A MORTE DE DANTON NA CIDADE ESCAVADA                 

Lidia Kosovski

UNIRIO

       

Resumo

O espetáculo A morte de Danton dirigido por Aderbal Júnior em 1977, encenado dentro de um canteiro de obras do Metro no centro do Rio de Janeiro é compreendido em sua complexidade artística como fruto do olhar sobre o espaço-tempo de uma metrópole e se verifica como precedente das experiências realizadas no Rio de Janeiro com um caráter de intervenção nos moldes contemporâneos, onde se observam rupturas, trocas e permanências do estatuto teatral com a vida urbana.

 

Palavras-chave | Teatro | espaço urbano | intervenção | espaço cênico | historiografia do teatro

Abstract

The play Danton’s Death, directed by Aderbal Júnior and staged at a subway construction site in the center of the city of Rio de Janeiro in 1977, is understood in its artistic complexity to be the result of looking at the space-time of a metropolis. It is also considered to be the predecessor of subsequent experiments that took place in the city of Rio de Janeiro. These experiences have an intervention character within contemporary conceptual forms, where one can observe ruptures, exchanges, and permanencies between the theatrical code and urban life.

 

Keywords | Theater | urban space | intervention | theatrical space | theater historiography

 

 

O teatro no mundo ocidental pode ir para as catacumbas. (VIETTA apud MATTAR, 1999)

       

 

Um certo homem, numa tarde qualquer dos anos 70, atravessa a atribulada praça da Cinelândia no Rio de Janeiro (transfigurada neste momento em gigantesco canteiro de obras do metrô); cercado pela multidão imprensada entre betoneiras e escavações, o homem para e olha para baixo. Trata-se do diretor teatral cearense de nome Aderbal Júnior1 que, num  insólito devaneio, vislumbra  nesta paisagem convulsionada a encenação de uma das mais sangrentas passagens da história, a Revolução Francesa, dentro de um gigantesco anfiteatro.

Poucos meses depois o encenador, considerado então “como um dos mais criativos diretores da cena carioca”2, anuncia à imprensa a seguinte  proposta — encenar um texto ainda inédito no Brasil , do polêmico autor romântico alemão George Büchner, A morte de Danton (Dantons Tod), na íntegra, em plena ditadura militar, dez metros abaixo do nível do mar, dentro de uma cratera. Transformar em espaço cênico o gigantesco canteiro das obras do metrô: “(...) eu estive em uma das galerias. A emoção que senti, acredito vir das energias que sob a cidade podem ser concentradas para a expressão dramática das cenas de George Büchner em “A morte de Danton”, que só palavras não podem traduzir (...)”. 3

O ensaio que aqui se apresenta busca captar o que desdobra  num  lócus da cidade que não encontra classificação nos compêndios correntes relativos ao fenômeno urbano, quer históricos, quer arquitetônicos, quer urbanísticos ― um gigantesco canteiro de obras subterrâneo, um buraco.

A ideia nascida na praça da Cinelândia ― significativo marco de progresso e lazer da Belle Époque, onde domina na paisagem o majestoso Teatro Municipal ―, neste momento transformada em uma espécie de campo de guerra, anunciava  uma nova etapa para  a vida dos cidadãos cariocas. Por fim a rede de circulação subterrânea do metrô se desenhava sob a malha quadriculada da cidade.

Este acontecimento, entendido em sua complexidade como fruto do olhar do artista sobre o espaço-tempo de uma metrópole, é aqui considerado como instigante precedente e advento de uma gama de experiências teatrais realizadas posteriormente no Rio de Janeiro, constituindo um fragmento da cidade subterrânea, como lugar de forte concentração de energias da superfície e fator de teatralidade que só palavras não podem traduzir.

Com Hans Gumbrecht, (1998, p.35/36) salientamos que não é possível pensar em “precedência” sem pensar na ideia de transgressão, pois “ser o primeiro” em algo significa realizar alguma coisa que nunca tinha sido pensado, numa fronteira além da qual um novo e o diferente se fundam. Muitas vezes o indivíduo que cruza este “limite” não está nem sequer consciente de sua atitude, e assim o acontecimento de atravessar a fronteira é estabelecido retrospectivamente por contemporâneos ou pela posteridade de alguém. E é neste sentido que valorizamos esta experiência, como precedente de investimentos que se seguiram na contemporaneidade do Rio de Janeiro, resgatando espaços da cidade como potência de criação e produção de sentido.

Pode se dizer que A morte de Danton  foi de fato um advento. Para Maria Helena Chauí (1994, P. 490/492), o advento deve ser visto como algo “que excede à própria obra, passando a ser experimentado como falta por seus pósteres que retomam o feito através do por-fazer solicitado no interior da própria obra”. O feito tornado doação. Havendo assim advento na existência de uma obra e havendo obra quando o que foi feito, dito ou pensado permite fazer, dizer e pensar, e a partir daí rolar uma cascata de novos investimentos.

