfeito, soltura da imaginação? Hilan Besusan provoca “No meandro se costuram as tramas. Tramas nunca são feitas de um fio só, nunca ficam num Lócus Solus” (Besusan: 2009). 

Será que iremos até o fim deste strip-tease? O que atiça o desejo acerta o alvo na alucinação do impossível, do gozo perfeito? Fruto suculento de um parto da arte ou da ciência? Quem trama este corpo potente?

Referências bibliográficas

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BORDO, Susan. The male body. A new look at men in public and in private. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1999.

BURT, Ramsay. The male dancer. Bodies, spectacle, sexualities. New York /Canada: Routledge, 2007.

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FRIEDMAN, David M. Uma mente própria. A História Cultural do pênis. Trad. Ana Luiza Borges. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

GRUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença. O que o sentido não conseguiu transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro: Contraponto/ Ed. PUC Rio, 2010.

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NOVARINA, Valère. Carta aos atores e Para Louis de Funès. Trad. Ângela Leite Lopes. 3ª ed. Rio de Janeiro: 7letras, 2009.

PERNIOLA, Mario. O Sex-appeal do inorgânico. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Studio Nobel, 2005.

SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa: ensaios sobre questões político-culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

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SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubem Figueiredo. São Paulo: Companhia das letras, 2004.

TIBURI, Márcia. Revista CULT, n. 151, São Paulo, out/2010.

 



1 Neste ponto, começamos a ver o modo pelo qual o falo, embora símbolo do pênis, é ao mesmo tempo semelhante e diferente de outros constructos simbólicos que eu mencionara neste livro, como outras metáforas penianas – “membro palpitante”, “masculinidade endurecida” – então chamei isso de biometáforas [At this point, we can begin to see the way in which the pallus, although a symbol of penis, is both similar to and different from the other symbolic constructs that I’ve mentioned in this book, like our literary penile methaphors – the “throbbing member”, “engorged manhood”, and so on. I called these “biometaphors”] (Bordo, 1999: p. 87).

2 “Nude women seem to be in their natural state; men, for some reason, merely look undressed...When is a nude not a nude? When is male.”

3 Dominant fiction is more than the ideological system through which the normative subject lives its imaginary relation with the symbolic order. It is also informed by what Ernesto Laclau calls a ‘will to totality’: it is the mechanism by which a society ‘tries to institute itself as such on the basis of closure, of the fixation of meaning, of the non-regognition of the infinite play of differences’” (Silverman, 1992: p. 54).

4 Esse artigo foi apresentado por mim no Festival Move Berlim de 2011, na Alemanha, onde André Masseno apresentou, nos dias 13 e 14 de abril, no Hau2, a performance OUTDOOR CORPO MACHINE. Concepção, direção e performance: André Masseno. / Músicas: Adriano Canzian, Dick Farney, Peaches, Peter Allen. / Fotos divulgação: Nilmar Lage, Darko Vaupotic. O espetáculo derivou da residência artística no Espaço Hibridus (Ipatinga/MG) e com a parceria do Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro.

5 Texto depois publicado em Vale quanto pesa, livro de ensaios do crítico.

6 Faço aqui uma tradução livre já que a expressão em inglês quer dizer “apenas crianças”.

7 Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

8 Many contemporary descriptions of Nijinsky ascribe androgynous qualities to his dancing, stressing its male power and strength but female sensuousness (tradução da autora).