AMBIENTE, FLUXO E DRAMATURGIAS DA CIDADE:
materiais do Teatro de Invasão
André Carreira
UDESC / CNPq
Resumo
Este trabalho
discute o conceito de teatro de rua como um teatro que interfere nos segmentos
da cidade e que dialoga com a silhueta da cidade, se construindo como um teatro
de invasão do urbano. O autor reflete sobre o teatro na cidade a partir de
noções oriundas do campo do urbanismo e da geografia cultural, portanto
trabalha com conceitos tais como: fluxo, ambiente e repertório de usos. Esse campo
teórico é ainda relacionado com estudos da teatralidade.
Palavras-chave | Teatro na rua | espaço urbano | estudos
teatrais | ambiência | teatro de invasão
Abstract
This work
discusses the concept of street theater as a theater that interferes in the segments
of the city and which dialogues with the silhouette of the city, performing as
a theater of invasion of the urban space. The author thinks about the theater
in the city starting from notions originating from of the field of the Urban
Planning and of the Cultural Geography, therefore he works with such concepts
as: flow, atmosphere and repertoire of uses. That theoretical field is still
related with Theatrical Studies.
Keywords | street theater | urban space | theatrical studies | ambience | theatre
of “invasion”
Falamos de um teatro de rua. Poderíamos começar a falar
de um teatro da silhueta da cidade, um teatro de invasão do urbano, falar de um
teatro que interfere nos segmentos da cidade. Mas que cidades invadimos?
Vivemos em cidades que não podem ser abordadas em sua
totalidade. Não temos uma cidade, mas
sim inúmeras cidades que funcionam dentro de um espaço geográfico delimitado
principalmente pela ação das instituições. Estas múltiplas cidades são
definidas pelo repertório de uso dos habitantes, e pelos limites da percepção
dos mesmos. São seções estabelecidas pelos percursos, isto é pela ação diária
dos indivíduos. Trata-se de um espaço percebido a partir dos seus
múltiplos segmentos, dos seus usos diversos e sobrepostos. Usos que estabelecem
zonas culturais que conformam as “cidades” dentro da cidade.
Nosso âmbito é uma cidade não linear cuja noção não pode ser reduzida às
suas supostas dimensões geométricas. Por isso, esta “cidade não pode ser
considerada um espaço delimitado, nem um espaço em expansão” (ARGAN, 1998:
215). Além do espaço construído a cidade deve ser observada como um sistema
operacional e como uma rede de trocas diversas, que a define como um sistema de
informação. Tudo que ocorre na cidade cria imediatamente uma rede de contatos e
de comunicação que vai definir os sentidos do acontecimento. Como afirma Kevin
Lynch
“nada é vivenciado em si mesmo, mas sempre em relação com seus arredores e com
as sequências de elementos que a ele conduzem, bem
como às lembranças de experiências passadas” (2006: 1). A Construção do
simbólico na cidade se dá mediante o registro de vidas particulares, bem como
pela construção de uma imagem de cidade como articulação de diferentes
narrativas dos usuários que encontram zonas de confluência dentro de um
universo de diversidades.
Os núcleos urbanos estão definidos pelas falas e práticas cotidianas de
seus habitantes e emergem como construções simbólicas criando campos
relacionais. Os campos relacionais da
cidade se dão dentro de um ambiente complexo, multifacético e fragmentado. Seus
limites e seus valores resultam de práticas discursivas e de interações de usos
e apropriações, bem como de sobreposições de repertórios de usos.