    

Fig. 1 · Foto de cena (Xerox -Acervo de Aderbal Freire)

 

Fig. 2 · Foto de cena (Acervo de Aderbal Freire)

 

Marco zero

Sob a compressão de um segundo, quando brota esta estranha ideia, estabelecemos o “marco zero“ deste ensaio, e sobre este primeiro instante, fundamental, relata-nos o diretor: “Eu não escolhi o texto em função do espaço (...). O inédito do espaço, é  o fato do espectador mergulhar nos subterrâneos da terra.” 4

No começo: eu tinha um encantamento enorme pelo texto, que me interessou quando, nos anos 60, eu fiz Liberdade, liberdade, ainda em Fortaleza, e um dos trechos que tem no Liberdade é A morte de Danton. (...) Fui despertado para A morte de Danton por Liberdade, liberdade. (...). Me lembro na Cinelândia, olhando para o buraco e pensando que seria fantástico fazer um espetáculo ali embaixo, ainda com aquilo aberto. A cidade estava toda escavada pelo metrô e eu olhava e dizia que ali dava para fazer um espetáculo. Em algum momento eu disse que seria muito legal fazer A morte de Danton. Teve um momento que juntou (...). Primeiro, isso talvez possa ter nascido intuitivamente, como um intuito de discutir a questão da origem da sociedade burguesa, que é o que de fato fala A morte de Danton, que vai à Revolução Francesa, com os mesmos ideais de liberdade, fraternidade e igualdade, e naquele momento o fim da sociedade burguesa no Brasil, com a ditadura militar, fazia sonhar (...) com outra transformação, de novo propondo os mesmos temas que essa civilização burguesa não tinha cumprido (...). Eu achava que esse tema era um tema proibido e, mesmo que me deixasse, eu queria sublinhar o seu caráter de proibido e queria falar dele debaixo da terra. Era um tema subterrâneo, ele não estava na superfície. (...) Tinha que falar dele de forma subterrânea5 (FREIRE FILHO, 2001)

Neste relato, observamos três aspectos:

1) A sincronia entre um momento da evolução urbana do Rio de Janeiro e o desejo do artista.

2) A importância do discurso político, próprio do teatro dos anos 60, valorizado na encenação de A morte de Danton como base de uma perspectiva artística renovada.

3) A associação entre a cena teatral e um subterrâneo, um buraco. O sentimento de “proibido” como produtor de sentido durante a ditadura militar. Para um tema proibido, um lugar subterrâneo — numa metáfora: a metáfora como estratégia de sobrevivência do pensamento artístico dos anos 70.

 

Emergência do debate pós-moderno dos 1970.

Recorrendo a Frederic Jameson , é possível considerar o episódio já como um efeito das questões que o capitalismo tardio trouxe para a produção intelectual e artística. Jameson demonstra que as transformações dos projetos “revolucionários” dos anos 60, abatendo-se implacavelmente sobre todos nós, valorizam a tensão e as preocupações político-sociais como uma implosão, e os fragmentos caídos como sucata sobre a cidade contemporânea aí estão, presentes, e ainda hoje é rico pensar na ideia de que o projeto cultural dos anos 1960, em vez de perdido, teria- se reciclado, numa estupenda imagem da implosão e da sucata caindo e retornando em fragmentos que germinam e se reatualizam no espaço da cidade, o reconhecimento das infinitas possibilidades do imenso laboratório em que se transformou o espaço da cidade entendida como esfera pública e como arena cultural.

A evidência deste efeito é percebida no ato da Companhia do Metrô, ao apoiar a bizarra proposta, buscando conseguir a “simpatia” da população para seu empreendimento, investindo num “dispositivo cultural” como expressa este comentário da revista Visão:

E não faltam esperanças de que esse evento sirva para instalar um divisor de águas na construção do metrô do Rio, rasgando possibilidades para um planejamento mais humano, que não esqueça as oportunidades no plano cultural, tanto nessa fase como, principalmente, após a inauguração dos serviços de transporte, já que serão atendidos bairros típicos da classe média — Botafogo, Flamengo, Glória, Tijuca —, com população interessada em atividades culturais.6

De certo, a idéia, brotada nos idos da década de 1970, apresentava-se como uma interessante proposta de intervenção cultural na cidade. Era inédito apropriar-se de um insólito espaço urbano, como espaço cênico. Seria a primeira vez que a cena teatral assumiria o habitat urbano em construção, e os canteiros de obra, na aparência de ruína, constituiriam a força da imagem necessária ao texto: a destruição e renovação.


(Registro do espetáculo em Super 8 -1977 - acervo de Aderbal Freire)

 

Os anos 1970 de Aderbal

Estamos em 1977, há mais de uma década sob a ditadura militar. Para o teatro, do ponto de vista de Aderbal Freire Filho, os anos 70 se definem como geração

provavelmente a mais obscura. Pensando nas gerações por décadas, das artes no Brasil. Fala-se pouco dos anos 70, ainda. Fala-se muito da geração dos 60. Na pintura, todo mundo conhece bem o Gerchmann, Vergara, Oiticica. O teatro então, é fortíssimo nos anos 60, nos anos 50. A geração dos anos 70, no teatro, ficou a cara do “Asdrúbal”, que na verdade chegou já no final da década de 70. (FREIRE FILHO, 2001)

Para a cultura teatral, em geral, oprimida pelos estreitos limites da censura, diz-se que é um momento de resistência, expresso por pólos opostos: pelas firmes preocupações políticas da esquerda ou pelo “desbunde”, com seus delírios lisérgicos e experimentalismos.

