REAVIVAR CHAFARIZES: uma
experiência de Intervenção Urbana
REVIVING WATERFOUNTAINS: an experience of
Eloísa Brantes
Mendes
UERJ
Resumo
A ação de levar água para os Chafarizes secos é o
ponto de partida da Intervenção Urbana realizada pelo Coletivo Líquida Ação. A
restauração efêmera do monumento o insere na memória viva da cidade.
Palavras-chave | chafariz |
água | arte contextual | poética líquida | intervenção urbana
Abstract
The
starting point of Coletivo Líquida
Ação’s urban intervention is the action of bringing
water to the dry and out of use waterfountains of Rio
de Janeiro. The monument’s ephemeral restauration is
thus inscribed in the city’s living memory.
Keywords | waterfountain | water | contextual art | liquid poetry | urban
intervention
Os
Chafarizes foram os primeiros monumentos de utilidade pública construídos na
cidade do Rio de Janeiro no séc.XVIII. A luta pela água, nos primórdios da
urbanização carioca, marcou os altos investimentos financeiros e arquitetônicos
empregados na edificação dos Chafarizes, que até o final do séc. XIX, tinham a
função de distribuir água para a população (CORRÊA, 1939). Verdadeiros pontos
de sociabilidade da vida urbana, os primeiros Chafarizes barrocos, edificados
próximos às igrejas e mercados, apresentavam uma forte carga simbólica nas
representações do poder público e religioso1.
A imponência singular destes monumentos também inclui o simbolismo da purificação,
associado à água que jorra (BACHELARD,
2002, p.148). A água das fontes é primitivamente uma água viva, sua pureza independe da ação de limpar, pois se
manifesta na própria substância da água em movimento (Fonte da Juventa).
Fig.1 · Chafariz da Pirâmide/Praça XV, por Jean Baptiste
Debret, 1826.
O atual estado de secura dos Chafarizes barrocos, que já foram pontos
vitais no funcionamento da cidade, guarda partes preciosas da memória do Rio de
Janeiro. Evidentemente o valor arquitetônico destes monumentos, particularmente
aqueles construídos pelo Mestre Valentim2,
permanece inabalável. Mas até que ponto a visibilidade dos Chafarizes sem água,
implica num passado desenraizado do presente? O Chafariz seco, desencarnado da
memória urbana, é situado como ponto nevrálgico da sociedade contemporânea na
intervenção urbana Baldeação que
trata este artigo.
Baldeação remete ao deslocamento de lugar, curta interrupção no caminho, mudança
de transporte para seguir viagem. Em todos os casos, baldear abre possibilidades de desvio no trajeto inicial.
A ação de levar água para os Chafarizes secos com
baldes propõe um desvio no cotidiano de quem passa, atraindo seu olhar para a
falta de água no monumento. A proposta desta ação com baldes não é apenas
valorizar a arquitetura do Chafariz, mas restaurar seu campo de visibilidade,
interferindo no ritmo urbano cotidiano e na memória da cidade pela presença da
água. No desvio do olhar passante, o transporte da água remete ao passado vivo
do Chafariz: fonte que abastecia de água a população.
Fig.2 · Baldeação
no Chafariz da Glória/RJ, 2008.
Esta relação público/privado é invertida pelo circuito de água aberto
pela Baldeação. Até o final do séc.
XIX a água retirada dos Chafarizes era levada pelo braço escravo para dentro
das casas. Na ação com baldes, a água é retirada de dentro das casas para ser
levada até o Chafariz seco, no trabalho braçal de artistas carregando baldes. O
objetivo do transporte da água é colocar o Chafariz em funcionamento por alguns
minutos. O trabalho braçal de carregar baldes insere a presença do artista na
vida comum.
A dimensão política desta Intervenção Urbana é
evidente: criticar o desprezo público pelos Chafarizes, patrimônio
histórico-cultural da humanidade. No entanto o pensamento político se instaura
fora da lógica racional, na medida em que a ação estabelece um diálogo
sensorial corpo/espaço mediado pela presença da água. Baldeação interpela a atividade do passante, possível
espectador-participante, sem delimitar uma estrutura significante, na narrativa
ou explicativa sobre “o que está acontecendo”. Mas envolve sua presença como
parte ativa nos processos de associação entre fragmentos da realidade, através
das relações corpo/água/espaço.
