A cidade como teatro1

The city as a theatre

Marvin Carlson

Tradução Jaqueline Rodrigues e Evelyn F.W. Lima

Resumo

Este capítulo do livro Places of Performance com base na semiologia do espaço- sugere o quanto é importante compreender o significado da experiência das encenações teatrais do Ocidente, em especial quando realizadas em espaços não inseridos na estrutura arquitetônica convencional, ou seja, as encenações realizadas em espaços apropriados pelos espetáculos em espaços urbanos ou alternativos. Partindo das encenações medievais, o texto investiga a semiótica de espaços arquiteturais e urbanos que em diferentes temporalidades foram utilizados para representações, transformando a cidade no próprio teatro.

Palavras chave | Semiótica do espaço | espaço urbano | arquitetura teatral | “espaço encontrado”

Abstract

This chapter of the book Places of Performance-based on the semiology of space suggests how important it is to understand the meaning of the experience of theatrical performances in the West, especially when held in spaces not included in conventional architectural structures, i.e. performances carried out in the “found spaces” in urban or alternative spaces. Starting from the medieval performances, the article investigates the semiotics of architectural and urban spaces, which have been used in different temporalities for theatrical representations, transforming the city into the theatre itself.

Key-words | Semiotics of space | Urban Space | Theatre Architecture, “Found Spaces”

Marvin Carlson é Professor de Teatro e Literatura Comparada no Centro de Graduação da Universidade da Cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. É Doutor honoris causa pela Universidade de Atenas, e foi agraciado com diversos prêmios, entre eles o ATHE Career Achievement Award, o ASTR Distinguished Scholarship Award, o prêmio George Jean Nathan de crítica dramática, e o Calloway Prize para autores de estudos teatrais. É editor-fundador do jornal Western European Stages, e autor de mais de cem artigos acadêmicos nas áreas de história e teoria do teatro e literatura dramática. Entre seus principais títulos publicados estão: Teorias do Teatro (UNESP, 1997), Performance: uma introdução crítica (UFMG, 2010) e, ainda não traduzidos para o português, The Theatre of the French Revolution (1966), Goethe and the Weimar Theatre (1978), Places of Performance (1989), Theatre Semiotics: Signs of Life (1990), Voltaire and the Theatre of the Eighteenth Century (1998), The Haunted Stage (2001), Speaking in Tongues (2006), Theatre is More Beautiful than War (2010) e The Theatres of Morocco, Algeria, and Tunisia (2012). Suas obras já foram traduzidas para catorze línguas.

Marvin Carlson is the Sidney E. Cohn Professor of Theatre and Comparative Literature at the Graduate Center of the City University of New York. He has received an honorary doctorate from the University of Athens, the ATHE Career Achievement Award, The ASTR Distinguished Scholarship Award, The George Jean Nathan Award for Dramatic Criticism, and the Calloway Prize for writing in Theatre. He is the founding editor of the Journal Western European Stages, and the author of over one hundred scholarly articles in the areas of theory history, and dramatic literature. Among his books are The Theatre of the French Revolution (1966), Goethe and the Weimar Theatre (1978), Theories of the Theatre (1984) Places of Performance (1989), Theatre Semiotics: Signs of Life (1990) Performance: A Critical Introduction (1996), Voltaire and the Theatre of the Eighteenth Century (1998), The Haunted Stage (2001), Speaking in Tongues (2006), Theatre is More Beautiful than War (2010) and The Theatres of Morocco, Algeria and Tunisia (2012).His work has been translated into fourteen languages.

Jaqueline Rodrigues é mestre e Especialista em Artes Cênicas, Pesquisadora Associada PACC/ UFRJ Pólo Digital, Membro da IFTR Grupo de Pesquisa: Theatre and Intermediality.

Jaqueline Rodrigues is master and Specialist in Performing Arts, Associate Researcher - PACC / UFRJ Digital Hub, Member of IFTR Research Group: Theatre and Intermediality.

Evelyn Furquim Werneck Lima é professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana e pesquisadora do CNPq e da Faperj. Autora dos livros premiados Arquitetura do Espetáculo (2000) e Avenida Presidente Vargas: uma drástica Cirurgia (1990 e 1995). Publicou Das vanguardas à tradição (2006) e organizou Espaço e Teatro (2008), Espaço e Cidade (2004 e 2007) e Cultura, Patrimônio e Habitação (2004).Publicou em co-autoria Arquitetura e Teatro (2010) e Entre Arquiteturas e Cenografias (2012).

Evelyn Furquim Werneck Lima is currently Associate Professor at the Federal University of Rio de Janeiro State, where she coordinates the Laboratory of Theatrical Space and Urban Memory Studies and is a researcher for the CNPq and Faperj. Author of the award-winning books Arquitetura do Espetáculo (2000) and Avenida Presidente Vargas: a drastic surgery (1990 and 1995). Published From The avant-garde to tradition (2006) and organized Space and Theatre (2008), Space and City (2004 and 2007) and Culture, heritage and housing (2004).Published Architecture and theatre (2010) (with Ricardo Cardoso)and Between Architectures and Set Designs (2012) ( with Cassia Monteiro).



