O TEATRO NO ESPAÇO DA CIDADE – O Lugar Praticado
THEATRE
WITHIN THE CITY SPACE – The Practised Place
Biange
Cabral
UDESC
Resumo
Pessoas transitam
entre cinco cenas teatrais criadas através do cruzamento entre locais
significantes de uma cidade, sua história e as memórias de seus habitantes mais
antigos. Os atores – estudantes de teatro e moradores do local – apresentam a
história não-oficial, fazendo uso de cerimônias e rituais para criar atmosfera
e dar voz a todos. O público, dividido em cinco grupos, segue roteiros
distintos, tendo como guia um contador de histórias, que durante o percurso
narra os eventos nos quais se basearam cada cena. A parceria entre
atores e moradores, na construção e apresentação do espetáculo, dá visibilidade
ao contexto multicultural dos locais onde foram criados e corresponde a uma
forma mosaica e não linear de ler o mundo. Rituais
e Cerimônias são focalizados frente a
questões de identidade, mobilidade e articulação de diferenças. O conceito de
lugar praticado, usado por Michel de Certeau para
descrever a cidade como um lugar a ser apropriado pelo uso, subsidiou esta
reflexão sobre o espaço do espetáculo inserido no espaço da cidade.
Palavras-chave | Teatro
e Cidade |
Lugar – História – Memória | Cerimônias e Rituais | Articulação de Diferenças | Lugar Praticado.
Abstract
People walk through five theatre scenes
which were constructed by crossing significant places of a town, its history
and the memories of its elderly inhabitants. The actors – theatre students and
locals – present the unofficial history, making use of ceremonies and rituals
to create atmosphere and give voice to the whole group. The audience, splits
into five groups, and follows distinct routes. Storytellers as guides, narrate
the background events of each scene throughout the walking tour. The
partnership between actors and locals in building and presenting the
performance make visible the multicultural context of their town, and represent
a mosaic and non linear mode of reading the world. Rituals and Ceremonies are considered under the perspective of
identity, mobility and articulation of differences. The concept of practised place, used by Michel de Certeau
to describe the city as a place to be appropriate by its use, supported this
reflection about the space of a performance inserted into the space of the
city.
Keywords | The theatre and the city |
Place-History-Memory | Ceremonies and Rituals | Articulation of Differences | Practised Place.
“Onde, quando, por
quem foram eles inventados? (...) O híbrido carrega as marcas do poder, mas, também
as marcas da resistência” Tomás Tadeu
O projeto Teatro em Trânsito1 foi assim denominado devido ao trânsito
de espectadores entre cenas distintas e concomitantes que ocorrem em um centro
histórico, um bairro ou uma pequena cidade do interior. A estética teatral que
o caracteriza está centrada no cruzamento entre lugar (locais representativos
do patrimônio de uma localidade), a história destes lugares e as memórias sobre
eles (crônicas, contos e entrevistas com antigos moradores).
As cenas,
concomitantes e cronometradas em 10 minutos, se repetem tantas vezes quantas
forem o seu número, e o caminhar de grupos de espectadores de uma cena à outra
confere ao evento um sentido de cerimônia e confraternização. O elenco é
formado por alunos de teatro e moradores do local em que se realiza o evento,
sendo estes representativos de diversos extratos sociais e de diferentes faixas
etárias.
Mas, Teatro em Trânsito também representa uma
metáfora ao caráter processual de identificar e exercitar diferenças, observar
a alteridade através do olhar do outro, associar histórias seminais da
comunidade aos locais escolhidos, enfatizando o que está por trás delas (a
história não-oficial).
Foram realizadas
quatro edições do trânsito e a
análise destas experiências mostrou que seu impacto nos participantes foi
causado pela forma pela qual o tema foi abordado e o material introduzido: a
transformação do espaço cotidiano que possibilitou novas formas de ver; a
interação entre alunos de teatro e moradores locais de faixas etárias
distintas; os personagens inesperados encontrados nas cenas e durante o
percurso; a ressonância do contexto teatral com os contextos histórico e social
dos participantes (analogias e identificações); o uso de rituais como uma forma
de abrir espaço para as vozes individuais; o sentido de cerimônia em espaços
alternativos (voz e presença).
