O TEATRO NO ESPAÇO DA CIDADE – O Lugar Praticado

THEATRE WITHIN THE CITY SPACE – The Practised Place

Biange Cabral

UDESC

Resumo

Pessoas transitam entre cinco cenas teatrais criadas através do cruzamento entre locais significantes de uma cidade, sua história e as memórias de seus habitantes mais antigos. Os atores – estudantes de teatro e moradores do local – apresentam a história não-oficial, fazendo uso de cerimônias e rituais para criar atmosfera e dar voz a todos. O público, dividido em cinco grupos, segue roteiros distintos, tendo como guia um contador de histórias, que durante o percurso narra os eventos nos quais se basearam cada cena. A parceria entre atores e moradores, na construção e apresentação do espetáculo, dá visibilidade ao contexto multicultural dos locais onde foram criados e corresponde a uma forma mosaica e não linear de ler o mundo. Rituais e Cerimônias são focalizados frente a questões de identidade, mobilidade e articulação de diferenças. O conceito de lugar praticado, usado por Michel de Certeau para descrever a cidade como um lugar a ser apropriado pelo uso, subsidiou esta reflexão sobre o espaço do espetáculo inserido no espaço da cidade.

Palavras-chave | Teatro e Cidade | Lugar – História – Memória | Cerimônias e Rituais | Articulação de Diferenças | Lugar Praticado.

Abstract

People walk through five theatre scenes which were constructed by crossing significant places of a town, its history and the memories of its elderly inhabitants. The actors – theatre students and locals – present the unofficial history, making use of ceremonies and rituals to create atmosphere and give voice to the whole group. The audience, splits into five groups, and follows distinct routes. Storytellers as guides, narrate the background events of each scene throughout the walking tour. The partnership between actors and locals in building and presenting the performance make visible the multicultural context of their town, and represent a mosaic and non linear mode of reading the world. Rituals and Ceremonies are considered under the perspective of identity, mobility and articulation of differences. The concept of practised place, used by Michel de Certeau to describe the city as a place to be appropriate by its use, supported this reflection about the space of a performance inserted into the space of the city.

Keywords | The theatre and the city | Place-History-Memory | Ceremonies and Rituals | Articulation of Differences | Practised Place.


“Onde, quando, por quem foram eles inventados? (...) O híbrido carrega as marcas do poder, mas, também as marcas da resistência” Tomás Tadeu

O projeto Teatro em Trânsito1 foi assim denominado devido ao trânsito de espectadores entre cenas distintas e concomitantes que ocorrem em um centro histórico, um bairro ou uma pequena cidade do interior. A estética teatral que o caracteriza está centrada no cruzamento entre lugar (locais representativos do patrimônio de uma localidade), a história destes lugares e as memórias sobre eles (crônicas, contos e entrevistas com antigos moradores).

As cenas, concomitantes e cronometradas em 10 minutos, se repetem tantas vezes quantas forem o seu número, e o caminhar de grupos de espectadores de uma cena à outra confere ao evento um sentido de cerimônia e confraternização. O elenco é formado por alunos de teatro e moradores do local em que se realiza o evento, sendo estes representativos de diversos extratos sociais e de diferentes faixas etárias.

Mas, Teatro em Trânsito também representa uma metáfora ao caráter processual de identificar e exercitar diferenças, observar a alteridade através do olhar do outro, associar histórias seminais da comunidade aos locais escolhidos, enfatizando o que está por trás delas (a história não-oficial).

Foram realizadas quatro edições do trânsito e a análise destas experiências mostrou que seu impacto nos participantes foi causado pela forma pela qual o tema foi abordado e o material introduzido: a transformação do espaço cotidiano que possibilitou novas formas de ver; a interação entre alunos de teatro e moradores locais de faixas etárias distintas; os personagens inesperados encontrados nas cenas e durante o percurso; a ressonância do contexto teatral com os contextos histórico e social dos participantes (analogias e identificações); o uso de rituais como uma forma de abrir espaço para as vozes individuais; o sentido de cerimônia em espaços alternativos (voz e presença).