Num discurso paralelo correspondente ao de Umberto Eco ao propor uma distinção entre apocalípticos e integrados face à mídia, Aderbal Freire Filho acentua o surgimento de uma produção cultural apoiada na dicotomia resistência X acomodação:

Tudo o que acontece nos anos 70 mostra resistência e mostra a existência de uma produção “acomodada”. Não entendendo por acomodação um caráter depreciativo... “Acomodado” no sentido de “ligado” já a essa realidade, uma produção que dialoga com a sociedade como está aí. Dialoga, já se acostumou com umas coisas, resiste a outras que não agüenta. (...) Não quero nem um pouco desmerecer. Por isso mesmo que eu estou dizendo que era “acomodada” sem o caráter depreciativo. Acomodada que eu quero dizer é próprio do período. (...) Nos anos 70 a arte não é só de resistência e também não é, por outro lado, acomodada no mau sentido, não é oficialista. Então, por exemplo, o “Asdrúbal” não é oficialista, o fulano e sicrano não é oficialista, mas também não é necessariamente de resistência. (FREIRE FILHO, 2001)

O traço da dita resistência do teatro da década de 70 pode ser ilustrado, entre tantos episódios sinistros, sobretudo, pelo interesse em textos de cunho altamente político, frustrados em suas montagens pela censura demolidora: Revolução na América do Sul, de Augusto Boal; Chapetuba F. C., de Vianinha; Rasga coração, Moço em estado de sítio, de Vianinha; Santa Joana dos Matadouros, de Brecht; entre tantos outros.

Segundo Fernando Peixoto, com o AI-5 deixou de haver margem para a existência da espécie que Cacilda definia altivamente como ‘os homens livres do teatro’, e a resistência orgânica da classe não poderia deixar de ceder diante de irrespondíveis argumentos de força. De acordo com Sábato Magaldi, (1996, p. 315) a linguagem possível, como estratégia de penetração e sobrevivência, foi a da metáfora, amplificada, para dar conta do anseio de liberdade de expressão.

Para Décio de Almeida Prado (1988), uma das resultantes estéticas desta década traduz-se pelas primeiras oposições à compartimentação da cena chamada à italiana, transformando sensivelmente as formas tradicionais de montagem. No anseio de comunhão, da fusão integral de corpos e de espíritos para reconduzir o teatro às suas origens rituais religiosas, as montagens induziam o público a abandonar a sua cômoda privacidade, integrando-se à representação, estivesse disposto ou não a desempenhar a sua parte. Décio diz que: “Não se pode dizer que este ideal se haja instalado com freqüência nos palcos brasileiros, mas constituiu-se como um dos pontos de referência obrigatórios para a dramaturgia e encenação.” (1988, p.115)

 

O Buraco do Metrô e a sombra do Teatro Municipal

“Por exemplo, aqui você estava num lugar que ainda não era usado como metrô .(...) Era dentro da sua cidade, era um buraco da sua cidade que você entrava e aqui nada era cenário adequado para a Revolução Francesa.” (FREIRE FILHO, 2001)

O buraco de um canteiro de obras é um lugar a meio caminho entre o presente e o futuro, desordenado. Sua ocupação prematura pode ser vista como uma catalisação deste futuro tornado presente, à força. O olhar artístico, reordenador, sobre a própria desordem reordena não só o espaço como o tempo, desviando o que é um projeto técnico e funcional, para uma ação transcendente imediata, construtora de um novo fato, uma renovação, revelando a presença do que não está, mas se faz ver.

Simbolicamente o buraco é uma abertura para o desconhecido; no plano imaginário, o buraco não é o vazio: é repleto das potencialidades daquilo que o preencheria; é mitologicamente considerado como o caminho para o parto natural da ideia: da representação do buraco aberto por uma machadada de Hefestos no crânio de Zeus é que sai a Deusa guerreira da inteligência e protetora e padroeira da cidade, Atena. Entre o buraco e o vazio há a mesma diferença que entre a privação e o nada. Essa distinção é tão verdadeira que o buraco aparece como o símbolo de todas as virtualidades. Os índios viram nele ao mesmo tempo a imagem do órgão feminino, por onde passa o nascimento do mundo, e uma porta do mundo, por onde a morte permite que se escape das leis daqui da terra. O buraco tem um duplo significado transcendental: abre o interior ao exterior, abre o interior ao outro.

A cidade permeada de buracos e crateras, como num cenário de campo de guerra, se por um lado fazia do pedestre um andarilho em campo minado, por outro levava a população a olhá-la como desconfiada aposta no futuro.

Com a decadência da Cinelândia, que aos poucos foi escolhendo sua própria vocação (...) a “Broadway”7 morreu há muito tempo. Para recuperá-la, só mesmo sua destruição total e posterior reconstrução (...) diz “seu” Ferreira, proprietário do Bar Amarelinho: (...) “é o que eu digo, a Cinelândia está morrendo vestida de mendigo para ressuscitar com roupas de luxo (...). E depois que tudo isso acabar, eu vou até fazer uma reforma no Amarelinho, para que ela fique à altura da Nova Cinelândia”. (PERIN, 1973)

O aspecto dos canteiros era como de bunkers que prometiam a segurança de uma vida melhor, de uma cidade moderna, ágil, que tardiamente estava prestes a dispor do sistema de transporte de massa fundamental a qualquer metrópole. A cidade começava a se apresentar como um novo organismo, ligado por redes de túneis que tendiam a se multiplicar, sob a malha urbana, rígida, projetada na superfície, em quarteirões regulares.