O caminhar de uma
cena à outra se constituiu como uma rede de cinco roteiros distintos, cada qual
cruzando os demais e seguindo uma seqüência diferente de cenas a fim de
facilitar o trânsito. Isto também facilitou a acomodação do público. Os
contadores de histórias, como guias, conduzindo os espectadores. A intenção foi
intensificar e salientar o caráter de cerimônia através da rotação do público –
os ir e vir dos encontros sociais; a presença dos espectadores no espaço
cênico; o sentido de pertencer; o contador de histórias como mestre de
cerimônia.
Deslocamentos e
Estranhamentos
“(...) quando algo parece a coisa mais óbvia do mundo, isto
significa que já se desistiu de qualquer tentativa para entender o mundo”. Brecht
O contexto
multicultural é hoje evidente não só nas cidades e grandes centros, mas também
nos bairros (número crescente de migrantes e imigrantes), nas escolas e
universidades (estudantes de outros estados e origens étnicas distintas). A multicultura se traduz em múltiplas formas visuais - a
mídia aponta para uma forma mosaica e não linear de ler o mundo. Janet Murray
chama a nossa atenção para histórias compostas por um mosaico de tomadas
individuais; como tal, criam um padrão mosaico de pensamento, o qual nós agora
aceitamos sem questionar (Murray, 1996:156-158).
Neste contexto, a
possibilidade de focalizar aspectos da história do lugar, revivê-la,
transformá-la e apresentá-la no próprio local onde os fatos ocorreram no
passado, a partir de um trabalho de criação em grupo, e como parte de um
coletivo de grupos, passa a ser uma experiência singular.
Por um lado, o olhar
estrangeiro (o olhar do ‘outro’) exacerba as diferenças culturais. Este novo
paradigma traz consigo uma cultura de escolhas – nós crescemos entre uma
variedade de vozes culturais; é possível dizer que nós somos feitos de
diferentes vozes, e como tal nos identificamos com aspectos particulares
de cada uma delas em épocas distintas de nossas vidas. Pela perspectiva do
teatro, podemos dizer que a diferença em cena permite visualizar mudanças de
parâmetros de lugar, identidade, história e poder.
Por outro lado, o extracotidiano que caracteriza
uma montagem em parceria, entre estudantes e moradores de um bairro, favorece a
imersão. O impacto provocado pelas interações, no aqui e agora, com as
múltiplas referências que constituem os diferentes códigos culturais,
experiências e linguagens, leva os participantes a estranhar a atuação do outro,
e os conduz a recontar e re-focalizar o texto.
Rituais e
Cerimônias
Cerimônias têm sido
teatralmente exploradas por serem associadas a eventos que marcam, comemoram ou
celebram algo com significação cultural e histórica (Neelands,
1990: 47). Rituais são considerados
como representações estilizadas, delimitadas por códigos e regras tradicionais,
usualmente repetitivas e requerendo que seus atores se submetam a um grupo cultural
ou étnico através de sua participação (Ibid: 40).
Faith Guss investigou aspectos comuns aos rituais (e cerimônias)
presentes na prática educacional do teatro e em outras formas do fazer teatral,
e listou características que interpenetram diferentes culturas e formam padrões distintivos da performance
ritualista: intenção cultural, modo performático, atuação, potencial para
posicionamento reflexivo dos atores e espectadores, aspectos de jogo,
relacionamentos entre processo e produto, relacionamentos entre produtor,
atores e espectadores, potencial para transformação Vs. confirmação Vs.
interrogação Vs. reprodução da experiência, produção de significados
particulares e universais (Guss, 2001:164).
Neste projeto, rituais e as cerimônias foram considerados como formas privilegiadas para
investigar e visualizar as vozes individuais contrapondo-as à coletiva.
Para Duvignaud, “teatro é uma cerimônia social distinta e
distinguível”. A representação teatral, segundo ele, não é um reflexo da
realidade, mas sim outra realidade; um produto artístico que incorpora uma
experiência real. O espaço da cerimônia, neste projeto, procura manter a
dimensão social apontada por Duvignaud, e a dimensão
ficcional ressaltada pelo como se de um texto em construção.
As interações
sociais dos participantes, em locais históricos, representam uma experiência
real; o envolvimento com os jogos teatrais visando uma abordagem crítica à
história oficial (e ao poder) reduz a distância entre as cerimônias social e
teatral e acentua o compromisso com a produção coletiva. A dimensão cerimonial
do teatro funciona como resistência cultural – afirma o indivíduo e a voz do
grupo (de cada cena).