O caminhar de uma cena à outra se constituiu como uma rede de cinco roteiros distintos, cada qual cruzando os demais e seguindo uma seqüência diferente de cenas a fim de facilitar o trânsito. Isto também facilitou a acomodação do público. Os contadores de histórias, como guias, conduzindo os espectadores. A intenção foi intensificar e salientar o caráter de cerimônia através da rotação do público – os ir e vir dos encontros sociais; a presença dos espectadores no espaço cênico; o sentido de pertencer; o contador de histórias como mestre de cerimônia.

Deslocamentos e Estranhamentos

 “(...) quando algo parece a coisa mais óbvia do mundo, isto significa que já se desistiu de qualquer tentativa para entender o mundo”.  Brecht

O contexto multicultural é hoje evidente não só nas cidades e grandes centros, mas também nos bairros (número crescente de migrantes e imigrantes), nas escolas e universidades (estudantes de outros estados e origens étnicas distintas). A multicultura se traduz em múltiplas formas visuais - a mídia aponta para uma forma mosaica e não linear de ler o mundo. Janet Murray chama a nossa atenção para histórias compostas por um mosaico de tomadas individuais; como tal, criam um padrão mosaico de pensamento, o qual nós agora aceitamos sem questionar (Murray, 1996:156-158).

Neste contexto, a possibilidade de focalizar aspectos da história do lugar, revivê-la, transformá-la e apresentá-la no próprio local onde os fatos ocorreram no passado, a partir de um trabalho de criação em grupo, e como parte de um coletivo de grupos, passa a ser uma experiência singular.

Por um lado, o olhar estrangeiro (o olhar do ‘outro’) exacerba as diferenças culturais. Este novo paradigma traz consigo uma cultura de escolhas – nós crescemos entre uma variedade de vozes culturais; é possível dizer que nós somos feitos de diferentes vozes, e como tal nos identificamos com aspectos particulares de cada uma delas em épocas distintas de nossas vidas. Pela perspectiva do teatro, podemos dizer que a diferença em cena permite visualizar mudanças de parâmetros de lugar, identidade, história e poder.


Por outro lado, o extracotidiano que caracteriza uma montagem em parceria, entre estudantes e moradores de um bairro, favorece a imersão. O impacto provocado pelas interações, no aqui e agora, com as múltiplas referências que constituem os diferentes códigos culturais, experiências e linguagens, leva os participantes a estranhar a atuação do outro, e os conduz a recontar e re-focalizar o texto.

Rituais e Cerimônias

Cerimônias têm sido teatralmente exploradas por serem associadas a eventos que marcam, comemoram ou celebram algo com significação cultural e histórica (Neelands, 1990: 47). Rituais são considerados como representações estilizadas, delimitadas por códigos e regras tradicionais, usualmente repetitivas e requerendo que seus atores se submetam a um grupo cultural ou étnico através de sua participação (Ibid: 40).

Faith Guss investigou aspectos comuns aos rituais (e cerimônias) presentes na prática educacional do teatro e em outras formas do fazer teatral, e listou características que interpenetram diferentes culturas e formam padrões distintivos da performance ritualista: intenção cultural, modo performático, atuação, potencial para posicionamento reflexivo dos atores e espectadores, aspectos de jogo, relacionamentos entre processo e produto, relacionamentos entre produtor, atores e espectadores, potencial para transformação Vs. confirmação Vs. interrogação Vs. reprodução da experiência, produção de significados particulares e universais (Guss, 2001:164).

Neste projeto, rituais e as cerimônias foram considerados como formas privilegiadas para investigar e visualizar as vozes individuais contrapondo-as à coletiva.

Para Duvignaud, “teatro é uma cerimônia social distinta e distinguível”. A representação teatral, segundo ele, não é um reflexo da realidade, mas sim outra realidade; um produto artístico que incorpora uma experiência real. O espaço da cerimônia, neste projeto, procura manter a dimensão social apontada por Duvignaud, e a dimensão ficcional ressaltada pelo como se de um texto em construção.

As interações sociais dos participantes, em locais históricos, representam uma experiência real; o envolvimento com os jogos teatrais visando uma abordagem crítica à história oficial (e ao poder) reduz a distância entre as cerimônias social e teatral e acentua o compromisso com a produção coletiva. A dimensão cerimonial do teatro funciona como resistência cultural – afirma o indivíduo e a voz do grupo (de cada cena).