Fig. 3 · Banho Público no Chafariz da Pirâmide/Praça XV-RJ, 2007.
A Intervenção foi realizada em três Chafarizes barrocos (Chafariz da
Pirâmide/ Praça XV –RJ
3; Chafariz da
Glória/ Glória- RJ e Chafariz dos Contos/ Ouro Preto – MG) entre 2007 e 2008,
pelo Coletivo Líquida Ação4. A formação
diversificada dos artistas (música, cinema, dança, teatro, moda, vídeo)
envolvidos neste Coletivo, converge no interesse comum pela performance como
campo de pesquisas sobre os limites arte/realidade, área movediça que
desestabiliza as fronteiras da linguagem artística. Este investimento na temporalidade imediata da obra (ARDENNE,
2004), constituinte da in-definição de performance, é o eixo das práticas do
Coletivo em sua proposta de explorar a materialidade da interação corpo-água no
processo de desmaterialização da “obra cênica”.
A utilização da água nas performances e
intervenções urbanas do Coletivo Líquida Ação, se enquadra no vasto panorama da
arte contemporânea que, a partir da segunda metade do séc. XX, introduz
materiais e procedimentos incomuns que solicitam o espectador-participante como
agente da experiência estética (FORTES, 2008). Hugo Fortes mostra que a
introdução da água como material na arte contemporânea participa da
experimentação fenomenológica vinculada à experiência estética. Os líquidos, enquanto matéria, passam a ser
vistos pela arte contemporânea como possíveis de abrigar significados que se
deduzem de seus próprios processos e características fenomenológicas (FORTES,
2008,p. 37). Na temporalidade
imediata das obras contemporâneas a utilização da água é matéria de sua percepção
sensorial e não representação de imagens simbólicas.
A característica fluída dos materiais líquidos em
sua ausência de formas fixas corresponde à identidade artística do Coletivo,
cujo nome se refere ao estado líquido da
ação. Indefinição formal da ação maleável, incapaz de ser reproduzida de
maneira idêntica. Ação cujo desenvolvimento é sensível aos fluxos do
tempo/espaço de sua realização (MENDES, 2009). Este conceito operatório, que emerge das experiências práticas do
Coletivo, também remete ao valor de liquidez da arte na sociedade de consumo. A
liquidação da arte, como um apelo ao público consumidor, propõe um diálogo com
a “síndrome consumista” característica da vida urbana, que destronou a duração, promoveu a transitoriedade e colocou o valor da
novidade acima do valor da permanência (BAUMAN, 2007, p.83), na economia do excesso, do desperdício
e do descartável. Neste contexto social o consumo da arte pode ser tanto uma
marca de bom gosto e de sensibilidade, um prazer pessoal, ou um investimento
financeiro de alto nível no mercado da bolsa de valores. Mas, como qualquer
produto, a sua condição de liquidez coloca em jogo os modos de produção e de
circulação do trabalho artístico, cuja maleabilidade se libertou dos critérios
de definição da arte em si.
Fig. 4 · Baldeação
no Chafariz da Glória/RJ, 2008.
As performances
do Coletivo, desenvolvidas como campo exploratório de ações líquidas, visam intensificar a presença do artista na
realidade coletiva (ARDENNE, 2004, p.41) da sociedade de consumo. Neste
sentido a Intervenção Urbana nos Chafarizes secos altera a relação tradicional
entre arte e público baseada na contemplação, e propõe uma arte pública, cujo
caráter provocativo comporta diversos graus de participação dos passantes.