Entre as abordagens
antropológicas ao ritual, a de Victor Turner (1988) se caracteriza por sua
associação a uma forma teatral em processo, e como atualização cultural dos participantes. Em vez da
ênfase na comunicação de aspectos culturais, Turner vê o ritual como uma
possibilidade de lidar com o poder, quando não há outra maneira de fazê-lo. Desta
forma passa a ser um recurso privilegiado para um projeto teatral em grupo que
associe lugar – história - memória.
As teorias do
espetáculo descrevem rituais, de maneira geral, como manifestações coletivas,
nas quais o comportamento cotidiano é transformado por meio da condensação,
exagero, repetição e ritmo. Os rituais envolvem gestos, cantos ou sons, cores
ou luzes, e vozes, todos orquestrados em torno de um tema comum. De acordo com Schechner (1993:12-13), Pavis
(1996:1-21) e Counsell (1996:143-178), os rituais se
constituem como uma experiência, contem status simbólico, incluem um processo
de ações performáticas, e apresentam estruturas com qualidades formais e
relacionamentos definidos.
Identidade,
Mobilidade e Articulação de Diferenças
Com freqüência
pode-se observar que a multiplicidade de vozes, ambigüidades e contradições são
evitadas ou sacrificadas em prol de um todo unificado e da diluição das
diferenças. Os riscos da diluição das diferenças são, por um lado, o simplismo
de uma mensagem unívoca ou de um argumento rigidamente estruturado; por outro
lado, a impossibilidade de representação dos objetivos e ideais de seus atores.
Em cada etapa do
fazer teatral pode-se achar evidência da não linearidade, decorrente do fato
que o próprio ato de jogar o jogo inclui um caminho para mudar suas regras.
Professores e diretores investigam formas de construir textos teatrais que
incluam múltiplas vozes, e permitam leituras distintas, através de uma
textualidade rica em metáforas, ambigüidade, complexidades, situações
inesperadas e imprevisíveis, intuições e contradições – ou seja, textos que se
aproximam da indeterminação.
Ao contrastar o
teatro moderno com o pós-moderno, Schechner (1982)
caracteriza este pela indeterminação
e o caótico. Ele compara os códigos
simples do modernismo com os múltiplos do pós-modernismo e argumenta que uma
forma dramática que inclui elementos sincrônicos de significação desafia uma
análise linear tradicional.
Barba e Savarese descrevem o processo criativo não linear como
aquele que “procede através de saltos, por meio de uma desorientação inesperada
que obriga o pensamento criativo a se reconhecer de nova maneira, abandonando
sua concha bem ordenada. É o pensamento da vida, não retilínio,
não unívoco” (1985:58). Eles afirmam que o material com o qual trabalhamos no
processo artístico tem duas vidas, uma utilitária e limitada pelo contexto de
sua criação, e a outra de significação autônoma e independente do contexto
original. “Mas é a dialética entre estas duas vidas, entre a ordem e a desordem,
que nos leva em direção ao que os chineses chamam `Li’, a ordem assimétrica e
invisível que caracteriza a vida orgânica” (1991:59).
A idéia de um grupo
iniciando uma jornada de descobertas sem um destino fixo, mas com uma direção
compartilhada é uma metáfora para um processo em que um dramaturg vai construir um texto
com os atores, o espaço, som e luz, em vez de papel e caneta. O objetivo é
permitir que a estrutura emergente do trabalho apareça do caos do fluxo
criativo do processo, e aí guiá-lo e formatá-lo. Em vez de impor a ordem de um
argumento e a visão fixa de um diretor, o dramaturg como guia, facilitador,
observador ativo.
Aqui reside a
necessidade de examinar a forma pela qual identidade
e diferença se relacionam com os
sistemas de representação nas práticas artísticas em escolas e teatro de grupo.
O espetáculo inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por
meio dos quais os significados são produzidos. É através destas práticas e do
uso destes sistemas que nos posicionamos como sujeitos. É por meio dos seus
significados que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos – os
sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos
nos tornar.
A ênfase na
apresentação e o papel-chave da cultura na produção dos significados levam a
questionar as práticas de significação quanto às relações de poder que estas
envolvem – quem é incluído e quem é excluído. Neste sentido, Kathryn Woodward
(1997:7-62) argumenta que a compreensão conceitual é o ponto de partida
para discutir a identidade na pós-modernidade, uma vez que a natureza da
preocupação com a construção da identidade está associada a uma visão
tradicional da história, e à noção que esta é inquestionável.