O ambiente urbano constitui lugares cujas regras
de funcionamento, usos e modos operacionais diversos, geram imagens e um
potencial dramatúrgico próprio. Portanto, a silhueta da cidade pode ser
compreendida como uma estrutura dramaturgica que propõe ao teatro sempre uma
relação de fruição do ambiente como significante fundamental do acontecimento
cênico. Essa relação não é necessariamente amistosa por isso é pertinente
trabalhar com a noção de um teatro de invasão, dado que estes espetáculos
teatrais que tomam as ruas sempre repercutem como acontecimento que se insere
no âmbito público sem ser convidado. Toda performance teatral na rua é uma
possibilidade de prática invasora. A partir dessas
noções podemos pensar como se dá a ação reflexiva e crítica daqueles que
habitam a cidade, e também particularizar nossa abordagem daquele teatro que
toma as ruas, praças e edifícios como dispositivo cênico.
O espetáculo na rua parece
intensificar tendências da teatralidade que compõe as rotinas na rua. O sujeito
que se desloca pela cidade com o fim de chegar a algum espaço fechado, ou
aquele sujeito que está na rua – vivendo ou trabalhando momentaneamente –
desempenham papéis no “espetáculo” que é a rua. O vendedor ambulante e sua
prática comercial, o policial de trânsito e seu apito, a velha senhora que leva
sua pequena mascote para passear, o morador de rua que ocupa um banco de praça,
e até mesmo o mais invisível pedestre que cruza apressado uma rua, estão
fabricando o ambiente da rua e produzindo a teatralidade que representa a
matriz das intervenções teatrais que tem o espaço aberto da cidade como lugar.
Todas as tensões que se manifestam na rua compõem o material que constitui o
substrato da cena na silhueta urbana. Essa cena fala a partir de sua relação
com esse material que está sempre ali na rua ainda que seja extremamente
mutável e variável em frações de tempo muito curtas.
Esse dinamismo do ambiente da rua está associado diretamente à
modulação do repertório de usos que se instala de acordo com os fluxos que se
alternam em determinado fragmento da cidade. Ainda assim os usos são a rua tanto no que diz respeito à
sua imagem quanto ao seu funcionamento concreto. Lançar o teatro na rua, e mais
particularmente, propor um teatro que invade a cidade é buscar um instante de
re-organização do que reconhecemos como cotidiano. Mas isso levanta a questão
das hierarquias: quem predomina, o teatro ou a cidade? São as regras do
ambiente que se fazem mais explícitas e condicionam o trabalho dos atores, ou o
teatro com toda sua potencia de significação e os atores com sua capacidade
lúdica serão os vetores que alterarão o repertório de usos?
Neste sentido, é preciso
considerar a ideia de invasão teatral não apenas desde uma perspectiva definida
pela ação política ou por um compromisso radical, mas sobre tudo desde uma
perspectiva que toma a cidade como um campo simbólico no qual o teatro se
instala, inevitavelmente, como elemento de ruptura com os fluxos do cotidiano.
A invasão cênica é um gesto que se politiza por que representa uma ocupação
objetiva de um espaço definido por um repertório de usos cotidianos, no qual o
teatro não pertence naturalmente.
A ruptura dos ritmos de uma
determina seção funcional da cidade pela presença do teatro dialoga com uma
multiplicidade de eventos. Eventos que podem ser o olhar de um pedestre que
inquire, a ação de outro que busca curioso a razão de qualquer fato na rua, a
atenção de quem intui o acontecimentos no final do som de uma sirene, ou ainda
o comportamento de alguém que descobre tensões no mais diferentes movimentos
entre os transeuntes.
Imerso nessas tramas o teatro
também representa um olhar a mais que define a rua como lugar social e por isso
mesmo interfere na sua formulação como sitio cultural. A rua é um tramado, um
espaço de justaposição de usos e o teatro, em sua operação poética, passa a
fazer parte dessa trama, por isso é impossível supor que a cidade possa
funcionar apenas como cenografia, pois a presença do acontecimento teatral
também será redefinida pelos usos sociais e culturais predominantes, e aquilo
que poderia ficar atrás da cena como elemento cenográfico sempre ocupará
intertícios da dramaturgia porque é um dispositivo vivo por onde circulam
pessoas em seu cotidiano.