O metrô é uma rede que instala um novo traçado urbano, paralelo ao existente, e cuja função é especificamente a de circulação. No entanto, trata-se de uma “cidade subterrânea”, onde uma gigantesca infra-estrutura se desdobra para o seu funcionamento, e uma vida “paralela” é fomentada. Abrigo dos nouveaux pauvres e famílias de emigrantes em suas galerias, em Nova York, reduto de marginais e loucos que ameaçam a população. Nos anos 80, o filme Subway, estrelado por Cristopher Lambert, revela um outro mundo, a vida de um grupo de marginais e outsiders, moradores escondidos nos nichos e túneis inacessíveis do metrô.

Nos subterrâneos invisíveis continuamente desenvolvem-se possibilidades de potência na fronteira topológica entre o exterior e o interior, entre a cidade conhecida, heterogênea, repleta de memórias, e o insólito desconhecido. Para Benjamim, o solo é o meio onde a vivência se deu, o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas, é de onde se tiram as energias vitais.

O “buraco” onde nasce a ideia de encenar A morte de Danton insere-se num lugar cuja heterogeneidade emerge de seu caráter histórico emblemático — a Cinelândia, um símbolo político, administrativo e de lazer do Rio de Janeiro por grande parte deste século, neste momento imersa em poeira e tapumes.

Diz Flávio de Carvalho (apud MATTAR, 1999, p.84) que “a paisagem é uma das forças energéticas que em todos os tempos provocam e aperfeiçoam o desabrochar do pensamento.”

E desta paisagem realça-se ainda a forte presença do marco arquitetônico: o Teatro Municipal — o teatro-monumento, o teatro-máquina de ilusões. Cristalizadas neste edifício, estão as impressões digitais do esplendor aristocrático do fim de século. No momento deste advento, o magnífico edifício, impávido entre os escombros, fricciona a memória de uma belle époque como espectro da Paris simulada, perdida e irrecuperável, de seu ponto de vista elevado, como velho observador da cidade em permanente transformação: desde a ação do deus ex machina do prefeito Pereira Passos sobre a superfície colonial, passando pela instalação da “Broadway brasileira”, até a implantação das “ruas” subterrâneas do metrô. Desde o flâneur  até o passageiro metropolitano, o edifício teatral, emblema máximo da “alta cultura” burguesa, debruça-se como espectador das inúmeras cenas que a cidade como um teatro pode proporcionar.

Setenta anos depois do plano urbanístico do prefeito Pereira Passos, arma-se esta cena fugaz, cujos protagonistas, de nosso ponto de vista, são o imponente teatro e a imaginação de um quase anônimo artista, no cenário tumultuado da Cinelândia. Nasce neste contexto, uma proposta especular: criar um outro teatro, reflexo, sombra ou projeção do Teatro Municipal, oficial, que por sua vez simularia os “subterrâneos” conspiradores da Paris da Revolução Francesa, e que justamente por estes atos seria reconfigurada pelo traçado regulador de Haussmann, do qual derivava-se a própria Cinelândia.

O edifício-monumento, nobre ponto de fuga para o olhar dos transeuntes, elevado por nobres escadarias e o espaço cênico invertido, em negativo. Um, em seus revestimentos de Carrara, organizado arquitetonicamente como esplendor aristocrático, o outro, orgânico, provisório, apropriação fugaz da aspereza do concreto inacabado. Um espelhamento às avessas. O confronto entre a expressão de poder, representada pela arquitetura teatral magnífica da Casa de Ópera neobarroca, expressão que domina a paisagem, e uma ideia que leva para o subterrâneo a estranha experiência artística fragmentada , cuja temática é precisamente a discussão sobre as origens deste poder.

O Teatro Municipal, como um cenário filtrado da experiência francesa, numa permanência na Cinelândia pós-moderna, o texto de Büchner, escrito em 1835, passado na Paris revolucionária, e a sugestão de um teatro enterrado formam uma caixa de espelhos que se rebatem entre si, cuja fugidia imagem tentamos capturar.

O frágil projeto artístico, pensado para um buraco invisível dentro da gigantesca cidade, de certo contempla o momento que transformou definitivamente o observador flâneur carioca no passageiro metropolitano. Passageiro sem tempo, “em permanente movimento, cada vez mais longe, cada vez mais rápido. Esta crescente velocidade determina não só o olhar mas sobretudo o modo que a própria cidade e todas as outras se apresentam para nós.” (PEIXOTO, 1988, p. 361)

 

Rondando as galerias da cidade

Os anos 1970 criam o site specific art, prática das artes plásticas  dedicada à criação de obras de arte pública em diálogo com sua vizinhança. Orientadas por esse conceito, algumas obras de arte pública passam a ser desenvolvidas a partir de características topográficas, envolvem um conhecimento anterior sobre o espaço que receberá a intervenção – temporária ou permanentemente – e devem considerar os diferentes interesses que atuam sobre o mesmo espaço. A escultura considera o local, o ambiente, as pessoas que ocupam os espaços naturais e construídos, dialogando com a arquitetura e a natureza, em seus respectivos contextos. A obra constrói-se a partir desse diálogo, integra-se ao entorno e não pode ser transportada para outro lugar. Podemos dizer simplesmente que a escultura passa a se integrar ao cenário urbano, como um equipamento de fato.

Acreditamos que, através do conceito de site specific, seja interessante pensar que a noção de afinidade, incorporação e forte diálogo da obra com o lugar, proposta pelas artes plásticas, esteja sincronicamente se instalando no caso do Danton e no pensamento das artes cênicas, a seu modo.