Meu processo de montagem da Intervenção Urbana, na
concepção e realização da proposta, se diferencia em muitos aspectos da direção
de um espetáculo. Mas isto não implica na ausência de um “olhar exterior” que
de alguma forma elabora a “espetacularidade” da ação
coletiva. A presença do meu “olhar exterior” consiste basicamente na escolha
dos espaços a serem ocupados pelos performers e na
elaboração das dinâmicas de expansão/retração do corpo coletivo que se
configura através da água, como elemento de ligação entre os performers e matéria dos seus processos de composição em
tempo real. Neste sentido, a dimensão espetacular da ação consiste na subversão
perceptiva do espaço público pela interação corpo-água. O meu controle sobre o
resultado cênico é mínimo. O lugar do espectador é indefinido. A objetividade
das ações é apenas um ponto de partida na configuração do evento, que perturba
as fronteiras entre arte/não arte.
Na Intervenção Urbana, o consumo da água é a
primeira preocupação suscitada nas pessoas. Para fazer o Chafariz funcionar é
preciso levar muitos baldes cheios de água até o monumento. A parte inicial da Baldeação consiste na ação dos performers pedirem água para encher os baldes, nos
estabelecimentos comerciais, casas particulares, em todo lugar que seja
acessível e próximo do Chafariz escolhido. A primeira pergunta provocada pelo
pedido da água é: o que você vai fazer
com isso? A resposta insere a presença do Chafariz no consumo cotidiano da
água. Em seguida o transporte de vinte baldes até o Chafariz suscita espanto e
muitas opiniões sobre o valor da água. Neste primeiro momento todos os baldes
são cuidadosamente escondidos dentro do Chafariz, para mais tarde surgirem num
milagre artificial.
Fig.5 · Baldeação no Chafariz da Glória/RJ, 2008.
A segunda parte da Baldeação
explora em detalhes a arquitetura do espaço urbano nas proximidades do
Chafariz. Cada performer ocupa um lugar
pré-determinado. Sozinhos eles esperam a chegada da água com seus baldes
vazios. Esta ocupação pontua o circuito da água com estações. As ações
individuais com o balde vazio potencializam o espaço arquitetônico, contrastam
com o ritmo cotidiano da cidade, suscitam interações, enfim, ativam fluxos
sensoriais que de maneira sutil interferem no caminho de quem passa.
O primeiro balde de água, que detona a abertura do
circuito líquido, é jogado por alguém que está no lugar da Intervenção. Este
gesto marca a inversão do trajeto anterior da água, que era tirada do Chafariz
para dentro das casas. O transporte da água forma um corpo coletivo. A chegada
da água em cada estação a aproxima do Chafariz. A acumulação procissional dos performers, que
na ação de receber e dar água acompanham sua chegada até o Chafariz, aos poucos
se configura como algo extra-ordinário que interfere de maneira explícita no
cotidiano da cidade. Porém o desvio do olhar passante, provocado pela ação
coletiva não se fundamenta na distância atuante/espectador, mas na configuração
de um acontecimento inesperado.
Fig. 6 · Baldeação no Chafariz dos Contos em
Ouro Preto/MG, 2008.
A chegada da água no Chafariz é uma festa. Todos sobem no monumento. A
posição dos corpos grudados no Chafariz imprime uma dimensão carnal à
construção. A alegria contagiante faz vibrar a memória do monumento na
imaginação de quem passa. Milagrosamente, o Chafariz volta a jorrar água
através dos baldes, que surgem de repente. No funcionamento artesanal e efêmero
do monumento, a água é matéria do processo artístico que insere o passado no
presente pela temporalidade imediata da
ação. A água que jorra encarna o
simbolismo da purificação no êxtase dos corpos que se banham no Chafariz. O
campo de visibilidade do Chafariz é restaurado no instante do jorro-acontecimento da água
viva que surge do milagre artificial. Agora não é mais um desvio no olhar
passante que está em jogo, mas uma parada quase obrigatória, sua observação
atenta ao que acontece com o Chafariz, seu envolvimento ou sua crítica diante
do banho festivo, sua reflexão sobre o consumo da água, sua percepção do
monumento seco, sua sensibilidade em relação à memória da cidade em que
vive.
O tempo de duração do funcionamento do Chafariz é
determinado pelo fim da água. Quando acaba o banho os performers
saem do Chafariz, sentam nos baldes como se fossem bancos, e se posicionam como
espectadores do monumento molhado. A atitude contemplativa instala um retorno à
relação tradicional do espectador com a obra de arte. O silêncio se instaura e
o monumento pulsa a memória de sua própria existência. Uma espécie de aura
molhada encanta todos, performers, passantes,
comerciantes, mendigos, etc. Mas de repente, surge outro balde que sai do
Chafariz como se tivesse vida própria.