O contexto da cidade, devido a suas dinâmicas e
potência de penetração no tecido da cena, implica sempre na sua formulação como
dramaturgia. A cidade é dramaturgia porque é produtora de sentidos, e sempre
interfere no espetáculo condicionando seu funcionamento e estabelecendo
condições de recepção e mesmo de promovendo a produção dos signos na cena. Essa
escritura é realizada pela ação imagética da arquitetura – pela presença do
aparato urbano construído –, pelas ações e atitudes dos sujeitos que ocupam os
espaços da cidade, e pela força dos discursos institucionais que tratam sempre
de dominar a construção da paisagem urbana.
A paisagem urbana, segundo Duncan (1990), é
estruturada e estruturante, e tem potencial como instrumento de inferência na
configuração das sociedades. A paisagem urbana pode imprimir valores,
normatizar e influenciar comportamentos, legitimar e naturalizar desigualdades,
bem como exprimir resistências (DUNCAN, 1990: 295). Essa paisagem não pode ser
percebida como um quadro de imagem, mas como um entorno que envolve aqueles que
constroem o ambiente.
Nesses termos, a paisagem é mais
que um reflexo de processos socioculturais, pois atua como um de seus fatores
constitutivos. (DUNCAN, 1990: 295) A paisagem, como a forma física de uma
cidade, codifica informação, por isso como qualquer texto ela representa outros
textos (CERTEAU, 2000). Com base nesse princípio, Duncan (1990: 4) descreve o
processo de inferência nos estudos da paisagem em duas etapas: “o exame dos
mecanismos com os quais a paisagem trabalha”; e “o papel da paisagem na
constituição da prática social e política”. A paisagem, concebida como
artefato, atua de forma decisiva na configuração simbólica de uma dada
realidade social.
Neste contexto, e considerando
o funcionamento da cidade em fragmentos, adquire um papel fundamental o
comportamento dos cidadãos que cruzam um determinado território. As decisões
tomadas por estes cidadãos quando se confrontam com uma performance teatral
representam a mais incisiva ferramenta das dramaturgias da cidade reescrevendo
a cena. O espetáculo na rua é sempre reescrito pelas interferências das
dinâmicas da cidade. O público flutuante – que caracteriza a recepção da cidade
- impõe processos fragmentados e empilhamentos caóticos que são de fato uma das
riquezas do espetáculo de rua. Este público é um elemento fundamental na
própria definição do ambiente que se concretiza na construção social do espaço
da cidade.
Se os projetos sugerem
procedimentos e relações interpessoais que seriam regidas uma lógica
urbanística geral propondo um gerenciamento do espaço possível, um espaço
imaginado. O ambiente, na contra corrente disso, é uma repercussão do uso
concreto do espaço que decorre dos deslizamentos da cultura e dos
comportamentos daqueles que habitam a cidade. O ambiente articula os elementos
físicos através da interferência fundamental dos sujeitos que constroem a
cidade em seu acionar cotidiano, isso tanto pelas dinâmicas coletivas como por
ações individuais de alto impacto.
Considerando isso, pode-se
dizer que o teatro que aborda o espaço da cidade seria um vetor que redefine o
ambiente, e mais que isso, é uma força que busca essa interferência como ação
consciente e intencional. Todas as ações realizadas no espaço da rua modificam
e formulam o ambiente, mas em sua grande maioria essas ações não tem um caráter
consciente. O teatro tem uma presença na rua sempre como acontecimento
desorganizador das dinâmicas tradicionais da rua. Essa é sempre uma operação
temporária que interfere nos fluxos e modifica as percepções dos fragmentos da
cidade.
Muitas experiências
espetaculares nas rua trabalham com a perspectiva de que essas modificações
repercutam na construção de novas imagens da cidade. Estas experiências são
falas que formulam hipóteses sobre a cidade, e mesmo quando somente podem trabalhar
com fragmentos, tratam de permanecer como registro na memória dos cidadãos.