Entre as abordagens antropológicas ao ritual, a de Victor Turner (1988) se caracteriza por sua associação a uma forma teatral em processo, e como atualização  cultural dos participantes. Em vez da ênfase na comunicação de aspectos culturais, Turner vê o ritual como uma possibilidade de lidar com o poder, quando não há outra maneira de fazê-lo. Desta forma passa a ser um recurso privilegiado para um projeto teatral em grupo que associe lugar – história - memória.

As teorias do espetáculo descrevem rituais, de maneira geral, como manifestações coletivas, nas quais o comportamento cotidiano é transformado por meio da condensação, exagero, repetição e ritmo. Os rituais envolvem gestos, cantos ou sons, cores ou luzes, e vozes, todos orquestrados em torno de um tema comum. De acordo com Schechner (1993:12-13), Pavis (1996:1-21) e Counsell (1996:143-178), os rituais se constituem como uma experiência, contem status simbólico, incluem um processo de ações performáticas, e apresentam estruturas com qualidades formais e relacionamentos definidos. 

Identidade, Mobilidade e Articulação de Diferenças

Com freqüência pode-se observar que a multiplicidade de vozes, ambigüidades e contradições são evitadas ou sacrificadas em prol de um todo unificado e da diluição das diferenças. Os riscos da diluição das diferenças são, por um lado, o simplismo de uma mensagem unívoca ou de um argumento rigidamente estruturado; por outro lado, a impossibilidade de representação dos objetivos e ideais de seus atores.

Em cada etapa do fazer teatral pode-se achar evidência da não linearidade, decorrente do fato que o próprio ato de jogar o jogo inclui um caminho para mudar suas regras. Professores e diretores investigam formas de construir textos teatrais que incluam múltiplas vozes, e permitam leituras distintas, através de uma textualidade rica em metáforas, ambigüidade, complexidades, situações inesperadas e imprevisíveis, intuições e contradições – ou seja, textos que se aproximam da indeterminação.

Ao contrastar o teatro moderno com o pós-moderno, Schechner (1982) caracteriza este pela indeterminação e o caótico. Ele compara os códigos simples do modernismo com os múltiplos do pós-modernismo e argumenta que uma forma dramática que inclui elementos sincrônicos de significação desafia uma análise linear tradicional.

Barba e Savarese descrevem o processo criativo não linear como aquele que “procede através de saltos, por meio de uma desorientação inesperada que obriga o pensamento criativo a se reconhecer de nova maneira, abandonando sua concha bem ordenada. É o pensamento da vida, não retilínio, não unívoco” (1985:58). Eles afirmam que o material com o qual trabalhamos no processo artístico tem duas vidas, uma utilitária e limitada pelo contexto de sua criação, e a outra de significação autônoma e independente do contexto original. “Mas é a dialética entre estas duas vidas, entre a ordem e a desordem, que nos leva em direção ao que os chineses chamam `Li’, a ordem assimétrica e invisível que caracteriza a vida orgânica” (1991:59).

A idéia de um grupo iniciando uma jornada de descobertas sem um destino fixo, mas com uma direção compartilhada é uma metáfora para um processo em que um dramaturg vai construir um texto com os atores, o espaço, som e luz, em vez de papel e caneta. O objetivo é permitir que a estrutura emergente do trabalho apareça do caos do fluxo criativo do processo, e aí guiá-lo e formatá-lo. Em vez de impor a ordem de um argumento e a visão fixa de um diretor, o dramaturg como guia, facilitador, observador ativo.

Aqui reside a necessidade de examinar a forma pela qual identidade e diferença se relacionam com os sistemas de representação nas práticas artísticas em escolas e teatro de grupo. O espetáculo inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos. É através destas práticas e do uso destes sistemas que nos posicionamos como sujeitos. É por meio dos seus significados que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos – os sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo no qual podemos nos tornar.

A ênfase na apresentação e o papel-chave da cultura na produção dos significados levam a questionar as práticas de significação quanto às relações de poder que estas envolvem – quem é incluído e quem é excluído. Neste sentido, Kathryn Woodward  (1997:7-62) argumenta que a compreensão conceitual é o ponto de partida para discutir a identidade na pós-modernidade, uma vez que a natureza da preocupação com a construção da identidade está associada a uma visão tradicional da história, e à noção que esta é inquestionável.