A Cidade como Teatro

Marvin Carlson

Tradução Jaqueline Rodrigues e Evelyn F.W. Lima

O final da Idade Média e a Renascença constituem um longo período histórico, ocasião em que o teatro existiu como uma parte importante da vida urbana sem que houvesse qualquer elemento arquitetônico específico destinado exclusivamente ao seu uso exclusivo. A ausência de uma estrutura teatral específica entre o repertório de objetos arquitetônicos nas cidades medievais, de maneira alguma significa que a situação física da encenação teatral dentro da cidade era destituída de significado simbólico. Ao contrário, a situação que permitia aos que produziam as encenações localizá-las em qualquer lugar que lhes fosse mais conveniente significava que o teatro poderia usar em seu benefício próprio as conotações já existentes de outros espaços tanto neles mesmos quanto em relação a sua disposição dentro da cidade; o que de fato ocorria consistentemente. Tal dinâmica era particularmente favorável à visão de mundo medieval, que se encantava pela descoberta de correspondências e pela construção de ricas estruturas simbólicas, por meio do relacionamento de diversos sistemas sígnicos uns com os outros.

O centro simbólico da cidade medieval era a catedral e nenhum outro lugar da cidade era tão rico em concentrar valiosos referenciais simbólicos. Uma passagem famosa de Notre Dame de Paris de Victor Hugo considera que a catedral era o repositório central de signos para aquela cultura. Lenda, alegoria, doutrina, o somatório total do conhecimento medieval sobre o mundo, divino e humano, estava ali representado na pintura, na escultura, no vitral e no espaço. Ao mesmo tempo, esta tessitura de símbolos de tamanha riqueza também servia como um cenário, um container para os sistemas simbólicos cada vez mais centrados nos rituais realizados pela igreja, por meio dos quais os cidadãos eram conduzidos a uma participação direta nos mistérios divinos.

O drama litúrgico que crescia no interior da catedral ocupava uma posição que oscilava de alguma maneira entre o ritual religioso e o rico enquadramento da arquitetura, escultura e vitrais que envolviam aquele ritual e acentuavam o potencial simbólico de cada um. Carol Heinz documentou a conexão estreita entre os maciços frontões ocidentais que surgiram no período carolíngio e os símbolos iconográficos e arquitetônicos da morte e da ressurreição daquela época. Como tema corriqueiro dos portais nas fachadas ocidentais, o julgamento final também foi associado a essa área, assim como o batismo (a morte simbólica e a ressurreição do pecador penitente). (Heinz, 1963) Um altar para o Salvador também era freqüentemente colocado aqui em relação a estes acontecimentos. É nessa parte da catedral, já tão rica por associações apropriadas, que Heinz sugere que tenha sido apresentada a primeira peça litúrgica da Páscoa. A opinião mais tradicional admite que essas encenações se realizavam próximas ao altar-mor, com a cripta subterrânea servindo como um ícone para o túmulo2. Seja qual for o entendimento mais correto, os historiadores concordam que a nova representação dramática construída por meio das conotações já se apresentava em um espaço criado para propósitos não dramáticos.

Gradualmente as encenações litúrgicas começaram a utilizar outras partes da catedral e a mesma dinâmica continuava. A própria catedral era arquitetonicamente orientada pelos supostos eixos do mundo, a linha principal percorrendo o leste e o oeste, com um eixo transverso menor no sentido norte-sul. Para o leste ficavam Jerusalém e o presumível lugar do Paraíso perdido e o celebrante ao entrar na dirigia-se nesta direção até alcançar o altar-mor. O caminho das procissões da igreja, para leste em direção ao altar-mor ou para oeste em direção ao altar do Salvador, já evocativo do mundo ou das viagens cósmicas, acompanhava os mesmos eixos dos dramas litúrgicos - a viagem para Emaús, a corrida dos discípulos para a tumba, a viagem dos Reis Magos.

A divisão tripartite da catedral, leste-centro-oeste em coro, nave e nartex, fornecia uma orientação espacial suplementar. Entre o altar do Salvador com sua evocação da Paixão, a ressurreição, e o julgamento final e o altar oriental da Virgem sugerindo a natividade e a própria igreja o meio da nave ou o cruzamento dos tranceptos fornecia um espaço religioso menos pesado e carregado, um espaço não só de procissões na direção de um ponto ou outro da igreja, mas de localizações mais “terrenas” necessárias aos dramas litúrgicos. Assim, na Catedral de Rouen, o drama litúrgico “Jeu de pèlerins dEmmaus” coloca o “castelli Emmaus”no meio da nave, o “Office de létoile” em Bilsen ali posiciona o “palácio” de Herodes e ainda em Rouen a “Procession des prophètes”  coloca neste mesmo local a virulenta fornalha de Nabucodonosor (Cohen, 1955 e Young, 1933). Os arranjos espaciais variavam naturalmente um pouco de catedral para catedral, conforme os santuários e capelas fornecessem locais com fortes valores simbólicos, particularmente para determinadas histórias, mas as estratégias básicas para o uso da conotação espacial e figurativa para reforçar as encenações litúrgicas eram encontradas em qualquer lugar onde fossem oferecidas.

Os eruditos do início do século XX consideravam que os “Mistérios” apresentados fora das igrejas eram descendentes diretos dos dramas litúrgicos, porém, pesquisas mais recentes desafiaram esta teoria, citando como evidência não apenas a sobreposição das formas, mas diferenças muito importantes quanto à organização, aos temas e à função social. Não obstante, no que concerne à significação urbana e espacial, as encenações litúrgicas e os “Mistérios” tinham similaridades importantes. Um sistema simbólico similar poderia ser encontrado em quase todas as montagens do drama medieval ao ar livre, nos locais onde a configuração física assim o permitisse. Em Frankfurt (ca. 1350), Lucerna (1583) e Donaueschingen (ca. 1600), para citar apenas três importantes exemplos, havia uma plataforma representando o Céu para o leste, assim como o altar-mor na catedral, uma Boca do Inferno diabólica do lado oposto à oeste e localizações mundanas espalhadas entre elas. Tanto em Frankfurt quanto em Lucerna, era utilizado um templo como elemento para definir esta área central e todos três posicionavam a crucificação no meio do caminho entre o centro mundano e o paraíso.