Porque isso aí é assim (...) passada esse fase, de deslumbramento com a  metáfora encontrada, a razão de ser no subterrâneo (...) como então formatar a espetáculo ali em baixo? (...) O espetáculo tinha uma idéia , uma idéia constituída pelas possibilidades que o espaço sugeria ao texto.8 (...) escolhi o elenco e começou a minha peregrinação pelos buracos do metrô.9

E, apesar de a Cinelândia ter sido o lugar gerador do acontecimento, não foi possível realizá-lo em suas galerias, visto que, nesta estação, as obras estavam em fase de acabamento. Como alternativa, o Metrô ofereceu à produção o “buraco” da Central, onde as obras estavam quase no início. A solução parecia boa: um local de fácil acesso, com pontos finais de ônibus tanto da zona sul como da zona norte. Mas em face do cronograma das obras da Central esta também se mostrou inviável e lhes foi oferecido finalmente o “buraco” da Glória, cujo interior já estava mais avançado. Ali, num corredor que lembra uma galeria espaçosa de esgoto, os atores ensaiaram durante quatro meses. Aderbal observou: “Na Central o espaço era mais grandioso. Por isso agüentávamos o sacrifício. Mas lá era impossível. Aqui é como se estivéssemos mais em um esgoto.”10

A iniciativa foi acolhida com curiosidade pelo público, que, não se atemorizando pelo labirinto de túneis para assistir aos ensaios, brindava a coincidência de dois fatos: a representação da peça e a transformação da cidade, sua escavação. O situ não dependia do endereço, mas sim das condições de equivalência onde a ideia se sustentava.

Durante quatro meses, entre buracos, concreto e obras, um pouco heróis, Aderbal Jr. e um elenco de 27 atores que representavam 60 personagens ensaiaram, estreando, no dia 26 de abril de 1977, no trecho do lote sete da Estação da Glória.

 

 O subterrâneo como operação simbólica

(...) era metafórico fazer embaixo da terra, era uma metáfora dessa discussão necessariamente subterrânea.11

A peça aprofunda um flash da Revolução Francesa numa duração de 15 dias, pouco antes da prisão de Danton, e se estende até a sua morte. Fala do episódio da morte de um líder moderado, criador de um Tribunal Revolucionário. Toda a ira do poder sobre ele recai, depois que Robespierre eliminou os radicais e precisava consolidar seu governo. Para isso acreditava que os moderados também incomodavam, e Danton, que fizera parte do governo, era um deles.

A morte de Danton trata da narrativa de um claro confronto entre duas posições políticas antagônicas, explicitadas nos discursos realistas de Robespierre, Danton e seus correligionários.

Levar este texto à cena naquele momento, em qualquer palco, era em si uma provocação, e por si só caracterizava um gesto ostensivo, liberado deste recurso retórico como estratégia de defesa. A metáfora, da maneira proposta, substituía o palco do teatro convencional por outro, visando um efeito poético que ativava o imaginário do próprio espectador “burguês”, inscrevendo-o como personagem da cena. Para que isto ocorresse plenamente, justificava-se o uso do subterrâneo em seu sentido de “origem” (origem revolucionária, origem do poder), a origem como alvo, com fins de expandir a dimensão conscientizadora do texto, como era próprio às preocupações da época.

Aqui embaixo da terra, confrontamos uma platéia burguesa com a sua mitologia. Conduzindo esse grupo de personagens históricos (a platéia) até as suas origens (as origens do poder) pretendemos que ela renasça e, no curto tempo do espetáculo, se desenvolva uma civilização de seres subterrâneos, para quem a superfície é a morte — como é para Júlia, mulher de Danton — está estabelecida uma contradição básica, fiel à essência do texto de Büchner e fundamental para o desenvolvimento da relação teatral.12

Admitindo o subterrâneo como potência de vida (a possibilidade revolucionária/o teatro), na sua natural oposição com a superfície como morte (a derrocada do projeto revolucionário/a realidade), aponta-se para uma dialética que afasta a significação única e primária do subterrâneo como “esconderijo”, ampliando, sobretudo, o efeito teatral. Nesta inversão topológica, a teatralidade entra em jogo, e o espaço cênico extrapola os limites de um palco limitado ao discurso textual. O cênico precede o texto: o ato de descida aos subterrâneos já constrói a teatralidade como estranhamento que se afirmará na trajetória natural da encenação sobre seu principal Leitmotiv: o texto.

O lugar se espacializa como “cênico” no ato do público de descer as escadas e penetrar num “buraco”. Nesta operação metáfórica, Aderbal pretendia romper, desde a ação de “entrar no teatro”, a barreira que isola o significante - espectador de seu significado visitante, numa travessia poética que o inscreve como personagem do acontecimento. O real se rompe, antes mesmo que o texto se inicie. Sob este aspecto, a metáfora é um lugar esboçadamente situado, topografável, como um região de deslocamento e transgressão. Como lugar do deslugar, a metáfora pretendia operar como agente catalizador de atualização do sujeito.

A importância subterrânea passa a ser transferidas para os espectadores-personagens, pois estou juntando uma platéia burguesa, em baixo da terra, mostrando-lhes às origens do seu poder. (...) Então, toda essa energia do texto — racional, contundente, profunda — fica evidente. A peça se torna um confronto entre os personagens históricos da Revolução Francesa e os personagens históricos da platéia. 13

A imagem de uma cratera excita o imaginário e, sugerindo muito além da metáfora conduzida pelo encenador, é, como capital simbólico em si, uma ideia que se auto-sustenta. O lugar encontrado (Schechner) neste caso é uma gruta moderna, uma caverna, uma catacumba tecnológica, ligada  a uma rede de túneis funcional experimentada como espaço de transcendência.