Entre os aspectos a
serem considerados neste debate, Woodward inclui o caráter relacional da
identidade (estabelecido em relação a outras identidades), o fato de que a
identidade se associa a condições sociais e tabus (inimigos são socialmente
excluídos), a associação entre identidade e os sistemas classificatórios que
mostram como as relações sociais são organizadas (por exemplo, ‘nós e eles’), o
fato de que algumas diferenças são enfatizadas enquanto outras são diluídas (a
identidade nacional esconde as diferenças de classe), e a necessidade de negociar
contradições.
O
prazer do efêmero, do processual, da representação da diferença
Um dos prazeres do
fazer teatral é que ele permite que o indivíduo se perca dentro,ou entre outros mundos, o que o leva a re-conceituar e
re-experimentar as relações entre ele e os outros – outras pessoas, outras
histórias, outras realidades, outras linguagens. É esta possibilidade de estar perdido que torna possível que ele
encontre significados além do banal, que ele possa ler a cena e o mundo através
de outras perspectivas.
As edições já
realizadas com o projeto teatro em
trânsito iniciaram com a identificação dos espaços, construção dos roteiros
de cada cena (pela equipe de pesquisa que se constituiu para cada edição), e
apresentação destes espaços e roteiros para os moradores e estudantes de teatro
que atenderam à chamada para o primeiro encontro.
A sedução foi o
recurso utilizado para agregar o elenco – os argumentos giraram em torno do
prazer de encontrar o diferente, em
seis encontros de finais de semana, para explorar a história não-oficial e questionar
as relações de poder. O apelo à mudança do olhar, relacionada com o lugar, a
identidade, a história e as relações de poder, foi central à formação dos
grupos.
Formados os grupos,
a partir das identificações individuais com o lugar e o argumento proposto, as
cenas passaram a ser construídas, cada qual em seu espaço. A ambientação cênica
fez parte do processo de experimentação, com a presença e articulação dos
atores em cena, introdução de rituais ou cerimônias, confronto entre texto e contratexto, memória e contramemória.
O foco no contratexto implicar ler dentro, sobre e contra um
texto. Ao cruzar textos distintos, o que requer lê-los criticamente e aprender
seus limites, revela-se sua agenda oculta, ou seja, revela-se o que está por
trás da história oficial. De acordo com Giroux, a contramemória resiste a comparações quer com a noção
humanista de pluralismo ou com a celebração da diversidade por si só (1991:32).
As interações lugar – história – memórias funcionam
internamente como contra-texto e contra-memória. Ao reunir elementos de fontes
distintas, cada cena provoca novos insights sobre as razões atrás dos
fatos e suas implicações. Ao nível externo, a interpretação também pode
funcionar como contra-texto ou contra-memória – o deslocamento de ações e
atitudes, ou a introdução de um personagem deslocado, chamam a atenção para o
que está por trás da cena histórica e levam o espectador a perceber as
possibilidades daquilo que não ocorreu.
O papel do grupo de
pesquisa foi o de identificar e articular as diferenças culturais, histórias de
vida e linguagens, tornando-as explícitas. Isto só foi possível através da
inclusão de rituais e cerimônias. Exemplificando:
1) em uma cena
sobre a compra de votos na eleição de 1947, os eleitores, acocorados no pátio
em frente do local de votação, aguardavam a melhor oferta. Quando os cabos
eleitorais sondavam suas necessidades, um por vez descrevia sua prioridade com
base nas histórias colhidas através das entrevistas com aqueles que participaram
daquela eleição. A ampliação das necessidades ocorria quando os cabos
eleitorais do partido oposto faziam a mesma proposta. A caracterização dos
personagens e o texto seguiam um ritual conhecido pela platéia, mesmo que de
forma indireta, mas ainda não explicitado localmente. A conclusão da cena
apresenta um eleitor bêbado, que ao declarar seu voto e ser ameaçado de prisão,
circula entre os espectadores, recitando “O analfabeto político”, de Brecht. A
reação dos atores-eleitores e do público, e a expressividade da argumentação do
bêbado, conferiram um sentido de cerimônia a esta cena.
2) outra cena,
sobre a visita de D. Pedro II, em 1845, ocorreu no espaço onde o imperador foi
recebido, hoje a ruína de um casarão, onde apenas as pareces externas se mantém.