Isso pode ser considerado também uma forma de construir ambientes porque o
diálogo entre o espetáculo e o cidadão representa a abertura, em primeiro
lugar, de um espaço imaginário potencial: um novo território da cidade, um
convite para o estabelecimento de novos vetores do ambiente.
A função dramatúrgica
mencionada acima está relacionada com o fato de que é a ação dos habitantes da
cidade que exerce a delimitação/identificação da cena como representação. Como
diz Josette Ferál o “espaço (teatral) é criado pela consciência do ato do
performer” (FÉRAL e BERMINGHAM: 2002), portanto está no olhar do usuário das ruas tanto identificar a
presença do acontecimento teatral e como de relacioná-lo dialeticamente com o
funcionamento da cidade que penetra o tecido da encenação. É olhar do usuário
que recorta e edita um quadro, situa o espetacular dentro do fluxo do cotidiano
e redimensiona tanto a cena como o próprio dia a dia - o que parece real -. As
escolhas do espectador criam fraturas espaciais e isso estabelece a condição de
espectação que determina a existência do espetáculo como evento que se projeta
do fluir do cotidiano.
O espectador da rua faz uma
seleção entre inúmeros eventos, comportamentos, corpos, objetos e espaços sem
prestar atenção de modo cental para a natureza real ou ficcional dos elementos
observados. A cena é reconhecida como ficcional, mas na rua seu roçar com o
real cria um espaço híbrido que ficcionaliza elementos do real e ganha, ainda
que momentaneamente, reverberações de realidade. Neste caso, os cidadãos podem
facilmente entrar no espetáculo, interferir nas tramas das cenas, se fazerem
presentes como sujeitos ativos do espetáculo, por mais que este tenha sido
construído desde uma perspectiva que se apresenta como impermeável aos fluxos
da cidade. Isso situa o espetáculo da rua em uma zona muito particular pela sua
potencialidade para criar interfaces entre a vida com seu ritmo diário e a arte
como proposição de ruptura.
Para se compreender como se dá
interação entre a cena e o ambiente, e para se estabelecer se isso se dá de
maneira produtiva - redimensionando a cena e provocando alguma ruptura no
cotidiano -, é necessário ver como as encenações realizam suas leituras da
cidade. E, especialmente, é necessário identificar como a interface existente
entre a cidade e a cena dilata os sentidos do espetáculo. Essa dilatação não é
mais que consequencia da dramaturgia da cidade operando no tecido da cena.
A ruptura que a intromissão do teatro provoca no ambiente se relaciona com
os diferentes níveis do conflito, que é o elemento básico do processo da
cidade. A
paisagem é o terreno no qual se efetiva a luta entre diferentes códigos de
construção de significado (DANIELS; COSGROVE, 1994). Para se elaborar uma
interpretação do significado de uma determinada paisagem, é preciso identificar
os diferentes discursos que atuam na sua configuração, lidando,
concomitantemente, com dois níveis de observação: um que diga respeito à vida
social num plano geral, e outro, associado às relações de poder em particular;
em ambos se deve procurar compreender como essas relações são constituídas,
reproduzidas e contestadas (DUNCAN, 1990:297).
O teatro parece ter o potencial de transpassar verticalmente
as camadas da cultura e das relações que constituem o substrato do ambiente
devido a sua capacidade de se impor a partir do jogo. Sua aparente
“inutilidade” – característica atribuída a partir de uma visão que reverbera
ecos românticos muito própria de setores sociais populares - contraditóriamente
reforça a potencia lúdica pela própria inversão de valores que representa o
esforço de fazer algo que, em princípio, não se identifica com a lógica da
produção que é característica da ordem das cidades. Isso é discutir o ambiente
funcional urbano a partir de sua ocupação, pois ainda que existam exceções, o
teatro de rua em suas múltiplas variações, não se identifica com o negócio do
entretenimento e aparenta ser, para o público, uma prática social claramente
marginal. Essa condição de marginalidade está associada ao lúdico e o reforça
como elemento constituinte.