Entre os aspectos a serem considerados neste debate, Woodward inclui o caráter relacional da identidade (estabelecido em relação a outras identidades), o fato de que a identidade se associa a condições sociais e tabus (inimigos são socialmente excluídos), a associação entre identidade e os sistemas classificatórios que mostram como as relações sociais são organizadas (por exemplo, ‘nós e eles’), o fato de que algumas diferenças são enfatizadas enquanto outras são diluídas (a identidade nacional esconde as diferenças de classe), e a necessidade de negociar contradições.

O prazer do efêmero, do processual, da representação da diferença

Um dos prazeres do fazer teatral é que ele permite que o indivíduo se perca dentro,ou entre outros mundos, o que o leva a re-conceituar e re-experimentar as relações entre ele e os outros – outras pessoas, outras histórias, outras realidades, outras linguagens. É esta possibilidade de estar perdido que torna possível que ele encontre significados além do banal, que ele possa ler a cena e o mundo através de outras perspectivas.

As edições já realizadas com o projeto teatro em trânsito iniciaram com a identificação dos espaços, construção dos roteiros de cada cena (pela equipe de pesquisa que se constituiu para cada edição), e apresentação destes espaços e roteiros para os moradores e estudantes de teatro que atenderam à chamada para o primeiro encontro.

A sedução foi o recurso utilizado para agregar o elenco – os argumentos giraram em torno do prazer de encontrar o diferente, em seis encontros de finais de semana, para explorar a história não-oficial e questionar as relações de poder. O apelo à mudança do olhar, relacionada com o lugar, a identidade, a história e as relações de poder, foi central à formação dos grupos.

Formados os grupos, a partir das identificações individuais com o lugar e o argumento proposto, as cenas passaram a ser construídas, cada qual em seu espaço. A ambientação cênica fez parte do processo de experimentação, com a presença e articulação dos atores em cena, introdução de rituais ou cerimônias, confronto entre texto e contratexto, memória e contramemória.

O foco no contratexto implicar ler dentro, sobre e contra um texto. Ao cruzar textos distintos, o que requer lê-los criticamente e aprender seus limites, revela-se sua agenda oculta, ou seja, revela-se o que está por trás da história oficial. De acordo com Giroux, a contramemória resiste a comparações quer com a noção humanista de pluralismo ou com a celebração da diversidade por si só (1991:32).

As interações lugar – história – memórias funcionam internamente como contra-texto e contra-memória. Ao reunir elementos de fontes distintas, cada cena provoca novos insights sobre as razões atrás dos fatos e suas implicações. Ao nível externo, a interpretação também pode funcionar como contra-texto ou contra-memória – o deslocamento de ações e atitudes, ou a introdução de um personagem deslocado, chamam a atenção para o que está por trás da cena histórica e levam o espectador a perceber as possibilidades daquilo que não ocorreu.

O papel do grupo de pesquisa foi o de identificar e articular as diferenças culturais, histórias de vida e linguagens, tornando-as explícitas. Isto só foi possível através da inclusão de rituais e cerimônias. Exemplificando:

1) em uma cena sobre a compra de votos na eleição de 1947, os eleitores, acocorados no pátio em frente do local de votação, aguardavam a melhor oferta. Quando os cabos eleitorais sondavam suas necessidades, um por vez descrevia sua prioridade com base nas histórias colhidas através das entrevistas com aqueles que participaram daquela eleição. A ampliação das necessidades ocorria quando os cabos eleitorais do partido oposto faziam a mesma proposta. A caracterização dos personagens e o texto seguiam um ritual conhecido pela platéia, mesmo que de forma indireta, mas ainda não explicitado localmente. A conclusão da cena apresenta um eleitor bêbado, que ao declarar seu voto e ser ameaçado de prisão, circula entre os espectadores, recitando “O analfabeto político”, de Brecht. A reação dos atores-eleitores e do público, e a expressividade da argumentação do bêbado, conferiram um sentido de cerimônia a esta cena.