Os atores formaram grupos familiares, crianças e adultos, em trajes de gala
(cedidos pela escola de samba local), espalhados pelo espaço, esperando a régia
visita. O público também espalhado pelo mesmo espaço. O comitê imperial surge
com pompa, acompanhado por flautistas. Inicia-se a cerimônia. À época estava em
vigor o alvará régio de 1785, de Dona Maria I, A Louca, que mandou extinguir os
teares no Brasil, para que não houvesse competição de preços com os tecidos
produzidos em Portugal. Durante a cerimônia, manifestantes, vestidos com
tecidos de tear, se colocaram sobre as paredes (sem teto) do casarão. A
manifestação provocou adesões a favor (por aqueles que estavam recebendo as
comendas) e contra o imperador. A manifestação foi inspirada na atitude do
Padre Lourenço Rodrigues de Andrade, vigário da localidade entre 1797 e 1821,
que em protesto contra este alvará, apresentou-se à Corte vestido com tecidos
do tear local.
Nestas, como nas
demais cenas deste e dos outros ‘trânsitos’, o distanciamento histórico, a
irreverência e ironia na escolha do contra-texto e da contra-memória,
garantiram a identificação dos atores com a cena em termos de abordagem
estética e senso crítico. A questão da ‘identidade’, usualmente privilegiada na
análise e desenvolvimento de processos de teatro em comunidade, não entrou em
foco. Em contrapartida, a noção de diferença
como postura pessoal (nos rituais e cerimônias), ou como originalidade,
tornou-se central. A diferença
enquanto postura representou a voz social do ator, e enquanto originalidade,
sua voz expressiva.
Lugar
Praticado
As quatro edições
do projeto teatro em trânsito
ocorreram entre 2001 e 2004. De lá até hoje várias análises foram realizadas e
publicadas, uma vez que versões simplificadas do Trânsito continuam a acontecer no espaço de escolas ou centro
comunitários, dirigidos por ex-alunos que participaram de uma ou duas versões
do projeto. Relatos casuais e informais, durante este período, indicaram que a
significação do espaço foi a mais acentuada conseqüência destas experiências.
Locais que antes dos eventos passavam despercebidos, tais como os fundos de uma
igreja, um ponto de taxi, os tanques das lavadeiras, um ancoradouro de barcos
em um lugar ermo, ganharam uma nova dimensão.
Neste sentido, o
conceito de lugar praticado, usado por Michel de Certeau,
ao descrever a cidade como um lugar a ser apropriado pelo uso, tornou-se objeto
de reflexão já após a primeira edição do trânsito. Segundo Certeau,
as pessoas caminhando pelas ruas criam textos e constroem seus próprios
significados, e estes subvertem a lógica e a justificativa dos significados
oficiais que lhes são atribuídos (CERTEAU, 1984:117). A cidade em vez de um lugar torna-se um espaço, que é por ele definido como ‘um lugar praticado’.
As caminhadas e
usos cotidianos dos moradores pelos espaços de sua comunidade são a origem de
suas histórias. Assim, o deslocamento dado a um lugar, que passa a ser
observado através de um novo enquadramento e adquire outro significado, amplia
a possibilidade de criar conexões, ressonâncias e narrativas a partir do
cruzamento da história, lugar e percepção individual.
No sentido
epistemológico podemos detectar quatro dimensões de trânsito nesta forma de
teatro em comunidade, em decorrência da associação “história – espaço - ficção
– memória:
Trânsito
Histórico
– Percorrer cenas que ocorrem em períodos históricos distintos e estão
ambientados nos espaços em que aconteceram à época, possibilitaria uma viagem
ao passado? Ou a re-interpretação de fatos históricos? Ou a celebração de uma
história que passa a representar uma memória coletiva? Potencialmente
co-existem as três opções, uma vez que o espaço, na acepção de Certeau, é o cruzamento de vários lugares, que são
modificados constantemente pelas ações do sujeito.
Trânsito
Espacial
– Os espaços são re-significados através dos movimentos coletivos daqueles que
os habitam. Mudanças em seu uso se dão lentamente de geração em geração. Ao se
optar por um lugar para a realização de uma determinada cena se está indicando
uma possível re-significação do mesmo; o lugar próprio passa a ser o lugar
praticado. A experiência deste lugar, por todos aqueles que participaram
daquela cena, permanece nas histórias de vida dos atores e espectadores, embora
o sentido do lugar possa ser alterado com os usos que caracterizam a sua
mobilidade. Trânsito Semântico – o enquadramento de uma situação e os papéis de
seus interlocutores definem a linguagem utilizada. Parafraseando Wittgenstein,
“os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”. Certeau utiliza-se da obra de Wittgenstein e Foucault para mostrar como pessoas e
sociedades podem subverter a ordem do discurso fundador (do lugar fixo, de
origem) para apropriar-se dele e imprimir sua marca. Este processo Certeau chamou de tática
– ao mesmo tempo em que a significação do espaço surge a partir de um lugar
próprio, é transformado, pelo discurso, em um lugar praticado.