 

O verdadeiro teatro underground

A falta de setas indicativas pode confundir um pouco quem se introduz no verdadeiro labirinto de tapumes e maquinarias situado entre as ruas Santo Amaro e Pedro Américo. Há que prestar bastante atenção, ou então perguntar a alguém, para localizar o “teatro”. 14

No dia da estreia, o diretor relata a um jornal carioca o que o público encontraria:

São 30 atores vestidos singelamente em tons de cinza, preto e branco que, movimentam-se em todo o espaço da galeria, transportando em algumas ocasiões os sumários elementos de cena como cadeiras, bancos e outros objetos menores. Dessa movimentação, aliás, marcada fundamentalmente a partir da própria estrutura do local — cada viga, cada canaleta e também as próprias armações de ferro que servem de base para os futuros trilhos — é onde se encontra uma das chaves básicas da encenação. (...) Pois apesar da construção de uma arquibancada com 250 lugares (...) o público se deslocará pelas laterais, afim de acompanhar as cenas da peça. O que não deixa também de obedecer um esquema rígido de proposta de encenação. (...) 80% do espetáculo se desenrola em frente às arquibancadas, num espaço de mais ou menos 160 metros. O restante das cenas porém, se estende até o outro extremo da galeria, já que em termos de largura, o espaço não permite uma encenação mais parada.15

 

Fig. 3 · Imagem de cena.

Visão frontal, onde se nota a profundidade do “palco” e a sensação de infinito em direção à uma  fuga central.

(Foto do acervo da FUNARTE).

 

Fig. 4 · Croqui de Aderbal Freire

Localização espacial dos diversos palcos inseridos na plataforma do Metro Catete.

(acervo de Lidia Kosovski)

 

O paradoxo da caixa cúbica

As ruínas e um canteiro de obras têm  ambos aquele ar de casa  arrombada que Cocteau atribuía ao Fórum romano. (MISSAC, 1998, p.207)

(...) poderia se dizer que, se não foi o maior palco, foi certamente

 o mais profundo que já existiu.(Aderbal Freire)

O teatro foi organizado em uma espécie de lugar dividido em duas partes: à esquerda da escada de acesso situava-se a área cênica principal, que nada mais era que a própria galeria dos trens, com 12 metros de largura e 160 metros de profundidade, em frente da qual foi construída uma arquibancada de 250 lugares; à direita da escada de acesso ficava a parte da galeria, onde se dispunha uma série de colunas que dividiam o caminho em três seções, duas laterais e uma central. Havia também dois praticáveis, um no fundo da galeria das colunas e outro ao lado da escada, destinados às cenas mais rápidas.

Decupando-se a narrativa de Aderbal, e descrevendo-se a mise-en-scène, verificam-se seis pontos de ocupação do espaço:

1.    Na área cênica principal transcorriam 80% do espetáculo, com o público assistindo sentado nas arquibancadas até a prisão de Danton.

2.    No momento da prisão, o público começava uma laica procissão itinerante, convidado pelos atores, através do palco principal, e continuava o caminho pela contígua galeria das colunas, até a guilhotina.

3.    Neste trajeto, numa escala, parava-se diante da escada de acesso, onde Júlia, mulher de Danton, se suicidava.

4.    Em seguida, o público continuava pela galeria em frente, até chegar ao outro extremo, onde sobre um praticável acontecia o guilhotinamento de Danton e seus companheiros.

5.    No trajeto de volta, em direção às arquibancadas, o público tornava a interromper o caminho, diante de um outro praticável, ao lado da escada de acesso, onde assistia a cena do enterro dos corpos e das cabeças.

6. Quando a cena dos coveiros terminava, e o público se dava conta, os atores já tinham saído do local da cena do enterro, silenciosamente, e estavam sentados nas arquibancadas. O público estava no centro do palco, num metafinal. A encenação criava uma armadilha espacial: o público, sem perceber, descobria-se diante de uma plateia de atores que o aplaudia. Sem saber como, à sua revelia, num jogo cênico, o público era posto no palco, como personagem. Todo o elenco se levantava e gritava: “Bravo! Bravo!” E aplaudia delirantemente o público, perplexo, que não sabia como reagir.

Aderbal conseguia, nesta armadilha de movimentação, colocar todos os “burgueses” em cena, ao final dos seus duzentos anos de história.

Esta movimentação gera os seguintes tipos de palco e organização da plateia:

·       Um palco frontal, com profundidade de 160 metros, diante das arquibancadas de 250 lugares.

·       Uma galeria de colunas de 160 metros de comprimento para a itinerância e formação de cortejo.

· As escadas e praticáveis que criavam pequenas “arenas”, onde o público em pé, parado, assistia numa espécie de roda.

· A função do palco principal e a da arquibancada se invertem. Os códigos estabelecidos para esta área até o momento são rompidos, criando um estranhamento no interior da relação entre atores e público, a gerar, assim, um novo sentido.