As cidades ofereciam uma variedade de locações ricamente significantes para a encenação do drama religioso. Em muitas delas o espaço imediatamente adjacente à catedral era aparentemente empregado, como para a famosa peça medieval, o “Jeu dAdam”, ficando a catedral como um todo como a moradia de Deus e provavelmente do coro angelical (Hardison, 1965). Como a cripta da catedral, os cemitérios e campos santos serviam como locais para as peças da paixão e da ressurreição, como por exemplo, em Rouen e Viena. Geralmente um local favorecido era a praça do mercado, que, como a cidade circundada, poderia ser vista como um símbolo do palco no qual qualquer homem encenava seu papel mundano. As conotações do espaço da praça do mercado faziam-na especialmente apropriada para esta função. Geralmente contígua à prefeitura, cercada por residências e lugares de negócios dos principais comerciantes da cidade, o próprio centro para comércio, recreação e trocas de sociabilidade, esta praça era de fato o palco no qual a nova classe burguesa urbana representava suas vidas, a secular, o coração geográfico da cidade; que, assim como a catedral era o coração espiritual (embora essas duas orientações não fossem tão claramente separadas como se tornariam posteriormente: as organizações de negócios e as associações medievais ainda tinham um componente religioso importante). Os “Mistérios” escritos no vernáculo e enfatizando a similaridade entre o mundo físico dos sujeitos bíblicos e o dos espectadores eram extremamente bem servidos por um espaço reminiscente de considerações vernaculares e contemporâneas, assim como, o mais abstrato e ritualístico drama litúrgico era complementado pela iconografia das esculturas moldadas nas fachadas da catedral.

Em uma escala maior, a cidade como um espaço sagrado poderia ser também utilizada como um espaço teatral. De fato, Lewis Munford assim vê como uma de suas funções principais: “Sejam quais forem as necessidades práticas da cidade medieval, ela era acima de todas as coisas, em sua vida turbulentamente ocupada, um palco para as cerimônias da Igreja. Nisto reside o seu drama e sua consumação ideal”. A chave para compreender a cidade medieval, para Munford,  está no cortejo ou procissão,

acima de tudo nas grandes procissões religiosas que perpassavam pelas cidades e lugares antes de finalmente adentrarem a igreja ou a catedral para a grande cerimônia. Estas grandes procissões uniam, assim como as cerimônias nas igrejas, espectadores, comunicadores e participantes. Até os curvas tortuosas das ruas medievais contribuíam para este efeito, permitindo àqueles que estavam na procissão, olhares sobre os outros participantes da cidade de tal forma que também se tornavam espectadores, visto que nunca poderiam estar em uma parada formal em uma rua reta (Munford, 1961).

Essas grandes procissões e os cortejos dramáticos que, como as procissões, desfilavam pela cidade medieval reivindicando a cidade inteira como cenário, também representavam um apelo para que cada cidadão se envolvesse para além dos grandes espetáculos na praça do mercado. Embora as encenações dramáticas possam não ter envolvido diretamente o mesmo número de cidadãos das grandes procissões, elas ainda encorajavam a participação ativa, apagando regularmente qualquer barreira possível entre a encenação e o espaço público. A paixão de Viena do século XV, que começou na praça do mercado, sem dúvida alguma assumiu as conotações seculares e sociais daquela área, mas, quando o ator representando Cristo subseqüentemente carregava sua cruz pelas ruas sinuosas da cidade para o cemitério distante, onde a crucificação seria representada, os espectadores que acompanhavam o percurso eram levados de forma mais direta para o mundo simbólico da peça, tornando-se participantes ativos no drama cósmico do sacrifício e da redenção, em uma cidade que durante essa encenação lidava com as conotações da cidade universal, Jerusalém (Jacquot apud Konigson, 1975).

Na Alta Idade Média as procissões dramáticas e religiosas compartilhavam o palco urbano com outro tipo de procissão, aparentemente similar, mas com uma série de conotações radicalmente diferentes: a entrada real. Muitas procissões religiosas evoluíam de um dos portões da cidade para a catedral em um trajeto que simbolizava a aproximação do poder real ao centro espiritual da comunidade, embora outros trajetos até aqueles totalmente opostos dirigindo-se do centro da cidade para os seus limites eram possíveis, como a paixão de Viena demonstrava. Tal flexibilidade era impossível para a entrada real, que, representando as boas vindas da cidade para um visitante importante, necessariamente tinha que se deslocar dos portões da cidade (a mais importante locação simbólica para este tipo de cerimônia) para o centro, representado usualmente pela catedral ou pelo palácio que servia para receber o visitante privilegiado. As primeiras entradas reais eram essencialmente um pouco mais que uma cerimônia de boas vindas, mas à medida que o poder do soberano aumentava e a autonomia da cidade declinava, as conotações dessas cerimônias refletiam as mudanças. A abertura dos portões da cidade ou a apresentação das chaves ao soberano simbolizaram submissão e o reconhecimento de um poder superior, e a procissão na direção do centro da cidade se tornou um ato de possessão e uma demonstração de autoridade (Guenée & Lehoux, 1968 e Dumur, 1965).