O gesto “inútil” dilata o papel do teatro de rua como
fala de ruptura, assim, o lúdico termina por ser um elemento fundamental na
deconstrução dos projetos (urbanos) bem como na modulação das hegemonia dos
ambientes. O lúdico introduz tensões próprias e solicita percepções que
deslocam o cidadão do seu lugar cotidiano. Desta forma o teatro reposiciona os
vetores dos fluxos e também condiciona os percursos utilizados na cidade.
Estes percursos são elementos chaves da vida na cidade. É
a definição de percussos que estabelece a identificação de referências tais
como os limites e as zonas, e consequentemente, ajudam a definir os territórios
de pertencimento. Circular pela cidade é também definir o espaço em sua
dimensão física e simbólica.
O teatro tem a vocação de se colocar no espaço como
obstáculo às continuidades. A partir dessa ideia algumas experiências de
encenação tem investigado exatamente a ruptura dos percussos, ou a proposição
de novos percussos – alternos aos estabelecidos – como motor da construção da
cena. Causar algum distúrbio no fluxo, ainda quando esse distúrbio não se
projete até a dimensão dos procedimentos de Deriva (DEBORD, 1958) representa
instituir a potencialidade de um novo olhar sobre a silhueta da cidade.
No entanto, isso,
não se relaciona somente com as formas teatrais que rompem como os modelos mais
tradicionais do espetáculo na rua. Até mesmo aquela cena que estabelece uma
roda e convida o público a se situar nos limites previamente delimitados,
representa um obstáculo a algum fluxo, e exatamente por isso, resulta de certo
modo em um ruído para usuários do espaço. Vários são os atores que poderão
narrar alguma história que demonstra a existencia eventual de reações de
pessoas incomodadas pela presença do teatro. Essa interferência pode ser
proveniente de um pedestre que em curta distância lança algum comentário ao
vento, ou mesmo de uma bozina ou grito provocativo vindo de uma distância
considerável. Sabemos que os percursos usuais e usos predominantes mais usuais
não previam algo de representação ali, nada indicaria a existência de um
público disposto a assistir um espetáculo. Isso provoca ruído, provoca reação,
provoca diálogo com a cidade.
Diferentemente
da permeabilidade que caracteriza toda e qualquer representação que usa o
espaço da rua, o teatro de invasão não será apenas permeável, será construído
como uma trama aberta que considera a interferência da cidade como parte
estruturante da própria fala teatral. Neste caso não se trata apenas da boa
convivência com bêbados e cachorros que freqüentam o centro da cidade, e que
por ventura interfiram no decorrer das cenas, mas de uma composição que se
estrutura a partir da incorporação da lógica do espaço da rua com todas suas
imprevisibilidades.(CARREIRA, 2005: 25)
Isso reafirma uma
vez mais o fato de que a cidade sempre penetra a cena, mas não como uma
circunstância incômoda com a qual se deve conviver, senão como um mecanismo que
define que toda cena da rua será estruturada em relação direta com as
interferências das falas da cidade.
Como se trata de um
processo ativo onde diferentes falas interagem simultaneamente, o papel
criativo do ator cumpre uma função axial. O ator é o mediador que funde, no ato
da apresentação, os elementos dramatúrgicos que se fazem presentes respondendo
quase que exclusivamente às leis do acaso.
A interpretação nas
condições de um teatro de invasão é uma interpretação que solicita muito do
ator o jogo em um lugar duplo onde se atua e se “escreve” a situação cênica.
Além do sentido tradicional da improvisação estamos frente a uma demanda por
uma classe de jogo no qual o ator não apenas aproveita aquilo que emerge do
ambiente, mas sobre tudo lê o ambiente e busca reveberar nas ações da cena essa
dramaturgia modificando as condições de recepção e sua própria condição de
representação.