Por que isso é teatral? (...) Porque a teatralidade está constituída, muito provavelmente, do choque ou do confronto ou de um conflito entre fantasia e realidade. Entre elementos verdadeiros e elementos falsos, entre mentira e verdade. Então, a criação de uma tensão aí dentro é que pode provocar.16

Neste espetáculo o cenário é a própria arquitetura de “ruas” subterrâneas, em sua estrutura sem revestimento, a própria galeria grandiosa do metrô, com seus ferros ainda expostos à mostra, seus pilares inacabados, seus nichos úmidos, as cores em variados tons de cinza, a textura grosseira do concreto constitui o caráter material do espaço cênico. Uma realidade física, que na sua condição inacabada, não fosse este acontecimento, jamais seria conhecida. A realidade da matéria é tensionada pelo seu desvelamento. Esta tensão entre um futuro lugar cotidiano, um futuro “não-lugar”, e a condição presente de espaço cênico, ainda que insólito­, torna-s um abrigo da proposta de encenação precisa e bem marcada, desenhada, quase coreográfica (ver vídeo). O uso incomum deste lugar acontecido previamente ao uso ordinário constrói um forte efeito teatral. 

Mesmo para o espectador mais informal, não deixa de ser surpreendente o contato com o novo espaço cênico. Especialmente à noite, quando diminui a iluminação dos prédios das redondezas e, depois de ultrapassar alguns escombros de obras, interromper o descanso dos operários, que se espalham junto às máquinas, e ao descer ainda três lances de uma escada de madeira, você se depara com uma estranha realidade.17

O espaço foi reconhecido, sobretudo, por seu impacto visual, constantemente relevado por sua “estranha beleza”:

O primeiro impacto é imensamente teatral: é o que recebemos ao descermos a escada e nos deparamos com o insólito e belo espaço cênico da galeria do metrô. Ao longo do espetáculo, o diretor utilizando os próprios atores como elementos do cenário consegue intensificar a estranha beleza da sepulcral catacumba tecnológica.18

A crítica d’ O Globo considera que: “Visualmente o espetáculo é belo e estranho. Tem-se a impressão de um filme em campo aberto, onde existem apenas panorâmicas. Os atores andam 200 m até chegar perto do publico (...).” 19

Da apropriação da acústica, proporcionada pelas galerias de concreto, como efeito de teatralidade, a mesma crítica observa: “O imenso túnel do metrô é verdadeiramente bem usado quando Camilo sonha, e sua amada (Bete Mendes, Lucília) vem em sua direção, e depois parte correndo, gritando, usando magnificamente a reverberação do som e o eco como efeito de pesadelo para seus passos e gritos (...).”

O curioso neste caso radical de saída do espaço italiano para um espaço oposto, rude, que não guarda nenhuma semelhança com o conforto das poltronas e as possibilidades técnicas do teatro convencional, configura-se também como uma “caixa”, gerando um paradoxo.

Se a caixa cênica convencional é um “cubo” onde falta uma das faces, neste caso estamos diante de um cubo onde faltam duas faces, pois o palco como um túnel profundo não dispõe da face de fundo. Além do mais, a profundidade, e não a largura, é sua maior dimensão.

O movimento em direção ao fundo, constante, rompe com um dos maiores problemas impostos à cena pelo palco italiano — a profundidade. Em busca da profundidade é que toda uma estética ilusionista foi construída, determinando em todos os sentidos a situação do ator sobre o palco. E neste caso, ainda mantida esta caixa (ou prisma), as relações espaciais na cena são em parte desconstruídas.

A exploração deste recurso, neste caso, transforma em longitude a latitude do palco italiano. Rompe com o sistema habitual de movimentação e percepção da totalidade cênica que gera o efeito do zoom da câmara cinematográfica, como efeito de fusão entre o que é cena principal e o que é secundário; o que é presença e o que é desaparecimento; o que é tribuna de ideias e o que é envolvência estética; entre passado, presente e futuro, no tempo narrativo cênico.

O uso da profundidade se desdobra, portanto, em dois espaços distintos: uma espécie de prisma de concreto — limitado por quatro arestas (teto, piso e duas paredes laterais) — onde transcorrem as cenas principais qual numa tribuna de debates, e o espaço além-cena, um túnel para onde fogem não as linhas simuladoras e cenográficas, mas os corpos dos atores, que se esvaem como imagem, mesmo em presença.

Esta entrada e fuga, do fundo e para o fundo, que tende ao infinito em um túnel cuja saída é invisível e não se revela, amplia o sentido da narrativa histórica, que aponta para o desconhecido e para a obscuridade de uma revolução em seus estertores.

O espaço principal, o prisma iluminado, é o lugar de acolhimento da palavra. Uma fronteira se arma entre o espaço onde se “narra” e a silenciosa obscuridade do passado e futuro, na desaparição das personagens.