O nobre visitante não era mais cortejado por meio de símbolos de riqueza, poder e prosperidade da cidade; em vez disso, ele encontrava monumentos e pinturas alegóricas e quadros que refletissem sua própria significação. A cidade ainda era usada como um espaço teatral, porém, um espaço anteriormente apropriado por seus habitantes que passa a ser usado pelo príncipe. Uma vez que essa usurpação se completava, a cidade não estava mais disponível como palco, principalmente para as cenas individualizadas dos dramas dos cidadãos - procissões de casamento e funeral ou cortejos cívico-religiosos- mas, tornou-se preferencialmente uma cena para a demonstração de poder do príncipe, da qual os cidadãos participavam por tolerância apenas como espectadores.

O arranjo físico da cidade medieval era impróprio, de várias formas, para essas demonstrações de poder do príncipe. Não importando quais fossem os símbolos alegóricos de domínio e autoridade unificados nos quadros vivos que eram colocados ao longo da rota do príncipe, a mensagem denotada pelo próprio espaço urbano era muito diferente. As estreitas e tortuosas ruas medievais, com estruturas pendentes, caprichosamente alargadas e estreitadas, não sugeriam conotações de subserviência ou até de maleabilidade, mas preferencialmente aquelas de individualidade obstinada. O caminho que o príncipe seguia para o centro da cidade não era um caminho fácil e sugeria em termos de dinâmica espacial, menos uma procissão triunfante do que uma linha difícil de um labirinto potencialmente ameaçador.

Para que o novo poder político pudesse se mostrar apropriadamente no palco urbano, novas estruturas espaciais foram necessárias, como tinham sido nos tempos clássicos quando a democrática cidade grega foi substituida pela autocrática cidade helenística. Neste caso a cidade também deixou de ser um palco no qual cada cidadão tinha um papel com uma contribuição democrática a fazer e transformou-se muito mais em um lugar de espetáculo para o poder centralizado. Os grandes triunfos e coroações do período helenístico não puderam ser acomodados fisicamente nas estreitas e sinuosas ruas da Atenas do quinto século antes de Cristo. Vastas avenidas sinuosas foram necessárias para tornar a cidade helenística apropriada como “uma arena para shows públicos: um container para espectadores”.

Por fim, na medida em que as novas regras da Renascença se consolidavam, elas começaram a impor suas próprias exigências ao texto urbano, remanejando-o gradualmente no sentido da construção da cidade barroca, transformando-a em palco mais apropriado para a exibição de seu esplendor. As entradas reais podem ser consideradas o primeiro passo em direção àquela cidade reconstruída, seguido pelos espetáculos da Renascença e do desenvolvimento dos espaços aristocráticos nas cidades, como os da Florença renascentista. As entradas reais, quase desde o início, encorajaram uma transformação do texto urbano como eles se depararam com ele. Para a entrada de Charles VI em Paris em 1380, as ruas e os quarteirões estavam tão adornados de tapeçarias que eles se assemelhavam aos templos, e, a partir de várias fontes artificiais, leite, água e vinho escorriam em abundância (Guénée & Lehoux, 1968). Tais fontes e as tapeçarias não serviam apenas de decoração e propósitos alegóricos, mas, como observa Konigson, também funcionavam “para se sobrepor na cidade real um caminho idealizado, enquanto removiam o espaço vivido”(Konigson, 1975).

A idealização do caminho seguido da entrada real de fato tinha muito em comum com a triunfal via pública, uma característica do período helenístico. Intimamente associada a essa visão espacial estava a convenção pictórica da perspectiva, a qual enfatizava a ordem imposta no espaço pelo mestre político daquele espaço, a centralidade da visão daquele mestre e a incrível insignificância de objetos, na medida em que eles eram localizados em uma posição mais distante do poder. Michel Foucault cita um principio atribuído aos gregos, que a aritmética deveria ser a preocupação das cidades democráticas “visto que ela ensina as relações de igualdade,” enquanto a geometria deveria ser ensinada às oligarquias, “desde que ela mostra as proporções em desigualdade”(Foulcault, 1971). Não há dúvida que a perspectiva se tornou um dispositivo signico central para os novos príncipes da Renascença na Itália. Para os Médici, afirma Ludovico Zorzi, a perspectiva tornou-se “o veículo metodológico para um discurso político, que se impôs aos objetos elaborados pela cultura medieval (a cidade sendo um exemplo representativo) com o intuito de modificá-los e adaptá-los às finalidades de sua própria ordem egocêntrica de conhecimento (Zorzi, 1977).

Esse processo pode ser visto literalmente no trabalho A Entrada de Herique II em Lyon, em 1548. Somando-se a usual cobertura das fachadas ao longo do caminho da procissão, telas eram instaladas nos cruzamentos de ruas mascarando as ruas tortuosas da cidade medieval com falsas perspectivas pintadas no trompe loeil (Guigué, 1927). Iconograficamente, pelo menos, o soberano já tinha atingido a conquista do espaço urbano que seria transformada em realidade durante o período barroco. A textura urbana da cidade medieval resistiria a essa mudança por algum tempo, entretanto, ela continuou a servir como um tipo de autenticação irônica para expedientes efêmeros, como a perspectiva da pintura da entrada de Henri II ou os temporários arcos do triunfo, os quais eram freqüentemente construídos para servir mais apropriadamente como um signo inicial para a entrada do que para representações dos portões mais proibidos, com suas conotações de defesa em vez de submissão.