Essas questões abrem
linhas de interrogação sobre se as particularidades no processo criativo do
ator da rua implicaria na necessidade de uma formação própria porque o mesmo
pertenceria a um campo específico. É plausível refletir sobre essa
especificidade e discutir então a propriedade de um empreendimento dessa
natureza, mas devido ao foco do presente texto não é possivel tratar de uma
questão tão complexa. A experiência mostra que os estudos relacionados ao
teatro de rua ainda precisam avançar muito no que diz respeito à natureza do
trabalho atorial1.
O ator da rua deverá
saber como penetrar na cidade e ao mesmo tempo ser capaz de deixar-se penetrar
pelas dinâmicas da cidade, porque invadir é compreender as reentrâncias da
cidade, e descobrir como seu corpo e seu espetáculo serão interferidos pela
mesma.
O
espaço de tensão que se abre o entre ator e espectador pode ser definido como
um espaço limiar tal como sugere o antropólogo Victor Turner2.
Este espaço onde se cria e se produz conhecimento não pela relação entre
discurso e apreensão, mas sim pela experiência do sujeito em relação ao outro.
Este espaço limiar representa um umbral (sitio de trânsito) de indefinição onde
se enfrentam os significados com as linguagens materiais e seus processos de
funcionamento (CORNAGO, 24). O espaço limiar seria então um sítio de atrito
entre a fala da língua e a fala do corpo (o elemento performativo) construído
no marco das relações entre ator e espectador. Por isso seu funcionamento é
fundamental na compreensão da produção de campos constitutivos dos significados
no trabalho do ator. Na rua, esse espaço que não está circunscrito pelo reforço
espacial das convenções e pelas regras da recepção educada da arte, de tal
forma que o ator deve construir relações múltiplas e interferidas por dinâmicas
mutáveis, estabelecendo a limiaridade quase exclusivamente pela força do jogo
da interpretação e da interação com o público flutuante da rua.
Invadir é fazer com que o espetáculo seja poroso em relação à cidade
porque busca espaços de porosidade no ambiente por onde possa penetrar. Deve
haver aqui uma operação de mão dupla: não há prática invasiva que funcione se
os vetores da cidade não poderem atuarem como forças decisivas na gestão do
acontecimento cênico. O espetáculo invasivo será plástico para aceitar os
ajustes dramatúrgicos que resultam do diálogo com o imprevisível da cidade. O
ator será uma ferramenta central desse processo porque media não apenas a
atenção do espectador mas também a estrutura a própria condição de espectação
operando na intensificação da teatralidade do urbano até o estabelecimento
daquilo que seria espeficiamente teatral. O ator da rua intervêm nas dobras do
cotidiano buscando a manifestação do plano ficcional que vai além do projeto do
espetáculo.
Notas
1
O trabalho
de Narciso Telles representa uma iniciativa destacável neste sentido.
2 Esta ideia pode ser relacionada com o conceito de Zona Proximal
formulado por Vigotski.
Referências
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________Teatro
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GARCÍA CANCLINI, Nestor. Imaginarios
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LYNCH, Kevin. A imagem da cidade.
Martins Fontes, São Paulo: 2006.
ANDRÉ CARREIRA é professor da UDESC, pesquisador do CNPq
e diretor teatral. Atualmente dirige o grupo Experiência Subterânea/AQIS e tem
realizado espetáculos com diferentes companhias no Brasil. Nos últimos anos se
destacam em sua produção para a rua os espetáculo Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha (Teatro que
Roda de Goiânia) e Circus Negro
(AQIS). Carreira é autor do livro Teatro
de Rua publicado pela HUCITEC (2007).
ANDRÉ CARREIRA
is a Professor at UDESC, researcher of CNPq and theatrical director. Now he is
the leader of the group Experiência Subterânea/AQIS and he has been
accomplishing shows with different companies in Brazil. In the last years he
has been driven to his production for the street theater Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha (Teatro que
Roda de Goiânia) and Circus Negro (AQIS). Carreira is
the author of the book Street Theater published by HUCITEC (2007).