2) outra cena, sobre a visita de D. Pedro II, em 1845, ocorreu no espaço onde o imperador foi recebido, hoje a ruína de um casarão, onde apenas as pareces externas se mantém. Os atores formaram grupos familiares, crianças e adultos, em trajes de gala (cedidos pela escola de samba local), espalhados pelo espaço, esperando a régia visita. O público também espalhado pelo mesmo espaço. O comitê imperial surge com pompa, acompanhado por flautistas. Inicia-se a cerimônia. À época estava em vigor o alvará régio de 1785, de Dona Maria I, A Louca, que mandou extinguir os teares no Brasil, para que não houvesse competição de preços com os tecidos produzidos em Portugal. Durante a cerimônia, manifestantes, vestidos com tecidos de tear, se colocaram sobre as paredes (sem teto) do casarão. A manifestação provocou adesões a favor (por aqueles que estavam recebendo as comendas) e contra o imperador. A manifestação foi inspirada na atitude do Padre Lourenço Rodrigues de Andrade, vigário da localidade entre 1797 e 1821, que em protesto contra este alvará, apresentou-se à Corte vestido com tecidos do tear local.  

Nestas, como nas demais cenas deste e dos outros ‘trânsitos’, o distanciamento histórico, a irreverência e ironia na escolha do contra-texto e da contra-memória, garantiram a identificação dos atores com a cena em termos de abordagem estética e senso crítico. A questão da ‘identidade’, usualmente privilegiada na análise e desenvolvimento de processos de teatro em comunidade, não entrou em foco. Em contrapartida, a noção de diferença como postura pessoal (nos rituais e cerimônias), ou como originalidade, tornou-se central. A diferença enquanto postura representou a voz social do ator, e enquanto originalidade, sua voz expressiva.

Lugar Praticado

As quatro edições do projeto teatro em trânsito ocorreram entre 2001 e 2004. De lá até hoje várias análises foram realizadas e publicadas, uma vez que versões simplificadas do Trânsito continuam a acontecer no espaço de escolas ou centro comunitários, dirigidos por ex-alunos que participaram de uma ou duas versões do projeto. Relatos casuais e informais, durante este período, indicaram que a significação do espaço foi a mais acentuada conseqüência destas experiências. Locais que antes dos eventos passavam despercebidos, tais como os fundos de uma igreja, um ponto de taxi, os tanques das lavadeiras, um ancoradouro de barcos em um lugar ermo, ganharam uma nova dimensão.

Neste sentido, o conceito de lugar praticado, usado por Michel de Certeau, ao descrever a cidade como um lugar a ser apropriado pelo uso, tornou-se objeto de reflexão já após a primeira edição do trânsito. Segundo Certeau, as pessoas caminhando pelas ruas criam textos e constroem seus próprios significados, e estes subvertem a lógica e a justificativa dos significados oficiais que lhes são atribuídos (CERTEAU, 1984:117). A cidade em vez de um lugar torna-se um espaço, que é por ele definido como ‘um lugar praticado’.

As caminhadas e usos cotidianos dos moradores pelos espaços de sua comunidade são a origem de suas histórias. Assim, o deslocamento dado a um lugar, que passa a ser observado através de um novo enquadramento e adquire outro significado, amplia a possibilidade de criar conexões, ressonâncias e narrativas a partir do cruzamento da história, lugar e percepção individual.

No sentido epistemológico podemos detectar quatro dimensões de trânsito nesta forma de teatro em comunidade, em decorrência da associação “história – espaço - ficção – memória:

Trânsito Histórico – Percorrer cenas que ocorrem em períodos históricos distintos e estão ambientados nos espaços em que aconteceram à época, possibilitaria uma viagem ao passado? Ou a re-interpretação de fatos históricos? Ou a celebração de uma história que passa a representar uma memória coletiva? Potencialmente co-existem as três opções, uma vez que o espaço, na acepção de Certeau, é o cruzamento de vários lugares, que são modificados constantemente pelas ações do sujeito.

Trânsito Espacial – Os espaços são re-significados através dos movimentos coletivos daqueles que os habitam. Mudanças em seu uso se dão lentamente de geração em geração. Ao se optar por um lugar para a realização de uma determinada cena se está indicando uma possível re-significação do mesmo; o lugar próprio passa a ser o lugar praticado. A experiência deste lugar, por todos aqueles que participaram daquela cena, permanece nas histórias de vida dos atores e espectadores, embora o sentido do lugar possa ser alterado com os usos que caracterizam a sua mobilidade.  Trânsito Semântico – o enquadramento de uma situação e os papéis de seus interlocutores definem a linguagem utilizada. Parafraseando Wittgenstein, “os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo”. Certeau utiliza-se da obra de  Wittgenstein e Foucault para mostrar como pessoas e sociedades podem subverter a ordem do discurso fundador (do lugar fixo, de origem) para apropriar-se dele e imprimir sua marca. Este processo Certeau chamou de tática – ao mesmo tempo em que a significação do espaço surge a partir de um lugar próprio, é transformado, pelo discurso, em um lugar praticado.