A idéia do espaço urbano barroco foi desenvolvida nas cidades governadas pelos príncipes renascentistas na Itália e o teatro desempenhou um papel crucial na transição entre os conceitos medieval e barroco da organização urbana. Pierre Levedan na sua Histoire durbanisme assim descreve o processo:

Convergência e simetria, estes princípios foram aplicados à cidade somente após ela ter sido, alguns podem dizer, vulgarizada por dois intermediários: o teatro e a arte do jardim. O teatro amarra a geometria ao urbanismo. A decoração teatral deveria ter seu efeito na decoração urbana, enquanto a cenografia nasceu dos tratados da perspectiva (Lavedan, 1959).

Florença, um dos centros mais ativos de teatro do período, fornece uma ilustração bem clara desta dinâmica no trabalho. Durante a Idade Média, Florença seguiu os padrões típicos de empregar seus espaços abertos no centro da cidade  para a encenação dos “Mistérios”, destacando-se um cortejo repetitivo de dezesseis horas realizado na Piazza della Signoria para a festa de S. João em 1454. Grandes festivais e procissões cívicas e religiosas ainda eram oferecidos no espaço público de tempos em tempos durante o século seguinte, porém o retorno da comédia latina, que teve inicio por volta de 1500, acontecia usualmente em academias eruditas e, mais freqüentemente, em residências aristocráticas, particularmente, com o passar do tempo, naquelas dos Médici. Ao mesmo tempo, os pintores italianos estavam explorando as possibilidades espaciais da perspectiva, sendo um dos temas preferidos a “cidade ideal”. Estes interesses convergiram para as propostas de desenhos teatrais elaboradas por artistas como Baldassare Peruzzi e Sebastiano Serlio.

Logo, a visão da cidade abstrata ideal destes artistas começou a ser aplicada em representações idealizadas da própria cidade de Florença. O desenho cenográfico, criado por Baldassare Lanci para a produção de Vedova de 1569 no recentemente aberto Salone dei Cinquecento do Palácio Ducal, é um exemplo notável desse desenvolvimento. A grande cúpula de Brunelleschi para a catedral de Florença foi utilizada nesta obra para criar um elemento terminal para uma rua imaginária que o artista, à maneira Peruzzi-Serliana, estendeu diretamente para o plano dos fundos de sua pintura. Significantemente, no entanto, a cúpula central não é sequer mencionada nas crônicas contemporâneas desta encenação, podendo-se notar que “A cena era a cidade de Florença e representava um lugar particular nesta cidade, e este lugar era a esquina do Antellesi com a fachada do Palácio Ducal como vista de lá” (Giunti, 1569).

O Palácio Ducal com sua torre, agora o símbolo arquitetônico do poder dos Médici, significa um forte elemento nesta representação da rua, até mesmo para um espectador moderno, mas, para o público original que estava assistindo à encenação neste mesmo edifício, o efeito deve ter sido distintamente mais surpreendente. Uma disposição cenográfica deste tipo certamente funcionou para alterar a percepção do público sobre seu cenário urbano. Deixando o palácio com a visão idealizada de Lanci ainda em suas mentes, eles seriam encorajados a se tornarem mais conscientes dos espaços públicos da cidade, tal como estavam sendo apropriados, formatados e definidos pelos novos legisladores.

Tão pouco essa visão idealizada permaneceu apenas como um fantasma de palco, como Lavedan apontou. Na direção oposta da catedral, Giorgio Vasari estava naquela mesma época construindo o Palácio Uffizi para Cosimo de Médici do, interligando o centro da cidade e o Palácio Ducal com o Rio Arno e estabelecendo um exemplo urbanístico tangível do mesmo uso da perspectiva pintada no teatro ducal. No Uffizi deveriam ser reunidos sob o controle firme dos Médici todas as associações mais importantes da cidade e os oficiais administrativos e judiciários, outrora espalhados da maneira medieval em territórios mais independentes por toda as áreas da cidade. O projeto do novo palácio empregou o mesmo tipo de perspectiva que a cenografia de Lanci para reforçar esta situação visualmente.

A maravilhosa gravura de Giuseppe Zocchi do projeto final apresenta o cumprimento no espaço urbano das idéias trabalhadas nos cenários em perspectiva dos teatros dos Médici. Ela se parece com a cenografia de Lanci de maneira geral e as diferenças são indicativas do crescente poder e da afirmação dos Médici. A catedral é mantida como uma referência visual, mas não é mais destacada por sua centralidade ou tamanho, assim como não é mais contextualizada por meio de um panorama da rua. Ela é bloqueada (como sempre foi na realidade) por estruturas intervenientes. O Palácio Ducal, ao contrário, ficou representado em direção ao centro da composição e cresceu em tamanho. O panorama, mais formal, regular e poderoso do que o de Lanci, agora conduz o espectador para o palácio e sua praça pública. Isto é marcado por uma fileira de monumentos completando este grande eixo urbano e culminando, adequadamente, com a estátua eqüestre de Cosimo, quem criou este exemplo de cenografia urbana para expressar, por séculos vindouros, o poder e a importância dos Médici de Florença.

A apropriação teatral da paisagem urbana pelos príncipes da Renascença foi arquitetonicamente confirmada pelo fato de que esta apropriação cênica ocorreu, assim como em Florença, nos espaços arquitetônicos privados. Quando as primeiras estruturas teatrais permanentes dos tempos pós-clássicos foram construídas, grande maioria delas era localizada dentro dos novos palácios principescos. Algumas das implicações desta nova disposição serão consideradas no próximo capitulo, mas aqui vamos continuar a falar do teatro “sem casa”, aquele teatro ainda excluído de qualquer associação, com o repertório de objetos arquiteturais da Pós-Renascença, mas não obstante uma parte contínua da cultura urbana ocidental.