A imagem deste último balde solitário é seguida de
uma voz potente: um real, é só um real! Quem vai querer? Olha aí, é pra acabar!
Só um real. Quem quer? O balde, repleto de copinhos de água mineral,
devidamente lacrados e higienizados, detona o comércio da água. A venda da água
em copo insere uma ação banal e cotidiana numa reflexão sobre o valor da água e
a secura do Chafariz. Construído
para distribuir de água, estes monumentos de utilidade pública também foram o
primeiro passo no processo de privatização da água.
Fig. 7 · Baldeação no Chafariz dos Contos em
Ouro Preto/MG, 2008.
Notas
1 As imagens dos
Chafarizes retratados por Jean Baptiste Debret, na primeira metade do séc. XIX, mostram a
efervescência do movimento das pessoas em torno da água.
2 Chafariz da
Pirâmide, inaugurado em 1789 (na Praça XV), Chafariz Fonte dos Amores,
inaugurado em 1785 (Passeio Público), Chafariz das Saracuras, construído no
convento da Ajuda em 1799 (Cinelândia), transferido em 1911 para Copacabana,
está atualmente na Praça General Osório (Ipanema). A mobilidade dos Chafarizes
na história do urbanismo carioca é surpreendente. Sobretudo os Chafarizes
franceses de ferro fundido, que chegaram no séc.XIX, como representantes da era
industrial e da mentalidade progressista, circularam bastante pela cidade do
Rio de Janerio (EULÁLIA, 2005)
3 Esta primeira
Intervenção Urbana (2007) nomeada Banho Público, foi criada por mim e Guto
Macedo. Baldeação é uma continuidade deste processo, mas incluindo uma
complexidade maior na collage
corpo/espaço/água.
4 Desde 2006,
quando o Coletivo se formou, muitas pessoas circularam por ele. Mas existe um
núcleo de colaboradores que se mantém: Juliana Sansana,
Ana Lima, Jéssica Barbosa, Diogo Benjamin, Luciana Franco, Miguel Przewodowski, Carlos Borges, Pedro Moraes, Maïda Chandez-Avekian, Produtora
Casa Veia Vó Filmes e EUAMO. As pesquisas de
movimento e materiais contam com o apoio logístico da Escola de Teatro Martins
Penna. Sobre a produção artística do coletivo ver www.coletivoliquidaacao.blogspot.com
Referências
ARDENNE, Paul. Un art contextuel. Paris: Flammarion,
2002.
BACHELARD, Gaston.
A água e os sonhos. Ensaio sobre a
imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.148.
BAUMAN, Zygmunt.
Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p.83.
CORRÊA, Magalhães. Terra Carioca
– Fontes e Chafarizes. Coleção Memória do Rio, 4. Rio de Janeiro:
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro; Imprensa Nacional, 1939.
FORTES, Hugo. Poéticas líquidas: água na arte contemporânea. Tese de Doutorado em
Artes Plásticas/ ECA – USP, 2006.
JUNQUEIRA, Eulália. Arte Francesa do Ferro no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Memória
Brasil, 2005.
LEHMANN, Hans-Thies.
Teatro pós-dramático. São Paulo: CosacNaify, 2007.
MENDES, Eloísa Brantes.
Fronteiras movediças da dança-teatro:
reflexões sobre o movimento instantâneo na dramaturgia corporal do performer. Anais do I Seminário Nacional de
Dança-Teatro, UFV. www.dan.ufv.br/cdtb
ELOÍSA BRANTES
MENDES é doutora em Artes Cênicas pela UFBA/Paris8 e dirige o Coletivo
Líquida Ação desde 2006. Atualmente trabalha como professora do Instituto
de Artes/UERJ
ELOÍSA BRANTES MENDES has a PhD in scenic arts (UFBa/Paris 8) and has been directing Coletivo
Líquida Ação since
2006. She currently teaches
at Instituto de Artes/UERJ.