Trânsito Social - a ativação do significado da cena se dá através da interação ator –espectador – espaço - texto. Cenas e personagens são criados em colaboração e indicam a dimensão social da significação. Pode-se dizer que fica explicitada a interação insider -outsider; histórias de vida - ficção; espaço - lugar; história – lugar - espaço. O caminhar de seus atores pelos lugares onde aconteceram as cenas, vai transformar cada lugar em um lugar praticado, distinto para cada ator, em cada etapa de seu trânsito pessoal. Mas, como uma cerimônia social distinta e distinguível (retomando Duvignaud), pode-se dizer que estes espetáculos foram, no momento de sua realização, o lugar praticado de um coletivo.

Teatro em Trânsito foi um projeto que reuniu lugares significativos da memória histórica de uma comunidade e de seu patrimônio arquitetônico e cultural, para buscar sua história não oficial e desvendar sua agenda oculta (o discurso do poder). Na história deste projeto, Michel de Certeau foi uma descoberta posterior, após a realização do primeiro trânsito. Não lembramos quando e em que circunstâncias ele surgiu; provavelmente ao redor de alguma mesa de bar, durante a celebração da estréia, ouvindo um espectador bem informado.

Foucault e Certeau utilizam a espacialidade como metáfora nas suas análises do discurso. Para ambos a linguagem é uma construção na qual os indivíduos se movimentam e interagem. Certeau vê fissuras no discurso do poder, através das quais o sujeito pode subverter a ordem e imprimir sua marca por meio da ação. Ele compara a linguagem ao traçado de uma cidade (lugar próprio), onde cada morador faz o seu próprio caminho (lugar praticado), (re)construindo-o ao longo de uma caminhada permanente.

 

Notas

1 Teatro em Trânsito foi um projeto de pesquisa (CEART/UDESC) e extensão (DAC/UFSC) coordenado por mim entre 2001 e 2005. A primeira edição ocorreu em Santo Antônio de Lisboa (Florianópolis, patrocínio UDESC, UFSC, e recursos do projeto de intercâmbio CAPES e Conselho Britânico), a segunda na cidade de Nova Trento (patrocínio UDESC e Prefeitura de Nova Trento), a terceira na cidade de Bombinhas (patrocínio UDESC e prefeitura de Bombinhas) e a quarta novamente em Florianópolis, na localidade de Ribeirão da Ilha (patrocínio UFSC). Em cada edição participaram entre 100 e 130 pessoas, alunos da UDESC, da escola local e moradores das localidades que sediaram o evento.

Referências

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BEATRIZ A.V. CABRAL (BIANGE CABRAL) é professora do Curso de Artes Cênicas da UDESC (licenciatura, mestrado e doutorado), e diretora de Artes Cênicas na UFSC. Tem mestrado pela ECA/USP e doutorado pela University of Central England in Birmingham. Coordenou intercâmbio com a University of Exeter (Programa CAPES/Conselho Britânico) de 1997 a 2001. Foi tesoureira da ABRACE - gestão 2002-2004. Publicou Ensino do Teatro - experiências interculturais (Org.) e Drama como Método de Ensino (Hucitec). Tem publicado artigos nas áreas de Pedagogia do Teatro e Recepção.

BEATRIZ A.V. CABRAL (BIANGE CABRAL) is Professor of the Scenic Arts Post Graduation Course of UDESC (degree, master's degree and doctorate), and director of Scenic Arts in UFSC. She has a master's degree for ECA/USP and PHD by University of Central England in Birmingham. She has coordinated the Exchange Programme with the University of Exeter (CAPES/Conselho Britânico) from 1997 to 2001. She was the account manager of the Brazilian Association of Researchers in Scenic Arts (2002-2004). She has published Teaching Theater- intercultural experiences (Org.) and Drama as Method of Teaching (Hucitec). She has been publishing articles on The Pedagogy of Theater and Reception.