Da Renascença em diante, as ruas das cidades e as praças do mercado continuaram a servir às antigas práticas de diversão cívica- as paradas e procissões, as operetas, as apresentações para venda de medicamentos e dos charlatões, os acrobatas, os farsantes e mímicos, cujos descendentes ainda podem ser vistos hoje: nos palhaços, nos engolidores de fogo e malabaristas encontrados em lugares urbanos populares e de encontro, como na praça em frente ao Beaubourg em Paris. A cidade ao redor dessas diversões mudou, mas em geral elas se adaptaram às mudanças sem ajustes radicais na semiótica de seus espaços particulares. Procissões e paradas ainda são planejadas de acordo com caminhos simbólicos e pontos de referência importantes (landmarks) no contexto da cidade. Os acrobatas e os mímicos, tal como existiam nos mercados tradicionais situados nas praças das cidades desapareceram, procuraram seus equivalentes modernos nas ruas de pedestres.

O teatro institucionalizado de uma sociedade educada, uma vez tendo abandonado as ruas, em geral deixando-as para a diversão popular, e esta divisão ainda permanece viva hoje em dia. Porém, alguns desenvolvimentos no teatro moderno, em alguns casos, apropriaram-se novamente de espaços não teatrais de particular interesse para utilização teatral. A organização moderna de festivais de teatro em muitas cidades da Europa dedica-se a este desenvolvimento. Uma combinação de espaços teatrais tradicionais limitados e o desejo de diretores experimentais de experimentarem locais não convencionais encorajaram o uso de praças, pátios e outros espaços urbanos para as encenações dos festivais, especialmente no sul da Europa. Em Dubrovnik, a descoberta de novos espaços urbanos para encenação se tornou parte da agitação do festival, tendo como resultado que nos anos mais recentes, quase toda a cidade foi teatralizada. E esta atividade não precisa estar restrita ao período do festival. Outras cidades Iugoslavas como Split e Subotica utilizaram os espaços urbanos para encenações de maneira tão entusiasmada como em Dubrovnik, de forma menos extensiva, para encorajar o orgulho cívico, para estimular uma renovação urbana, e geralmente, para reforçar um tipo de visão utópica da cidade (Klajic, 1987).

Um estímulo um tanto diferente para determinadas encenações teatrais deixarem que seu enquadramento arquitetural tradicional surgiu gradualmente dos teóricos românticos interessados em cor local e verossimilhança. Como parte de seu argumento contrário à unidade tradicional de lugar, Victor Hugo insistiu na importância da especificidade do lugar no drama histórico:

O local exato é um dos primeiros elementos da realidade. Os personagens que falam ou os que atuam não podem sozinhos gravar a impressão fidedigna dos fatos na alma do espectador. O lugar onde tal catástrofe acontece, a torna uma terrível e inseparável testemunha desta catástrofe e a ausência deste tipo de personagem silencioso torna as grandes cenas da história dramática incompletas. Poderia atrever-se o poeta a assassinar Rizzo em qualquer outro lugar que não o quarto de Mary Stuart? A punhalada de Henrique IV em qualquer outro lugar senão a rua de La Ferronier, obstruída com carroças e carruagens? Queimar Joana dArc em qualquer outro lugar que não na Antiga Praça do Mercado? (Victor Hugo, 1885).

Para os contemporâneos de Hugo, e para os realistas que o seguiram, esta prescrição recaia geralmente sobre cenários de autenticidade impecável, culminando nas florestas realistas de Herbert Beerbohm-Tree e nos interiores autênticos dos restaurantes de David Belasco. Mas, outra possível implicação do argumento de Hugo começou a ser explorada somente no final do século XIX, como diretores experimentais, começando a desafiar o palco com proscênio, consideraram primeiramente outras formas de encenar dentro das estruturas teatrais tradicionais e depois, possivelmente, encenando interiamente fora do edifício teatral. Assim, por exemplo, os English Pastoral Players em 1884-85 encenaram cenas de As You Like It e The Faithful Shepherdesse de Fletcher nas florestas de Coombe, recebendo do periódico Era o comentário entusiástico: “Não apenas a montagem não deixou nada para a imaginação, mais do que apenas a imitação da realidade com precisão fotográfica, era a realidade ela própria” (Era, junho, 1885).

Em um espírito similar, o grande diretor do século XX, Max Reinhardt criou, em 1920, uma das mais famosas produções da época, a versão de Hugo Von Hofmannsthal do drama medieval Everyman, encenado na praça diante da grande catedral de Salzburg, utilizando ruas circundantes e torres de igrejas como espaços auxiliares para a encenação. Durante os anos 1930 Reinhardt também apresentou a comédia de Shakespeare, A Midsummer Nights Dream, em bosques verdadeiros e, em uma realização particularmente surpreendente das especulações de Hugo, encenou The Merchant of Venice em uma praça veneziana, o Campo San Trovaso, onde existia uma pequena ponte sob a qual gôndolas reais passavam e uma casa pitoresca onde, de acordo com a pesquisa de Reinhardt, tinha sido na realidade a residência de um mercador judeu no século XVI.