Na verdade, a nossa intenção era que a clareza das argumentações, das teses, dos discursos, fosse muito forte, então, a gente queria deixar isso tudo muito claro. Aconteceu isso, em algum momento (...) a gente experimentou essa coisa de fazer um ator aqui e outro a cem metros, lá do outro lado e o espectador aqui (...) a gente experimentou muito nos primeiros dias. A gente via que era impossível entender. (...) Simultaneidade de cenas rolando, não. O espetáculo era limpo, era simples. Na verdade, tinha alguém que falava lá de longe, que gritava alguma coisa.20

Outro aspecto relevante nesta montagem é a forma ainda completamente inédita nos palcos cariocas de utilizar a itinerância numa tentativa de interatividade: “(...) e a participação do público deverá ser a maior possível. Quando uma cena tiver que ser representada num outro local, a platéia se deslocará acompanhando os atores.” 21




Fig. 5
· Imagem de cena itinerante. A caminho da cena da guilhotina  ( acervo FUNARTE)

Na última parte do espetáculo, a plateia, ao ser convidada a caminhar, rompe pessoalmente os limites em direção à profundidade, e atravessa o túnel, agora fracamente iluminado para o desenrolar do cortejo em direção à guilhotina que tirará a vida a Danton, situada no fundo do túnel. O público, integrada no cortejo, não só acompanha o acontecimento “de perto”, deslocando-se, como a sua interação pretende também o seu deslocamento subjetivo, para a nova condição de personagens do acontecimento. A profundidade neste momento passa a ser usada como espaço de itinerância e de interatividade entre atores e público, agregados em ritual comum.

A circulação em cortejo, procissão leiga que para diante de pequenos palcos, desvenda o  espaço em seu movimento de ir e vir, e é seguida de uma inversão de sentidos criada pelo diretor: ao colocar o público no palco, tornando-o personagem derradeira deste espetáculo, fazendo-o “entrar em cena” à sua revelia, transforma o palco em plateia e a arquibancada em palco. O público, “personagem  burguês na realidade e na ficção”, reconhece no “público” de atores sentado no “ novo palco da arquibancada”, e em contraposição,  o público se vê como ator que vê os atores transformados em plateia. Este jogo, construído a partir do deslocamento espacial, é certamente uma das soluções  teatrais mais interessantes. A interação entre as partes e a desconstrução das relações previstas marcam este espetáculo como um precedente exemplar de uma série de jogos de desconstrução levados a efeito nas duas décadas seguintes.

Fig. 6 · Nota do Jornal O Pasquim (acervo da FUNARTE)


Notas

1 Hoje, Aderbal Freire Filho.

2 O Globo, Rio de Janeiro, 1 mar. 1977.

3 O Globo, Rio de Janeiro, 7 dez. 1976.

4 Folha da Manhã, Porto Alegre, 22 jan. 1977.

5 Entrevista de Aderbal Freire Filho.

6 Visão, 9 maio, 1977.

7 Se referindo à alcunha dada ao “Bairro Serrador”, no final da década de 20, quando no grande quarteirão da Praça Floriano foram instalados os grandes cinematógrafos e cine-teatros na capital federal, por Francisco Serrador.

8 Entrevista de Aderbal Freire Filho.

9 O Globo, Rio de Janeiro, 1 mar. 1977.

10 O Globo, Rio de Janeiro, 26 jun. 1977.

11 Entrevista de Aderbal Freire Filho.

12 JUNIOR, Aderbal. Texto do programa.

13 Última Hora, Rio de Janeiro, 27 abr. 1977.

14 Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 2 jun. 1977.

15 Aderbal Junior em entrevista ao jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 27 abr. 1977.

16 Entrevista de Aderbal Freire Filho.

17 Última Hora, Rio de Janeiro, 27 abr. 1977.

18 Jornal do Brasil, Crítica de Yan Michalsky, Rio de Janeiro, 29 abr. 1977.

19 O Globo, Rio de Janeiro, 8 maio 1977.

20 Entrevista de Aderbal Freire Filho.

21 Aderbal Júnior em entrevista ao jornal Folha da Manhã, Porto Alegre, 22 jan. 1977

 

Referências

CHAUÍ, Marilena. Obra de arte e filosofia. In: NOVAES, Adauto (org.). Artepensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FREIRE FILHO, Aderbal. Entrevista concedida a Lidia Kosovski, 2001.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998.

HOLLANDA, Heloísa Buarque. Cidade ou cidades? In: Cidades, Revista do Patrimônio Histórico, IPHAN,  n.23. 1994

MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. São Paulo: Global, 1996. 3a edição, revista e ampliada.

MATTAR, Denise. Flávio de Carvalho: 100 anos de um revolucionário romântico. Rio de Janeiro: CCBB, 1999.

MISSAC, Pierre. Passagem de Walter Benjamim. São Paulo: Iluminuras, 1998.

PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento. São Paulo: Hucitec, 1988.

PEIXOTO, Nelson Brissac. “O olhar estrangeiro”. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.

PERIN, Orivaldo. Cinelândia, da mãe do bispo ao metrô, na rota da história. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 abr. 1973.

PRADO, Décio de Almeida O Teatro Brasileiro Moderno. 1930-1980. São Paulo: Perspectiva, 1988.

ROSENTHAL, Erwin Theodor. O Trágico na Obra de Georg Büchner. São Paulo: Brasiliense, 1961.

LIDIA KOSOVSKI é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ); é Doutora em Comunicação e Cultura  pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). Atualmente, é professora adjunta e Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - PPGAC (UniRio). É professora adjunta na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio). Trabalha como cenógrafa na cidade do Rio de Janeiro.

LIDIA KOSOVSKI is a fully licensed of Architecture and Urbanism from  Federal University of Rio de Janeiro (FAU-UFRJ). She holds Doctor degree in Comunication and Culture  from the Federal University of Rio de Janeiro (ECO-UFRJ). She is currently Associate Professor  and Coodinator of  the Pos graduation  program of SCenic Arts at the Federal University of the State of Rio de Janeiro (UniRio) She works as set designer in Rio de Janeiro city.