Trânsito
Social -
a ativação do significado da cena se dá através da interação ator –espectador –
espaço - texto. Cenas e personagens são criados em colaboração e indicam a
dimensão social da significação. Pode-se dizer que fica explicitada a interação
insider -outsider; histórias de vida - ficção;
espaço - lugar; história – lugar - espaço. O caminhar de seus atores pelos lugares
onde aconteceram as cenas, vai transformar cada lugar em um lugar praticado,
distinto para cada ator, em cada etapa de seu trânsito pessoal. Mas, como uma
cerimônia social distinta e distinguível (retomando Duvignaud),
pode-se dizer que estes espetáculos foram, no momento de sua realização, o
lugar praticado de um coletivo.
Teatro
em Trânsito foi um projeto que reuniu lugares significativos da
memória histórica de uma comunidade e de seu patrimônio arquitetônico e
cultural, para buscar sua história não oficial e desvendar sua agenda oculta (o
discurso do poder). Na história deste projeto, Michel de Certeau
foi uma descoberta posterior, após a realização do primeiro trânsito. Não
lembramos quando e em que circunstâncias ele surgiu; provavelmente ao redor de
alguma mesa de bar, durante a celebração da estréia, ouvindo um espectador bem
informado.
Foucault e Certeau utilizam a espacialidade como metáfora nas suas
análises do discurso. Para ambos a linguagem é uma construção na qual os
indivíduos se movimentam e interagem. Certeau vê
fissuras no discurso do poder, através das quais o sujeito pode subverter a
ordem e imprimir sua marca por meio da ação. Ele compara a linguagem ao traçado
de uma cidade (lugar próprio), onde cada morador faz o seu próprio caminho
(lugar praticado), (re)construindo-o ao longo de uma caminhada permanente.
Notas
1 Teatro em Trânsito foi um projeto de
pesquisa (CEART/UDESC) e extensão (DAC/UFSC) coordenado por mim entre 2001 e
2005. A primeira edição ocorreu em Santo Antônio de Lisboa (Florianópolis,
patrocínio UDESC, UFSC, e recursos do projeto de intercâmbio CAPES e Conselho
Britânico), a segunda na cidade de Nova Trento (patrocínio UDESC e Prefeitura
de Nova Trento), a terceira na cidade de Bombinhas (patrocínio UDESC e
prefeitura de Bombinhas) e a quarta novamente em Florianópolis, na localidade
de Ribeirão da Ilha (patrocínio UFSC). Em cada edição participaram entre 100 e
130 pessoas, alunos da UDESC, da escola local e moradores das localidades que sediaram
o evento.
Referências
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University, 1997.
BEATRIZ A.V. CABRAL (BIANGE CABRAL) é
professora do Curso de Artes Cênicas da UDESC (licenciatura, mestrado e
doutorado), e diretora de Artes Cênicas na UFSC. Tem mestrado pela ECA/USP e
doutorado pela University of
Central England in Birmingham. Coordenou intercâmbio
com a University of Exeter (Programa CAPES/Conselho Britânico) de 1997 a 2001.
Foi tesoureira da ABRACE - gestão 2002-2004. Publicou Ensino do Teatro - experiências interculturais (Org.) e Drama como Método de Ensino (Hucitec). Tem publicado artigos nas áreas de Pedagogia do
Teatro e Recepção.
BEATRIZ A.V. CABRAL (BIANGE CABRAL) is Professor of the Scenic Arts Post
Graduation Course of UDESC (degree, master's degree and doctorate), and
director of Scenic Arts in UFSC. She has a master's degree for ECA/USP and PHD
by University of Central England in Birmingham. She has coordinated the
Exchange Programme with the University of Exeter (CAPES/Conselho Britânico)
from 1997 to 2001. She was the account manager of the Brazilian Association of
Researchers in Scenic Arts (2002-2004). She has published Teaching Theater- intercultural
experiences (Org.) and Drama as Method of Teaching (Hucitec). She has
been publishing articles on The Pedagogy of Theater and Reception.