Desde a época de Reinhardt, este tipo de utilização teatral dos cenários que em grande medida são realmente as coisas que eles representam, foi particularmente desenvolvido no cinema, o qual pode controlar suas locações mais efetivamente do que o teatro, mas o conceito de Hugo continuou a influenciar algumas maneiras das encenações contemporâneas. A sua idéia do espaço, do prédio ou da rua como um “personagem silencioso” nos grandes dramas históricos fundamentam as extremamente populares produções de “son et lumière” desenvolvidas na Europa nos anos 1960 e desde então se expandiram pelo mundo. Em 1975, na proposta de uma encenação “sound and light” para a Frente Leste do Capitólio dos EUA, o presidente da Sociedade Histórica do Capitólio dos Estados Unidos da América descreveu tais espetáculos como evocações dos “maiores eventos da história nos lugares reais onde eles aconteceram, por encenarem - não em um palco - mas em uma estrutura e na imaginação do espectador”. O presidente relatou que naquele instante havia mais de 150 encenações acontecendo: a de maior sucesso acontecendo na Acrópolis em Atenas, The Tower of David in Jerusalém, Les Invalides em Paris, The Pyramids no Egito e Persepolis no Iran. Algo do espírito de Reinhardt vive também nestas organizações, como o Vermont Ensemble Theatre, uma companhia de “environmental theatre” organizada em 1984, cuja produção mais conhecida foi a versão de 1986 de Our Town de Thorton Wilder com cada ato apresentado em uma igreja diferente ou, nos arredores do povoado verde de Wilderesque Middleubury, Vermont. Com encenações ao ar livre, de vinhetas da vida do povoado apresentadas para os espectadores na medida em que eles passeavam guiados por luzes de lanternas de um prédio para o outro.

Outra inspiração importante para as encenações modernas fora das estruturas tradicionais do teatro se encontra nas teorias de Rousseau, que reconheceu a conexão entre a instituição teatro e a cultura urbana na qual ela se desenvolveu e, desconfiando do último, também desconfiou do anterior. Ambas as instituições o teatro e sua construção arquitetônica foram banidas de sua republica ideal, que deveria ter apenas festivais ao ar livre e celebrações cívicas.(Rousseau, 1821) Alguns escritores subseqüentes, como Romain Rolland a certos teóricos socialistas, identificaram a condenação da sociedade urbana contemporânea por Rousseau como uma reprovação ao capitalismo e sua luta pela diversão ao ar livre como um encorajamento dos prazeres do proletariado. “Um povo livre e feliz”, disse Rolland, “precisa mais de festivais do que de edificações teatrais” (Rolland, 1913).

A convicção declarada por Wagner em meados do século e, freqüentemente repetida desde então, que, desde a Renascença as classes dominantes usurparam o teatro da população menos favorecida inspirada em dois tipos de reação. De um lado havia o movimento que devemos discutir depois, começando com Volksbühnen e ainda observável hoje em dia na nova ópera do “povo” em construção em Paris, dedicada a criar estruturas teatrais separadas, mas iguais para os menos favorecidos. Por outro lado, os seguidores de Rousseau freqüentemente tomavam a posição de que todas essas estruturas eram elas próprias a personificação de poder e privilégio e que o verdadeiro teatro do povo deveria abster-se de tal institucionalização. Ambas as reações foram operativas durante o período da Revolução Francesa, quando o governo empreendeu ambas para estabelecer estruturas nacionais específicas, como os teatros populares e para organizar grandes festivais ao ar livre celebrando temas nacionais. As duas tradições do interesse de Rousseau em grandes festivais cívicos e as de Hugo em conotações de uso de certos espaços históricos fundiram-se nos grandes espetáculos dramáticos encenados na Rússia imediatamente após a Revolução. O Proletcult organizou alegorias modernas em praças públicase recreações de episódios da Revolução, envolvendo milhares de participantes, nas mesmas locações onde aqueles eventos realmente aconteceram. A produção mais famosa deste tipo foi a de Nikolai Evreinov, “Storming of the Winter Palace”, em Novembro de 1920. O diretor orgulhosamente descreveu sua produção como “uma ação coerente desenrolada simultaneamente em três palcos: dois eram palcos teatrais convencionais e o terceiro era o lugar real onde o evento histórico acontecera” (Evreinov, 1947).

A idéia de um teatro do povo sem uma entidade arquitetural foi amplamente aceita pelos praticantes de teatro politicamente engajados nos anos 1960 e 1970. No pequeno vilarejo toscano de Monticchiello, a praça da cidade se tornou mais uma vez o lugar para as encenações teatrais anuais, mas agora ilustrando preocupações populares como liberdade política, poluição industrial, ou cuidado dos idosos, em roteiros criados pelos próprios atores por meio de suas experiências pessoais (Suro, 1987). O drama político iugoslavo The Liberation of Skopje fez turnê para muitas cidades na Europa e na América do Norte, sempre atuando em locações urbanas exteriores, preferencialmente em dois pátios adjacentes. Alguns praticantes de teatro deste período, especificamente nos EUA e na França, viram a rua como símbolo de liberdade política e o edifício teatral como um símbolo da “indústria cultural”, um “aspecto do capitalismo que deve ser destruído,” e assim criaram encenações nas ruas da cidade para atrairem conotações populistas.

Em um caso recente admirável, esse interesse levou a uma tentativa de levar a rua para dentro da estrutura teatral - não para controlá-la, como os príncipes da Renascença tentaram, mas para incorporar estas conotações sociais dentro do espaço elitista assumido. Florian Beigel da Half Moon Company de Londres olhou para trás para o manifesto da companhia sobre as origens da função da rua no teatro, antes do seu “controle ter sido assumido no século XVI pela sociedade educada”. No novo espaço da companhia, terminado em 1986, a rua em frente ao teatro é limítrofe de um pátio e este por sua vez se abre para um espaço teatral com fachadas designadas como “casas de anotações”, significando que suas aberturas, imitando verdadeiras janelas abertas para o pátio e para a rua adjacente, não atendem a verdadeiros espaços de vivência, mas podem ser usadas ou por atores ou pelo público, dependendo da produção. Notas de um crítico: “A conexão da rua era obrigatoriamente atraída para uma companhia ao vivo, orgulhosa de suas relações comunitárias, de sua clientela local e que se vê como uma alternativa radical e socializadora para o West End”. Todavia, essa interessante tentativa de unir a semiótica da rua com o espaço do teatro experimental é peculiar. Geralmente falando, os diretores socialmente engajados que utilizaram as ruas e outras locações urbanas não tradicionais durante os últimos vinte anos não desejaram repetir as encenações em um local específico, mas, ao contrário, procuraram novos espaços para cada produção, espaços onde a semiótica já existente poderia prover um elemento importante da encenação. A cidade, como nos tempos medievais, tem sido utilizada como um palco, mas agora com questões sociais e consciência política mais evidentes. Richard Schechner, discutindo o uso contemporâneo do “espaço encontrado”, em 1968, formulou a hipótese de que o “protótipo americano” de teatro em estruturas não teatrais foi a “confrontação e a marcha dos direitos civis”, que converteram as ruas em “arenas públicas, terrenos de testes, palcos para as encenações de moralidade”.

Assim como, os organizadores das peças da Paixão ou das Entradas Reais, os diretores de teatro de rua dos anos 1960 e 1970 freqüentemente utilizavam elementos especificamente urbanos simbolicamente relacionados às suas encenações. Assim, o “Six Public Acts” encenado pelo Living Theatre em Ann Arbor, Michigan, em Maio de 1975, era distribuído em seis locações da cidade, cujas conotações eram consideradas especialmente adequadas para cada peça - a adoração a um bezerro de ouro em frente a um banco, um ritual de sangue em frente a um memorial militar, e por aí em diante. Similarmente em uma produção que lidava com uma figura do período da Guerra Civil Espanhola, Armando Gatti rejeitou o teatro como espaço de encenação com base no fato de que seu protagonista “nunca havia pisado em um teatro” e que para mostrá-lo lá, “teria que tê-lo tirado de seu elemento, isolando-o de seu contexto, do ar que ele respirava, de tudo que fazia dele o que ele era”. Os espaços mais apropriados para esse mártir pela causa da liberdade, eram a fábrica e a prisão, e de acordo, a encenação foi criada em uma fábrica abandonada na Bélgica. Lá, Gatti fez uma descoberta surpreendente sobre a dinâmica da criação deste tipo de drama:

Como este tipo de assunto é normalmente o lugar, é a arquitetura que faz a escrita. O teatro não foi localizado em algum tipo de lugar utópico, mas em um lugar histórico, um lugar com uma história. Lá havia graxa e havia marcas de ácidos, porque era uma fábrica química; você poderia ainda ver traços de trabalho; ainda havia roupas de trabalho em volta, ainda havia marmitas na esquina, etc. Em outras palavras, todas essas marcas de trabalho deixadas, tinham sua linguagem própria. Esses espaços que conheceram o trabalho de seres humanos dia após dia tinham a sua própria linguagem e, ou você usava essa linguagem ou não dizia nada... É por isso que eu escrevi em um artigo “uma peça com a autoria de uma fábrica” (Gatti, 1982).

Tais ambientes experimentais como estes exemplos sugerem são normalmente limitados a uma produção única, embora, seja também possível que um ambiente seja utilizado por uma série de produções que se baseia na mesma semiótica ambiental e, de fato, desenvolvem novos códigos a partir da experiência acumulada pela encenação. Um exemplo deste tipo de trabalho pode ser visto em Vidlaks Family Cafe em Omaha, Nebraska, onde uma companhia organizada por Douglas Paterson tem apresentado peças há vários anos em uma lanchonete em funcionamento. O interior da lanchonete é utilizado iconicamente, com os personagens entrando ou saindo pelas mesmas portas que os clientes e utilizando o mesmo espaço e objetos materiais. As peças são escritas especificamente com esta lanchonete em mente, incluindo as mesmas características, como as decorações das paredes e alguns personagens recorrentes, que agora são aceitos virtualmente pelo público como “freqüentadores” da lanchonete.

Hugo sugeriu que os arredores físicos de eventos históricos poderiam ser considerados como “personagens silenciosos” nestes eventos. A declaração de Gatti, com implicações semióticas mais claras, sugere que não apenas os grandes eventos da história, mas as estórias menos espetaculares de pessoas, como seu meio esquecido mártir político, devem ser ditas em parte pela “linguagem” daquilo que o cercou fisicamente. Essa fábrica, assim como a lanchonete de Paterson, demonstra que quase todo espaço identificável dentro da cidade pode se tornar um espaço para encenação. Por meio da encenação o espaço vai inevitavelmente adquirir algumas expectativas da semiótica do próprio teatro, mas, ao menos igualmente importante, trará para a experiência teatral as suas próprias conotações culturais e espaciais, as quais o produtor sensível procurará imprimir com efeito máximo no trabalho apresentado ao público.

Referências

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1 Agradecemos ao autor e à Cornell University Press pela autorização para a publicação deste texto, extraído do livro Places of Performance: The Semiotics of Theatre Architecture. Ithaca: Cornell University Press, 1989.

2 Para uma comparação sobre esses pontos de vista, ver Elie Konigson. Lespace théâtral médieval. Paris: 1975, 15-37. Konigson sustenta a opinião de Heinz com mais alguma qualificação.